4. Carreiras em meio oficinal
p. 119-148
Texte intégral
«Quando comecei a trabalhar, era um menino feito homem, vestido no seu fato macaco. Saía orgulhoso para a rua como se quisesse dizer “sou homem, vejam as minhas mãos lixadas e sujas de tinta!” (...) Estava ansioso por ter o meu primeiro salário. Tinha pressa de ser um homem, pressa também para vislumbrar o meu futuro. Mas também não sei ainda hoje o que levou um rapaz de 11 anos a ser tão determinado. (...) Depois de passar mais de 40 anos neste mesmo local eu sinto algo mais do que o normal por esta Tipografia, ela é como uma mulher amável, ela fez de mim homem e eu agora sou generoso para com ela. Conheço-a bem, conheço todos os seus contornos, sinto o seu coração quando bate num ritmo certo e, precisamente neste momento, ela está doente e isso assusta-me. A tipografia está a morrer. Eu sinto-me quase filho dela, ela viu-me crescer e eu agora vejo-a lentamente morrer.»
(Miguel, tipógrafo-impressor, 19/11/1996.)
1O trecho biográfico introdutório é uma ilustração perfeita de como se projectaram as vidas dos mais velhos tipógrafos nestes meios oficinais: com percursos precoces e extensos no ofício, frequentemente apoiados em vínculos de longa duração às empresas. Mas se passa também pela questão contemporânea da decadência do ofício, o trecho permite desde logo ler uma tendência mais global que estará sempre presente ao longo do trabalho: na «substituição da empresa e do empresário em relação ao operariado e ao trabalho industrial enquanto “veículos de historicidade” (althabe ent. por selim 1991, 17) – processo no âmbito do qual os operários são representados como “obstáculos à modernização da indústria” (beaud & pialoux 1999: 15) – assistiu-se a uma ocultação social deste grupo, arredado do horizonte mental dos fazedores de opinião» (idem, 16, cf. durão & marques 2001, 47-68).
2O lugar de operários qualificados de tipógrafos e de outros operários dos acabamentos fica a dever-se em grande medida ao facto de no trabalho poderem enveredar por uma carreira oficinal, assente na progressão técnica e estatutária. Técnica porque com categorias formais diferenciadoras, estatutária por essa mesma razão e também pelas dinâmicas mais informais que privilegiam uns em detrimento de outros. A análise não pode esquecer ambas as faces do mesmo problema. Mas mais especificamente, a opção de traçar trajectórias através do recurso a narrativas biográficas colocou-me de imediato perante a noção-chave de carreira71. Everett Hughes foi um dos primeiros autores a contrariar as teses funcionalistas relativamente à interpretação dos contextos profissionais e profissionalizantes, nas quais a separação entre profissões e ocupações era dada como um facto natural. A sua inovação foi pensar nas profissões a partir da análise sociológica da divisão do trabalho (a distribuição social das actividades), resultante de interacções e processos de construção social. Neste sentido, preocupou-se em compreender os esquemas e organizações profissionais no interior de uma ordem mais lata, a organização social – contribuindo para tal uma démarche teórico-metodológica que ganhava progressivamente terreno com os seus discípulos, o interaccionismo simbólico, baseado em análise de terreno de cariz etnográfico.
3Hughes defende que nas sociedades rígidas e estruturadas a carreira consiste, objectivamente, numa série de status e cargos definidos. Numa sociedade moderna, o indivíduo tem mais latitude para criar a sua posição ou escolher entre uma série delas que existam à partida, mas enfrenta mais incertezas em relação ao resultado final (saber se alcança determinada posição). De qualquer modo, também nas sociedades modernas existem «sequências típicas» de posições, realização, responsabilidade e mesmo aventura (pessoal). A ordem social estabelece limites à orientação e interpretação que o indivíduo dá à sua vida.
4Subjectivamente, a carreira é a perspectiva dinâmica a partir da qual a pessoa vê a sua vida como um todo e interpreta o significado dos vários atributos, acções e situações com que se depara. Esta perspectiva não está absolutamente fixa nos seus pontos de vista, na direcção ou no destino final, embora um determinado papel possa ser desempenhado na vida desde muito cedo (mesmo nas sociedades ditas ocidentais). O «sentido de carreira» varia entre famílias, classes, grupos sociais, etc. Mas as carreiras também se transformam de acordo com as experiências pessoais. Defende Hughes que: «O estudo das carreiras – da perspectiva dinâmica a partir da qual as pessoas se orientam por referência à ordem social e da perspectiva das sequências típicas e encadeamentos do emprego – permite revelar a natureza da “constituição do trabalho” numa determinada sociedade. As instituições são formas nas quais o comportamento colectivo e a acção colectiva das pessoas são desempenhados. No curso de uma carreira a pessoa encontra o seu lugar dentro destas formas, conduz a vida activa por referência a outras pessoas e interpreta o sentido da vida que ela tem de viver.» (hughes 1958, 63-67.)
5Não devemos esquecer que Hughes e os sociólogos de Chicago se dedicaram fundamentalmente ao estudo de profissões liberais e dos processos de profissionalização emergentes na época, entre os quais se destacam os dos médicos, enfermeiros e advogados; daí que as conclusões sejam sociologicamente parcelares. No entanto, como ponto de partida, as definições do autor parecem ser úteis para o estudo de um qualquer grupo social de trabalho, mesmo para grupos operários onde as carreiras são à partida mais constrangidas e menos móveis, as trajectórias fazem-se depender menos do livre arbítrio e de motivações pessoais. As ideias de Hughes para carreira são válidas por uma razão principal: dão conta dos factores subjectivos (e simbólicos), ao lado dos mais objectivantes da vida social (as tendências sociais de fundo). Sem limitar as carreiras ao campo estrito da vida profissional interior (a vida psíquica), o autor integra o percurso geral da vida de cada sujeito (as trajectórias, portanto) nas instituições sociais. Deste modo, não separa a reflexão sobre as carreiras da divisão social do trabalho. Em segundo lugar, o conceito pode ser alargado com a inclusão do estudo dos percursos ou dos trajectos da vida dos sujeitos no curso mais global/institucional, alargando-se o estudo para outros domínios que não apenas o do campo estrito da organização profissional. Assim, das respectivas instituições, caminhamos no sentido do conhecimento das condições sociais que são inerentes à prática das profissões, sobretudo ao nível das relações entre os agentes e das formas de socialização.
6Na tentativa de saber o que é que os antropólogos contemporâneos teriam a acrescentar ao estudo das carreiras procurámos, nas ideias de Clifford Geertz, algumas directrizes. Se Hughes nos permite analisar as carreiras do ponto de vista social, Geertz favorece a dimensão cultural nos «cursos da vida»: «É na carreira do homem, no seu curso característico, que podemos discernir, embora difusamente, a sua natureza, e apesar de a cultura ser apenas um elemento na determinação desse curso, ela não é o menos importante.» (geertz 1989 [1973], 64.) Para o autor, o conceito de cultura é essencialmente semiótico: «Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado» (geertz 1989 [1973], 15.)
7Vemos como Hughes, e depois Geertz, devolveram ao conceito de carreira um lugar de destaque para a análise dos grupos sociais. Porém, ao generalizar teoricamente o conceito de carreira a toda e qualquer conduta humana Geertz acabaria por esvaziar e desoperacionalizar a ideia. No seguimento de Hughes, Howard Becker (1991 [1963]) e Anthony Leeds (1964), o primeiro estudando as carreiras dos «desviados» nos Estados Unidos e o segundo centrando-se na dinâmica das carreiras dos sujeitos nas estruturas urbanas do Brasil, foram talvez quem levou mais longe o conceito, sobretudo por terem conduzido o estudo das ocupações para o estudo da organização social como um todo. E no entanto, tal orientação permaneceria periférica nos nossos domínios científicos por muito tempo. Frederik Barth (1972) terá sido um dos primeiros a comentar a falta de atenção dada às carreiras nos estudos de antropologia.
8Ulf Hannerz virá colmatar esta falha, considerando ser a carreira o conceito-chave para compreender a fluidez (esse fluxo ininterrupto) da vida social e encarando-a como a «organização sequencial das situações vividas» (hannerz 1980, 270). A noção de senso comum que vê a carreira dos sujeitos como uma progressão mais ou menos linear no trabalho e nas ocupações é a visão mais limitada para um conceito que desde Hughes começava a oferecer outras hipóteses teóricas. A via de Hannerz é traçada por alguém que deseja investigar as dinâmicas, organização de papéis sociais, repertórios e densidade de redes sociais nos meios urbanos (no trabalho e além dele) e que, como tal, prescinde da análise dos papéis sociais limitados a um único domínio, preferindo pensar holisticamente sobre as formas como todos os domínios são feitos para encaixar uns nos outros num modo de vida através do tempo. Para o autor, a análise das carreiras oferece alguns dos mais poderosos indicadores sobre os diferentes modos como as vidas urbanas são construídas, sem que essa análise seja necessariamente ego-centrada, podendo por exemplo partir do estudo das relações e, indo mais longe, assume que as concepções de carreira ajudam a desvendar o que a fluidez pode provocar na vida urbana (ver hannerz 1980, 270-273). Chegamos assim à noção de carreira em relação. Também nesta investigação pretendo fazer um uso lato da noção de carreira: não, como o autor, em direcção à totalidade da vida urbana, mas sim ultrapassando a análise dos contextos organizacionais e situações de trabalho, em direcção às relações sociais entre os vários grupos ocupacionais abrangidos, procurando compreender como se constroem, reproduzem e modificam.
9A démarche na investigação das carreiras alarga-se e insere-se necessariamente numa teoria da cultura ao estilo de Gilberto Velho (1986, 1987, 1994), que engloba no estudo das identidades e carreiras as diferenças que as constituem e lhes dão sentido, sem que os discursos e as representações se encontrem colados às fronteiras sócio-económicas (velho 1994, 22) e aliando ao estudo dos contextos sociais o estudo antropologicamente orientado dos planos e níveis da realidade socialmente construídos (idem, 29). A antropologia permite assim conceptualizar e sistematizar os conhecimentos locais dos grupos (nas práticas e representações), que são fundamentais para tentar explicar os processos de transformação sofridos no seio das profissões, dos profissionais e das suas instituições.
10A concepção antropológica de trabalho e a definição da cultura aplicada ao estudo das organizações e do trabalho possibilita-nos conceber uma via de estudo que contempla não apenas os domínios das relações e interacções, mas também as carreiras e trajectórias sócio-profissionais. Quando Sandra Wallman afirma que mesmo dentro de uma cultura (étnica, nacional, etc.) o trabalho não é avaliado sempre da mesma maneira, porque os tipos de trabalho praticados diferem muito entre si (1979, 9), está também a falar da diferença entre profissões. Mesmo no interior de profissões similares as avaliações do trabalho podem ser muito diferentes, de acordo com a história pessoal, os quadros da sua prática e os poderes submersos na vida quotidiana. Tudo isto para dizer que, quando investigamos carreiras, os contextos micro-situados merecem especial atenção, porque é neles que vamos encontrar a relação essencial entre as práticas e representações profissionais.
11Antes de avançar pelas características sociais e pelas carreiras «em relação» (um pouco à moda de Hannerz 1980), percorrendo então os momentos mais importantes das trajectórias, é necessário explicitar as dinâmicas da carreira formal, esses estatutos fixos de que Hughes falava.
12As chamadas categorias, que estão na base dos trajectos operários em estudo, são: a de aprendiz, a de auxiliar e a de oficial. É de acordo com um trajecto de, pelo menos, nove anos que um sujeito progride de iniciado a operário tipógrafo. As trajectórias profissionais podem alcançar ainda outros estádios oficinais, dependentes das organizações empresariais: o de chefe directo (geralmente com a categoria de oficial) e o de encarregado-geral (também oficial). Este tipo específico de profissionais, que exerce o poder de mandar e de gerir os vários níveis (processual-técnico e social) da produção industrial tipográfica, são indivíduos frequentemente detentores não apenas de mais-valia técnica (competência), mas também de conhecimentos (de antiguidade ou outros) no seio das organizações, o que lhes permite a progressão.
13Durante o período do Estado Novo (1933-1974) foi legislado na contratação colectiva, embora decorresse da prática de anos anteriores, um período para o percurso de aprendizagem dos indivíduos e que acabou por se fixar sem alterações de fundo até à actualidade (muito embora a sociedade e os processos de aprendizagem decorrentes de novos sistemas técnicos tenham por si só ultrapassado, na prática, as legislações do trabalho). Desse modo, entre os tipógrafos, era necessário percorrer uma série de anos para que um aprendiz se tornasse oficial. Em qualquer uma das especialidades, da composição à impressão (passando por outras menos qualificadas e não identificadas como tipográficas mas presentes nos meios oficinais, a encadernação e a pautação), o operário permanecia em geral cinco anos na categoria de aprendiz e quatro na de auxiliar, até chegar a oficial (de l.a ou de 2.a, conforme o estudo e saber demonstrado pelo profissional).
14Nos referidos nove anos, sempre que quisesse progredir na carreira (na passagem de uma categoria para a outra), o operário era legalmente obrigado a submeter-se a exame de provas (exame que era realizado pelos sindicatos corporativos, em colaboração com os grémios e o Instituto Nacional de Trabalho e Previdência, de acordo com um processo regulamentado em 1942), para que fosse averbado na carteira profissional o seu estatuto, nesse documento que foi obrigatório até pelo menos 1974 e que se pretendia impor no acto de recrutamento dos operários.
15Porém, contemplando a hipótese de promoção directa pela entidade patronal, nas empresas (e sem o respectivo averbamento nas carteiras profissionais) grande parte dos operários satisfazia-se em reduzir as hipóteses de progressão para outras oficinas. Quando promovido à categoria imediatamente superior por esse modo, o operário apenas adquiria legitimidade na empresa respectiva, o que limitava a sua carreira.
16O facto de os anos da aprendizagem (o tal mínimo de nove anos) serem contados como tempo efectivo de serviço forçava os operários a lançarem-se num percurso relativamente definido, legalmente, claro está. Mesmo quando ascendiam a categorias imediatamente superiores e não tinham vaga nos quadros da empresa (quadros que se encontravam regulamentados por tabelações fixadas pelos sindicatos), os operários podiam recorrer às agências de colocação do sindicato corporativo72.
17O sistema que definia as carreiras operárias tem vindo a perder impacto após a instauração da democracia, porque deixou de existir um mesmo padrão organizador e estruturador da actividade profissional quando os sindicatos «livres» perderam os antigos poderes corporativos, preferindo em geral os gráficos negociar de modo privado as suas situações profissionais (ainda que apoiados em condições mínimas conquistadas), caso a caso, empresa a empresa. Vimos portanto que existem várias fases definidoras do percurso individual dos operários.
18INICIAÇÃO E RECRUTAMENTO A iniciação dos sujeitos no mundo do trabalho dá-se frequentemente, ou na fase infantil ou numa fase de passagem para a adolescência. O período analisado corresponde aos anos de vida activa do grupo dos entrevistados, oscilando portanto entre os anos 1930/40 e os anos correspondentes à observação (finais dos anos 1990). A maioria dos operários que entrevistei iniciaram-se no trabalho, ainda que não necessariamente em tipografias, entre os 10 e os 12 anos de idade. A entrada nas oficinas ou se faz pela fase da serventia (trabalho indiferenciado) ou directamente pela fase de aprendizagem de uma das especialidades. Nas pequenas oficinas, os iniciados tendem a lançar-se num percurso misto que percorre todas as fases de produção. Desta forma, os rapazes entram nas oficinas como aprendizes de qualquer um dos ramos disponíveis: de composição, impressão ou encadernação (para a tipografia), de montagem para offset, de impressão offset, etc. (para o sistema infográfico mais actual).
19Embora alguns operários tenham conseguido o seu emprego através de autoproposta ou resposta a anúncio e, portanto, sem qualquer conexão prévia a elementos-chave da empresa, a grande maioria dos meus entrevistados usou uma rede de relações interpessoais, a partir de um familiar, parente próximo ou amigo da família que aconselha a sua contratação a alguém com autoridade dentro da empresa (um gerente, um chefe, um oficial...). Assim, a entrada dos aprendizes na empresa não se prende com questões de preparação técnica ou perfil para o trabalho, mas pelo conhecimento de alguém no ofício. E esse alguém pode ser o mesmo que, mais tarde, vai ajudar a definir carreiras pessoais no interior das tipografias, de acordo com preferências na promoção e no encaminhamento para um ou outro sector. Na fase de recrutamento, aqueles que têm familiares no ofício tipográfico desfrutam de uma entrada directa e facilitada nas oficinas.
20Ter um pai, um avô, um tio no ofício pode ser meio-caminho para que o sujeito faça o mesmo percurso. No caso da Tipografia Gloriosa, nos 145 registos de pessoal consultados que atravessam um período de quase 40 anos (de 1960 a meados de 1990), foram localizados os mais variados graus de parentesco entre contratados: pais/filhos, mães/filhos, tios/sobrinhos, irmãos, primos, padrinhos/afilhados. O mesmo modelo surge de cima. O gerente é tio de um dos escriturários (que o substitui em 1997) e de um dos mais jovens tipógrafos que fez carreira como impressor de offset. Este levou ainda a que se contratasse a sua irmã (a mãe dos dois jovens), para os serviços de limpeza. Por sua vez, o superior (o gerente) é sobrinho direito do mais velho patrão da Gloriosa e foi através dele que fez carreira administrativa nesta empresa. Mas o esquema de influências do octogenário não termina por aqui. Durante os 50 anos ao serviço da empresa foi adquirindo autonomia para contratar os filhos de amigos, sobretudo da zona onde reside.
21Em praticamente todas as narrativas biográficas foi localizado pelo menos um parente a exercer ofícios ligados às Artes Gráficas. Darei apenas alguns exemplos das respostas obtidas em relação à questão inicial das narrativas de vida: «Como se tornou tipógrafo?»
«Andava a mexer lá nas letrinhas. Depois o meu pai ensinava, a mim ou a outro aprendiz qualquer. Pegava-se nas letrinhas e punha-se lá nos sítios, faziase asneiras e os gajos caíam-nos em cima, davam-nos uma palmada nos dedos, até: “Ó seu burro, não vê que essa letra está ao contrário?” Lá se ia aprendendo. Portanto eu lembro-me que quando fui para a escola primária já sabia ler bastante bem, eu penso que muito bem. Aos nove anos já seguia a guerra mundial, com bandeirinhas no jornal.» (Mateus, foi tipógrafo-compositor, chefe, pequeno proprietário de uma Gráfica e hoje, estando reformado, efectua trabalhos de tipografia e design gráfico, 1 1/09/1995.)
«Antes de ir para a tropa já era tipógrafo. Foram os meus pais que me disseram. Não havia mais nada para trabalhar. Eu para a construção civil não tinha corpo. E além disso a minha famíla também era tudo tipógrafo. O meu falecido pai era polidor de móveis. Mas o avô, os tios, eram compositores. Comecei a trabalhar no oficio em 1954 na tipografia Gomes e Rodrigues. Essa casa parece que foi à falência. Estive lá até aos 22 ou 23 anos. Ainda lá ficou dinheiro e tudo. Deve ter sido em 72 ou 73. Depois percorri algumas casas, aqui já estou há 20 anos, 22. Vim para cá em 1972.» (Elídio, linotipista, 16/03/1995.)
«Foi logo assim que eu saí da escola. (...) O meu pai era músico em jovem, e nessa altura a música não dava dinheiro, porque não havia artes nem nada. (...) O trabalho de músico já não dava dinheiro, ele teve de procurar a sua vida e foi para uma casa de Artes Gráficas que havia em Ponta Delgada, onde ele aprendeu esse ofício de gravador, a fazer as gravuras. (...) Vim dos Açores em 30, com os meus pais. Até lhe posso dizer qual foi o navio, foi o Lima. Ainda existia a Companhia Nacional de Navegação, e nessa altura havia dois navios, era o Lima e o S. Miguel. (...) Vim com a minha mãe. O meu pai já cá estava, pois veio com antecedência para arranjar trabalho. Esteve cá um ano à procura de trabalho, porque veio numa altura em que havia uma grande crise, mundial... (...) Como lhe disse, ele tinha cá amigos que deviam ser camaradas dele [comunistas], deduzo (porque o meu pai ao princípio não falava muito dessas coisas), e esses amigos é que tinham dito que havia um lugar para gravador no jornal “O Século”. Só que quando ele cá chegou... as coisas eram lentas, cartas para cá, cartas para lá... Quando ele cá chegou já não havia lugar nenhum, nem havia trabalho. E ele, coitado, esteve aqui um ano e deve ter passado um muito mau bocado, fome... Ainda me lembro de algumas conversas que ele tinha dos amigos: “Para tomar um café toda a gente me convidava...” Mas quantas vezes ele queria alguma coisa mais do que café... Lá passou esse tempo. Depois arranjou trabalho numa casa, foi na Bertrand & Irmãos, cuja sede era na Travessa da Condessa do Rio, n.o 27. Eu conheço muito bem porque mais tarde eu fui para lá trabalhar também, depois do meu pai ter morrido, uns anos depois. Essa casa era uma boa casa. E ali ficou até morrer, nunca mais saiu dali. A primeira casa onde ele começou a trabalhar, ali ficou. Eu fui criado com o dinheiro que ele lá ganhou. Eu e a minha família. (...) O meu primeiro dia de trabalho relacionado com tipografia, eu lembro-me, agora não sei é situar a casa onde eu andei a fazer isso, porque até pode ter sido nessa Tipografia ABC, onde eu depois trabalhei dois anos. Porque eu lembro-me que nos primeiros anos o meu irmão foi sempre o encarregado da oficina, portanto, como encarregado, dava-me lá trabalho.» (Werter, foi tipógrafo-compositor, monotipista, programador de produção e orçamentista, estando hoje reformado, 04/05/1997.)
«Isto calhou. São daquelas coisas... Saí da escola com 11 ou quase 12 anos e pronto. Eu andava ali na rua... O meu pai andava à procura de um emprego para mim e lá está, voltando à mesma história: “É pá, nem que seja para o puto abrir os olhos. Ponha o gajo aí a fazer qualquer coisa. Não ganha nada, é que nem ganha nada”. Nuns casos ganhava-se, noutros não. Eu aqui ganhava, mas havia muita exploração que era só para os ter ali, como nas mercearias... A troco só do almoço e do jantarzinho, não ganhavam nada. Andavam ali só a encher pneus. E então a minha mãe falou ao meu padrinho. Ele disse: “É pá, eu não gosto muitodessas coisas, é sempre chato. Mas tá bem, eu vou lá falar para o rapaz.” E lá falou aqui ao Sr. Cláudio e lá vim para aqui. Vim ganhar 6 paus por dia. Com 12 anos.» (Elias, tipógrafo-impositor, 01/08/1995.)
22A ligação familiar à oficina do iniciado não passa necessariamente por alguém colocado num posto de trabalho na produção. Surgem alguns exemplos a ilustrar:
«Não havia mais nada, na altura. Tinha acabado de sair da tropa. 74. O meu irmão trabalhava ali no escritório, depois o Sr. Cláudio [o gerente] convidou-me para vir para cá. Foi assim.» (Felisberto, tipógrafo-impressor, 30/06/1995.)
«Trabalhava numa oficina da irmã do meu cunhado. Depois fui para o Luis Maior, para uma armazém de papel e depois vim para aqui. Não era este o ofício que eu gostava...» (Matias, encadernador, 29/03/1995.)
«Foi a 9 de Setembro de 1955, parece. Tinha 17 anos. Era, era, ia fazer 18. Foi por intermédio do pai do meu cunhado. Ele era o chefe dessa encadernação e meteu-me lá. Para mal dos meus pecados... Aprendi a ver, isso era o principal.» (Carlos, encadernador, 19/04/1996.)
23Em geral, dois procedimentos ajudam à iniciação dos jovens: reproduz-se a herança familiar de um ou mais familiares no ofício e são aproveitados os conhecimentos que os parentes têm nas oficinas. Os trechos narrativos seleccionados apontam o peso que a família tem no percurso ocupacional dos sujeitos.
«O meu sonho era ser marítimo. Tinha de ter 14 anos para entrar para a escola naval. Enquanto esperava sonhava com aquilo. Havia um amigo dos meus pais que eu até comparava ao Humphrey Bogart. Com a gabardina, o chapéu... Chamava-se Sousa. Era da marinha e fascinava-me. A tipografia cruzou-se na minha vida, entretanto. O meu padrasto conhecia o gerente do “Jornal do Comércio”. Mas eu não podia entrar como iniciado. Tinha de passar por uma tipografia para aprender, pelo menos durante 2 anos. Como conhecia o Sr. Leopoldo [chefe na Tipografia Gloriosa]... Quando para cá vim nem tinha idade para me inscrever no sindicato. Tive de esperar dois anos. No jornal tinha de ter conhecimentos, não era só uma questão de idade. Nas oficinas era onde se aprendia, nos jornais era a república das bananas. Tinha um irmão, o filho do meu padrasto que era impressor no jornal “O Século”. Ele levava jornais para casa, papéis. Aquilo a mim entusiasmava-me, mas o que eu queria ser era viajado.» (Miguel, tipógrafo-impressor, 01/04/1996.)
«Andei na escola até à quarta classe. Comecei a trabalhar tinha para aí uns 16 anos. A minha mãe queria que eu trabalhasse e pôs-me num alfaiate que havia ali. Quando eu fui para lá era para fazer o que se chama hoje enchumação, para pôr nos casacos. Era montes de trabalho. Estava chateada e disse à minha mãe: “Eu não gosto daquilo”. Depois a minha mãe falou com o patrão [da oficina de encadernação onde aquela trabalhava], eu fui e gostei logo. Enquadrei-me bem naquilo.» (Margarida, encadernadora-costureira, 13/03/1995.)
24Encontram-se algumas diferenças nos vários trajectos pessoais aliadas à idade de iniciação nos ofícios. Antes de possuírem os 14 anos legais para começarem a trabalhar como tipógrafos nas oficinas de Lisboa ou os 16 anos exigidos nas maiores oficinas dos jornais, muitos dos futuros tipógrafos passam por outras ocupações, nem sempre remuneradas e geralmente menos consideradas, sobretudo aos olhos dos parentes, em termos das potencialidades de constituição de carreira.
25Regresso à narrativa de vida do Miguel, um dos interlucutores mais empenhados nesta investigação:
«Comecei na fundição, no dia em que faltei à escola, ao Liceu Passos Manuel. Depois fui estofador, num espaço de semanas e meses, porque davam cabo de mim. Aquilo era para homens feitos, não para um miúdo de 1 1 anos. Depois fui para a “Piruças”, a Dona Elvira, numa loja de mobílias. Ao lado eram as oficinas. Tinha uma namorada, aprendiza de alfaiate. Eu, com 8 anos, já comprava o “Diário Popular”, já andava com ele debaixo do braço. Vinha uma banda desenhada do Ben-Hur, mas eu comprava mais para me evidenciar como homem. Eu saía daqui (morava aqui perto) com o meu fato-macaco – isto é para ver como eu queria ser homem à pressa! – para ir comer a casa da minha mãe e gostava de levar o fato-macaco, e quanto mais sujo melhor, para se ver que eu era um homem de trabalho. Eu hoje acho isto uma loucura. Se me perguntarem por que é que me queria emancipar, não sei. Talvez por família. Queria realizar dinheiro. (...) Uma vez saí de casa por ser vítima de uma calúnia. Depois foramme buscar. Já eu trabalhava nas mobílias. O meu irmão tirou dinheiro à minha mãe... Eu é que era o retocador. Já tinha dinheiro e era muito poupado. Comprava o jornal e ia ao cinema. A minha mãe achava que eu tinha dinheiro a mais. “Ó Necas, tiraste daqui dinheiro!” Ela quis-me castigar. Ofendeu-me. Tive duas semanas fora, ninguém sabia de mim. Como eu andava à deriva um colega convidou-me para ir trabalhar à noite, também. Saía do trabalho e ia para o Arco do Carvalhão, polir, envernizar. Ficava lá a dormir no barracão, em cima do torno. Era explorado pelo patrão e pelos colegas.» (Miguel, tipógrafo-impressor, 01/04/1996.)
26Alguns parentes impulsionam os seus filhos a lançarem-se num qualquer trabalho em tenra idade, de modo a alargar o meio de sustento nas suas pobres casas. A narrativa de vida do Matias é paradigmática de um esquema social de pobreza que parece ter sido recorrente neste país:
«Desde criança que tem sido uma vida... comecei a trabalhar com 11 anos num talho na estrada de Cheias. Ia com dois borregos dentro duma alcofa. Ia por ali assim, carregado... depois para pedreiro. Estive lá a trabalhar dois anos. Ao fim de dois anos de lá estar, havia outro patrão nos Sapadores que me dava mais, vinte cinco tostões por dia. Naquele tempo era muito dinheiro. O meu pai agarrou-me e mudou-me logo, levou-me logo para ali. Ainda não tinha dois meses de estar ali, ele [o patrão] mandou chamar o meu pai que não me podia lá ter porque eu não tinha o exame da 4.1 classe. Eu sabia ler mal, tinha de pedir às freguesas para tirar o quanto... Dantes era assim. Isso foi em 1947, quando foi da segunda guerra mundial. (...) Era bichas para o azeite, para as batatas, para o carvão. A gente chegávamos a estar os 4 irmãos... 3, que o mais velho não queria ir, chegávamos a estar toda a noite na bicha, toda a noite. E a minha irmã só de manhã é que já ia, porque era rapariga (...) A minha mãezinha estava doente na cama com um cancro na boca do estômago, era eu pequenino e andava com ela a vender no burro. Ela punha-me em cima das cangalhas, que eu era pequenino. A minha mãe cheia de dores (por isso é que me vêm as lágrimas aos olhos), sem pão para dar à gente. Então mandava as vizinhas pedir dinheiro para comprar injecções para ela, morfina para tirar as dores. Quando ficava com algum dinheiro ainda mandava comprar pão para a gente...» (Matias, encadernador, 29/03/1995.)
27A noção estreita da passagem inter-geracional do ofício, o ofício enquanto propriedade herdada, é de tal forma legitimada que em algumas narrativas de vida se retém a imagem de um passado em que outro modo de recrutamento seria legalmente proibido.
«Dizia-se, não sei se é verdade ou mentira, que só podia vir para este oficio quem tivesse tipógrafo na família. Diziam que era verdade, não sei se é nem se não. Diziam as pessoas antigas. Eu sei é dizer que as pessoas que vinham, no meu tempo, com a minha idade, geralmente tinham sempre ou era irmãos ou tios. Tinha que ser de família mesmo. Isso depois acabou.» (Elídio, linotipista, 16/03/1995.)
28Certo é que a reprodução profissional desta indústria enquanto indústria familiar chegou a ser legislada. Em 1943, num contrato colectivo para os jornais diários do Minho e Braga dizia-se: «Em igualdade de circunstância na admissão é dada preferência aos filhos, netos, sobrinhos em 1.° grau dos industriais e operários gráficos» (boletim intp 1943, 155). Mas ainda mais importante pela generalização de uma prática era o facto de tal regalia vir expressa nos regulamentos legais estabelecidos com a obrigatoriedade de posse da carteira profissional para exercer o ofício (boletim intp 1942). No art. 7, que define os candidatos aos quais os sindicatos podem passar a carteira, a terceira alínea (que se segue aos diplomados com cursos de artes gráficas ou industriais), privilegia os «filhos de industriais ou de operários gráficos que possuam, pelo menos o exame do 2.° grau da instrução primária»; e só depois refere noutra alínea «quaisquer outros indivíduos, com o 2.° grau da instrução primária», mas apenas «na medida em que os quadros das agências de colocações dos sindicatos não estejam habilitados a satisfazer as necessidades das oficinas das áreas respectivas» (idem). (Veja-se um exemplar de um diploma do exame do 2.° grau ao ano de 1951.)
29A ligação familiar continua a ser muito importante depois de o operário entrar para as oficinas. Aos lugares mais prestigiados acedem, regra geral, aqueles cujo passado é conhecido, da entidade empregadora, assim como dos restantes colegas. As formas de recrutamento e favorecimento familiar são de tal forma legitimadas que, mesmo aqueles que não se servem de tais redes sociais, as compreendem e reafirmam. O Raul dá um exemplo:
«Quando veio para cá o offset, estava cá o chefe, e a ideia era todos aprenderem, um dia um, outro dia o outro... Mas isso acabou. Já se vê, o gerente tinha todo o interesse em pôr ali a família, os sobrinhos. Se calhar eu faria a mesma coisa.» (Raul, tipógrafo-impressor, 05/04/1995.)
30PRECARIEDADES Como seria de prever, em muitas oficinas de Lisboa existe uma prática de iniciação no trabalho em idades infra-legais. De acordo com o Contrato Colectivo de Trabalho, aprovado em 21 de Novembro e em harmonia com o Decreto-Lei n.o 29 93 1 de 15 de Setembro de 1939 (aquando da criação da carteira profissional para os operários representados pelos sindicatos gráficos), define-se que esses organismos «só podem passar a carteira a novos candidatos, maiores de catorze anos do sexo masculino; e maiores de quinze anos do sexo feminino». Surgem expressas como condições de admissão que o aprendiz detenha a 4.a classe (passando apenas em 1972 para o 6.° ano, alargando-se o limite mínimo de escolaridade ao ensino preparatório); que faça um exame médico de robustez física e se associe de imediato ao sindicato corporativo – condições que, como demonstra a investigação empírica, nem sempre se praticavam nos meios ofícinais.
31O recrutamento precoce decorre, geralmente, de um fenómeno social e cultural mais amplo, abarcando grupos operários e rurais diversos, e historicamente situado na sociedade portuguesa. As crianças, ao terminarem a escolaridade primária obrigatória ou sem a mesma concluída, eram até anos recentes introduzidas no mundo laborai de modo a que, com os seus rendimentos, pudessem contribuir para as débeis economias domésticas familiares. Sendo valorizados ofícios onde era possível fazer carreira operária, estava encontrada a razão adicional para cedo se lançarem os jovens nas lides do trabalho.
32A margem de admissão de noviços nas oficinas com menos do que a idade mínima permitida, os 12 anos, faz-se depender dos riscos que os responsáveis pelas oficinas estão dispostos a correr. Das situações relatadas sobressai uma enorme precariedade para os iniciados no trabalho. São eles quem desempenha o trabalho mais indiferenciado, o «trabalho sujo», duro para as suas idades. É frequente que os sujeitos iniciados em situações de precariedade não se libertem da mesma senão passados muitos anos de trabalho. Embora a situação dos aprendizes de género masculino tenha tendência a legalizar-se assim que estes atingem a idade legal para trabalhar, em relação às aprendizas os procedimentos são geralmente mais discriminatórios. A Margarida manteve um estatuto incerto no trabalho até aos seus 1 9 anos de idade, conforme relata:
«Sou encadernadora de categoria costureira. [Aponta para a carteira profissional e descreve]: Isto foi onde eu iniciei a profissão. Não estão aqui os anos em que trabalhei em que não podia fazer descontos, e nem tinha nada disto, está a perceber? Em 1975 foi quando me começaram a fazer os descontos. Ainda me estiveram a fazer os descontos sem o dinheiro ir para a Caixa, eles é que estavam a arrecadar. Antigamente faziam isso. Só trabalhei nesta casa quando saí de lá, e ainda estive um ano desempregada.» (Margarida, encadernadora-costureira, 16/03/1995.)
33As oficinas, enquanto espaços semifabris, podem desencadear um efeito algo assustador nas crianças que aí entram ao trabalho. A familiaridade com o espaço corresponde a uma perda da ingenuidade própria da infância, obrigando à aprendizagem (muitas vezes forçada e tensa) do estado adulto. No meio estudado, a transição para a idade adulta faz-se através do trabalho. A entrada dos aprendizes nas oficinas nem sempre tem na base uma real familiarização com o meio. Praticamente sem ter qualquer noção das tarefas que vai desempenhar, o aprendiz entra muitas vezes pela fase de serventia cuja actividade se caracteriza pela fragmentação e violência das tarefas. No mundo oficinal, quanto mais inocente é o rapaz mais trabalho-força (trabalho pesado e penoso) lhe dão os superiores. Segue um trecho do relato biográfico do Miguel:
«No primeiro dia que ia para a escola vi uma fundição, parei à porta. Um homem lá de dentro perguntou-me se eu queria trabalhar e eu perguntei-lhe a ele se podia começar. Foi logo. Deu-me logo uma pá. Não se podia parar de meter areia no forno. O homem estava a explorar este rapaz novo e fraquito que eu era. Aquilo era o suor a correr-me pelo corpo. De tronco nu todo o dia. Aquilo matava uma pessoa. Com o cheiro da limalha e do suor não se podia estar perto de mim. Quando cheguei a casa a minha mãe percebeu e não gostou nada: “Então não foste para a escola?” No dia seguinte não fui trabalhar, mas no terceiro já lá estava eu outra vez. Só fiquei uma semana. Mas havia em mim uma força que me puxava para o trabalho. Havia lá perto um estofador. Eu pedi à dona que me deixasse trabalhar lá. No estofador iam-me matando. Passava os dias a cardar.» (Miguel, tipógrafo-impressor, 01/04/1996.)
34A motivação familiar para levar os pequenos a aprenderem um ofício prende-se ainda com uma ideia generalizada de que no trabalho, nas oficinas, a criança se faz homem. Ao lado das aprendizagens técnicas surgem as aprendizagens socializantes. Incrementar a responsabilidade na criança, de modo a tornar-se um bom chefe de família, permite assegurar um papel masculino reconhecido sobretudo na sociedade do regime pré-democrático. Este tipo de experiência de classe, reproduzida no interior das famílias operárias, representa-se na ideia recorrente dos operários quando dizem que nasceram para trabalhar.
«Os meus pais eram trabalhadores, os meus avós também. Eu nasci para trabalhar. Tenho que trabalhar até ao fim da minha vida. Não é que eu goste, mas é da força dos meus braços que sai o alimento para mim e para os meus.» (Álvaro, tipógrafo-compositor, 07/06/1995.)
«Ainda hoje não sei qual seria a profissão que gostava de ter. Há 40 anos qualquer uma servia, não havia o luxo de escolher. As pessoas eram encaminhadas e resignei-me com a sorte que Deus me deu.» (Miguel, tipógrafo-impressor, 19/11/1996.)
35Assim se constituiu popularmente a «escola» da profissão do sistema de ofício, onde pais e patrões são cúmplices. Os depoimentos demonstram como os novatos são mobilizados para as oficinas.
«Não se passou comigo, mas segundo diziam e eu ouvi muitas vezes dizer, para aprender um ofício ainda tinha de se pagar, e muitos, os pais pediam para os filhos lá estarem nem que fosse de borla para aprenderem qualquer coisa...» (Álvaro, tipógrafo-compositor, 10/07/1995.)
36As palavras dos sujeitos fixam uma consciência de pertença a um grupo social mais alargado que representa o sujeito como ser-para-o-trabalho. Mesmo quando não explicitada a situação de encaminhamento parental para o trabalho, a escolha pessoal da profissão (enquanto motivação do passado) é construída tardiamente. Com a ajuda do argumento de passagem dos «capitais profissionais» no interior da família, fazem coincidir «destinos pessoais e estrutura de classe» (cf. bertaux 1977) e alguma aptidão para o ofício.
37Neste sentido, torna-se secundário se o aprendiz possui ou não qualquer imagem alusiva ao tipo de empresa que está prestes a integrar. Na pressa de encontrar trabalho, ou impulsionado pelos parentes próximos, a criança ou o jovem são inseridos num mundo novo, um mundo simultaneamente assustador e fascinante aos olhos dos recém-chegados73.
38Ainda assim, os sujeitos não são indiferentes à sua sorte. Da narrativa que se segue sobressai o impacto dramático do primeiro dia no trabalho. Como já foi dito, quando é admitido para as tipografias o aprendiz está quase sempre inserido numa rede social de relações de amizade ou parentesco que apoiam a contratação. Como organizador das carreiras dos noviços sobressai a figura paterna. Possuir um oficio é a meta de um percurso que se inicia na tenra infância. O depoimento que se segue é assaz impressionante:
«O meu pai conhecia o encarregado. Na altura veio cá falar com ele. Lembro-me que foi numa altura em que eu estava a trabalhar num fotógrafo. O meu pai quando chegou à noite e disse-me: “Amanhã avisas lá esse senhor da fotografia que agora vais para um ofício mesmo”. E eu não lhe podia dizer que não. Passado dois dias ou qualquer coisa, chegou-se esse mês de Abril. Vim então para aqui. Já tinha passado aqui pela rua, por aquelas grades e dizia para mim: “É pá, que casarão negro...” Lá vim aqui: “Sou filho do Castro”. “Ah, sim senhor.” Foram chamar o Sr. Cláudio. Entrei a medo lá dentro... Naquele tempo [no ano de 1950] não havia nada destas máquinas Linotypes. Era tudo assim caixinhas, aquelas caixinhas cheias de letras... O encarregado pôs-me aquilo [a caixa] à frente: “Vais estudar isto, onde está o ‘b’, o ‘a’, etc.”. “Sim, senhor.” E eu a pensar: “Ai minha mãezinha, eu tenho de decorar isto tudo.” Porque eu pensava que cada caixa era um esquema diferente. (Geralmente as caixas lá dentro são todas iguais, o que difere são os caracteres das letras: onde está o ‘o’, o ‘e’.) Comecei a ver aquelas caixas todas... Agora, na casa, não há nem 10% das caixas que havia naquela altura. E havia muito mais pessoal... Entretanto, como morava na Bica, ia almoçar a casa. E o meu pai, como estava a trabalhar na sua tipografia na altura, também ia a casa almoçar. Foi então que eu lhe disse: “Pai, eu não quero voltar para lá” [Faz uma voz chorosa]. “Não queres voltar para lá, porquê?!” [Faz uma voz grave]. “Pai, eu não vou gostar daquilo”. “Tens que gostar daquilo, aquilo é um ofício! Não é agora a andar nessas coisinhas da rua... Aquilo é um ofício, tens de aprender um ofício.” E eu: "Ó|ʿ pai, mas aquilo tem aquelas caixas todas, tenho que decorar aquilo tudo...” “Aquelas caixas todas?! Mas aquilo é só uma caixa! Aquilo é só um desenho e tem tal e tal...” (e lá me explicou). “Mas eu não quero ir para lá.” “Vais sim senhor, vais para lá.Vais para lá e vais para lá...” E olhe, cá fiquei, até hoje.» (Fausto, revisor de provas, 24/08/1995.)
39Podem ainda ocorrer desfasamentos entre os interesses dos indivíduos e as expectativas dos superiores em relação a eles. O caso do Frederico é particularmente ilustrativo da situação referida. O tio, o gerente da Tipografia Gloriosa, resolveu que este seria colocado nos escritórios e que aí faria carreira, julgando deste modo estar a beneficiá-lo. Ambicionava a reprodução para o sobrinho da sua própria trajectória no interior da empresa. Sem se habituar ao trabalho, o Frederico viu-se obrigado a despedir-se da empresa até fazer valer os seus interesses junto do tio. Queria aprender a operar com as máquinas de impressão offset. Ao tempo da investigação é oficial e chefe dessa área produtiva, embora o tio não o quisesse inicialmente nas oficinas.
40A construção social do operário tipógrafo enquanto operário qualificado, fez-se durante um longo período deste século e em parte até ao presente a partir de princípios de reprodução do grupo, de saberes técnicos mas também sociais. Na fase de recrutamento, as entrevistas para o emprego, em relação àqueles que entram por via de influências interpessoais, são uma mera formalidade. Muitas vezes a decisão já está tomada previamente. O mesmo não acontece quando se trata de autoproposta. Geralmente o operário que concorre por sua iniciativa e risco a um emprego já possui o estatuto de adulto, o que o coloca numa situação de não iniciado na arte. Nesse momento, é necessário entrevistá-lo, verificar se ele tem de facto a experiência que afirma ter, confirmar na sua carteira profissional as categorias por que passou, etc. Álvaro narra como foi recrutado para a tipografia onde permaneceu até ao fim da vida activa:
«Uma vez, era um domingo... ou um feriado, ou o que é que foi. Não me lembro bem. Sei que o meu pai estava ali na cama. O meu pai gostava muito de ler o jornal na cama. E eu saltei da minha cama e fui para lá, para ao pé do velho, os dois para a cama ler o jornal. E então vinha lá a pedir um auxiliar de compositor. (...) Mas e então vi o anúncio, fui lá. Depois veio o Cláudio C. e eu disse: “Olhe, vim cá responder a um anúncio.” E ele perguntou-me: “Então e a sua categoria?” “Olhe, eu não sei a minha categoria.” Depois contei a minha história, não é. Ele, por acaso conhecia o meu patrão que naquela altura era meu padrinho. Eu contei-lhe a história que fui para lá trabalhar e nunca descontei, nunca ‘tive no sindicato, “pronto, não sei qual é a minha categoria, pronto.” E ele perguntou: “Então e quanto é que você ganha? Quanto é que você ganhava lá? “Ah, ganhava 50 escudos.” Aumentei-me mais cinco escudos! E ele então disseme: “Pronto, então venha trabalhar amanhã.” Digo assim: “Amanhã não, venho na segunda-feira.” “Pronto, então na segunda-feira venha trabalhar. Fui trabalhar para lá. Eles, o Ismael [encarregado-geral], começou a ver se interessava ou não interessava. Eu tinha 22 anos. Vinha de uma maneira de trabalhar, de um lado... Uma coisinha pequenina para uma coisa daquelas, totalmente diferente, com muita gente, não é...» (Álvaro, tipógrafo-compositor, 10/07/1995.)
41Quando socialmente mais desprotegidos, isto é, sem elos familiares à profissão, os operários recorrem a um tipo de relações (invisíveis nos registos de pessoal das empresas mas muito presentes nas narrativas biográficas): ao apadrinhamento por superiores (cf. cunha & durão 1993).Tal consiste em convidar o patrão (sobretudo quando este está quotidianamente na oficina e como tal possibilita a proximidade), o gerente ou o chefe (figuras de poder e autoridade nos locais de trabalho), para padrinho de casamento ou de baptismo dos filhos. Desse modo, os operários aumentam as hipóteses de vir a atingir vantagens nas carreiras, apostando por isso na reprodução de relações e vínculos de tipo afectivo-familiar74.
«Depois, acabou a tropa e voltei para o trabalho. Tinha o meu lugar lá! Ninguém mo podia tirar. Entretanto, saí da tropa, já namorava esta candonga [refere-se à mulher]. Saí da tropa e passado um ano ou o que é que foi casámos. Ora, convidei o meu patrão para padrinho de casamento.» (Álvaro, tipógrafo-compositor, 10/07/1995.)
«A Cristina foi uma costureira que esteve alguns anos a trabalhar nas oficinas. Quando o antigo chefe da encadernação era vivo, o Eliseu, ela visitava a oficina para o cumprimentar, pois ele era o padrinho das suas filhas.» (Fausto, revisor de provas, 10/07/1995.)
42Na ausência de ligações familiares aos superiores são as relações de apadrinhamento, extensíveis no tempo biográfico e frequentemente exigindo longos anos ao serviço de uma empresa, que proporcionam e ajudam à negociação das carreiras individuais. O servente da tipografia afirma que: «O Cláudio C. [o gerente] é o “padrinho” do Teotónio [o encarregado-geral]. É sempre o Teotónio que fala com ele.» (Xavier, servente, 30/07/1995.) Isto é, tem melhores condições de negociação do que os restantes tipógrafos (não apadrinhados pelo superior).
43Ao lado das relações de parentesco, apadrinhamento e afinidade, as trajectórias dos iniciados podem ainda desenhar-se por conveniência da própria empresa, sendo os mesmos, com melhor ou pior sorte, encaixados numa secção produtiva onde surjam vagas e por onde vão ficando. Durante o período do Estado Novo, mais concretamente desde os anos 40, foi fixada pelo sindicato corporativo uma tabela de proporções fixada com o objectivo de limitar o número de aprendizes onde, por regra, por cada oficial só podiam contratar-se no máximo dois aprendizes.
44Ainda assim existe a possibilidade, muitas vezes depois de anos de espera, de que o sujeito revele aptidões pessoais. Na Tipografia Gloriosa, alguns jovens serventes podem ser chamados pelos chefes para a aprendizagem do ofício, começar a aprender a composição, a trabalhar com as máquinas se mostram ter interesse, gosto ou jeito para o trabalho.
«Para serventes vinham muitos. Alguns pediam para mudar de secção e o Cláudio C. dava essa chance (...) O Joaquim Vinagre veio como servente. Como tinha habilidade, o chefe (o Caiado) pô-lo nas máquinas como impressor. Hoje é impressor.» (Fausto, revisor de provas, 01/04/1996.)
45Sem preparação ou formação especial, igualmente admitidos com a escolaridade obrigatória, é possível detectar, até anos recentes, um percurso idêntico na carreira dos empregados de escritório das tipografias. A maior parte dos escriturários que conheci viveram previamente um percurso de aprendizagem nas oficinas. O caso do Armando é paradigmático. Entrou para a oficina aos 12 anos, para a secção de encadernação, onde esteve cerca de 4 anos. Depois aprendeu a impressão e fixou-se nessa fase da produção durante dois anos. Tendo sido apadrinhado pelo gerente, e ainda com o estatuto de aprendiz, assim que surgiu uma vaga foi chamado para o escritório, onde começou por desenvolver actividades subsidiárias, na rua, e mais tarde foi vendo evoluir o seu estatuto até chegar a primeiro-escriturário.
46Os postos de trabalho no escritório tiveram uma valorização crescente desde as últimas décadas (melhores salários, menos carga horária, menos trabalho-força envolvido). Desta forma, alguns operários tiveram o seu percurso beneficiado nesse sentido.
47O Gil entrou para aprendiz da impressão, mas, segundo, aquele que o ensinou, o tipógrafo Miguel, detectava-se desde logo a sua desmotivação pelo ofício. Foi então encaminhado para os escritórios pelo gerente. Na oficina é comum salientarem que quem faz o percurso nos escritórios são, em geral, «amigos» do gerente. Conscientes da distinção entre produtivos e administrativos, os comentários dos tipógrafos relativamente à mobilização dos operários para os escritórios são geralmente críticos:
«Ele [o Gil] está cá há dois anos e ainda não sei qual é a missão dele. O Cláudio C. [o gerente] conheceu o pai do rapaz que lhe pediu para ele vir para cá, antes de ir para a universidade. Pediu-me que o introduzisse por uns tempos aqui [na impressão]. Mas ele vinha vestido de uma maneira que eu tinha receio de o pôr a trabalhar. Trabalho tinha para lhe dar, mas não sabia o que o pôr a fazer. Tinha medo que sujasse as mãos, e ele ficava aí, parado [aponta para junto da máquina do Raul]. Para lhe ensinar o oficio também não valia a pena, ia cá ficar pouco tempo. No dia anterior ao Raul voltar de férias reparei que a máquina dele estava suja (e ele que costuma sempre limpá-la antes de ir de férias...). Fui ao Cláudio C. perguntar se podia pôr o rapaz a limpar a máquina. Ele aprovou. E ele esteve a limpá-la. No dia seguinte, o Cláudio C. veio dizer que a partir desse dia ele ia para o escritório. Não deve ter gostado de o ver sujo. Até hoje nunca percebi o que é que ele anda cá a fazer, mas foi ficando estes anos todos.» (Miguel, tipógrafo-impressor, 29/05/1995.)
48OFICINAS COMO LUGARES DE INCERTEZA A integração de um indivíduo num determinado grupo é concretizada pela possibilidade que este passa a ter de se familiarizar com o espaço. A incerteza da pertença é mais facilmente observável na situação dos aprendizes. Dos relatos que obtive relativamente ao passado recente conta-se que existiam regulamentações comportamentais prescritas ao aprendiz: ele devia baixar a cabeça quando se aproximava dos oficiais; não podia sair do seu posto de trabalho sem a autorização prévia do chefe ou, na ausência daquele, de um oficial mais velho; não podia chegar atrasado ao emprego pois corria o risco de ser imediatamente despedido; teria de passar largos meses no trabalho até pedir um dia de folga para tratar de assuntos pessoais ou familiares. Também a frequência dos espaços sociais era diferenciada, ficando os aprendizes para trás na lavagem corporal do final do dia e na troca de indumentária. Tal como foi analisado em contextos de serviços como os empregados de mesa (nicod & mars 1984, 65), os mais novatos eram invariavelmente encaminhados para tarefas mais desqualificadas e «sujas», tarefas frequentemente subsidiárias à produção. Nesse processo o aprendiz ia conquistando a confiança do espaço, dominando-lhe os cantos e os segredos. A familiarização progressiva baseava-se nas aprendizagens das hierarquias e da submissão que, um dia mais tarde, faria valer sobre os mais jovens quando ele mesmo fosse oficial. O testemunho do Elídio é claro:
«Trabalhei em 3 tipografias antes de vir p’ra esta. Sempre na composição manual. Comecei numa que já não existe. Comecei a aprender a caixa, a arrumar o material, os filetes, a varrer, naquela altura... Hoje os aprendizes são uns lordes. Fazia os recados aos oficiais, ia-lhes buscar o tabaco, por exemplo, mas às vezes sem o chefe ver. Não podíamos dizer que não, quer dizer, poder podíamos, mas a malta queria aprender e assim eles não nos punham de lado. À conta dum aprendiz novo numa secção dava-se a volta ao pessoal todo da tipografia, aos mais velhos. Se a saída era às sete horas, nós [os aprendizes] saíamos um quarto de hora mais tarde. Isso era para nosso benefício, ficávamos bem vistos perante os “governantes”. Na minha altura, como diziam os velhos da minha altura, na nossa idade eles levavam grandes lambadas. A nós já só nos ameaçavam, já não batiam tanto. Eram tempos muito bonitos. Também não tinha a preocupação de saber se havia ou não dinheiro. Tinha era que o entregar em casa.» (Elídio, linotipista, 03/05/1996.)
49A situação actual tem vindo a libertar os mais jovens iniciados, praticamente reduzido ao grupo dos auxiliares, do antigo estatuto de incerteza. A radicalização da inferioridade/superioridade deixou de se fazer de modo formal e passou a estar mais subentendida nas relações interpessoais. Nas equipas de trabalho, não são apenas os territórios do aprendiz que são incertos, mas também os de novos elementos que integram as oficinas. O recém-empregado constitui geralmente uma ameaça à qual os restantes empregados respondem com manifestações de resistência. Mesmo que não haja hostilidade directa, o novo sujeito provoca um movimento de atenção: quando ele passa é notado, o seu comportamento é observado e comentado (fischer 19 8 0, 152)75.
50À medida que o indivíduo se enraíza na empresa, o seu território alargase. É nesta fase que se desenvolve então o «espírito casa» proposto por Fischer (1980, 154). Constituído a partir da ligação aos colegas e da familiaridade com os lugares, o espírito casa é uma realidade social que é vivida como um valor para grande parte dos contratados76. A empresa representa um lugar de enraizamento e pode ser reconhecida nas suas características de segurança, de sustentação e mesmo de refúgio, valor que se atribui geralmente à nossa «casa». Sainsaulieu demonstrou que seria perigoso subestimar a eficácia destes valores nas análises identitárias do trabalho, numa época onde o crescimento das organizações e a multiplicidade das transformações técnicas subvertem as solidariedades habituais abrindo numerosas perspectivas de progressão para os indivíduos e de vínculo ao espírito casa (sainsaulieu 1988, 367).
51MOBILIDADES Os trajectos dos tipógrafos caracterizam-se por uma grande estabilidade no ofício e, como o leitor pôde acompanhar até aqui e verá a partir daqui, todo o processo se desenha no sentido da não mobilidade social dos operários. Por outro lado, a possibilitar uma certa abertura para a negociação das carreiras, surge uma intensa mobilidade inter-oficinal, pelo menos durante a fase da vida activa dos tipógrafos que corresponde a uma certa progressão na carreira, que nesta investigação os situa historicamente no período do Estado Novo (1933-1974). Enquanto operários de ofício, tendo percorrido os anos necessários da aprendizagem, os tipógrafos não têm dificuldade em encontrar trabalho e negociar as suas condições de trabalho. Ouvi muitas vezes argumentos semelhantes aos que se seguem:
«Antigamente a malta mudava muito de casa. Os patrões perdiam empregados por 5 cʼroas. Mas perdiam mais depois para meter um de fora. Mudava-se muito também porque se se quisesse arranjava-se emprego com facilidade. Havia muita oferta. Por 5 c’roas andávamos a rodar.» (Elias, tipógrafo-impositor, 17/05/1996.)
«Por uma diferença de 10 tostões mudava-se de patrão.» (Miguel, tipógrafo-impressor, 24/11/1996.)
52À medida que me fui inteirando da realidade sócio-profissional, apercebime de que a mobilidade inter-oficinal constitui para os operários uma das estratégias de progressão nas carreiras, quer materialmente quer na subida de categoria. Durante o Estado Novo, a tabelação proporcional por categorias nas oficinas reduz as hipóteses de progressão dos mais jovens às categorias seguintes, sobretudo quando os oficiais permanecem longos anos ao serviço de uma mesma empresa. Werter é muito claro:
«A gente para progredir num oficio adoptava um processo. Uma pessoa sentia-se mal paga, ou não gostava das condições de trabalho, começava a procurar por aí, através dos colegas. Um gajo ia lá falar com os patrões, estabelecia as condições, que geralmente eram para melhor, e depois vinha dizer ao patrão: “A vida é a vida. Tenho quem me dê melhor.” E tínhamos de dar aquele tempo... Mudava-se muito. Era a maneira de melhorar um pouco mais na vida. Não havia outra. Não havia greves. Nem pensar em tal! Houve algumas, mas aquilo não dava nada.» (Werter foi tipógrafo-compositor, monotipista, programador de produção e orçamentista, estando hoje reformado, 24/07/1998.)
53A mobilidade inter-oficinal é, assim, uma das formas que os operários conhecem para fugir a situações de conflito emergentes no local de trabalho. Numa sociedade repressiva como era a pré-democrática em Portugal, os operários, quando em conflito com os superiores, não tinham qualquer protecção legal. Não é de estranhar que a opção pela mudança de patrão surja nos momentos de maior tensão hierárquica. O mesmo tipógrafo continua:
«Era uma época [refere-se anos 1940 e 1960] em que o operário não tinha direito a refilar. O operário não se podia queixar, porque o patrão se fosse mauzinho (e muitos eram), era capaz de chamar a PIDE77: “Chefe, estão aqui revoltados...ʼʼ Também havia patrões bons (...) Havia coisas de ordem profissional: a um oficial o chefe tinha de dar trabalhos de oficial. Não era possível dizer-lhe para varrer a oficina. O oficial podia recusar. Tinha direito. Nisso não havia cá PIDES. Porque isso era diminuir a pessoa. Apareceram casos desses. Havia embirrações de ordem pessoal. Uma pessoa ia querer saber a razão: “Se acha que eu não sei fazer o meu trabalho devia era mandar-me embora.” Uma pessoa com dignidade era isso que fazia. Os chefes não diziam directamente o que os feria, mas arranjavam pretextos para amesquinhar a pessoa, para o chatear, para o provocar, para que ele se fosse embora. Até aconteceu comigo. Uma vez aconteceu-me isso e eu não fiquei muito tempo na casa. E eu sabia por que era. Esse chefe tinha ido substituir um outro de quem eu era muito amigo.» (Idem.)
54As presentes narrativas biográficas surgem a confirmar dados obtidos a partir da leitura sistemática dos registos de pessoal contratado da Tipografia Gloriosa (veja-se no final do capítulo 2). Mas é possível adiantar alguma informação adicional. Dos 145 registos, 45 fichas não contêm observações explicativas relativamente ao percurso dos profissionais em questão. Mas das 100 fichas que contêm observações, 52 indicam que o sujeito «saiu a seu pedido» da empresa, assim como 20 registam «demitiu-se». Só 8 se retiram por motivo de «reforma» e para os restantes 20 elementos são apontados outros motivos de rescisão, como sejam «agressões a colegas», «mudança de profissão», etc. Estes dados quantitativos parecem comprovar as afirmações adiantadas: nos percursos de admissão/demissão do pessoal, as saídas «voluntárias» e as auto-demissões são uma das práticas mais correntes nesta empresa e, presumivelmente, no meio oficinal gráfico em geral.
55A título de ilustração veja-se uma folha de pagamentos de um tipógrafo-impressor de 1961 na página seguinte.
56CARTEIRA PROFISSIONAL A Carteira Profissional (CP) foi criada em 1939 pelo Estado Novo. Desde 1942, o documento passa a ser obrigatório (em contrato colectivo) para que os tipógrafos possam exercer a sua profissão. São os sindicatos corporativos, nos quais os tipógrafos estão forçosamente inscritos, que prescrevem a CP (cf. durão 1997 b). A CP serve para identificar algumas profissões especializadas, embora aos organismos corporativos importasse sobretudo «a consolidação definitiva dos elementos que hão-de compor as futuras corporações», mantendo o controlo através da «obrigatoriedade de quotização». No artigo 9.° do regulamento está registado que a CP deve ser apreendida pelo sindicato se não forem pagos os encargos associativos, assim como quando abandonada a profissão, por motivos de expulsão e para averbamento de qualquer penalidade. Assim, o acrescento ao Decreto-Lei em 1942 (cf. Contrato Colectivo de Trabalho, Novembro de 1942) já não deixa margem para dúvidas, o Estado tem as suas prioridades: é preciso uniformizar o processo, vigiar para dominar78. A medida foi inserida no plano de organização corporativa da sociedade (quase exclusivamente económico-social) onde os sindicatos nacionais «eram verdadeiros coletes-de-forças da actividade sindical» (rosas 1992, 135) com vista ao restabelecimento dos equilíbrios sociais e castração dos movimentos operários (cf. rosas 1986).
57Nesse tempo o documento inscreve o portador de claras vantagens para progressão e mobilidade na carreira. Estão aptos a ser seus portadores os tipógrafos com mais de 12 anos de idade (mais tarde com 14), com o exame do 2.° grau concluído ou diplomados. Aqueles que se iniciavam nas oficinas com idades inferiores às legisladas, e que constituíam uma boa parcela da realidade, trabalhavam à margem da lei e praticamente sem salário. Grande parte da «miudagem» começava por trabalhar sem ligação ao sindicato, situação então considerada irregular e punida por lei. Devido a esta dinâmica, o mesmo profissional, já em adulto, podia chegar a assumir duas categorias diferentes: estar por exemplo na oficina a trabalhar como oficial, e no sindicato ter a categoria de meio-oficial, pelo atraso legal sofrido antes. Até chegar a oficial, o tipógrafo podia demorar assim mais anos de carreira do que os formalmente previstos pelo sindicato.
58O documento aparece como mecanismo regulador das negociações de carreiras operárias individuais. Deste modo, o tipógrafo adquire um garante do seu estatuto, o que o beneficia se quiser mudar de empresa. A partir de 1956 o controlo do sindicato passa a ser maior. Para ter averbada na CP a categoria de oficial, o profissional tem de fazer um exame de provas79 (no sindicato e com apoio do grémio). Os extractos dos relatos biográficos que se seguem apontam o peso da CP na progressão dos operários, pelo menos desde a sua criação até ao final do período do Estado Novo:
«O Cláudio C. [o gerente] chegou-se e disse-me assim: “Pronto, o senhor agora passa a ganhar 52$00.Vamos normalizar a situação, oficializar a sua situação. Portanto, vamos metê-lo no Sindicato, na Caixa de Previdência e tal e tal. Depois logo se vê.” Está bem. Que eu estava há praticamente 9 anos sem fazer descontos nenhuns, que até já estava casado e ia ser pai e o patrão continuava a dizer que não podia ser, até que me fui embora, como já te disse... Passado umas duas semanas, o Cláudio C. aumentou-me para 56$00, até depois chegar aos outros. Quer dizer, fiquei com uma carteira profissional onde tinha categoria de auxiliar. E estive assim uma data de anos. Chegou-se uma altura em que eu ganhava tanto como os oficiais. Estava lá no quadro como oficial, no quadro da casa! Estás a compreender? Mas perante o sindicato era meio-oficial. Então o Cláudio C. começou a andar atrás de mim: “Tens de ir fazer o exame.” Naquela altura não se podia dar as categorias. Tinha de se fazer exame. Até nisso tive azar, porque no ano antes, o patrão mandava uma carta para o sindicato, automaticamente o fulano de tal passa a “oficial de primeira”. E o sindicato lá registava, o patrão registava e estava tudo resolvido. Depois aquilo acabou. Um tipo quando queria passar de categoria tinha de ir fazer exame, pelo menos para oficial tinha de ir fazer exame. E ele andava atrás de mim a dizer-me: “Não é por nada, mas pode haver uma oportunidade para tu ires para outro lado...” E era. Houve lá muitos rapazes, pelo menos o último que de lá se foi embora que era o Cristóvão, foi de lá para outra casa, para chefe. Estás a perceber? E podia ser, um dia, que me tocasse a mim. Eu não ia para chefe para uma casa onde era auxiliar, mandar nos outros oficiais, não é? Era lógico, não é? Não tinha cabimento. E então, pronto, assim foi. Fui para oficial. Fui fazer o exame ao sindicato, fui-me inscrever.» (Álvaro, tipógrafo-compositor, 10/07/1995.)
«Quando veio o 25 de Abril, um dos tipógrafos mais competentes que eu conheci oficialmente era aprendiz. Apesar de ter um grande curriculum nunca tinha ido a exame. Os patrões davam o ordenado de acordo com a categoria de trabalho que ele desempenhava. A maior parte dos patrões que eu conheci não ligava muito a essas coisas do exame. O patrão dava a categoria, mas também só servia naquela oficina. Eu quando vim para tipógrafo [em 1958] já tínhamos exames profissionais. Fiz os exames para auxiliar, para oficial de composição e fiz ainda o de compositor mecânico. Já era chefe da secção de composição, por isso tinha de ter a categoria profissional tal como aqueles que chefiava. Era conveniente.» (Horácio, foi tipógrafo-compositor, chefe, gerente e hoje é pequeno proprietário de uma Gráfica, 25/07/1998.)
59Na CP registam-se os dados identitários do indivíduo, assim como a st biografia profissional: cargos exercidos no sindicato, todas as empresas que contrataram o seu labor, o resumo dos atestados de aptidão profissional e mudanças de situação dentro da profissão. Existe ainda uma particularidade que torna o documento um motivo de honra pessoal ou, pelo contrário, de vergonha. Trata-se do registo dos louvores ou das penalidades, pela mão dos superiores hierárquicos. Werter (tipógrafo-compositor que ascendeu a programador-orçamentista), por exemplo, recebeu louvores da maior parte d empresas onde permaneceu mais anos e não registou nenhuma penalidad Transcrevo aqui uma dessas observações:
«O titular esteve ao serviço da Imprimarte (ex-Bertrand e Irmãos Lda.) desde 1957, sempre demonstrando as melhores aptidões e brio profissional, além da facilidade de adaptação a outras tarefas, diferentes da sua especialidade, das quais sempre se incumbiu meritoriamente, conquistando o respeito e admiração dos seus chefes.» (29/10/1973, assinado pelo encarregado-geral da Tipografia Imprimarte.)
60«Considerando que se entendeu não justificar a manutenção do condicionamento da carteira profissional relativamente à profissão a que se refere», só em 1986 a portaria n.o 494/86 de 5 de Setembro revoga as carteiras profissionais herdadas do Estado Novo (1933-1974). O cartão de sócio passa a ser o único elemento vinculativo ao sindicato, sendo que é quase uma mera formalidade protocolar. Mesmo revogada, o sindicato continua a passar uma CP aos sócios mais insistentes, representando um documento e uma relação inexistentes nos moldes presentes. Embora todos sejam advertidos da sua não-legalidade, quem acreditará que a CP perde para o cartão de sócio?
61A relação dos tipógrafos com a CP não finda imediatamente no momento em que esta se extingue por via legal. Este aspecto é apenas mais um a demonstrar que os fenómenos sociais obedecem a dinâmicas que, além de não se esgotarem na lei, muitas vezes nem encontram nesse sistema o seu lugar. A repetição simbólica do gesto é compreensível quando se observa a dificuldade em apagar situações que ganharam o lugar de tradição (cf. hobsbawm & ranger 1984). Nesta investigação, a análise do documento vale também pelo que este nos fala da contemporaneidade. Ter a CP continuou a ser valorizado pelos profissionais que garantem possuir a prova de uma identidade profissional. Têm uma imagem a defender e o documento vem reforçá-la: apresentam-se como os operários com maior nível de habilitações literárias. Este indicador, mesmo quando perde em legitimidade legal, funciona como situação de representação de status, envolvendo os tipógrafos numa aura de «aristocracia operária» (hobsbawm 1976).
62Ao longo dos últimos anos, o documento acabou por ser apropriado pelos seus detentores em benefício da afirmação profissional (e já menos pelo seu aspecto negociai). Esta situação adquire um tom particularmente claro nas palavras de um dos gráficos mais novos que começou a trabalhar já no pós 25 de Abril de 1974.
«Eu não vivo com grande intensidade o sindicato. Inscrevi-me mais no sindicato para ter a carteira profissional, eram os sindicatos que na altura a davam. E uma pessoa quando começa a trabalhar molda a sua vida em função de uma coisa. Se é um oficio que está a aprender... eu vi que ali os meus colegas tinham todos carteira profissional [na impressão tipográfica], também quis ter uma. No caso de ser preciso ir trabalhar para outro lado qualquer, se fosse preciso apresentar a carteira profissional... no fundo é a segurança do posto de trabalho. Foi por isso que me inscrevi no sindicato, agora não vivo isso com muita intensidade, de ir aqui ou ali.» (Frederico, impressor offset, 12/05/1995.)
63Para outros a CP deixa de ter sentido, uma vez que eles próprios já estão inseridos em novos modelos de apreensão das carreiras. «Não, não tenho carteira profissional. Nunca pedi. Nunca tive interesse, nunca me fez falta.» (Paulo, auxiliar de impressão offset, 12/05/1995.)
64Passados quase vinte e cinco anos sobre o termo da ditadura, são os tipógrafos mais velhos que reiteram o significado simbólico da CP para sublinhar o estatuto de qualificação da tipografia tradicional.
«Os outros que nunca foram sindicalizados, que nunca tiveram uma carteira, quanto a mim são uns marginalizados, são uns párias. Se lhe perguntam: “O que é que tu és?”, ele diz: “Sou oficial de offset”, por exemplo. “Mostra lá [a CP], para se saber.” E ele diz: “Não tenho [CP].“Não tem [CP], nunca pode dar uma garantia daquilo que é. Eu posso dizer que sou, porque tenho um autenticado do sindicato a dizer em como sou. Não é como um tipo que não tem nada para apresentar.» (Idem, 22/08/1995.)
65No presente capítulo, menos no anterior, a análise dependeu em larga medida das narrativas e interpretações que os sujeitos enunciam relativamente ao seu passado. O tempo presente da observação é limitado quando se pretendem conhecer as dinâmicas inscritas no período longo das biografias particularmente implicadas nas aprendizagens e nas trajectórias, e quando estamos perante assuntos onde a subjectividade e as organizações da mesma pesam. Os conhecimentos e as relações intersubjectivas, a forma como se é recrutado para o trabalho e por via de quem, o peso da família na construção das carreiras pessoais são aspectos essenciais no desenrolar da vida profissional dos aprendizes. As dinâmicas de relação no trabalho (as diferenças entre os grupos sociais na empresa e em particular a manutenção, alcance e abrangência do poder das chefias directas nas organizações) que derivam da divisão do mesmo e que dependem das carreiras mas que também as afectam, serão analisadas no capítulo que se segue.
Notes de bas de page
71 Esta reflexão começou por ser feita noutro lugar (marques 2000, com durão e lúzia, 9-41).
72 Na pesquisa que efectuei detectei apenas um caso em que este recurso às agências de colocação sindical teve lugar, o de um encadernador, preferindo os restantes tipógrafos que entrevistei, para efeitos de recrutamento, recorrer a laços e redes de conhecimento informal.
73 O mesmo se parece passar noutros contextos operariais europeus onde a dimensão da qualificação sobressai nas representações profissionais. Paul Thompson remete-nos para o caso da indústria automóvel na Inglaterra (Coventry): «One man who started work there in the late 1930’s remembers the dramatic impact of finding imself, on his first day, entering a “big massive shop... terribly noisy... I'd never been inside (a factory) before, no. No. No, it was so unreal. When one went in there on a Monday morning to see this – just lights above the machines: all the rest of the roof and that in complete darkness... And the smell of the suds... That shop was a shock”.» (thompson 1989, 179.)
74 Trata-se de estratégias individuais de gestão das carreiras e que se enquadram no que Monder Ram e Ruth Holliday (1993), nos seus estudos de empresas em contextos europeus e asiáticos, definiram como «paternalismo negociado», sendo as empresas identificadas como famílias. Este aspecto da realidade será desenvolvido no capítulo final.
75 A minha intromissão na empresa teve um efeito semelhante. Sem nunca deixar de existir o constrangimento próprio por que passam os etnógrafos, foi percorrido um longo período até ao momento em que deixei de ser identificada como novo elemento. Quando publiquei um artigo (durão 1997b) em que apareciam citações dos tipógrafos da Tipografia Gloriosa, mesmo cumprindo o garante de anonimato, o revisor de provas ficou chocado por finalmente se aperceber da possível visibilidade pública das minhas investigações. Pelo contrário, os escriturários, aparentemente mais protegidos da exposição naquele artigo e na minha investigação, garantiram-me, após o sucedido, ainda um maior apoio à investigação e acesso à informação que tivessem ao seu alcance.
76 Nos registos de pessoal (de 1960 a 1996), detectei muitas lacunas relativamente aos dados pessoais dos trabalhadores que permaneceram menos de dois anos na empresa, ao contrário dos registos daqueles que ficaram, pelo menos, três anos. Os elementos com contratação efémera são tratados como se não tivessem existência para a empresa.
77 «A criação e organização da polícia política no regime salazarista implicou uma concentração gradual das funções de prevenção e repressão de crimes políticos numa única instituição, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que posteriormente será transformada em Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) e, por fim, em Direcção-Geral de Segurança (DGS).» (rosas & brito 1996, 747.) A PVDE foi a polícia do regime entre 1933 e 1945. A PIDE substitui a PVDE entre o pós-guerra, 1945 e 1969, até à criação da DGS num regime já no ocaso. Não é de estranhar que PIDE seja o nome que prevalece na memória em relação a essa presença policial que tanto intimidava os tipógrafos.
78 A medida insere-se no movimento de organização corporativa do Estado (iniciada nos anos 30). As leis sobre associações profissionais são substituídas, a 23 de Setembro de 1933, pelo Estatuto do Trabalho Nacional (1933). São assim criados os sindicatos nacionais. O Decreto-Lei 23 050 define orientações ideológicas precisas (enunciadas no ETN) e atribui ao Estado plenos poderes que irão ser alargados e consolidados com decretos que surgem entre 1933 e 1944. Neste período, e daí em diante, até finais dos anos 60, é proibida e censurada a publicação de temas de carácter social nos jornais sindicais – que antes de 1930 tinham servido de importante veículo da classe operária; é criado «um gabinete de heráldica corporativa», destinado a redefinir a simbologia estética dos sindicatos; é proibido o direito à greve e lock-out, assim como qualquer meio de pressão e protesto operários. Os sindicatos ficam despojados dos mecanismos legais automáticos que tornassem efectivas a negociação e a revisão de contratos e acordos colectivos, pois que essa negociação permanecerá até tarde «exclusivamente dependente da livre iniciativa e da boa vontade das partes», sendo que durante a maior parte do período que ocupa o Estado Novo, o Estado se substitui à iniciativa patronal. O poder central pretende-se assim como controlador de energias adversas ao poder único instituído. Nas bases ideológicas do Estado está o «repúdio pela luta de classes» e a pretensão de restabelecimento da «cooperação ordeira e amistosa do capital e do trabalho.» (cf. patriarca 1995, 227-236.)
79 Os exames constituíam verdadeiras provas de aptidão profissional. No caso dos compositores, o operário passava por: uma prova de composição a cheio (a corpo 10) em língua portuguesa e francesa; uma prova de composição de um original (tipo factura ou outro); e uma de composição de um anúncio comercial, a partir das normas de uma determinada publicação.
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