9. Conclusão: Tipógrafos, uma unidade cultural diversificada
p. 291-302
Texte intégral
1Tendo como uma das preocupações centrais o aspecto técnico do trabalho, a presente etnografia construiu-se sobretudo em torno das relações sociais no trabalho e dos mecanismos que permitem a reprodução de uma cultura de trabalho e de profissão. É verdade que o pano de fundo da investigação esteve marcado pelas mudanças técnicas recentes que originaram o desmantelamento de um sistema de trabalho oficinal tipográfico e o substituíram progressivamente por um sistema de trabalho comparativamente mais dinâmico, modernizado e económico, o infográfico. Mas se o lado mais propriamente tecnológico do trabalho surge durante o texto, ele está em todo o lado, acaba por não ser sobre essa temática que se escreve o livro143.
2Integrar a mudança na reflexão, integrar o factor tempo na etnografia, obrigou-me a fazer uso de narrativas, construídas pelos sujeitos na directa interacção que comigo viveram144. Foi um trabalho que em si mesmo implicou tempo, muito tempo, para a escuta, a disponibilidade para o surgimento do imponderável, mais uma recordação para completar isto ou aquilo.
3Nesse processo fui bafejada pela sorte porque de facto os tipógrafos e os sujeitos do meio são pessoas que gostam de narrar. Michel Verret sugere – no último volume de uma trilogia sobre o mundo do trabalho operário francês (1979, 1982, 1996) – que nos grupos operários, assim como o corpo é um «agente-objecto de leitura codificada», também a voz é um gesto: «gesto de articulação, gesto de entoação, gesto de expressão, indutor de energias. É uma ilusão de letrado, encerrado nas suas letras, pensar apenas o operário pobre em voz, ou a sua voz pobre em língua» (1996, 24). Mesmo quando solicitados – e particularmente quando solicitados, nessa fase de interacção intensa entre quem pergunta sobre o outro e quem responde sobre si –, os tipógrafos e oficinais afins demonstram uma capacidade exemplar em organizar narrativamente as suas vidas profissionais. Geralmente guardam bem vivos os períodos e os momentos que consideram importantes, estabelecendo pontes com as vivências conjunturais que os envolvem ou envolveram. E, habituados à comunicação no face-a-face (decorrente da situação de trabalho em grupo), expõem os factos, os anseios e as alegrias da vida com grande vivacidade e rigor. Umas vezes remetendo para o colectivo, outras vezes para os domínios estritamente individuais, os gráficos revelam os traços culturais comuns que dão sentido aos percursos particulares.
4Se procurei produzir conhecimento através de um modelo de pesquisa empírica aproximado ao descrito por Clifford Geertz, a etnografia a partir da «descrição densa», uma «hierarquia estratificada de estruturas significantes» (geertz 1989 [1973]: 17)145, não quis perder de vista essa difícil articulação entre a observação participante e a recolha das narrativas de vida, restituindo a estas a atenção que nem sempre assumem nos nossos textos académicos. Deste modo, o poder narrativo dos tipógrafos, das pessoas deste meio, é o factor que em definitivo enriquece esta etnografia. Assim, este texto pode também ser lido como o exemplo do que um texto a várias vozes pode ser, sem perder de vista que esse mesmo aspecto não é motivo para a perda da complexidade que deve imanar de qualquer análise antropológica.
5Mas então é chegado o momento de concluir sobre o que se disse, sobre no que resultou esta etnografia. Foram identificadas práticas, representações técnicas e identitárias, mas sobretudo as formas como nos discursos e nas acções estas se entrecruzaram.
6A ETNOGRAFIA Procurei retratar culturas e sociabilidades num meio oficinal específico, o tipográfico, olhando para as oficinas como lugares onde é tão notória a variação como certa unidade. Nos contextos laborais vemos sobressair essencialmente um quotidiano de divisões, um quotidiano seccionado, tão propenso a fenómenos de identização como de identificação entre os diversos (sub)grupos que constituem a realidade. Aliás, basta lembrar que mesmo para um universo relativamente diminuto de oficinas (e com pouco pessoal) foi desde logo necessário estabelecer alguma fronteira analítica entre o grupo profissional dos tipógrafos, o grupo mais alargado que inclui outros operários correlativos e o grupo mais lato dos assalariados. E todavia, nas manifestações de lazer colectivo observadas com mais incidência numa das empresas, quer as que são organizadas pelo grupo dos assalariados quer se são pelos superiores, têm a orientá-las uma representação do grupo de pessoas a trabalhar numa mesma empresa enquanto «família», sendo a identificação o processo que alimenta as práticas. Também nos discursos sobre o passado sobressai a ideia de uma unidade simbólica e, para tal, as semânticas surgem pelo menos a aligeirar as contradições e conflitos próprios dos processos de identização presentes nos mundos do trabalho, sendo que esses se detectam nas práticas e mesmo nos discursos mais situados no presente (como aqueles que remetem para a comparação entre os sistemas técnicos). Já outros autores lembraram que num período como é o presente, com um elevado nível de incerteza no panorama empresarial e laborai (para as tipografias tradicionais é ainda maior essa incerteza), não é de estranhar que interesse aos sujeitos da acção, concretamente aos assalariados, promover a simbólica da unidade, por oposição ao que é registado como constituindo fragmentaridade (cf. cabral & bestard 1998).
7Mesmo num contexto de mudança sócio-técnica, que subalterniza e tecnicamente desqualifica o trabalho dos tipógrafos, certos valores e conceitos (emic), aliados à ideia de qualificação, são recuperados e reafirmados. É alimentada a permanência de uma imagem de elite operária para os tipógrafos e de modo mais parcial e filtrado para os que com eles se relacionam. A ideia de serem os tipógrafos os detentores de um saber-fazer com arte, fazendo-se depender a qualificação de técnicas (no presente consideradas obsoletas e em larga medida em desuso), manteve-se até ao presente. O que se deve reter é que tal situação se vive num período em que as competências exigidas aos operários passaram efectivamente a ser muito menores. Para tal foi decisiva a herança de uma história do grupo sócio-profissional que recua a finais do século xix e que de facto marca um rumo na organização, sindicalização e negociação do trabalho deste tipo de assalariados146 e, em especial, a perpetuação de um modelo de trabalho que tem a oficina como «escola», como centro de socialização e formação. De modo menos directo (e mais difícil de verificar), também para tal contribuíram os discursos que circulam na sociedade acerca do que da invenção da tipografia resultou: o livro, a generalização da leitura e a agudização da alfabetização147.
8O facto de os tipógrafos contribuírem para a difusão do texto escrito, do saber e da cultura faz com que surjam no nosso imaginário como artesãos desse processo. Não é por acaso que os ícones que pretendem identificar tipógrafos os situam cristalizados ou no que se imagina serem representações renascentistas ou noutras, marcadamente setecentistas. A famosa enciclopédia coordenada por Diderot pode ser vista como documento importante para a fixação de imagens técnicas num certo estádio semi-artesanal (numa fase pré-liberal), a pontuar essa tendência de corte temporal com a tipografia do século xx, essa que chegou até nós, até ao século xxi. A estampa que ilustra uma oficina de imprensa com que mais vezes deparei em livros e em cópias, na tipografia, em alfarrabistas, em bibliotecas, foi aquela que fui descobrir na referida enciclopédia. Tratase de um atelier com 4 figuras de impressores, cada um a reproduzir gestos técnicos complementares de preparação para a impressão (cf. Diderot l’Encyclopedie 1996, 96).
9A construção social de uma imagem dos tipógrafos enquanto trabalhadores qualificados não se apoia apenas no que estes pensam e produzem acerca de si mesmos, mas também nas recepções que no senso comum se fazem de ideias ou reflexões em torno da importância do livro e, muito particularmente, da ruptura que é suposto esta invenção ter introduzido, a ruptura entre as sociedades letradas e as sociedades sem escrita. Os antropólogos (pelo menos até aos anos 1940) foram decisivos para a construção social da linearidade de tal ruptura, rebatida, esclarecida e muito elaborada mais tarde (cf. goody 1987, 1994). Aliás, num dos textos, Goody (1994, 10) alerta de início para essa ambiguidade comum que coloca num mesmo plano algo inconfundível: sociedades com e sem escrita e indivíduos letrados e não-letrados, confusão que está na origem da exaltação da tipografia e do que esta representa (a originadora e propagadora de cultura) através de mediadores como os tipógrafos.
10Depois de avançados alguns indicadores sobre a circulação cultural de ideias e imagens acerca dos tipógrafos, retomo os aspectos que concernem mais directamente a esta investigação. Até à introdução recente das novas cadeias produtivas gráficas em Portugal, e mesmo já num período de convivência da tipografia com elas, o tempo das aprendizagens manteve-se longo e a progressão na carreira relativamente lenta, tal como as conheceram tipógrafos e outros gráficos que retratam o período passado das suas biografias. Embora tecnicamente não fizesse já sentido uma tal organização das carreiras, tudo indica ter sido esse um meio de resistência de dentro do grupo dos tipógrafos que tentou a todo o custo não ficar esvaziado do estatuto social e reconhecimento social anteriormente conquistado. Tais resistências à mudança, mudança que surge a afectar a própria organização da profissão (incluindo em particular a não abertura à contratação de mulheres para tipógrafas), são particularmente expressas num grupo, o das chefias. O facto mesmo de este grupo se caracterizar pela perda mais geral da detenção de saberes técnicos e de preservação de alguma mestria para passar a deter sobretudo poderes e competências de vigilância (cf. para o país, freire et al. 1995) faz questionar a natureza da função e, nesse sentido, a necessidade da presença de uma tal figura, sobretudo em empresas de pequena e média dimensão.
11Nos quotidianos assiste-se então a uma certa tendência de transformação de poderes efectivos em poderes nominais, porque a ignorância técnica não deixou de ser um valor negativo, desfavorecedor para quem a detém. O caso apresentado no final do capítulo 7 sobre a interacção estabelecida entre um tipógrafo e um jovem designer gráfico apresenta num plano microscópico as ansiedades que derivam de amplas mudanças. Mas aponta sobretudo o estatuto incerto do tipógrafo que, confrontado com a vontade de assumir algum ascendente sobre um entre aqueles que efectivamente começam a deter o capital da profissão, o faz exibindo estatutos e poderes de chefia que pouco ou nada têm a ver com competências técnicas.
12Vimos também como o controlo dos saberes e sua transmissão se manteve, apesar de tudo até anos recentes, e já a conviver com outras modalidades profissionalizantes de formação (escolar, contínua, etc.)148, no seio do grupo operário. Tal controlo sócio-técnico não fica tão bem compreensível se não tomarmos em linha de conta a extensão dos poderes dos tipógrafos no seio das oficinas: eles estão na base de esquemas de recrutamento e contratação de pessoal (mais ainda quando na carreira operária atingem o estatuto de chefes). Esses esquemas estão alicerçados em redes familiares e de vizinhança, informalmente constituídos mas não com pouco peso na distribuição do trabalho.
13Recapitulando, a identidade social e cultural do grupo dos tipógrafos, aquele que constitui o centro da amostra deste estudo, foi e é ainda marcada pela dimensão profissional, podendo afirmar-se que o estatuto principal dos sujeitos cuja actividade profissional é a tipografia lhes é dado pela profissão. Mesmo num momento de desagregação progressiva e rápida do ofício (mais rápida neste início do século do que nos anos em que foi feito o trabalho de campo) e consequente perda de visibilidade social, são reafirmados valores sócio-técnicos, remetendo-se o grupo para um tempo de glória, alimentando uma atitude de inconformismo face à situação presente. Esta atitude torna-se compreensível se pensarmos que as técnicas que originaram a transformação de todo o sector gráfico decorreram de uma dinâmica de mudança global alargada à sociedade. Neste sentido, os tipógrafos viram-se literalmente ultrapassados pela história, deixando de ter lugar no processo produtivo. Como tal, toda a análise que foi aqui feita sobre os mundos sociais da tipografia na actualidade lidou com este facto decisivo.
14Não é de mais referir outros caminhos anulados por esta etnografia. Há nitidamente uma escassa visibilidade da família e da vida privada, temas mais clássicos da antropologia tout court149. Em sentido oposto, devido à não centralidade do tratamento das tecnologias nas suas repercussões sociais, embora a relação nunca esteja ausente ao longo do texto, faltou o detalhe naquilo que estaria muito mais do lado da sociologia do trabalho e das organizações ou, mais próxima de nós, de uma etnotecnologia [cf. cresswell 1996, balfet dir., 1991, lemonnier, 1992; na sequência de leroi-gourhan (1987 [1964-65]) ou sequer de uma sociologia das invenções (cf. latour, 1992; akrich, 1994)].
15Também poderia ter enveredado pelo traçar de alguns elementos para a comparatibilidade das tipografias com empresas do sector gráfico em expansão. Aí se poderia entender o alargamento das profissões a novos grupos sociais (em particular a abertura às mulheres); as novas classificações profissionais e os seus sentidos; as formas de redefinição identitária a partir da aprendizagem e utilização de novas tecnologia, etc. Tendo trabalhado em meios de fraca transformação técnica e mudança social e organizacional lenta, e em empresas de pequena dimensão, ficam por resolver outras questões que certamente se colocariam em empresas onde se faz a integração dos sistemas informáticos de produção gráfica. Em tais condições talvez pudessem ser etnografados aspectos ligados à construção e utilização, por parte dos gestores, de técnicas sofisticadas de comunicação, de construção de imagens de empresa (para o interior e exterior), os limites e contextos da unidade entre os membros das empresas, problemas que começam progressivamente a entusiasmar as investigações em antropologia social (cf. sélim & sugita 1991).
16Entre a investigação e o que resultou na etnografia final, ficam ainda por sistematizar alguns problemas. Na realidade das oficinas tipográficas domina o modelo de organização de empresa ao qual se tem chamado familiar, incluindo-se nele as subquestões da organização gestionária, o trabalho familiar como constrangimento, as diferentes representações do que significa a empresa familiar (o paternalismo e a sua negociação), a divisão sexual do trabalho e, muito particularmente, os sistemas de recrutamento (cf. ram & holliday 1993). Embora analisados em diversos momentos do texto tais questões não constituíram o alvo central da análise. Relacionado com o primeiro é de reter um segundo problema que poderá vir a ter mais centralidade em estudos futuros. A harmonia, o conflito e a desarmonia nas pequenas empresas (cf. goss 1988) talvez merecesem tratamento mais detalhado, de modo a desmentir o enunciado partilhado não só no meio, também nas ideias de gestão como na sociedade em geral que small is beautiful. As formas de tratamento interpessoal na comunicação verbal, à imagem do que por exemplo foi estudado por Guigo (1991) para um escritório parisiense, é outro dos temas aliciantes que traz à luz muito do que se vive nas interacções entre os sujeitos nas empresas com hierarquia, do que significa estar nos diferentes grupos e subgrupos, com menor ou maior poder. Por fim, esta etnografia pode ser criticável na medida em que restitui menor visibilidade a determinados núcleos sociais e ocupacionais e às relações entre eles: o patronato, e o variado espectro de clientelas.
17E mesmo com tantas faltas foi possível introduzir alguma reflexão sobre aspectos concretos que dizem respeito aos mundos do trabalho e das profissões, pelo menos para o domínio português. O facto de ter focalizado os aspectos microssociais da vida social nas empresas fez com que o texto resultasse numa etnografia de fundo sobre os espaços industriais de tipo oficinal, visando produzir mais conhecimento sobre os mundos do trabalho tipicamente urbanos150, campos do social relativamente aos quais a antropologia portuguesa se tem tradicionalmente mantido alheada151. Espera-se que esta investigação sirva, de modo ainda tímido, para contribuir para maior visibilidade e mais profícua emergência do respectivo subcampo disciplinar no nosso país.
18PRESENTOLOGIAS Este é o momento propício para acrescentar alguns dados novos, todavia conclusivos do estudo. A organização profissional e as transformações recentes são ainda perceptíveis nas classificações profissionais. A designação «tipógrafo» integra as principais especialidades técnicas (onde a composição e a impressão são as centrais) e, em casos concretos, pode ser apropriada em determinados momentos por outros trabalhadores correlativos. Mas em termos objectivos chama-se tipógrafo ao compositor, ao impressor (e a outros operários, como impositores e até revisores). Assim, a unidade da técnica define a profissão. No caso das mais recentes actividades do sector (para montador ou impressor de offset) deixa de existir um termo equivalente que as integre enquanto profissão unitária, sendo o termo «gráfico», que sempre existiu, o mais abrangente. As definições profissionais são fixadas a partir da especialidade. E as especialidades organizam-se agora em grandes e várias áreas produtivas (pré-impressão, impressão, pós-impressão) que são evidentemente complementares mas que podem ter maior independência técnica e organizacional entre si. Tendo em conta a diversidade crescente dos postos especializados é difícil falar hoje, como se fazia no passado, de uma verdadeira tipologia de ofícios (cf. hövels &van den berg 1994,148-9).
19Nos casos estudados a ideia local de «tipografia» continua a encabeçar a memória-identidade dos sujeitos e da empresa. Vejamos apenas mais alguns exemplos. Continua a ser a técnica tipográfica a dar o nome à empresa: a «Tipografia» Gloriosa. Este aspecto merece ser avaliado em comparação com o movimento mais global contemporâneo. As gráficas mais recentes e modernizadas no mercado apontam estratégias de apagamento (ou de esquecimento, cf. augé 2001) desse tipo de memória técnica porque alicerçado num modelo de trabalho operarial. É possível observar que muitas empresas incluíram no seu processo de reconversão técnica a reconversão do nome. Mudamse os tempos, mudam-se as semânticas das profissões. Os nomes familiares152, tradicionalmente à cabeça das organizações, tendem a ser substituídos por outros referentes que, num contexto de economia de mercado e de acordo com um processo de eficácia publicitária, fazem sobressair os mecanismos tecnológicos mais recentes. Assim, passam a surgir as gráficas com nomes adjectivos como «A Rápida», a «Expresso Gráfico», que apelam para as qualidades da rapidez produtiva (na fórmula comercial do just-in-time). Outras designações como «Gráfica 2000», «Projecção Arte Gráfica» ou «Hiper Gráfica» invocam a qualidade de ser actual, a plurioferta de produtos e a grande dimensão, poder e alcance das unidades empresariais, quer estas efectivamente o possuam quer apenas o ambicionem. Outras ainda identificam concretamente os processos fotográficos das novas técnicas gráficas, por oposição às técnicas tipográficas tradicionais, nomeando-se «Quadricor», «Revelação», «Contacto», etc.
20Apesar das transformações gerais a ocorrer no meio, nos discursos (locais e globais), a tipografia não deixa de ser considerada a «mãe das Artes Gráficas». Na metáfora do edifício gráfico, a tipografia corresponderia à base, aos «alicerces», e o sistema infográfico ao «tecto»153: numa relação de anterioridade/posterioridade; da maior para a menor materialidade e peso; do maior para o menor envolvimento físico e intervenção humana directa, etc. (como se viu no capítulo 7). Todos os gráficos (mesmo os mais novos) que passaram por ou conhecem o sistema de trabalho tipográfico partilham esta ideologia profissional. Vimos neste livro como no interior da dinâmica de transformação de uma empresa como a Tipografia Gloriosa a tipografia tem um lugar simbólico e efectivo assegurado, mesmo quando tudo contribui para o inverso. Se no plano produtivo a tipografia se deslocou para um lugar subsidiário e complementar ao offset, no plano social, das relações interpessoais e simbólicas, ela encontrase ainda no centro da lógica de organização das profissões.
21É possível ainda fornecer outros exemplos menos técnicos e mais sociais. Na prática, um escriturário pode pertencer a um sindicato dos tipógrafos, enquanto que a situação inversa é social e simbolicamente inconcebível. Foi possível observar este fenómeno na Tipografia Gloriosa. Dos empregados de escritório, aquele que resiste sindicalizado é sócio do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Celulose, Papel, Gráfica e Imprensa (do grupo CGTP-IN), sindicato onde também os restantes tipógrafos da empresa se associam. Ao escolher este órgão representativo do grupo profissional, este sujeito está a partilhar traços identitários com aqueles que são os operários da empresa e que, a partir de 1997, passa a gerir. Nas fichas de pessoal, quando tal menção foi apontada, a maioria dos escriturários encontrava-se associada ao mesmo sindicato. Um outro exemplo. O Grupo Desportivo da Gloriosa, essa associação local no âmbito da qual se organizam lazeres colectivos onde participa a generalidade dos empregados da empresa, que sobrevive e até se revigora numa época de decadência do sistema tipográfico e de falta de vigor da empresa, é não só herança do passado como são ainda os tipógrafos os seus principais agentes mobilizadores. A tipografia desenha-se até ao presente a enquadrar actividades empresariais e organizacionais. As culturas profissionais orientam valores e práticas de tipógrafos e, de modo mais abrangente, de todos aqueles que com eles coexistem em meio oficinal. Os exemplos apresentados reafirmam a centralidade que vem descrita ao longo da obra.
22Por tudo o que foi dito, ainda que não constituindo motivação para o acto de pesquisa, o registo de dados relativos ao meio tipográfico pode vir a ser socialmente útil, tal como demonstraram Chevallier & Chiva e outros autores que têm desenvolvido actividades de recolha, sistematização e investigação de núcleos patrimoniais técnico-profissionais154. A citação pode sugerir pesquisas futuras. «Ces activités d’intérêt patrimonial majeur doivent (...) faire 1’object d’un suivi systématique. (...) A ce propos il convient ne pas oublier que la diversité et la particularité de ces savoirs et techniques prémachinistes leur confèrent une importance intrinsèque qui justifie leur sauvegarde. Ils représentent, en effet, un capital de diversité culturelle qui permet à tout groupe de subsister et de s’adapter. Des savoirs, des techniques, des manières de faire, aujourd’hui apparemment périmés, peuvent, demain, présenter un intérêt, retrouver une utilité. Car plus la gamme des réponses techniques inventées par une société est étendue, plus son comportement sera efficace dans un environnement qui change sans cesse!» (chiva 1990, cit. in chevallier & chiva 1991, 10.)
23Em 1996, um dos meus interlucutores considerava: «Estamos [os tipógrafos] em vias de extinção, mas no nosso país tudo é lento...» (Textos manuscritos [Miguel, tipógrafo-impressor], Abril de 1995.) Fica por saber se no início do século xxi, depois de finalmente encerradas grande parte das tipografias que nesse tempo ainda resistiam, incluindo aquela onde trabalhou o Miguel, este voltaria a formular a questão do mesmo modo.
Notes de bas de page
143 Quem leu este livro acreditará que existe um pressuposto de base indesmentível: os tipógrafos têm um trabalho operário de tipo qualificado, com alguma possibilidade de intervenção criativa. A produção de obras gráficas está largamente dependente da intervenção de factores humanos, inscreve-se numa herança de trabalho artesanal cuidado e manual, embora integrando mecânicas e regimes de trabalho mais propriamente industriais, caracterizando-se o trabalhador em tipografia, pelo menos neste último século, pela condição de assalariado. O controlo técnico e social faz-se no interior do grupo operário. A aprendizagem (técnica mas também identitária) é, por tudo isso, demorada. O modelo da oficina-escola permitiu que durante um longo período de tempo se continuasse a reproduzir entre os profissionais uma mesma representação, a da «arte tipográfica» enquanto actividade operária qualificada-e, para o compreender, foi necessário privilegiar a dimensão relacional e interactiva, uma vez que as práticas eram já difusas, os aprendizes deixavam de aparecer, a tipografia servia sobretudo de apoio à impressão offset.
144 A diacronia, marcada pelo período das biografias profissionais recolhidas (desde 1930/40 ao presente), permitiu reflectir sobre o processo de construção das identidades e sedimentação da cultura profissional do grupo dos tipógrafos (e profissionais afins).
145 Se queremos saber o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento, devemos olhar para as etnografias ou para as práticas da etnografia, dizia-o Clifford Geertz (1989, 15): a etnografia é aquilo que os etnógrafos fazem, numa descrição parcial ou total de determinado grupo, literalmente uma etno (folk) grafia (descrição) (cf. werne & schoepfle 1987, 42). Em geral, a redacção dos textos antropológicos é uma mistura do conhecimento obtido pela observação das actividades dos indivíduos do grupo e pela conversação com esses indivíduos (cf. idem, 80). Muitas vezes o que se faz é recolher os depoimentos dos sujeitos, confrontando-os, posteriormente, com as suas práticas. O peso dado a cada uma destas formas depende dos contornos epistemológicos da investigação de cada etnógrafo e dele mesmo. A observação participante é convertida em saber científico quando as observações são estruturadas e são procuradas as relações sistemáticas entre os mais diversos eventos, através das entrevistas, da observação (olhar atento) e «testes» de verificação (cf. pelto 1970, 92). Nessa diligência, entretanto, procurei contribuir para o traçar de etnografias sobre meios sócio-profissionais-etnografias entendidas na linha dessa descrição densa (que não se confunde com a «descrição superficial»: os actos em si, a descrição daquilo que se observa) de Geertz, que assenta numa espécie de «esforço intelectual» (por parte do investigador) e que tem por objectivo último desvendar as complexidades culturais, o significado dos actos, as intenções. Esse tipo de descrição constitui, em última instância, o objecto primeiro da etnografia.
146 Neste livro houve toda uma parcela da tese de mestrado dedicada à historiografia da indústria tipográfica durante o século xx que teve obrigatoriamente de ficar de fora e que na mesma corresponde à primeira parte da análise. Ver «Os tipógrafos, a arte negra e o seu fim. A antropologia nas tipografias de Lisboa», 1999. Mestrado em Antropologia Social e Cultural, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. (JNICT/PRAXIS XXI/BM/3922/94).
147 Marshal Mcluhan (1977 [1962]), por exemplo, foi fundamental para a popularização da ideia de que o «homem tipográfico» já continha em si a génese da sociedade dos media, pois segundo o mesmo só então a «visão» surgiu a substituir o uso generalizado da «escuta» (o homem tipográfico teria um sentido novo do tempo: cinematográfico, sequencial e pictural); a partir do alfabeto o homem dessacralizaria então o seu mundo; foi a tipografia que impôs a estabilização das línguas, etc. O autor crê que com a «galáxia Gutemberg» se criou o ambiente para o surgimento de uma nova cultura humana. Para melhor compreender o destaque dado ao livro enquanto obra ou produto de excelência de difusão do conhecimento remeto o leitor para um texto de Afonso Furtado (1995), onde este faz uma revisão séria sobre as principais teorias em torno da questão.
148 A retirada mais definitiva da formação de dentro das oficinas portuguesas só tem lugar tardiamente, nos anos 1980, com a Lei 405/86 (Lei de Bases do Sistema Educativo) de 14 de Outubro, altura em que começa a fazer-se o enquadramento jurídico da formação profissional. Embora em 1989 se apresente o Decreto-Lei n.o 26/89 de 21 de Janeiro que legisla as condições para a criação das escolas profissionais no âmbito do ensino não superior, só com o Decreto-Lei n.o 401/91 de 16 de Outubro se detalham os tipos de formação (inicial e contínua) e todo o sistema destes novos processos de aprendizagem.
149 Um dos exemplos mais notáveis é o trabalho de Olivier Schwartz 1994 para o núcleo mineiro da região Pas-de-Calais, norte da França.
150 Um pouco no decurso da tradição de investigação holista, a antropologia urbana transportou para a cidade a tendência do estudo de comunidade, tentando captar toda a complexidade das relações sociais presentes em meio urbano (cf. hannerz 1980). Certo é que a antropologia urbana tem feito seus alguns temas centrais. Sem pretender ser exaustiva seguem algumas sugestões: os estilos e modos de vida (velho 1986, 1987, 1994); os problemas da etnicidade, inter-etnicidades e multiculturalidades (gutwirt & petonnet 1987, suttles 1968, wirth 1980); a cultura da pobreza e segregação (nels 1993); urbanização, sociabilidades e vivências dos espaços públicos e residenciais, relações de vizinhança e organização dos grupos em redes (anderson 1981, cordeiro 1997, mullings 1987, noschis 1984). Neste âmbito, tem surgido sensibilidade para o estudo de «comunidades de status», (cf. stub 1972, eameS & goode 1977,198), partindo os autores da investigação de feixes de ocupações e das interacções mantidas entre estas. Mesmo em temáticas mais tradicionais da antropologia urbana, surge frequentemente a preocupação de incluir, ainda que subsidiariamente, o estudo de comunidades ocupacionais (cf. cordeiro 1997, gulick 1989). Algumas reflexões relacionam mais directamente trabalho e meio urbano, em particular quando a intenção se coloca do lado da produção de etnografias sobre trabalho nas cidades. Aqui o movimento tem vindo a crescer desde a década de 1970. As abordagens pelo lado das identidades ocupacionais têm-se centrado em aspectos que não fogem muito ao que o leitor aqui encontrou, embora, na verdade, fique por fazer a tal ligação a outros meios extralaborais e aos domínios seus complementares, abordagem corrente na antropologia urbana. Gulick (1989) fez uma boa revisão do que se tem escrito em diversos lugares do mundo, no contexto de pequenas, médias e grandes cidades: sobre as relações entre trabalho, amizade e redes de solidariedade (cf. cole 1971, le masters 1975, starr & carns 1973, swetnam 1978, vogel 1971,); sobre a forma como as relações de parentesco sustentam relações de trabalho lícitas e ilícitas (abu-lughod 1961, chock 1981, farsoun 1970, khalaf 1968, khalaf & shwaryi 1966, leichter & mitchell 1980 [1967], sharff 1986); sobre ocupações estigmatizadas e na forma como os indivíduos ora desvalorizam ora as revalorizam (delacoste & alexander 1987, ianni 1974, salutin 1973); estudos de organizações de trabalho em cooperativa (perry 1978, pilcher 1972); sobre ocupações situadas em comunidades (cohen 1969, dubetsky 1977, kornblum 1974, makofsky 1977). Mais próxima da abordagem que aqui proponho, Eames e Goode (1977) referem o interesse nos estudos localizados em situações e espaços de trabalho (spradley & mann 1979 [1975], spradley & mccurdy 1972).
151 Mesmo que com algumas contribuições recentes: cordeiro (1997), granjo (1998), marques (com durão e lúzia 2000, 9-41), durão e marques (2001, 47-68).
152 No estudo de caso que me ocupa, o pseudónimo escolhido substitui o nome familiar da empresa. No entanto, pode dizer-se que o substantivo remete para nomes «populares», no seguimento de uma tradição do século xix que se prolonga durante o Estado Novo (1933-1974) até sensivelmente aos anos 1980. Muitas vezes, essas designações – como por exemplo «A Confiança», «A Liberty» – embora possam anunciar marcas ou técnicas, escondem conceitos e utopias relacionados com as posições ideológico-políticas oposicionistas de patrões que se opõem ao regime autoritário salazarista, em geral desfavorável à actividade «livre» da impressão.
153 A imagem metafórica aqui apresentada foi fornecida pelo velho gerente da Tipografia Gloriosa (que se manteve em actividade até Fevereiro de 1997) e que pretendeu com ela salientar os diferentes tipos de aprendizagens profissionais das Artes Gráficas. O gerente da empresa atribui as deficiências de alguns trabalhos recentes, realizados por infográficos e litógrafos, ao facto de estes não terem aprendido as técnicas do ofício através do modelo da oficina-escola tipográfica: «Começam pelo telhado. Depois a casa cai.» (Gerente, 18/11/1996.)
154 Para ser rigorosa, tenho de apontar que nesta etnografia a expressão para património está parcialmente representada, porque desequilibrada para o lado do registo humano, sendo apenas o registo material seu complementar.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000