4. Heterogeneidade e experiência
p. 93-130
Texte intégral
«O rap verdadeiro é o rap que fala da vida real, do que a gente passou; tu tens de falar do que passaste, do que estás a sentir, não é falares de uma cena de outro gajo... é difícil de explicar.» (Pump)
«Sinto-me mais à vontade andar assim vestido. Isto é um vício.» (SamThe Kid)
«Nós estamos a criar o nosso próprio estilo. Um estilo versátil, somos polivalentes. Quero fazer um pouco de tudo, faço hip-hop, sou livre, sou uma ave. Voo por todos os lados, toco um bocadinho de tudo.» (Boss Ac em entrevista ao jornal Blitz, 27.12.94)
«Um gajo para ser rapper, à partida, tem que ter um granda ego. E uma cena mais ou menos egocêntrica e gabarolas.» (Pac Man)
1Como tenho vindo a tentar mostrar, e ao contrário do que alguns discursos académicos tendem a afirmar, o rap não se constitui como uma forma cultural autónoma e cristalizada, mas passa antes por uma constante definição e redefinição por parte dos indivíduos que o produzem e consomem. Não tem território fixo, nem protagonistas tipo, concretizando-se em torno de instrumentos simbólicos (como a roupa, a linguagem ou gestos), específicos mas manipuláveis, segundo diferentes formas de apropriação. Assim, ser rapper faz parte de um projecto construído a partir de um vasto «campo de possibilidades» (Velho 1994)1 de produtos culturais e ideológicos acessíveis aos jovens e capazes de oferecer fórmulas eficazes de constituição de significação em torno da sua experiência quotidiana. Ser rapper implica, portanto, uma opção e uma gestão individuais desses recursos culturais e ideológicos (que correspondem a determinadas práticas), associadas à capacidade de manipulação do «potencial de metamorfose» (Velho 1994) de cada indivíduo, na medida em que a produção e o consumo de música rap não esgotam todas as dimensões criadas pelas redes de sociabilidade. Isto é, estar integrado na cultura hip hop não implica que esta seja a única área de investimento pessoal, tendo em conta a complexidade das interacções sociais criadas em meio urbano contemporâneo:
«(...) maleabilidade e fluidez é um dos aspectos mais cruciais para um esforço de compreensão das sociedades complexas, particularmente nas grandes metrópoles. Cria uma possibilidade de jogo de papéis e de identidade, que é uma das marcas mais expressivas de seu estilo de vida. Os limites entre norma, conformismo, transgressão, constantemente são colocados em xeque. Todas as noções de normalidade e desvio têm um carácter eminentemente instável e dinâmico.» (1994: 25).
2Assim, o rap deve ser entendido como um campo de significações caracterizado por uma heterogeneidade de experiências e práticas, que observei no terreno e que aqui procurarei descrever, podendo de alguma forma questionar a sobredeftnição de que o estilo musical tem sido alvo, tal como defendi no primeiro capítulo2.
3Esta heterogeneidade coloca-se imediatamente ao nível dos praticantes/consumidores deste estilo e por isso impõe-se começar pela primordial das perguntas: afinal, quem é que ouve e/ou produz música rap? Tal como se verá mais adiante, existe, em termos gerais, uma sobreposição entre os dois universos-o da produção e o do consumo-já que, ao contrário de outras práticas artísticas, a produção de rap depende em grande parte do seu consumo. Na medida em que o processo criativo está dependente de um sistema de valores que se expressa numa retórica de estilo definida-a cultura hip hop-, os rappers têm de ouvir rap para poder fazer rap, ou seja, para apreenderem os signos do seu estilo e encontrar assim os conceitos que permitirão constituir a sua própria gramática.
4É possível afirmar que existem rappers um pouco por todo o país. Esta proliferação do consumo e, em alguns casos, da produção de rap, foi por mim comprovada através do acompanhamento, em 1997, do projecto «Oficinas de Rap» organizado pela Associação Sons da Lusofonia, que percorreu as Delegações Regionais do Instituto Português da Juventude. Também os programas de rádio dedicados ao rap (como o lendário Repto de José Marino na Antena 33) contavam recorrentemente com a participação (através do envio de cartas e de maquetes) de jovens de várias zonas do país4. O programa radiofónico de Marino foi um dos instrumentos mais importantes na divulgação de eventos e projectos nacionais (e internacionais), constituindo uma peça chave do movimento. O que é curioso é que alguns dos seus mais assíduos ouvintes e participantes em passatempos recorrentemente lançados pelo programa são jovens de fora de Lisboa, o que corrobora a ideia da extensão geográfica do fenómeno.
5A observação das Oficinas de Rap (orientadas pelos rappers Boss Ac e Guto, este último membro dos Black Company), que tiveram como objectivo uma «educação para a cidadania através do rap» ao «consciencializar os jovens para os problemas actuais do mundo, contribuindo para a sua educação cívica e construção de valores que reforcem o seu sentido e identidade comunitária, tolerância, respeito pelas diferenças e interdependência», forneceu alguns elementos importantes sobre a forma como o rap é vivido fora das cidades de Lisboa e Porto5. O distanciamento face aos principais centros de pro dução e consumo mediático de rap em Portugal (as hip hop parties) afasta esses grupos de espaços de interacção fundamentais que ajudam a estruturar determinadas formas específicas de viver o estilo. Nestes casos, a vivência do rap não se inscreve numa prática quotidiana urbana e multicultural, enquadrada por uma complexa rede de sociabilidades, tal como acontece em Lisboa e, ainda que em menor grau, no Porto.
6Um dos exemplos deste distanciamento em relação às formas colectivas e partilhadas de experienciação do estilo, pode ser dado a partir da Oficina de Rap realizada na Guarda a 18 de Junho de 1997. Os seus participantes reduziram-se a cinco rapazes pertencentes a um mesmo grupo de rap local, um grupo diferente de todos aqueles eu vira até aí: armados de guitarras e bateria, envergando trajes que os conotavam mais com o grunge* do que com o hip hop, colocaramnos perante um híbrido que remetia para uma multiplicidade de referências de estilos musicais. Ao contrário do que acontece muitas vezes com os grupos de rap, os elementos deste colectivo possuíam já conhecimentos musicais associados à interpretação de instrumentos (guitarra, bateria). O líder do grupo (o único que envergava roupa conotada com o hip hop) explicou-nos que tinha sido um vizinho seu, com família nos Estados Unidos da América, que lhe havia mostrado os primeiros discos de rap. Foi nessa altura que trocou o metal (heavy-metal) pelo hip hop e que começou a luta pela construção da sua nova identidade musical que acabava por ter como referência elementos distantes, ou mesmo ausentes já que, tal como nos afirmou, muitas das questões tidas como privilegiadas pelos rappers não terem grande pertinência em relação às suas experiências de vida. Foi neste contexto que Mc Rodriguez (o líder do grupo) impôs aos seus colegas uma nova linguagem com a qual eles não estavam familiarizados, o que nem sempre teve bons resultados: «Os grupos de rap que eu formei acabaram todos, porque no fundo só eu é que gosto de rap.»
7A extensão geográfica do fenómeno parece ser, assim, um dos principais indicadores da existência de uma heterogeneidade inerente, provocada não só pelo grau de acesso aos centros de produção hegemónica e aos seus mecanismos de divulgação (discos, revistas, concertos, etc.) – sendo que alguns deles se encontram já descentralizados ao tornarem-se acessíveis através da rádio e da TV por cabo –, mas também pelo desequilíbrio na geografia urbana, social e cultural que caracterizam o território nacional e que criam necessariamente diferentes experiências quotidianas e, por isso, diferentes formas de utilizar o rap para as exprimir.
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8A partir da experiência no terreno foi possível distinguir duas grandes formas de imersão na cultura hip hop. Uma primeira feita através da partilha e contaminação de gostos e identificações entre grupos de amigos e depende portanto de itinerários de acesso a bens culturais assentes nas redes de sociabilidade onde a vizinhança, a escola e a família surgem como ancoradouros fundamentais.
Tínhamos as tradições e havia um grupo de pessoal aqui que os pais eram amigos comuns, que se conheciam já de Cabo Verde. Conhecemo-nos desde putos. Viemos aqui para a escola e o rap uniu-nos um bocado, criámos assim um grupo.
Quando fiz 13 anos reprovei na escola por causa disso. Foi aí que as coisas começaram mesmo a tomar outras proporções, até vinha pessoal de Lisboa para aqui. São coisas que não têm nada a ver com o rap directamente mas que criaram, pronto, raízes... hoje tu vês blacks a andarem todos juntos, tu naquela altura não vias nada disso e foi aqui nesta escola que começou6. Os primeiros graffitis que se viram foi aqui nestas paredes, fui eu que fiz. Levei suspensões na escola por causa disso. Mas pronto. Foi uma altura bué importante. Foi em 88 mais ou menos. Quando para as pessoas em geral o rap era Pump up the jam, nós já ouvíamos umas cenas. Não chegava quase nada às nossas mãos mas o que chegava a gente devorava e curtíamos aí. íamos ao Visage, foi nesse ano que começou. Lá passava «rockalhada» mas chegava a uma certa hora e eles começavam a passar rap, porque havia pessoal que ia lá só por causa disso. Era Public Enemy e... os sons da altura. Mas foi aí nessa altura que o movimento começou a crescer. E aí por volta de 89 é que o pessoal começou a fazer estrilhos. No início íamos para qualquer sítio e não se passava nada, podíamos ir 50 gajos e não acontecia nada. Naquela altura ninguém bebia praticamente, era uma altura diferente. E foi aí que se criou mesmo a paixão do rap para mim. (Sandro, 20 anos, Cova da PiedadeAlmada)7.
9Neste foco de emergência, o rap funcionou como a estrutura de significação que permitiu conferir sentido à experiência da diáspora. A descoberta de uma cultura alternativa à dos seus pais permitiu não só criar novas identidades diaspóricas como legitimar a sua visibilidade – tornou-se assim possível aceder a locais públicos e encontrar espaço social para os «grupos de negros». Aqui o rap não se tornava tão interessante do ponto de vista musical, mas funcionava antes como uma cartilha onde se aprende uma nova interacção e linguagem que permite preencher uma identidade suburbana negra em construção. Em termos mais pragmáticos passava por encontrar algo que substituísse o kizomba* e o reggae, para talvez lá voltar mais tarde.
No tempo dos Zulus, da Zulu Nation! Granda feeling. (...). Nessa altura o principal ali era o grupo, não era a música. O grupo já se conhecia, depois juntouse muito mais à volta da música, do rap. A música era importante, mas não era o mais importante. A música passou a ser mais importante quando o grupo diminuiu e passámos a levar a coisa mais a sério. No princípio eu nem estava, porque era um grupo de rua e eu nunca fui um gajo de sair muito à rua, conhecia o pessoal todo, dava-me bem com eles, mas não era... passa o tempo todo na rua quem não tem nada para fazer, não é? Não querendo denegrir aqui ninguém. Eles queriam cantar em inglês e havia uma certa incapacidade no seio do grupo para fazer letras em inglês, para passar de um certo nível e eu escrevia para eles. (Guto, Redondos/Seixal).
10Como alternativa à experiência que dizem ser a dos seus pais e avós-para alguns ainda demasiadamente marcados pelos valores e condutas impostas pelo colonialismo, optando por se refugiarem em redes de relações fechadas – estes jovens procuram no rap os instrumentos necessários para lidar com as novas regras estabelecidas pela sociedade pós-colonial em emergência. A experiência da multiculturalidade juvenil e da criação de redes de sociabilidade e lazer regidas por fluxos completamente diferentes daqueles que caracterizavam a época do regime do Estado Novo (e que marcam não só os jovens negros portugueses, mas também todos os outros) implicaram a criação de novos processos e a definição de novos contextos, dos quais os seus protagonistas têm uma clara consciência (cf. Cidra 1999, 2002). O excerto que se segue demonstra exactamente essa sensação de se estar a «fazer história», de se estar a inovar e a pesquisar novos caminhos:
O primeiro grupo que houve foram os B Boys Boxers, assinávamos na parede BBB. Aquilo na altura não queria dizer nada, era só «curte BBB». Não significava nada de especial, mas significava bué para a gente, a gente vivia bué aquilo – era a Zulu Nation que se estava a criar. Éramos uns putos de escola que curtíamos. O pessoal não ligava muito a esse tipo de cenas que nós tentávamos implantar. Era um clique: estávamos todos sebem*, saíamos todos juntos, íamos aoVisage juntos e curtíamos juntos na escola, íamos para casa de um ouvíamos som... pronto, éramos um grupo de amigos. Chegamos a ser para aí uns 100 – era pessoal do Monte [da Caparica], de tanto sítio, sobretudo Margem Sul – e parávamos do lado de fora da escola e dávamos umas grandes dores de cabeça à Presidente do Conselho Directivo. Os BBB duraram uns 3 anos. Estou a saltar aqui muitas cenas... os primeiros eram os Zulu Rappers mas que não eram um grupo de rap. Éramos cinco. Depois os BBB, que foi um período mais longo. Dos BBB houve uma separação que foi pessoal aqui do Mira [Miratejo] que criou os Black Company, mas aí é que foi já rap. Parávamos todos juntos na Piedade. Os outros formaram os One Equal. Na altura tinham os dois o mesmo poder. Era um rap mais feito com o coração, com mais feel. Cantávamos cenas bué de infantis, era muito abstracto, não tínhamos bases para fazer um som bem construído. Mas naquela altura os BB tinham mais power, davam-lhe mais e estavam mais ligados aqui à rua e foi a partir daí que começaram a haver concertos. Em 90-91 houve também uma pausa. (...).
Isto foi histórico, mesmo. O movimento Zulu. O Nelson quando basou para França gozaram com ele: «O quê em Portugal há rap?!!!» e então o pessoal todo, éramos bués, tirámos uma fotografia para mandar e eles lá acharam que tínhamos um grande power e nós ficámos todos contentes!
(...) Naquela escola criámos ali uma cultura que depois se desfez. Bons tempos que se viveram naquela escola de 88 até à altura da méfiance, em que começou a haver aquela violência e até mesmo isso revelava aquela imaturidade de um gajo na altura. (Sandro).
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11Um segunda forma de imersão na cultura hip hop é caracterizada por uma experiência introspectiva e está relacionada com um percurso de descoberta do gosto pessoal – mais dependente da personalidade, como afirma um dos rappers. Este percurso conduz geralmente a um isolamento já que a aprendizagem não é feita em grupo mas sim a partir de uma biografia musical. Aqui o espaço privilegiado que é dado à música e à procura de novidades, ao som do momento, é interrompido por uma espécie de deslumbramento em que o rap surge, entre outros estilos, como aquele que melhor condensa o estado de espírito do momento. Aqui a conexão com o estilo é estabelecida sobretudo através das lojas de discos, dos programas de rádio ou de televisão.
Sempre gostei de música, já passei por várias fases e influências – por exemplo os psycho-billies, rockabilly e punk. Depois comecei a gostar de música de dança, era o que se ouvia. Uma pessoa ia a uma discoteca e o pessoal ouvia o que nos davam. Passei por quase todo o tipo de música. Nunca me defini com nada, nunca me identifiquei com nada como me identifico com o hip hop. Para mim o hip hop é o... está tudo complementado, é música (o rap), é a cultura, é a roupa. O hip hop para mim é uma coisa muito especial, muito especial. (...) Sensações, transmite sensações. Se ouves com atenção o que um rapper está a dizer quase que fazes um filme na tua cabeça, com os outros tipos de músicas não, tipo house e isso, tens a música mas falta-te qualquer coisa, há um vazio, são músicas um bocado vazias. (..,)Estive um ano em Londres e tornei-me fanático. Ouvia os programas de rádio todos, estava sempre em casa àquela hora, com cassetes para gravar. Comprei dois pratos e comprei montes de discos. Passei a ir aos clubes que tocavam hip hop. (Rolando, Porto).
Quando cheguei a Portugal tive um ano isolado, não conhecia ninguém. Só comprava Cds, ouvia em casa, gravava as minhas brincadeiras. Cantava em inglês porque nem dominava bem o português. Depois estava a mexer no rádio e ouvi por acaso num Sábado à noite o Novo Rap Jovem na Rádio Energia, do Marino. Ouvi aquilo e passei a ouvir o programa. Naquela altura ele pedia que as pessoas escrevessem para lá e as primeiras pessoas que conheci foi assim. Foi o Melo, a X Sister e a minha namorada. O Marino deu-me o número deles e a gente encontrouse nas Amoreiras. E a partir daí fiz bué de brincadeiras com o Melo, depois conheci o AC também, uma vez veio a minha casa e fizemos aí umas cenas. Depois telefonaram-me os gajos dos Zona Dread e formámos o grupo. (D Mars, 20 anos, Paço d’Arcos-Oeiras).
A primeira vez que soube sobre rap em Lisboa foi num anúncio que apareceu no Blitz a dizer que no dia tal, na Rua Augusta, ia haver uma manifestação de rap e eu e o Monhé fomos lá. E encontrámos os Black Company, os Líderes [da Nova Mensagem], o Boss Ac, o D Mars. E aos poucos fomos conhecendo o pessoal. (Kiko, Porto).
12Ao contrário da primeira dimensão de contacto com o rap onde, a partir do grupo constituído em torno das interacções quotidianas, se ia descobrindo os signos de expressão da retórica do estilo escolhido, aqui esses signos, descobertos individualmente através do consumo de produtos culturais musicais, são os elementos fundadores da comunicação com outros elementos do movimento. O vestuário e as suas marcas de fabricante surgem como um elemento desse código8:
Eu conhecia a mãe do Hugo e, quando cheguei de Londres, saí à noite e ela veio ter comigo porque viu, pela maneira de vestir, que eu era hip hopper. Aí ela disse que se calhar eu gostava de conhecer o filho. Eu já tinha tentado mostrar montes de coisas a montes de pessoas e toda a gente torcia o nariz e eu ficava todo chateado porque via tanta qualidade naquilo e ninguém ligava nenhuma. Combinámos num café, com a mãe dele. Quando olho para o Hugo vejo logo que era ele (por causa da maneira de vestir). Conhecemo-nos só por causa de olharmos uns para os outros. Eu uma vez vi o Nuno na Bimotor e olhei para ele e ele olhou para mim e eu pensei: «Fogo, outro rapper aqui no Porto? Olha que fixe». Ficámos os dois a olhar um para o outro. E mais tarde o Hugo apareceume com o Nuno. (Rolando).
13Neste processo de identificação com o rap, fruto de um percurso individual de gosto musical, a família e os amigos poderão também assumir um papel importante. Mas geralmente aquilo que estrutura a identificação são as rotas de divulgação e os circuitos que geram as novidades estéticas e musicais. Estes últimos criam gostos tendencialmente mais efémeros porque se encontram em constante actualização. A motivação que leva alguém a percorrer este circuito e posteriormente a fixar-se numa única corrente estética, criando fidelidade, é difícil de sistematizar:
Dancei break dance e tudo. O hip hop é tudo, é uma maneira de viver. É aquela coisa – compra-se um casaco azul em vez do vermelho porque se acha que o casaco azul é melhor. Eu acho que isso vem de dentro. São gostos. É conforme a personalidade de uma pessoa. Eu ia ver os filmes, tinha 10 ou 11 anos, pedia à minha mãe os discos, depois aquilo desapareceu e eu como era muito novo não conseguia ir à procura de discos nem essas coisas. Mas um dos meus tios fazia parte dos Repórter Estrábico e eles têm muitos discos e eu ia para lá ouvir os discos ao calhas, pelas capas ou pelo quer que fosse. Eles tiveram uma discoteca – o Lux no Dallas-e faziam as quartas-feiras de hip hop – em 85, 86. Run DMC, Beastie Boys e depois Public Enemy e comecei a ver esses discos lá. Comecei a ouvir e comecei a gostar. Houve ali logo qualquer coisa: «Eh, gosto mesmo disto!». Não era como os outros, punha os outros e pensava «Que seca!». Ficava tardes inteiras ali a ouvir discos. Comecei a ver qualquer coisa ali. naqueles discos que me chamava a atenção. Então comecei a gostar cada vez mais. E para aí aos 15/16 anos, comecei outra vez a ouvir hip hop, arranjava uma revista muito xunga que era a Rap Pages, mesmo xunga mas era a única que se arranjava, e depois fui arranjando umas coisas aqui e ali e fui conhecendo mais gente. Quando comecei a andar no liceu em Matosinhos, no 9.° ano, havia lá um grupinho de rappers. Eles emprestavam-me as cassetes e os discos, até estava para fazer um grupo com eles mas depois conheci o Nuno e o Rolando. Eu conheci o Nuno um mês antes de conhecer o Rolando. Foi no concerto dos Marxman, era dos Depeche Mode mas esse grupo irlandês fazia a primeira parte. Então fui com o monhé e estava lá o Nuno que era a única pessoa que estava lá vestido à rapper, de boné. Então começámos a falar. Começámos a passar mais tempo juntos, começámos a pensar fazer um grupo, mas nunca fazíamos nada, só pensávamos. Depois conhecemos o Rolando. (Hugo, Porto).
14Independentemente da forma de imersão na música rap, um dos aspectos mais importantes da sua prática prende-se com a manutenção da continuidade e do seu aprofundamento. Isto não passa pelos eventos culturais institucionalizados nem por locais públicos alargados, mas antes pelos espaços efémeros de produção de estilo criados pelos elementos que integram o movimento – e dos quais o Johnny Guitar é um exemplo. Importantes também são as itinerâncias que percorrem os estúdios caseiros montados nas casas de alguns rappers, os pontos nevrálgicos situados nos bairros, as escolas e os locais de trabalho. O walkman (cujos headphones são partilhados aos pares quando necessário) ou o leitor de cassetes/CD portátil (denominado de «tijolo» nos finais dos anos 80) são ferramentas fundamentais no consumo quotidiano de música rap.
15Este assenta geralmente na discussão, pois alguns temas de rap, para além de gozo de sentir o feeling, permitem estabelecer discursos de carácter reflexivo, trocar ideias e posturas. Para tal é preciso proceder à árdua tarefa de descodificação das letras e à igualmente importante descodificação sonora (que inclui a identificação dos samplers utilizados e a análise da qualidade das batidas). Resultam ainda destas interacções informais, que asseguram a continuidade da aprendizagem do rap, experiências e colaborações materializadas ora em mix-tapes, ora em maquetes9. É também durante estas sessões (na rua ou em casa) que se desenvolvem as técnicas de beat-box que permitem assegurar os instrumentais necessários à realização de ensaios e confrontos informais.
16Mas se a aproximação ao estilo musical varia consoante o trajecto biográfico, existe no entanto uma recorrência de discurso sobre a forma como este parece ter vindo preencher uma sensação de vazio e fornecer os instrumentos necessários para a criação de uma forma de expressão (das dúvidas, angústias e opiniões) simultaneamente pessoal e comunitária. Neste sentido, o rap surge como uma descoberta única que permite aceder a modelos de reflexão sobre o real (cf. Cidra 1999, 2002). Essa reflexão é pragmática na medida em que corresponde a uma prática e implica, por isso, um considerável grau de exclusividade e fidelidade (que pode ter alguma variação). Se há rappers que só consomem rap «puro e duro» (e que demonstram aversão a qualquer «guitar-rada10);» também encontramos aqueles que, a partir de uma cultura musical mais alargada gerem e incorporam várias influências.
17Em confronto com um discurso pouco ecléctico e onde o campo de possibilidades sobre aquilo que é ou deve ser a cultura hip hop parece ser bastante reduzido, surgem, no entanto, trajectórias de gosto individuais relativamente diversificadas. Neste sentido o heavy-metal (uma cultura musical também emergente da experiência suburbana) e o cantor pop Michael Jackson-segundo os críticos e teóricos da música pop um dos primeiros artistas negros a fazer o cross-over – surgem como um aspecto importante, sendo o último uma das primeiras referências na construção de uma identidade black.
A minha escola musical foi muito diversificada. Quando comecei a ouvir música mais sistematicamente e a comprar discos – tirando o Michael Jackson e o Thriller-foram cenas de heavy metal. Mas sempre tive uma grande cena de música, sempre curti bué música. Depois aquilo que acabou por me marcar mais disso tudo, foi a cena hardcore, o movimento hardcore de Nova Iorque, de princípios de 80 – que eu só ouvi muito mais tarde. Foi a cena urbana mesmo, de subúrbios – em termos de letras e tudo. O rap foi mais tarde do que isso e foi um estilo de música que eu... que sinto que tem muito a ver comigo e foi como que um retorno à base. O que eu tive muitas vezes de fazer foi tentar adaptarme a várias cenas, até a tentar ser «beto», por exemplo. Quando tinha para aí uns 13 ou 14 ia para a discoteca na Costa da Caparica, com a camisinha à risca, naquela de me tentar adaptar. E muitas das pessoas de quem eu me tinha afastado em todo este processo de crescimento e que têm mais a ver com aquilo que eu gosto e com eu me identifico estavam a ouvir rap. Foi aí que eu, ao passar a tarde em casa de uns amigos a ouvir rap, comecei a pensar—isto é que realmente tem a ver comigo, andei afastado muito tempo. Apesar de não ser aquela coisa da exclusividade. O que foi porreiro neste processo foi que apanhei muita coisa diferente que depois ajudou a formar o meu gosto musical. (Carlos, Almada).
Quando era puto ouvia tudo. Ouvia heavy metal, ouvia rock, ouvia The Cure, curtia U2, daquele bué antigo. Quando era puto ouvia isso tudo. Cada ano mudava de estilo. Depois em 90 ouvi Public Enemy, ouvi De La Soul – o primeiro álbum deles – e aquilo chamou-me a atenção e eu, não sei... encontrei-me, encontreime nesse tipo de música. Comecei a escrever rimas com 13 anos, agarrei no microfone pela primeira vez quando fiz 14 anos, na minha festa de anos e á partir daí continuei nesta caminhada. Com 14 anos saí da Croácia, tive um ano em Itália e foi aí mesmo que o rap me dominou completamente. Mexe comigo, fazme relaxar, faz-me saltar, passo-me todo quando ouço uma rima muito bem escrita ou quando oiço uma boa batida. Sempre me consegui exprimir melhor através da escrita, exprimir o meu ponto de vista escrevendo rimas. (D Mars).
A minha clique começou com os mais antigos, com Run DMC e com LL Cool J. Íamos todos para o Visage, na Costa da Caparica. Antes ouvia o que oiço agora. De todos os CDs que tenho, 1 5% são Cds de rap. (...) Tenho uma cultura musical muito vasta. Quero inventar e experimentar tudo. (...). Eu curtia Brian Adams e tudo. Eu curto de tudo, desde que a música seja boa. A mais valia do rap é, para além da mensagem, a base, a inovação rítmica. Nas coisas mais simples existe uma grande riqueza e uma grande imaginação. O que me fascina no rap é a capacidade que tem de, numa coisa bem simples, sem grande complicação, sem grandes instrumentos, fazer uma coisa complexa e rica. Só quem conhece rap e está habituado a ouvir é que nota pormenores e cenas e, para quem não percebe, aquilo é um bloco, um tijolo. No entanto há ali uma riqueza rítmica e mesmo na maneira de rappar, nos vários estilos dos Mcs, há ali uma riqueza muito grande. É isso que me fascina no rap, para além da cultura do hip hop que é uma cultura adoptada por nós porque é a cultura que tínhamos da nossa vivência na rua, do nosso people. Foi com aquilo que fomos habituados a crescer, por isso foi com aquilo que nós ficámos. Identificamonos muito mais com isso do que com o fado ou com qualquer outro estilo de música, com os GNR ou o caraças! Porque nós quando estamos em grupo, quando estamos juntos, o som que ouvimos é o rap, é o som que nos dá pica, é o som que nos faz ter bounce – eh pá! É o nosso feeling, não tem uma explicação possível. (Guto)
Tinha 13 anos quando comecei a ouvir rap. Quem me mostrou foi um bacano que vinha de França. Ele tinha uma cassete que me emprestou e eu curti bué. Naquela altura já tinha passado o tempo do break (dance), um gajo até não curtia nenhuma música. Nessa altura foi quando começou o andamento de rap aqui no Miratejo, o pessoal começou-se a juntar, o people mais negro, começouse tudo a juntar no mesmo sítio. People de outras zonas. People da Cova da Piedade, mas eram como se fossem do Miratejo. A gente ouvir aquele rap era uma maneira de um gajo saber que estávamos a controlar alguma coisa, mas não estávamos a controlar népia, era... A controlar o que a gente estava a dizer. Onde vivíamos era uma cena tão... tão underground que o rap fazia-nos sentir melhor, não sei como, mas fazia-nos sentir melhor. As cenas que eles diziam era o que nos estava a acontecer, então isso tocou-nos logo e nunca mais deixámos de ouvir rap. Nessa altura a gente curtia o rap mas era na discoteca, estávamos todos a curtir todo o people a dançar. Agora é só tecno, tecno, tecno, deixou-se de curtir rap na discoteca e o rap passou mais para o fundo. Também foi por causa dos blacks, o people só arranja confusão. Como no Visage e no Mr. Green. No Visage era só people do Mira. Depois passámos para o Crazy, em Lisboa, depois foi o Zona Mais, depois o Zona Mais fechou por causa da confusão. Depois começaram os bares mais canucos tipo o Johnny – o Vickings e depois o Europa, mas acabaram por fechar também. Depois apareceu o Trópico, foi o maior, era um grande armazém. Foi a única discoteca só de rap. (Hugo, Miratejo).
O grupo [TWA] começou como um grupo de amigos. Íamos ao Trópico às cenas de rap. Ao vermos os grupos cantar, para quem já ouve rap – rap americano, rap francês—, quem já ouve isso, quando vê esses grupos dá graça! ‘Tás a ver? Então é tipo naquela: «Se eles [grupos de rap portugueses] fazem isso, eu consigo fazer melhor; se eles fazem isso e as pessoas curtem, então vou começar o meu também». Depois começámos a cantar e os peoples começaram a curtir e então fomos já ao ataque. Já a procurar objectivos e quê. (Jorginho, 20 anos, Pedreira dos Húngaros/Algés-Oeiras).
Andava na preparatória e todos me perguntavam... mas eu não ouvia música. Depois comecei a ver outros gajos e houve um concurso na escola. Foi aí que eu comecei a ouvir rap. (Gonçalo, 18 anos, Miratejo – Almada).
18A partir destes fragmentos de discurso, retirados de um conjunto muito mais vasto, parece claro que o consumo e produção de música rap permite algo mais do que uma fruição efémera, mais do que ocupar o ouvido e distrair a mente. Eles ordenam a experiência, definem a expressão e produzem significação, ou seja, constituem-se como uma forma de «comunicação intencional» (Hebdige 1979: 100) partilhada por uma comunidade, alargada mas bem definida. A par da diversidade interna expressa nos diferentes graus de consciencialização e estratégias de gestão dos recursos oferecidos pela cultura (hip hop), existe um elemento unificador primordial que é essa opção por um mesmo estilo de vida. Ou seja, o rap surge como um modelo estético mas também de valores, regido por premissas próprias, adquiridas simultaneamente através do consumo dos seus produtos e das interacções criadas em torno desse consumo. Neste sentido a adesão à cultura hip hop segue mecanismos semelhantes aos de outros estilos, embora o resultado final e o principal esforço de cada uma seja manter a sua originalidade e autonomia:
«(...) é através dos rituais de consumo distintivos, através do estilo, que uma subcultura simultaneamente revela a sua identidade «secreta» e comunica os seus significados proibidos. É basicamente através da forma como os bens de consumo são usados por uma subcultura que a demarca de formações culturais mais ortodoxas.» (Hebdige 1979: 102/3-122)11.
19O corpus de valores inerente à cultura hip hop, em geral, e ao rap, em particular, assim como o posicionamento pessoal de cada Mc nesse corpus, consistem numa das principais inspirações de rimas, onde geralmente é explorado um discurso simultaneamente afectivo e reflexivo. Trata-se de uma forma de auto-apresentação à comunidade, de prestação de provas de fidelidade e genuinidade. Na colectânea Rapública (1994) surgiram alguns exemplos destes temas. A atitude optimista que deles transparece deixa perceber o entusiasmo inerente aos primeiros resultados de um esforço de conquistar visibilidade para o rap em Portugal que, por ser recente, se encontrava ainda liberto de controvérsias e assentava na retórica da união.
1,2, Hip Hop está no ar
E quando toco Hip Hop, irmão tens de escutar
A rima é vitamina, contamina, reanima
Hip Hop é o pincel e este palco uma obra prima
Um pintor, sim me podes chamar
Não sou Picasso nem Da Vinci
Mas pinto as notas a cantar
Branco, negro, vermelho e amarelo
P’ra mim são simplesmente cores
Hip Hop é mais belo, Hip Hop é a minha arte
A arte de bem falar, musicar, metrizar
Fluir a cantar com frases sampladas
Batidas delicadas, melodias recriadas, notas bem tocadas.
É o som do momento, poesia em movimento
A minha voz é o instrumento, que te transporta no tempo.
Comer não é preciso porque tudo é perfeito
Hip Hop está no ar, agora dança a meu jeito.
Family, Hip Hop está no ar. 1994, in Rapública, Sony Music.
20Esta espécie de confissão e de contrato, de afirmação e auto-representação, mantém-se uma prática recorrente em praticamente todos os álbuns de rap que têm vindo a ser produzidos em Portugal. O tema incluído no primeiro álbum de General D intitulado Black Magic Woman, com um sucesso relevante junto do público main stream, constitui mais um exemplo.
É o rap
Ke me faz dançar
Me faz movimentar e também me faz pensar
Utilizo o meu amor para reivindicar
Graças a ti
Aprendi a ser assim
Graças a ti
Aprendi e para ti
Te dediko esta canção
Fizeste de mim irmão kom cabeça e koração
Não te konheci no kolchão
Te amo te respeito
E te entrego o meu brasão:
Black Magic Woman
Para mim não é mais uma
És akla ke me dá batida kente
Me envolvo com ela e faço música p’rá gente
P'rá gente ke sente
Ke sente e ke me entende
I’VE GOT A BLACK,
MAGIK WOMAN I’VE GOT A BLACK
MAGIK WOMAN
General D, «Black Magic Woman».
In Pé na tchôn, karapinha na Céu. 1995,
EMI-Valentim de Carvalho
21Este tipo de letra serve não só para definir posições pessoais mas também para familiarizar o público geral e os novos fas com princípios do movimento, o que coloca o rapper numa posição pedagógica, de detentor e mensageiro de um conhecimento específico. A mensagem funciona simultaneamente com um carácter explicativo e como demarcador de fronteiras e internismo, o que se verifica, por exemplo, no tema Dedicatória do grupo Mind da Gap (onde a associação do rap ao género feminino também é utilizada):
Tudo bem, no país à beira mar plantado
Até aparecer algo de novo, nunca antes identificado.
Hip Hop, muitos gostaram, outros não
Talvez seja por não ser de fácil compreensão.
Que é isto? Ninguém canta, ninguém toca
instrumentos.
Graffiti, break-dance, estranhos, estranhos
comportamentos.
(...)
Que é isto, que estamos aqui a fazer:
Hip Hop, simplesmente, não é como o rock,
Não adianta comparar-nos, Stop!
Ninguém toca quase nada, ou mesmo nada,
Temos um sampler p’ra sacar o que mais nos agrada
Rimas ricas ou pobres, que não obedecem métrica,
Sem estrutura convencional de quem especifica,
Uma maneira de viver, p’ra não esquecer,
Com pormenores que nem todos conseguem entender.
Não importa quem se gaba, mas quem faz melhor,
É indiferente raça, credo ou cor.(...)
O que eu precisava, era mesmo, alguém assim como tu.
Eras o estilo certo, para mim,
Quero ficar contigo até ao fim.
Nunca tive ninguém como tu,
Mas sempre te procurei,
Agora que te encontrei, que te ouvi,
Quero ficar contigo até ao fim. (...)
Mind da Gap, «Dedicatória». In Sem
Cerimónias. 1997, Norte/Sul.
22É este ethos, ou seja, esta unidade visível ao nível do discurso proferido, para uma imaginada comunidade hip hop e para um público exterior a esses princípios, que está na origem dessa imagem homogénea e consensual que acaba por ser facilmente interpretada segundo um discurso socializante e historicista, presentes na produção académica e na crítica musical referidas no primeiro capítulo. Do ponto de vista dos fundamentos da cultura ou do estilo, esse consenso existe de facto e passa pela (i) valorização da experiência de rua, (ii) pela vontade de expressar ideias fundamentadas pela experiência quotidiana, (iii) pela cultivação de atitudes a favor da união (entre os elementos da cultura hip hop, entre as raças ou, em última instância, entre os Homens) e da não-violência; a par de uma permanente afirmação do ego do Mc. Ser real e ter feeling surgem como dois dos principais princípios da produção de música rap.
Todo o respeito que tenho foi conquistado com rimas (D Mars).
Um grupo (de rap) não pode ser falso, dizer isto e depois fazer aquilo. Uma coisa em que eu sempre acreditei é que um MC o que diz na rima deve depois sustentar na realidade. (D Mars).
Há rappers em todo o canto de Portugal. O rap hoje em dia é seres real a ti próprio. Seres real a ti mesmo, saberes que o que estás a cantar é o teu quotidiano e o teu dia-a-dia. Tens que saber minimamente da vida, tens que ter sentido na pele. (David, 17 anos, Arrentela-Seixal).
O rap é mais que música, é uma cultura. Quando faço uma música é tipo um desabafo. Ao princípio escrevia coisas que não sentia, agora não, já não forço a música. (Samuel, 18 anos,Chelas-Lisboa).
É uma coisa que fica marcada para toda a vida. Mesmo que uma pessoa chegue a uma altura em que deixe de ser aquele hip hopper ferrenho – o que acontece a muitas pessoas-fica sempre lá marcado, nota-se sempre. (Hugo).
Nem sempre curti rap mesmo forte, como curto agora. Agora está dentro de um gajo. (Mário, Almada).
O rap instalou-se mesmo dentro das nossas mentes, já não quer sair. O que se passa aqui dentro é o que a gente escreve no papel, para depois transmitir em rap, em hip hop. Sai da mente. (Djassy, Almada).
O rap tem que ver com a mentalidade, com o que queres fazer. E como seres pedreiro na obra: tu podes saber a produção, mas tens de ter cabeça para aquilo. (David).
A questão da raça para mim não é importante, mas para muitos é. Para muitos só um preto é que pode cantar e é que pode falar dos niggers que andam na Street. Para mim não estamos nos States, man. Mas que é uma verdade é: que um branco que cante rap tem que passar pelas ruas, tem que saber a maneira do pessoal pensar e tem que conhecer a maneira de pensar dos negros. Os brancos que lhe dão com mais feeling é pessoal que se dá com blacks, isso é uma realidade. Um branco, um betinho que vai cantar rap, aquilo é falso. Um betinho que vai cantar rap vai falar de merdas que não interessam. Isto não tem nada a ver com racismo. Mas o rap nasceu nas ruas dos States e transportou-se para outros países. Está na natureza de um gajo, de um gajo da rua. O rap reflecte a tua vida do dia-a-dia. O Miratejo não é um gueto. Portugal é que é um gueto, o país é um gueto. O pessoal dos Húngaros é um pessoal muito mais sofrido, é pessoal que vive de outra maneira, não podes pedir para andarem a rir em todo o lado, é a realidade. A cena é um gajo encontrar todos os dias um motivo para rir, o que às vezes é fodido. Um gajo tem é que arranjar do que falar, tem a ver com a tua espontaneidade, o que tu trazes para a tua música é a reflexão sobre aquilo que tu vês. O rap para mim é a forma de arte musical mais inovadora que surgiu, mais completa. Foi uma cena que surgiu e que mudou a maneira de viver, de viver na rua. E mudou também o cenário musical. Por que é que existe o rap? Por que é que ele chegou ao grau de perfeição de hoje em dia? É porque ajuda bué da gente a viver, é uma droga. Há músicas de heavy-metal e punks que têm aquela rebeldia mas não como o rap... o rap é poesia, é tu descreveres em poesia o que te rodeia e o que muita gente não gosta de ver. A verdade crua e cruel. Depois há diversos estilos. O rap é mesmo uma doença, um vírus, está em mim e já não sai. O que sou hoje devo-lhe bué, certas cenas que aprendi foi com o rap. Quanto a mim há pouco pessoal que tem uma cultura que lhes permita escrever mais aquilo que sentem, sinceramente há poucos Mcs daqueles... É o tempo, só o tempo o dirá. (Sandro).
23Ao longo desta composição de registos e discursos torna-se visível, não apenas a heterogeneidade das aprendizagens que são feitas através do rap, mas também a complexidade e emotividade que as enquadram. No entanto, estes últimos excertos – incluindo as letras de temas de rap gravados – apontam ainda para a existência de um corpo normativo consensual, passível de ser sistematizado em torno das categorias valorativas que classificam um «bom rapper», «um bom som», ou «ter power».
24A verdade e a honestidade (keepin’it real) surgem em lugar de destaque como valores essenciais a qualquer rapper. Estas podem ser engrandecidas e tornarem um rap mais interessante, do ponto de vista interno à comunidade hip hop, através da experiência de rua (life in the Street). Um bom rapper (um real mc) conquista respeito (ou respect) se conseguir exprimir essa sua experiência com sentimento (feeling).
25Por outro lado, na medida em que estamos a falar de um modelo de vida, ou seja, de uma normatividade pragmática e de uma prática quotidiana, de um estado de espírito, tal como definem alguns rappers, a passagem de adepto/fa de rap (B-boy) a Mc pode ser fluida e de uma aparente fácil concretização. A quantidade de Mcs, por relação à escassez de dois dos personagens essenciais à manutenção dos espaços de hip hop – os Djs e os B-boys –, aqueles que não cantam mas que estão integrados no movimento e permitem formar um público entendido e exigente, são dois dos aspectos referidos pelos rappers como responsáveis pela dificuldade em manter níveis de qualidade elevados e um discurso crítico que permita o aprofundamento e melhoramento do trabalho dos próprios Mcs.
26O free-style, quer seja feito em regime de improviso ou baseado em letras escritas, é assumido como um dos espaços mais importantes de obtenção de reconhecimento e respeito. Encontra-se associado a um tom de confronto e desafio – recorrendo ao egocentrismo essencial a qualquer Mc («Um gajo para ser rapper, à partida, tem que ter um granda ego. É uma cena mais ou menos egocêntrica e gabarolas.» como afirma Pac Man na frase em epígrafe no início deste capítulo). O free-style permite a demonstração de skills – outro dos factores essenciais na distinção de um bom Mc e que devem ser manifestadas a dois níveis: ao nível da técnica vocal (fluência, ritmo, versatilidade); e ao nível lírico (profundidade de conteúdos, capacidade de improviso, fluência verbal e versatilidade nos temas abordados). O free-style, apesar de servir como performance territorializada ou simplesmente colectiva de skills – como aconteceu no Johnny Guitar nos improvisos dedicados à oposição margem sul/margem norte – procura, também, permitir uma viagem através do universo conceptual e ideológico do rapper, num jogo emotivo onde não deve faltar o sentido de humor e o «pretenciosismo».
27Entre muitos exemplos possíveis, apresento de seguida o excerto de um free-style da autoria de Guto (Black Company) incluído no álbum Filhos da Rua (1997), onde se pode destacar o encadeamento e intencionalidade que caracterizam um texto que, aparentemente, surge apenas como uma brincadeira de palavras:
Acabaste de entrar no espectáculo do Guto,
agarra a tua dama tu sabes que eu CamaSutro.
Mais chutos&pontapés que o Zé Pedro e o Tim,
deixo-te mais vermelho que o bacanos de Pequim.
Nesta dimensão lírica tu és o Spectrum eu sou o Pentium
faço uma simples passagem, shshsh... vento!
Se eu fosse uma maçã, tu serias a minha larva,
mais afinidades que o vai à merda e o vai à fava...
Sou mais pontiagudo que as orelhas do Spock,
mais estrondoso que o markting da SuperBock,
vou mais fundo que nas calças vai o fundilho,
tenho orgulho em ser abstémio, não fumo, nem pilho.
Mais apreciado que a paisagem de Van Gogh...
ponho-te mais azul que a primeira vez que provaste Grogue.
Psiu!!! Atenção entraste em zona perigosa
as minhas rimas têm mais saída que o leite da Mimosa,
consigo ser tão belo e espinhoso como uma rosa,
tenho mais tentáculos que o padrinho do Cosa Nostra...
Metes-te à minha frente, começas a gaguejar,
a tua cabeça não pensa então o corpo vai pagar.
Tenho mais tracção que os pneus da Michelin,
as minhas letras têm mais poder que o Miterrand,
se o RAP fosse caneta eu seria a sua tinta,
dou-te uma quicorta como o Ronaldo faz uma finta.
Larga o mic estás a fazer muito barulho,
tens uma grande fachada mas lá dentro é só entulho.
Tenho mais quilometragem que a Rosa Mota a correr,
ainda mais urgente que o salve-se quem puder.
Sou Guto o produtor e estou aqui para te p’ra te dizer...
LARGA O MIC...!
Guto César (Black Company), «Skills». in Filhos da Rua, 1997, Sony Music.
28Para além do trabalho criativo ao nível literário, um «bom» tema de rap depende da sua produção a nível instrumental. Esta é, numa perspectiva clássica, a área por excelência do Dj. Mas os desenvolvimentos tecnológicos de software e outros aparelhos digitais (com destaque para os samplers) permitiram o surgimento da personagem do produtor (aquele que escolhe, sequencia manipula os sons, na sua maioria pré-produzidos), que tem vindo a assumir um papel de destaque. Aqui as skills do Djing e o virtuosismo que está associado às técnicas de scratching, backspinning, etc. são substituídos por um outro tipo de conhecimento (neste caso associado à edição de som em suporte digital). No entanto, ambas as personagens – Djs e produtores (sendo que é recorrente um mesmo indivíduo assumir os dois papéis) – distinguem-se no interior do movimento através do domínio do conhecimento que possuem da história da música contemporânea, já que são os sons que esta legou que constituem a base da criação instrumental12.
29Tal como já referi, o som que suporta uma letra de rap é um som eminentemente intencional, ou seja, com uma forte carga emocional e significante. Aqui o processo criativo assume particularidades mais abstractas do que na produção lírica e, tal como tudo no rap, alimenta-se sobretudo do feeling.
Geralmente os instrumentais podem proporcionar sentimentos. Sou um fanático por andar a picar discos. Discos antigos. Na caça ao sample. Geralmente o instrumental surge a partir de um sample. Quando encontro um sampler que gosto, faço o loop e depois faço o beat e depois tento arranjar coisas que encaixem naquele sampler principal. O que eu acho mais importante para mim numa música é conseguir ter um sample com 4 bars e reduzir nesses 4 bars uma melodia forte, (ou seja) sintetizares uma música. A simplicidade.
Samplo tudo o que me soa bem ao ouvido, aquilo que eu acho que é bonito, aquilo que me chama a atenção. Altero bastante o sampler para distanciá-lo do original. É um bocado complexo falar disso, tem a ver com o ouvido e com as sensações. Geralmente gosto muito de ir ao soul dos anos 60. Tem uma ambiência muito própria. E isso que faz do hip hop uma coisa assim tão única: quando estás a samplar um som, por exemplo um piano, aquele piano foi gravado na época de 70 com outro tipo de material, com uma ambiência que é impossível reproduzir. A forma como era gravado, o tipo de microfone que usavam. E daquelas coisas que quando estás a ouvir... táu! Isto é altamente! Pegas naquilo e começas a fazer música com aquilo. Alteras e vais buscar outra cena qualquer para juntar. Depois não é só isso... para mim quando estou a fazer o instrumental já estou a pensar como é que aquilo vai ficar no fim, como é que vão ser os cortes na música, os efeitos que vou pedir para fazerem no estúdio. Esse tipo de coisas. É um trabalho que vai para além da construção da música. E quando estou a fazer estou sempre a pensar o que é que eles [os Mcs do grupo] irão cantar sobre a música. (Rolando).
30Quando os rappers são também produtores e criam o seu próprio instrumental, a relação entre as letras e o som torna-se ainda mais imbricada, não existindo receitas nem prioridades.
Às vezes saco uma batida qualquer de uma música qualquer. Pronto, deixo ficar, agora não vou forçar uma letra para ir para ali. Quando tiver necessidade de fazer uma letra, quando tiver uma cena que me esteja a chatear ou quando houver uma cena que eu até ache que esteja bem, então aí começo a escrever. O tema, a ideia, está na cabeça, depois procuro o som (a batida) e depois é que faço a letra para essa batida. Procuro uma batida que esteja mesmo adequada ao que estou a sentir. (Samuel).
Normalmente primeiro faço o som. O processo criativo não pode ser teorizado, é uma coisa muito esquisita, não dá para teorizar. Tanto posso ser inspirado por uma dance music: «Epá deu-me um feeling do caraças, vou fazer um som!» – um granda som de rap que não tem nada a ver com dance music, mas que foi inspirado naquele som porque tinha um baixo com muito groove ou porque tinha uma batida que me inspirou.
Posso dizer que sou um bom escritor, mas não sou do estilo de quem tem gosto em fazer um livro ou ficar ali a escrever poemas. Normalmente o meu gosto está em fazer a música, o som, o ritmo. Depois aquele ritmo é que me vai inspirar. Quando faço a letra, a letra nasce do som, por isso é que encaixa tão bem. Porque tem tudo a ver: a maneira como faço a frase mais curta ou mais longa. Entro dentro do feeling da música e depois a letra nasce desse feeling. Claro que a letra acaba por ser pensada num tema, mas mesmo assim um tema nunca pode ser dissociado da música. (Guto).
O instrumental tem a ver com o estado da pessoa. Tem a ver com a letra também, claro. Conforme a letra sei como é que vou fazer o instrumental. Mas os instrumentais que eu faço têm mais ou menos a ver com o meu estado, [por exemplo] se estou num estado de revolta. Eu tento exprimir-me nos instrumentais que faço. Mesmo que não oiças a letra e oiças o instrumental, tu sabes mais ou menos o que é que eu estou a tentar expressar. As letras escrevemos nós [TWA] todos. Por exemplo, eu tenho o instrumental e digo-lhes: «Este instrumental aqui é de intervenção, ou é de não sei quê», depois chegamos a um ponto e tentamos dizer o que é que vamos atingir, o que é que vamos cantar. Depois de chegarmos a esse ponto vamos tentar arranjar o refrão. É a partir do momento em que a gente arranja o refrão que cada um escreve a sua parte. (Jorginho).
31A confrontação entre os vários depoimentos permite perceber as diferentes formas de apropriação do rap que por sua vez correspondem a diferentes experiências identitárias. Nos que diz respeito à primeira forma de apropriação referida – que privilegia as redes de sociabilidade e vizinhança e a visibilidade dos grupos de amigos –, ficou claro, através das narrativas que a suportam, que o rap constitui nesse contexto um excelente instrumento de reflexão sobre a experiência da negritude face a uma sociedade pós-colonial e multicultural, ajudando vários jovens a ponderar sobre as práticas de marginalização e exclusão de que são alvo.
32Se bem que a ideia de que a negritude promove e facilita a prática e produção de música rap está de alguma forma difundida, também é verdade que não existe um discurso de exclusividade absoluta. Este último aspecto ficou bem expresso através de depoimentos que atribuem a diferentes contextos de emergência social e cultural, diferentes posturas face ao rap. Uma das explicações dada por alguns rappers para o facto de os grupos que representavam a margem sul adoptarem, nas sessões do Johnny Guitar, uma atitude mais festiva que contrastava com a atitude mais «fechada» dos grupos que representavam Lisboa, passa exactamente pela chamada de atenção para as diferenças nas condições de vida. Aqui os rappers que «vivem no gueto»13 têm uma atitude diferente daqueles que não se encontram nessa situação. Um dos aspectos mais importantes nesta discussão em torno da construção de uma experiência de vida racializada passa pelo facto da negritude não ser colocada de forma linear e muito menos exclusivista. Tal como defendi anteriormente, a condição indispensável para obter legitimação na prática deste estilo musical passa muito mais pela pertença a uma cultura de evasão juvenil (sub)urbana do que pela cor da pele. O discurso racializante simplista é, segundo alguns rappers, um discurso que é imposto pelo exterior e não inerente ao movimento.
Eh pá, essa cena aí das raças... eu nunca senti, nunca ninguém me disse: «Olha esse pula aí da merda que se está a armar em rapper e o caraças...» e se alguém me dissesse isso eu dizia: «e então consegues fazer melhor? Como é que é?». A imagem que as pessoas de fora têm do rap é que é de negros. Na América é que há essa relação forte, em Portugal não (no interior do movimento). Em Portugal há aquela coisa do indivíduo típico português pensar que o rap é música de pretos, como eles dizem «dos pretos». A minha namorada faz parte de um grupo de rap em que é a única branca e muitas amigas delas diziam-lhe isso: «Como é que tu podes ouvir música de pretos?». Depois eles vão para casa curtir tecno e não sabem que o tecno foi criado pelos bumbos também. Tanto o tecno como até heavy-metal – e o rock and roll nem se fala – tem tudo essas raízes. (D Mars).
Eu tanto conheço bons Mcs pretos, como conheço bons Mcs brancos, como patacanhos pretos como conheço patacanhos brancos. Os rappers são as United Colors of Hip Hop. (David).
A questão da raça é posta não pelos hip hopers mas pelas pessoas que estão de fora, pelos jornalistas, os managers, aqueles a que a gente chama os satélites. Mesmo nos EUA talvez não seja assim tão importante, talvez seja uma questão manipulada pelas pessoas que estão acima que fazem os negros pensar que os brancos não devem gostar de rap ou que fazem os brancos pensar que não devem gostar de rap. (Hugo).
Hoje em dia não se pode dizer que o hip hop pertence ao guetto. Começou no ghetto mas ele hoje abrange o mundo inteiro. Todos os países fazem hip hop. As pessoas sentem o hip hop, seja índio, seja branco, seja negro. Ninguém é ninguém para dizer que alguém não faz parte do hip hop porque é assim ou assado. (Johnny Def, Porto).
David: O rap é um movimento!
Jorginho: O rap é uma cultura!
(Pedreira dos Húngaros – Oeiras, 25.1.98)
33Um dos aspectos mais relevantes que emergiu das entrevistas e conversas que estabeleci durante o trabalho de campo prende-se com a escassez das referências directas ao papel que a ideia de raça desempenha no rap (tanto por parte dos rappers negros como por parte dos rappers brancos). Esta questão só surge de forma crua apenas quando colocada por mim, sendo que não encontrei nunca qualquer constrangimento ou resistência em relação à sua resposta (o que significa que o assunto está longe de ser um tabu). O facto de eu ser considerada branca tem certamente alguma influência neste fenómeno, mas não chega para explicar a persistência do silêncio e da aparente indiferença face a esta questão.
34Do ponto de vista dos satélites (ou seja, dos observadores do movimento) este facto é realmente surpreendente, já que uma das principais formas de conferir visibilidade ao rap tem passado pelo seu cingimento à representação da voz dos jovens negros portugueses. De onde vêm então estes múltiplos desequilíbrios: entre o discurso (aparentemente desracializado) e a prática (onde os rappers brancos estão nitidamente em minoria); entre o discurso interior (onde a questão racial é desdramatizada) e o discurso exterior (que vê o rap como uma música de negros)? Esta questão será aprofundada ao longo dos próximos capítulos, mas neste momento torna-se útil avançar com a ideia de que estamos, claramente, perante diferentes formas de conceptualizar o lugar ocupado pela ideia de raça e pela experiência da negritude. Se aqueles que observam o fenómeno do exterior dão um enorme e quase absoluto enfoque à questão racial, utilizando-a como o principal elemento significativo para descodificar o estilo musical; para quem é rapper, a identidade racial não é mais do que um entre os vários processos (conscientemente) desencadeados pela produção e consumo de música rap.
35Se tomarmos em conta a heterogeneidade presente na prática do rap – ou seja, nas formas de keepin’it real – esta põe a nu a artificialidade dos novos discursos em torno da diferença cultural (cf. Stolcke 1995 e o seu conceito de «fundamentalismo cultural»), preocupados em definir fronteiras lineares e herméticas que tentam encaixar práticas e produções sociais muito diversas em categorias homogéneas como a de luso-africano ou a de minoria étnica.
36A análise aprofundada da produção de música rap e das formas como é utilizada para orientar o quotidiano, conduz-me assim à substituição da clássica tríade identidade, etnicidade e cultura, por uma outra, a saber: projecto, transnacionalidade e cosmopolitismo.
37A substituição do primeiro termo prende-se com o facto de o rap não constituir uma inevitabilidade do processo identitário linear (que associa a negritude e classe social desfavorecida), mas antes um projecto (Velho 1994)14 individual fruto de uma opção, que implica ainda a manutenção e continuidade da aprendizagem do estilo. A segunda substituição está relacionada com o facto de estarmos perante uma produção assente em «fluxos culturais globais» e em «formas sociais pós-nacionais» (Appadurai 1990, 1993) que permitem o diálogo entre membros de uma mesma comunidade imaginada (a hip hop nation) – com recurso a uma retórica do estilo e aos seus meios de divulgação (revistas, discos, televisão) – que ultrapassa em muito aquilo que se tem vindo a definir como fronteiras étnicas. Por último, os «novos cosmopolitismos» (Appadurai 1991) criados pelos recentes fluxos migratórios, pelas facilidades de deslocação e pela permeabilidade e acessibilidade dos produtos culturais contemporâneos leva a que a noção cristalizada e abstracizante de cultura (enquanto uma estrutura que se aplica a um grupo fechado e que condensa de forma articulada todas as áreas do social, incluindo a etnicidade) se torne pouco fiel na caracterização dos contextos sociais em que o rap emerge. Os novos cosmopolitismos vividos por grande parte dos rappers – que se exprimem através de uma linguagem global e que se encontram em constante diálogo com os centros hegemónicos de produção cultural – são ainda sentidos ao nível das experiências diaspóricas de alguns deles. Sobretudo aqueles que viveram experiências migratórias mais recentes, têm uma visão muito particular sobre o que é «o seu país». Em Portugal sentem-se, antes de mais, como cidadãos de pleno(s) direito(s), mas existe a noção de que poderiam viver aqui ou em qualquer outro país ocidental com tradições migratórias. Segundo me apercebi durante o trabalho de campo, as férias escolares são aproveitadas po r alguns rappers para visitar a família em países como a Holanda, a França ou a Suíça: uma excelente oportunidade para renovar o stock de indumentária (até há alguns anos atrás era difícil encontrar em Portugal peças de vestuário de marcas conotadas com a cultura hip hop) e actualizar-se tecnologicamente (comprando um novo modelo de caixa de ritmos, por exemplo). É esta ideia de que as suas raízes se estendem em múltiplas direcções – visível na constatação proferida pelo Mc Knowledge Kid ao afirmar que a sua família se encontra espalhada pelos cinco continentes – e que esses destinos estão de alguma forma acessíveis, que faz com que a experiência destes jovens seja bem mais cosmopolita do que a de muitos outros, colocando em causa as visões mais paternalistas e simplistas que tendem a considerar os jovens negros portugueses como jovens à partida mais desfavorecidos15.
«Somos africanos de segunda geração, temos tanto de África como de Portugal. Mas queremos integrar-nos tanto num como noutro. Só que, às vezes, a comunidade portuguesa não nos quer aceitar como portugueses e a comunidade africana não nos quer aceitar como africanos. Então o que tentamos fazer é quebrar essas barreiras e afirmarmo-nos como um novo produto. Não rejeitamos nem uma cultura nem outra, queremos ter as duas culturas e criar uma cultura mais rica, que tenha um pouco de cada uma.» (Boss Ac em entrevista ao jornal Blitz, 27.12.94, p. 16-17)
38O que tenho vindo a tentar mostrar através da heterogeneidade que parece caracterizar, em Portugal, as experiências em torno da produção e consumo de música rap passa, entre outros aspectos já desenvolvidos, por mostrar que a gestão e construção de uma identidade negra, ou neste caso black, é algo de bastante complexo e que ultrapassa a categoria da africanidade (cf. Cidra 1999, 2002). A recuperação de uma identidade africana mais abstracta e generalizante surge como construção posterior à experiência do rap, ou melhor, como um dos seus possíveis desenvolvimentos, e é sobretudo inspirada nas tendências mais afrocentristas do rap americano. Apesar desta consistir, do ponto de vista político e crítico, num ancoradouro importante para alguns projectos na área da música rap, na perspectiva do main stream ela adquire um estatuto absoluto ao corresponder à noção de uma identidade africana ou negra consensual e homogénea. Esta, por ser posta em causa se tomarmos em conta a complexidade e descontinuidade das experiências contemporâneas associadas à vivência da negritude, tem vindo a ser criticada por alguns autores interessados na discussão daquilo que denominam como «the politics of black cultures»:
«A ideia de uma identidade racial comum e invariável, capaz de ligar experiências de negritude divergentes através de diferentes espaços e temporalidades foi fatalmente minada. As crescentes afirmações desesperadas de homogeneidade que emanam da cultura negra vernacular não conseguem nem conciliar nem responder a esta transformação. Homogeneidade pode significar unidade, mas a unidade não precisa de requerer homogeneidade.» (Gilroy 1993b: 2)
39Um dos melhores exemplos da exploração dessa identidade black – como uma entre as várias formas identitárias criadas a partir da experiência diaspórica e que está mais ligada a uma prática quotidiana e a uma forma urbana e cosmopolita de encarar o mundo, ou seja, esse novo produto de que fala Boss Ac – é o projecto do grupo Black Company. Criado como um agrupamento alargado e estruturador de sociabilidades juvenis em meio multicultural urbano, veio mais tarde a sedimentar-se como um grupo de rap cuja mensagem ultrapassa em muito as questões ligadas à discussão da identidade racial e da marginalização. Do seu primeiro álbum Geração Rasca (1995) até ao segundo Filhos da Rua (1997), o seu trabalho centra-se ora na reflexão sobre os princípios da cultura hip hop, ora sobre a descrição de contextos e tipos sociais que fazem parte do seu imaginário.
40Outros projectos, como os Da Weasel ou General D são mais conotados com uma posição politicamente engajada e que procuram reflectir de forma mais directa questões colocadas pela construção de uma identidade africana ou étnica. Se no trabalho dos Da Weasel esta posição era mais visível nos temas dos primeiros álbuns, tornando-se um pouco mais diluída num discurso (lírico) cada vez mais biográfico e abstracto; em General D a reconstrução ou recuperação de uma identidade e memórias africanas, que haviam sido entretanto perdidas, continuam a constituir a base do seu projecto16. Curiosamente estes dois trabalhos são encarados como os principais exemplos de cross-over na área do rap produzido em Portugal e assumem-se como projectos de fusão (de linguagens musicais). Do ponto de vista do interior do movimento hip hop eles são excluídos da categoria da música rap, mas do ponto de vista exterior (editoras, jornalistas, críticos musicais e público main stream) são apontados recorrentemente como os mais característicos exemplos do rap produzido em Portugal. As razões que levam a esta contradição serão aprofundadas nos próximos capítulos, no entanto, importa adiantar que ela se prende com a forma como a posição face à construção de uma identidade negra mais abstracta e generalizante se encontra mais próxima do senso comum e da imagem pública que a experiência da negritude tem vindo a assumir em Portugal.
41Importa ainda referir que estas diferentes posições ideológicas reflectemse necessariamente na linguagem instrumental utilizada. Enquanto que o som dos Black Company é baseado, de forma muito estrita e quase purista, nas estruturas sonoras características do rap (sendo um dos poucos grupos que incluem um DJ permanente nas gravações e ao vivo), o trabalho dos Da Weasel reflecte influências mais abrangentes e está conotado com as várias correntes da pop alternativa anglo-saxónica17. No caso de General D, este procura intensamente um som africano que corresponda à sua imagem e à sua mensagem. No seu disco Kanibambo (1997) os artistas convidados (ligados à música tradicional de Cabo Verde e Moçambique, por exemplo) reflectem essa procura, bastante visível também a partir dos títulos de alguns dos seus temas (Batuke, Afrika Nossa, Ekos do Passado, Hora di Bai, Memórias de uma árvore Morta, entre outros). Este som, que já tem sido catalogado como afro-pop, é ainda enriquecido e complexificado pela utilização da guitarra portuguesa, numa alusão explícita ao fado, e pela participação de jovens músicos de outras áreas musicais.
Tenta perceber a tua identidade
Procura no teu íntimo a verdade
Não és apenas mais uma pessoa
Que aparece neste mundo à toa
Tenta encontrar as tuas raízes
Senão pode ser que algum dia as pises
Só assim perceberás quem tu és
No sangue que te corre da cabeça aos pés. (...)
Cada terra com seu uso
Cada roca com seu fuso
Nasci em Angola, tenho mãe cabo-verdiana
Sempre vivi em terra lusitana
3 culturas que não vou separar
Todas têm muito para me ensinar
Prefiro antes fazer uma fusão
Porque a força vem da união (...)
Da Weasel, «Educação (É Liberdade)».
In Dou-lhe com a alma. 1995, Dínamo.
Estilo afrikano
Eu sou eu sou moçambikano
Mama dá-me estilo
Estilo afrikano
Karapinha minha
Minha karapinha
Karapinha hué hué
Tenho lábio grosso
Chega-me ao peskoço
Nariz achatado
Karapinha hué hué
Karapinha huá huá
Karapinha minha
Karapinha tua
Eu tenho karapinha
Pinha pinha pinha minha
Eu tenho karapinha
Rabinho empinado
É assim que eu gosto
Não tento passar
Pinha pinha pinha minha
Não não aliso
Não não postiço
Não faço nada disso
Afrikano compromisso
Não tento passar e branco ficar
Lentes de kontakto não vou usar
E branko focar
Lentes de kontakto
Não não vou usar.
General D, «Karapinha».
In Pé na tchôn, karapinha na Céu. 1995,
EMI - Valentim de Carvalho.
42Confrontar estas perspectivas de grupos em processo de profissionalização com as sessões do Johnny Guitar e com outros espaços de consumo e prática de música rap, permite perceber ambas as dimensões de forma contextualizada. Para além de se verificar que a questão da raça nem sempre constitui uma preocupação incontornável e constantemente verbalizada (ao contrário do que acontece com General D), é possível delimitar as outras preocupações que se reflectem nos discursos de quem faz música rap. Tal como ficou acima demonstrado, um dos principais conteúdos discursivos e performativos deste estilo musical centra-se em torno da demarcação de diferenças internas e da discussão dos fundamentos do rap e dos valores do rapper. Assim, uma parte significativa está sobretudo interessada em discutir as diferenças que marcam gerações, estilos, bairros ou regiões – o que põe em causa uma imagem homogeneizadora e de intervencionismo político, compactado e formatado, utilizada por alguns autores para definir o estilo musical.
43A análise atenta dos conflitos gerados durante as sessões do Johnny Guitar (complementada por conversas e observação noutros contextos) – que levaram ao afastamento desse espaço de grande parte dos rappers profissionais ou em busca de profissionalização – permite perceber que estes confrontos constituem-se sobretudo como o reflexo do desenvolvimento do movimento em Portugal e da consequente proliferação de projectos na área do rap. Face a um grupo unido pela descoberta e pela luta para aceder à informação, aos meios de produção e à visibilidade – ou seja à legitimação de um estilo musical em emergência – cuja principal conquista se reflectiu na edição da colectânea Rapública (1994), esta nova geração de rappers desenvolveu os seus trabalhos e a sua forma de viver e praticar o rap a partir das bases criadas por essa geração anterior. Isto faz, não tanto com que estes últimos sigam os passos já iniciados pelos pioneiros – ou Old School como por vezes se auto-intitulam – mas, pelo contrário, suscita reacções críticas, reformulações e tentativas de impor novas linguagens, novas atitudes, novas retóricas.
44As diferenças que marcam duas gerações de rappers portugueses passam quer pela evolução dos meios e espaços de prática e produção de música rap, como pelas formas de experienciação do quotidiano que diferem segundo a idade de cada um. «Para cada momento, diferentes “andamentos”», poderia ser a expressão que explica grande parte das discordâncias entre rappers. Os próprios rappers identificam o amadurecimento como um factor essencial na forma como se vive o rap e a cultura hip hop. Numa primeira fase, o aprofundamento musical parece ser menos importante do que o domínio dos signos da retórica do estilo a que se pretende aderir. Os grupos mais novos assentam a sua legitimidade sobretudo na experiência da vida da rua, na capacidade de participação em ataques verbais, expõem mais abertamente as suas capacidades de improviso e confronto. Os rappers mais velhos assumem terem já abandonado o terreno de combate e concentram as suas energias no trabalho de produção musical. O importante é que também eles, num dado momento, passaram pela rua e constituíram o seu corpus de experienciação que lhes permitirá legitimar os conteúdos, mais amadurecidos, dos seus projectos. É neste sentido que se pode considerar o rap como uma fórmula de crescimento em meio (sub)urbano e multicultural. Muito do que está em jogo nestes confrontos internos do movimento hip hop passa por um dos principais objectivos de qualquer processo de crescimento, a saber: a conquista de autonomia e capacidade de tomar decisões (quer estas sejam valorizar uma carreira profissional e adquirir o estatuto de músico; quer sejam a vontade de criar uma postura própria de demarcação dessa via, vista como comercial ou sell-out).
O rap para eles (grupos novos) agora é o que foi para nós naquele tempo: é uma referência, uma imagem – os bumbos cheios de estilo a aparecerem na televisão, em clips com grandes coisas, grandes imagens e grandes cenas. O rap para eles agora é isso, não ligam muito à música, é o que está na moda. Se é Wu Tang*, é WuTang, se daqui a um bocado for Artifacts é Artifacts. Eles não têm uma linha de conduta, eles estão assim um bocado à deriva porque ainda estão no princípio. Nós já ultrapassámos isso: já chegámos à conclusão que inglês não dava, temas dos outros não dava, tínhamos de arranjar os nossos, a nossa realidade é que dava, tínhamos de arranjar um estilo novo e isso leva muito tempo, até um gajo sair daquela ilusão. Porque é uma ilusão em que um gajo está. Só que isso com o tempo muda à medida que eles vão avançando – e então se entram numa editora e vêm como é que é o mundo da indústria da música, mudam logo. (...)
A cena deles não é a música em si, a música faz parte, a cena deles é outra. Nós temos a perspectiva do grupo musical, somos um grupo musical que está inserido numa cultura que é a cultura hip hop, que é muito mais abrangente. A cena deles não, é o grupo ou o bairro deles ou a clique deles que depois também curte a música do hip hop e gosta de vestir à hip hop, mas no fundo não estão no meio musical, a música não é o centro. Daí que eles gostem de criticar. (Guto).
Hoje há uma divisão... há aquela geração nova de gajos, que na altura do Rapública não estavam por aí e para eles o hip hop é só Wu Tang e desconhecem o que é o hip hop. Eles deviam ouvir os grupos que os próprios Wu Tang antes de fazer o disco ouviram. Quem conhece isso são só os grupos do Rapública e quem curte hip hop desde essa altura. Há uns que só curtem WuTang e pensam que Wu Tang é só violência. Estão enganados, se percebessem inglês viam que não era verdade e andam armados em... são muito egocêntricos. Depois há aqueles que pensam que hip hop é só gansgta, a maior treta é essa mesmo: ambos pensam que hip hop é violência. E depois há os que sobrevivem, há os gajos dos graffitis que curtem e eles próprios fazem hip hop, há os grupos como o meu que fazem a sua cena e cagam para o resto – em termos artísticos, não é estilo «somos os melhores» – e depois há grupos que estão já numa outra fase, já estão no segundo disco e a ganhar cachés altos. (D Mars).
Em relação aos grupos novos, quando eles tiverem a fazer uma cena deles, merecem todo o respeito do mundo. Agora quando apenas fazem uma imitação – Eh pá, imitações há muitas, é ir aí a um bar de noite e é só gente a imitar o Chico Fininho. (Guto).
Há vários tipos de cena: os guetto mc que vão para a batalha em free-style e rimam uns contra outros. Eu não gosto muito disso. O meu primeiro feeling não é esse, estar na rua e estar a rimar e isso. Muitas vezes sobrevaloriza-se essa cena e nem todos os que têm discos aí fazem isso. Claro que é uma parte fundamental do hip hop, mas as cenas que aparecem nos discos, pelo menos muitas das merdas com que eu me identifico mais, e que têm uma mensagem mesmo, são cenas escritas. (Carlos).
Eu sempre fiz uma diferença no rap e essa é a única diferença que eu faço: entre sucker e real. Não há preto, não há branco, não há mulher, não há homem. A única diferença que eu faço é: tu és um sucker porque cantas comercial; eu sou um real porque canto aquilo que eu sinto. Mais nada! Não há mais nenhuma dife rença. (Jorginho).
Tens de viver e falar do que tu sabes. Dizem que nós [TWA] cantamos gangsta. Só que essa é a nossa vida. Quando me dizem: «Tu és um gangsta», eu digo: «Não, eu não sou um gangsta, a vida que eu levo é que é de gangsta. Eu levo porque tenho de levar». (Jorginho).
Eles [comerciais], com o nome que já têm podiam voltar a ser reais. E as pessoas iam comprar na mesma por causa do nome e nós íamos não pelo nome deles, mas pela mensagem. (David).
45Esta dicotomia foi também identificada por Mitchell a propósito da sua análise do rap italiano. Segundo este autor a partir do momento em que o movimento hip hop italiano se tornou, em 1992, numa manifestação local estabelecida, surgiu aquilo a que chamou uma «questão de estilo» onde a «credibilidade da rua» surge em confronto com uma «sensibilidade funky» (Mitchell 1996: 157). O conflito identificado por Mitchell entre um rap que assume «um estilo pop divertido e orientado pela moda» e aquele que se apresenta como «um veículo exclusivo de oposição política autêntica» (1996: 161) partilha com o confronto que tenho vindo a descrever a utilização de uma retórica da autenticidade. Se tivermos em conta o corpus de valores que estrutura a performance e produção de rap, acima discutido, verificamos que esse é um dos seus principais elementos, sendo utilizado para reivindicar legitimidade sobre estas posturas adoptadas. Keepin’it real, ou seja, a autenticidade, a coerência e a verdade são valores significativos utilizados para justificar a acusação mútua de falta de genuinidade por parte de ambas as facções. A acusação que cada uma das partes aplica à outra de «representar mal o rap nacional», é por sua vez contrabalançada por uma defesa conjugada da qualidade com que outras áreas de expressão da cultura hip hop o têm feito. É aqui que o graffiti surge como a tábua de salvação da cultura e, de certa forma, como o espaço de reunião do consenso essencial à manutenção do movimento18.
46Entretanto, a retórica da autenticidade deu lugar à retórica do respeito, utilizada pelos grupos profissionalizados e bem patente em alguns temas incluídos nos álbuns mais recentemente editados. Esta retórica baseia-se em grande parte numa concepção de certa forma utópica do movimento e remete muitas vezes para uma época áurea de união e fraternidade entre todos os rappers (um discurso que emergiu também numa das primeiras sessões do Johnny Guitar pela voz do veterano Double V do grupo Family).
Mi lembro bem
do tempo ke era bom
rappista todo junto
a kriar um granda som
harmonia fantasia
rappi era minha vida
noiti a kriar
kriar improvisar
a koisa era tão boa
mas akabou você tá doidô
mi traz di novo o tempo
ke era bom
rappi kresceu
harmonia morreu, ganância venceu
e todo o rappista perdeu
agora já não tamos juntos
tamos separados
e eu tou muito dado
Refrão:
Rappi ta dodo
o kê?
ke eu já não keria akabar
Você kê você
Family mi salva
o kê?
Family mi slava
rappi ta dodo
o kê?
Você Kê você (...).
General D, «Rappi Ta Doddo».
In Kanimambo.
1997, EMI - Valentim de Carvalho.
Vou demonstrar um pouco, daquilo que tenho
digam o que disserem eu sou Genuíno
Tudo o que tu vês eu já vi...
eu sou o controlador e tu és o Tamagoshi.(...)
Respeito é tudo o que eu exijo,
rimas como esta aliviam-me quando mijo,
sou rijo organizando a minha técnica de combate
Sílabas são granadas, Boss AC ê xeque-mate.
Boss AC com Black Company,
«Genuíno». In Filhos da Rua.
1997, Sony Music.
47É ainda à luz deste confronto (ou encontro) de gerações que utilizam o rap como fórmula de crescimento que deve ser vista a agressividade e a retórica da violência assumidas por alguns discursos e performadas, não só nas sessões do Johnny Guitar, mas também noutras ocasiões. Um dos mais significativos documentos que permitem presenciar essa prática é o documentário de Kiluange Liberdade O Rap é Uma Arma (1996). Este filme – do ponto de vista do realizador – tem como objectivo marcar a diferença entre o rap comercial e o rap de rua. Um dos interesses da sua análise releva do seu conteúdo ser eminentemente discursivo, já que a diferença entre as duas áreas de prática de rap é feita unicamente a partir do discurso dos rappers auto-intitulados underground (ou não-comerciais) a propósito daqueles que estes intitulam de comerciais. Para o espectador o que sobressai é um discurso agressivo, e por vezes ofensivo, contra o que parece ser o símbolo do comercialismo: o grupo Black Company e o seu tema Nadar. Para além desta preocupação de demarcação – partilhada pelo realizador – surge mais uma vez em lugar de destaque a defesa dos princípios, valores e fundamentos da cultura hip hop ou do rap. Aqui a forma como são mostrados os bairros e incluídos os improvisos acaba por realçar a dimensão da experiência da rua (e mesmo a ideia de ghetto) corroborando uma determinada perspectiva sobre a forma de keepin’it real.
48O confronto geracional expresso no dualismo underground vs. sell-out está relacionado com a (violenta) entrada do rap no mercado discográfico e com a saída dos primeiros trabalhos fruto de uma relação contratual com as editoras. A forma como este processo foi desencadeado e desenvolvido pelos vários agentes implicados (rappers, editoras, imprensa) será abordada nos próximos capítulos. Por agora importa demarcar de que forma a terminologia do meio musical – que classifica a música como comercial e música não-comercial tem servido como metáfora para, por um lado, verbalizar um confronto surgido a partir do crescimento e incremento do rap produzido em Portugal; e, por outro, classificar as consequências do desenvolvimento pessoal dos rappers da primeira geração. Esse desenvolvimento passou nomeadamente pela recuperação de tradições musicais familiares ou pessoais e procura de legitimação do seu estatuto de músico. Estes esforços são pouco compatíveis com as práticas de determinados estilos de vida conotados com os elementos que mais eficazmente permitem obter legitimidade dentro do movimento hip hop. É este contexto que permite a emergência do discurso da autenticidade vs. o discurso da maturidade.
49O facto do tema Nadar dos Black Company ter sido escolhido como o paradigma desta tensão, passa também pela circunstância deste ser um tema mais celebrativo do que reflexivo, que pode facilmente ser adoptado como música de dança e diversão equiparada a qualquer outra música pop sem grande conteúdo. Num estilo musical onde a mensagem lírica tem uma importância crucial e que serve nomeadamente para discutir e reflectir sobre experiências reais, a futilidade surge como uma das tendências mais desprezíveis. Não creio que o tema Nadar seja mais fútil do que alguns dos temas que escutei ao longo do trabalho de campo, no entanto, o facto deste ter sido o primeiro a fazer o cross-over, ou seja, a ter sucesso fora do circuito interno deste estilo musical, e ter sido o principal responsável pelo sucesso de vendas de um álbum supostamente ainda underground, criou uma enorme disparidade de oportunidades entre os vários projectos que integraram a colectânea Rapública (Sony, 1994).
Nós queremos é diversão
Queremos desbundar
E é na Caparica que nos vais encontrar
Um som radical no meu rádio já paiado
Ninguém está preocupado
E pura ilusão que Portugal é diferente
Os rappers de Miratejo têm um grande ambiente
Os gajos no estrangeiro apanham do ar
Podemos rebentar
Mas não nos peças para nadar
(...)
É sempre a dar, é sempre a dar, é sempre a dar
Com o som do Raggamufhin não consegues
mais parar
Black Company tem som que está pronto a rebentar
Black Company tem som que está pronto a estoirar
Depois de meses de espera
B.C. mantém a pole
Estamos preparados para não perder o controle
E se quiseres ouvir um som que entusiasma
D.J. K.G.B. dá-lhe com a alma
Agora quero saber se estão a gostar
Se a resposta é sim quero ver as mãos no ar
Nós não sabemos nadar
Mas nós sabemos rapar
É sempre a dar
A desbundar
É a partir
Até cair
Refrão:
Bantu não sabe nadar
Mad Nigga não sabe nadar
Makkas não sabe nadar
Black Company, Nadar. In Rapública,
1994, Sony Music.
50O sucesso deste tema e, com ele, a grande procura do grupo para espectáculos e outros eventos mediáticos, fez com que surgissem outros projectos que exploraram de forma bem mais consciente a linguagem comercial, na esperança de obtenção de iguais êxitos. Um dos grupos que mais se aproximou desse objectivo foram os Alex e os Putos do Bairro, de existência anterior à edição do Rapública, mas que em 1996, sob a orientação do veterano Jessy] (exZona Dread), editaram com sucesso o tema «BowWow Wow» (MCA). O Mc Alex tinha na altura apenas 12 anos e as suas qualidades vocais associadas a uma postura muito cool agradaram ao público.
51O facto de não haver uma maior continuidade e diversidade nos espaços de performance e consumo de rap leva a que as oportunidades de encontro entre os protagonistas destas várias formas de viver o estilo sejam escassas e a que, por vezes, não conheçam os projectos de cada um em profundidade. A circunstância de representantes de ambas as «facções» (primeira e segunda geração, ou sellout e underground) se acusarem mutuamente de cometerem Os mesmos erros – falta de autenticidade, falta de fidelidade aos princípios do hip hop e superficialidade – é uma das provas desse desencontro. É por isso que tanto o discurso conflituoso que descreve a situação vivida entre 1996 e 1997, como aquele que descreve uma época áurea de união, devem ser vistos mais como sinais das dinâmicas surgidas no interior de um fenómeno cultural activo e em desenvolvimento – suscitando espaços de reflexão do –,que como retratos fieis e objectivos do que se tem passado e passa com o rap produzido em Portugal.
52Importa ainda referir que nem todos os rappers e outros elementos da cultura hip hop participam de forma activa nestes discursos em torno da divisão. Existem focos de produção e prática relativamente autónomos e isolados destes espaços públicos centrais, que implicam não só locais como o Johnny Guitar e o Soul Factory, mas também concertos, programas de rádio e outros eventos. A esses outros espaços de produção correspondem projectos que não se enquadram em nenhum dos contextos acima descritos. Os grupos Influência Negra, Micro, Dileama e Matozoo são apenas alguns dos exemplos de projectos que nesta época ainda não haviam sido editados, mantendo uma ligação forte ao movimento rap underground mas trabalhando sob moldes próximos dos profissionais. Com instrumentais originais, trabalho de produção cuidado, concertos a solo e um alinhamento bastante consistente, mas não se encontrando profissionalizados, parecem não caber em nenhuma das categorias acima descritas. Este tipo de grupos são fundamentais à manutenção do estilo através da apresentação de propostas consistentes em circuitos paralelos aos das editoras multinacionais. Os seus projectos situam-se entre a necessidade de desenvolver o seu trabalho em condições que permitam um determinado nível de exigência e a vontade de permanecerem fiéis e próximos da experiência da rua, a principal fonte de material criativo.
O que nós fizemos com muito sucesso – a experiência que eu tive com o outro grupo serviu-me de aviso para não cometer os mesmos erros com este – foi ensaiar e criar o grupo dentro do quarto. Durante um ano só ensaiámos em casa. Temos praticamente 40 músicas feitas. Criámos o espírito do grupo. Temos a nossa filosofia e resolvemos completamente diferente do que há por aí. Diferente no sentido de que são poucos grupos que têm som de sampler (a maior parte usa apenas caixa de ritmos) e em termos de rimas criámos o nosso próprio estilo, criámos as nossas dicas de grupo – Microlândia, Micro isto Micro aquilo – captámos um certo público que eu queria captar mesmo. Captámos o público do hip hop puro. Temos o respeito de todas as vertentes do hip hop. Nunca entrámos em conflitos, quando havia free-styles no Johnny, quando houve aquelas merdas Norte/Sul não sei quantos, ficámos sempre de lado. E chegámos a um ponto em que já estamos confiantes de nós próprios e agora é que queremos sair do quarto, queremos abrir a porta. Tivemos uns concertos assim pequenos – como o do Johnny – só para ganhar confiança. E agora acho que chegou a nossa altura. Gravámos uma demo tape com 14 músicas e distribuí aos amigos todos aí, do outro lado do rio, por aí fora e estou para ver a reacção. Para ter a certeza, tipo: «os putos curtiram». Eles todos curtiram e isso quer dizer que estamos a fazer uma coisa boa. Vieram uns gajos de França, e em França a coisa está muito mais evoluída do que isto, curtiram muito as nossas cenas e isso deu-nos confiança. Nós quisemos primeiro conquistar o nosso público e agora queríamos conquistar o outro. Eu curto fazer experiências de «toma lá, ouve lá isso» e não só para o público de hip hop, agora meto para a minha mãe ouvir, para o meu avô. Pessoas assim que não curtem mesmo hip hop. Pronto, se curtirem aquilo vê-se logo que atingimos. Agora o principal objectivo é gravar um disco. Estão a sair aí discos lamentáveis e de grupos de merda, que estão a representar o rap português de uma maneira...! (DMars)19.
O nosso objectivo não é gravar. É uma coisa que eu um dia gostava de fazer, se me dessem essa oportunidade, mas desde que eu possa continuar a fazer da forma que faço, com os meus ideais. E se não for assim, hei-de continuar a fazer sempre, para eu ouvir, para os meus amigos ouvirem, a fazer maquetes para sempre. (Nuno, 22 anos, Matosinhos – Porto).
A maquete é nossa. O CD não. O CD não. O CD é mais à maneira deles [editoras]. (Nuno).
53Torna-se assim claro que o Johnny Guitar não pode ser encarado como um retrato completo dos rappers e da produção e prática do rap em Portugal. As sessões de ataque verbal foram asseguradas por um núcleo duro constituído por cerca de 5 0 indivíduos provenientes de diversas zonas da área metropolitana de Lisboa e que garantem a presença em praticamente todos os eventos de alguma forma relacionados com a cultura hip hop. São também o grupo essencial para o difícil processo de criação de um espaço, sempre efémero como já vimos, de performance de rap e é a sua capacidade de itinerância e mobilização que assegura uma parte importante do dinamismo do movimento.
54A maioria das questões discutidas na parte final deste texto são mais visíveis a partir da prática do rap na zona da grande Lisboa. No entanto é importante referir que existe um outro foco de práticas e criação de espaços de cultura hip hop na área metropolitana do Porto onde, por exemplo, as noites semanais no Comix Bar demonstraram, à época, a vontade de concretizar as condições necessárias para o estabelecimento de um movimento local. A existência de lojas de roupa e um circuito de outros produtos ligados à cultura hip hop – de que a loja Massive é um exemplo – permitem constituir espaços de reunião e encontro feitos em moldes algo diferentes daqueles a que assistimos nas sessões do Johnny Guitar. É ainda importante dizer que alguns rappers do Porto vêm já de tempos anteriores à edição do Rapública (1994, Sony). Apesar da pouca visibilidade que esses primeiros grupos, hoje extintos, tiveram, a continuidade de produção de música rap desde a época dos filmes de break-dance (no final dos anos 80), fortemente associada ao consumo de discos, revistas e roupa parece apontar para uma forma mais introspectiva de viver o hip hop.
55Este conjunto de veteranos do Porto, que incluía entre outros o grupo Reunião das Raças, foi renovado na segunda metade dos anos 90 pelo surgimento de novos rappers dos quais os Mind da Gap (com duas edições pela editora Norte/Sul) foram os que atingiram maior visibilidade. Mas grupos como os Matozoo (que inclui membros da old e da new school) e Dileama marcavam um lugar importante na época em que foi realizado o trabalho de campo. Estes mantinham um diálogo contínuo com grupos de Lisboa mais conotados com a facção não-comercial ou underground. A realização de eventos à escala nacional tem vindo a permitir a participação deste núcleo do Porto e a possibilidade da conquista da sua visibilidade enquanto movimento.
56A vontade de institucionalização e a tentativa de criar as condições para a constituição de um espaço exclusivamente dedicado à prática da cultura hip hop, por um lado, e o surgimento de um movimento underground autónomo e seguro de si próprio – viram a sua identidade legitimada por dois artigos datados de 199820 –, por outro, permitiu que o conflito bipolarizado, acima descrito, tenha vindo a atenuar-se.
57O trabalho de campo em torno dos espaços de performance e consumo mediático de música rap em Portugal mostrou que estes reflectem, também, uma heterogeneidade significativa. Sem delimitar fronteiras absolutas, é possível, no entanto distinguir cinco tipos de espaços onde a performance do rap adquire diferentes significados e propicia diferentes práticas.
58Antes de mais existem espaços de prática contínua (Johnny Guitar, Graffity Bar) caracterizados pelo internismo, onde é possível desenvolver narrativas que reflectem sobre essas mesmas práticas e sobre o estado do movimento. O grau de exigência, face ao trabalho do Dj e dos Mcs, é elevado.
59Também caracterizadas pelo internismo são as festas de hip hop/hip hop parties, acontecimentos isolados mas exclusivos no que diz respeito à música que é passada21. Destinam-se sobretudo à dança mas podem por vezes incluir free-styles. A iniciativa da organização do evento parte do interior dos membros do movimento e a sua divulgação é geralmente reduzida (o que não impede de terem uma afluência de público considerável). – Festa Hip Hop, Bar Graffiti (Cascais, 1997); The Birth of Raska, Bar Ribeira (Lisboa, 1997); Phatfunky Party/Festa Hip Hop, Ciclone (Lisboa, 1997); Hip Hop Show, Ginásio Clube da Baixa da Banheira (Baixa da Banheira, 1997)22.
60Um outro tipo de evento, caracterizado pela exclusividade, mas não necessariamente pelo internismo, são os concertos inteiramente dedicados ao rap, onde actuam uma série de grupos com um grau de profissionalismo variável. Estes oferecem muitas vezes oportunidades de cruzamento (no palco e no público) entre grupos profissionais e os grupos que se assumem como underground. Durante as prestações podem surgir momentos de improviso e free-style, mas a principal componente das prestações são temas originais. Neste caso a organização é tanto de elementos do movimento, como de instituições que lhe são exteriores, de onde se destacam as autarquias e associações culturais. – 1,° Festival Hip Hop, Largo do Século – Câmara Municipal de Lisboa (Lisboa, 1996); Arte Hip Hop/Comemoração Sintra Património Mundial – Câmara Municipal de Sintra (Cacém, 1996); Noite de Rap, Ritz Club (Lisboa, 1996/7); Concerto de Rap e Reggae a favor da Abraço, Clube Musical União (Lisboa, 1997); Encontro de Rap, Abel Pereira da Fonseca – Associação Sons da Lusofonia (Lisboa, 1998); Matinée Rap, Discoteca Morabeza (Amadora, 1997); Noite de Rap, Bar Soul Factory (Lisboa, 1997); Concerto Todos os Tons – S.O.S. Racismo, Ritz Club (Lisboa, 1997); Festival Rap, Ritz Club (Lisboa, 1997), Concerto de Rua – apoiado pela Junta de Freguesia (Miratejo, 1997), Convenção Hip Hop – apoio da Câmara Municipal de Oeiras (Algés, 1997); IV Mostra de Graffiti – Câmara Municipal de Oeiras (Algés, 1997); Concerto da Juventude, Pinhal Novo (Pinhal Novo 1997).
61Por último existem espaços de visibilidade e consumo de projectos musicais onde o rap ocupa por vezes um lugar equiparado ao de outros grupos de música pop e rock. Estes constituem um dos mais importantes veículos de afirmação do lugar que o estilo musical ocupa na cultura main stream portuguesa. – Desfile de Novos talentos da Moda – Alex e os Putos do Bairro e Dj amai/Cordoaria Nacional (Lisboa, 1997); Concerto primavera/Isabel Silvestre; Emília, Pedro Portugal, Black Company, Santos & Pecadores/Centro Cultural de Belém (Lisboa, 1997), Concerto de Encerramento da Semana da Juventude – Da Weasel, Blind Zero, Despe e Siga/Câmara Municipal de Lisboa, Pavilhão Carlos Lopes (Lisboa, 1997); Semana Académica de Lisboa – Mercúriocromos, Ena pá 2000, Black Company, Black Out, Ritual Tejo, João Afonso, Jorge Palma, Sérgio Godinho, Da Weasel, Urban Species/Parque do Restelo (Lisboa, 1997).
62A heterogeneidade que caracteriza a prática e produção deste estilo e o carácter efémero que está associado à forma como é alimentado pelas experiências quotidianas e pelo desenvolvimento pessoal – ou melhor, pelo crescimento simultâneo do grupo e da cultura hip hop – levam a que sistematizações e contabilizações demasiadamente rígidas percam muito rapidamente a sua validade.
63A lista que se segue é uma enumeração dos grupos de rap que cruzaram, de diferentes formas, o espaço e o tempo em que se situou a pesquisa. Muitos outros surgiram entretanto e alguns dos que refiro terão, eventualmente, acabado. Faltam também aqueles cujos palcos de visibilidade se situaram em locais que não percorri ou a que não tive acesso. Mais do que uma tentativa de levantamento que se tornaria, sempre, demasiado efémera, esta referência constitui um tributo.
233 Ilegais | Factor Activo | Menace to Society |
Alex e os Putos do | Factor X | Mentekapta |
Bairro | Family | Micro |
Alma Negra | G-Boyz | Mind Da Gap |
Bad Rude Niggaz | General D | No Comments |
BFH | Gregos do Shaba | Official Nasty |
Black Company | Incorp CMS | One 8 7 Squad |
Boss Ac & Q Pid | Influência Negra | Out Side |
Complice | Ithaka | Punga |
Cross the Breeds | JF | Real 6 |
Da Weasel | JJ | Rebel Gang |
Def Maniacs | Kombination | S.I.D.A. |
Dileama | KID | Shot Guns |
Divine | Líderes da Nova | Sistem Guetox |
Djamal | Mensagem | The Family Feast |
Djoek | Matozoo | TMT Cronik |
Dr. Minguedy | Mc Johnny Def | Turbo Gangsters |
Dream Factory | Mc Sam the Kid | |
Extortion | Mc Sunrise |
Notes de bas de page
1 Para Gilberto Velho: «Os projectos individuais sempre interagem com outros dentro de um campo de possibilidades. Não operam num vácuo, mas sim a partir de premissas e paradigmas culturais compartilhados por universos específicos. Por isso mesmo são complexos e os indivíduos, em princípio, podem ser portadores de projectos diferentes, até contraditórios.» (Velho 1994: 46). Ver ainda Velho: 1987.
2 Uma abordagem idêntica tem sido aquela desenvolvida por Rui Cidra (1999, 2002) centrada sobretudo nos processos identitários ligados a esta cultura urbana e juvenil de que o rap faz parte. Também Cidra realça a materialização da expressão musical em produtos culturais diversificados que permitem disponibilizar: «um conjunto de recursos simbólicos utilizados pelos diversos actores na formação ou reconfiguração de identidades individuais, expressas em comportamentos ou práticas, modos de conceber a realidade e de interpretar as suas posições subjectivas nela.» (2002: 192)
3 No final de 1999, José Marino abandona a realização do programa Répto, que fica, até 2001, nas mãos dos seus colaboradores D Mars e colectivo Raska, com o título Submarino. Actualmente a Antena 3 dedica uma rubrica diária à música rap com o nome de Mercado Negro, da responsabilidade de Pac Man.
4 Os programas de rádio desempenharam (tal como em relação a outros estilos musicais) um papel fundamental, não só na divulgação do rap internacional, mas também como forma de estabelecer contactos entre os vários adeptos e praticantes de rap em Portugal. Nos finais dos anos 80 surgiu o programa «Mercado Negro» no Correiro da Manhã Rádio, da autoria de JoãoVaz (Contador e Ferreira 1997:166); mais tarde, já no início dos anos 90, surge na NRJ-Rádio Energia o «Novo Rap Jovem» de José Marino que. ao transitar para Antena 3 (a frequência jovem da Rádio Difusão Portuguesa) criou o «Répto». Embora estes programas específicos tenham uma duração mais ou menos limitada (dependendo das políticas de programação das Rádios), geralmente existe sempre um programa radiofónico na área do rap em antena.
5 Durante a pesquisa as Oficinas de Rap tiveram duas edições contínuas: uma primeira que ocorreu no núcleo pedagógico do Centro Cultural de Belém (em Lisboa), altura em que tomei conhecimento do evento, só tendo possibilidade de assistir às suas últimas sessões. Uma segunda que teve a duração de cerca de dois meses (Maio e Junho de 1997), com uma média de duas a três sessões semanais, e que ocorreu em várias Delegações Regionais do IPJ (Faro, Vila Real, Setúbal, Coimbra, Guarda, Lisboa e ainda Évora, Porto e Aveiro que não chegaram a acontecer devido a falhas de organização). Acompanhei na íntegra esta segunda edição, integrando a equipe como observadora. No final entreguei à Associação um relatório que tinha sido requisitado como contrapartida para a minha integração no projecto. O principal mentor na criação das oficinas foi o saxofonista Carlos Martins (presidente da Associação e ainda responsável pelo projecto da Orquestra Sons da Lusofonia) que desde o início se mostrou completamente disponível e interessado no meu acompanhamento das oficinas. Para além da recolha de informação que é aqui referida, esta experiência tornou-se particularmente enriquecedora pela oportunidade que me deu de interagir quotidianamente com dois dos mais relevantes rappers a produzir em Portugal-Guto e Boss Ac-que mostraram desde o início todo o apoio em relação ao meu trabalho e com quem mantive colaborações múltiplas mesmo depois de terminada a digressão do workshop.
6 A utilização da expressão black não me parece de todo ocasional. De facto, esta expressão é muito mais utilizada do que a expressão negro, que é deixada para situações mais formais. Com influências do rap norteamericano, ela parece exprimir melhor essa nova forma de viver a negritude, da qual o rap foi a banda sonora. E neste sentido que a expressão black passará a ser utilizada ao longo do texto, já que a expressão negro parece-a partir da perspectiva destes jovens – ter deixado de cobrir todas as formas de se «ser negro».
7 Nem sempre é possível o mesmo grau de pormenor nas informações sobre os entrevistados. O nome, o local de residência e a idade são aqui as categorias privilegiadas mas que nem sempre se encontrarão disponíveis.
8 Embora determinado tipo de roupa possa, pelas suas marcas e figurinos, ser inconfundivelmente conotada com a cultura hip hop, esta associação é passível de gerar alguns equívocos. Não só porque os sujeitos podem envergar roupas cujas marcas são significativas de determinada «cultura» sem o saberem, mas também porque existem diversas culturas a utilizar de forma significativa as mesmas marcas e estilos de vestuário. Por exemplo, o Mc Rodriguez referido no início deste capítulo, relatou que, ao chegar a uma nova escola, ficou entusiasmado ao vislumbrar entre os alunos aquilo que ele pensou serem rappers, devido à maneira como se vestiam. A sua desilusão foi enorme quando, ao falar com eles, percebeu que estes não percebiam nada de rap e que, afinal de contas, eram skaters* (que partilham algumas das suas marcas privilegiadas quer com o hip hop, quer com o surf). De qualquer forma existem algumas marcas que estão de tal forma imbricadas na cultura, pelos locais onde são vendidas, por exemplo, que existem fortes probabilidades de o seu utilizador estar de alguma forma ligado ao estilo que representam.
9 A mix tape é uma cassete audio ou CD-R que inclui uma colectânea de temas (muitas vezes escolhidos por um Dj que faz as passagens e pode inclusive introduzir efeitos sonoros). Essas colectâneas podem incluir participações originais de Djs, grupos de rap ou Mcs individuais. Assassinato Acto I (de Dj Assassino e Mc D Mars, ambos do grupo Micro, com a participação em free-style de 15 Mcs portugueses) e GhettoTalk (de Dj Bomberjack, com a participação de 8 Mcs portugueses) são dois exemplos de mix tapes produzidas em Portugal na época a que se reporta o trabalho de campo. Quando feitas sem enquadramento comercial, as mix tapes são gravadas por iniciativa do seu organizador, geralmente em estúdios caseiros. Por sua vez as maquetes são registos audio realizados pelos grupos com meios que vão da gravação directa por cima de uma música até à utilização de estúdios profissionais alugados à hora. As maquetes servem sobretudo para divulgar trabalhos e projectos pelos circuitos de música rap, que incluem não só os programas de rádios, mas também os amigos e conhecidos. São, no fundo, o cartão de visita de um grupo que procura uma aproximação à profissionalização.
10 Para alguns rappers o rock parece ser o estilo mais incompatível com o rap, sendo a chamada música negra – soul, reggae e r&b – e a música de dança os estilos mais toleráveis. No entanto as relações entre o rock e rap têm sido profícuas – do sucesso dos anos 80 do tema Walk this Way dos Aerosmiths – às recentes bandas de referências e híbridas como os Limp Bizkit.
11 O conceito de subcultura utilizado por Hebdige é um conceito ambíguo. Desde a sua criação nos anos 40 que tem servido para descrever um número alargado e diversificado de fenómenos em grande parte, mas não exclusivamente, ligados à juventude. Um dos maiores problemas da definição é que ela implica, pela presença do prefixo sub, a ideia de hierarquização dos fenómenos culturais, onde estas culturas ocupariam um lugar subalterno, subordinado ou subterrâneo (Gelder & Thornton 1997: 4). A contradição entre uma categoria teórica que define certos fenómenos como subculturais e a categoria folk de cultura hip hop parece constituir um facto revelador.
12 Criar instrumentais originais é uma tarefa que implica um conhecimento específico – simultaneamente musical e tecnológico. Implica ainda uma capacidade de investimento financeiro que pode atingir valores elevados. Na escala da complexidade instrumental os recursos mais básicos são as caixas de ritmo simples e os mais sofisticados os samplers. Neste sentido o trabalho dos grupos a nível instrumental está altamente condicionado pelos recursos que têm disponíveis. Entre aqueles grupos que não têm acesso a instrumentos de produção, alguns encomendam instrumentais a rappers/produtores exteriores ao grupo, outros limitam-se a utilizar instrumentais alheios disponíveis em edições estrangeiras (como aqueles utilizados nos free-styles do Johnny Guitar).
13 Esta é uma expressão utilizada pelos rappers para caracterizar de forma genérica um tipo de condições habitacionais que não inclui apenas os «bairros de lata» mas também a habitação social, sobretudo quando esta se situa geográfica e socialmente isolada.
14 No sentido que lhe dá Gilberto Velho: «(...) [Projecto] no nível individual lida com a performance, as explorações o desempenho e as opções, ancoradas a avaliações e definições da realidade.» (Velho 1994: 28).
15 A este pressuposto costuma estar associada a ideia da necessidade de promover a integração dos jovens das chamadas minorias étnicas. Um dos problemas inerentes a esta categoria passa pelo facto de essencializar a questão deixando de fora muitos outros jovens que passaram pela experiência diaspórica – os filhos dos comummente chamados retornados (pois parece não haver um termo politicamente correcto para descrever a situação dos colonos portugueses (e)migrados para a metrópole, o que não é de todo fruto de um acaso) – e, por isso, também eles vítimas de um processo de reterritorilização mas que (por serem considerados brancos) acabaram por ser excluídos desta retórica da integração.
16 General D afirmou numa palestra integrada no evento Hip Hop no Oriente (em Maio de 1998), que o seu crescimento foi feito «entre brancos» e antes de ter tomado contacto com a música rap, a sua principal preocupação consistia em tornar-se o mais parecido possível com os jovens (brancos) que o rodeavam.
17 Em entrevista, realizada durante o trabalho de campo, Pac Man validou a ideia de que os Da Weasel sempre se assumiram como um grupo de fusão e não como um grupo de rap: «Sempre fomos os primeiros a dizer que partíamos de uma base hip hop mas que não era uma cena convencional. A catalogação veio de fora e houve muita gente de dentro do movimento que não gostou. (...) Eu acho que sou uma mistura de muitas coisas.A minha cena é mesmo uma granda mistura. Desde o sangue que corre nas minhas veias. Sou um bocado de muita coisa e no todo acabo por não ser um estereótipo e a música que fazemos reflecte isso. Se calhar não sou um verdadeiro rapper... sou um rapper mas não totalmente.»
18 A imagem consensual que os rappers em geral têm do graffiti e dos writers pode não corresponder a um consenso no interior desta prática. A diferença de estilos e de formas de praticar o graffiti é notória, existindo aqui também alguns confrontos que, no entanto, não me considero preparada para discutir.
19 Os Micro entretanto afirmaram-se como um dos mais destacados grupos de estratégia de produção fora dos circuitos multinacionais. «A saída do quarto» (para utilizar a expressão de D Mars) deu-se entretanto e os Micro participaram em várias colectâneas (TPC – Trabalho para Casa, 2000, No Stress; Loop: Sounds – Hip Hop Nacional para 2002, Dance Club), tendo editado pela Loops Records Demo Style (2001) e Microlandeses (2002).
20 Cf. «Rap no Underground» de Carlos Neves in Blitz, 23.2.98, p.24-25 e «Novas Rimas para Portugal» por António da Conceição Tomás in Público/Pop-Rock, 6.3.98, p.5. Ao longo dos anos seguintes outros artigos foram sendo publicados, entre eles o referido na Apresentação «O nome disto é hip hop» de João MacDonald in Dna, 23.03.02 que ajudaram a consolidar a ideia de um movimento underground.
21 Estas festas incluem sempre um Dj, cuja actividade se define como «passar música».
22 A seguir à explicação de cada tipo de espaço de performance de música rap apresento exemplos do tipo de evento em questão que observei durante o trabalho de campo.
23 Alguns dos nomes poderão estar incorrectamente redigidos, dado as referências, sobretudo de grupos mais novos, terem sido obtidas oralmente. Os nomes dos grupos de rap assentam, muitas das vezes, em jogos de palavras que passam pelo grafismo e modo como são escritos, pelo que alguns podem perder parte das sua significação quando mal redigidos.
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