1. Introdução. Tipografias: continuidade e mudança
p. 23-53
Texte intégral
«What social science is properly about is the human variety, which consists of all the social worlds in which men have lived, are living and might live.»
Wright Mills, 1980b (1959).
«Vue de haut, de la grande Culture, les ouvriers toujours seront petits. S’ils doivent être grands, c’est vus d’en bas.»
Michel Verret, 1982.
1À entrada do século xxi, quando deambulamos pelas ruas da cidade de Lisboa ainda deparamos aqui e ali com o som das máquinas de impressão e o cheiro intenso das tintas que nos chegam através de portas abertas para o exterior. Despertados os sentidos, olhamos para os já raros espaços oficinais, pequenas ou médias unidades fabris de tipografia1, num estilo semi-artesanal, onde os computadores ainda não chegaram. Tal situação não se circunscreve apenas à zona do Bairro Alto e Chiado que, no século xix, constituiu um dos maiores núcleos de concentração de tipografias da cidade e de grandes oficinas gráficas ligadas à actividade escorreita dos jornais. Embora em progressiva desagregação, processo acentuado na década de 1980 em Portugal, o sistema técnico e de trabalho tipográfico ocupa ainda lugar na capital deste país.
2Somos tentados a entrar nessas casas2 e deparamos com homens, que ali se encontram a trabalhar com tipos móveis e todo o conjunto de material em chumbo, situados junto dos cavaletes de composição ou das impressoras Minerva3, com idades elevadas, facto que se torna visível pelos cabelos brancos e corpos envelhecidos. O trabalho em mangas de camisa branca substituiu o tom azul das batas. O volume da produção propriamente tipográfica abrandou consideravelmente. Mesmo quando sofrendo algumas transformações técnicas, estas pequenas oficinas parecem à primeira vista impermeáveis à mudança de fundo que ocorre na sociedade portuguesa. Mantém-se o ambiente escurecido, os mesmos gestos técnicos, o mesmo linguajar de há décadas. As sociabilidades alastram para as ruas, comunicadas aos vizinhos das tabernas e prédios circundantes, trazidas para o trabalho dos bairros e residências de operários, das suas famílias, das casas de fado e das relações de proximidade mantidas durante os períodos da juventude também com as prostitutas.
3Nos últimos séculos os tipógrafos foram os grandes responsáveis pela difusão da palavra impressa, uma vez que lhes incumbia a eles padronizar os documentos do quotidiano, documentos esses que continham palavra escrita e imagem. Nas sociedades letradas contemporâneas, quase tudo passa por esse trabalho de normalização de jornais, livros, revistas, mas também de toda a panóplia de documentos que se arreigam na vida urbana e comercial, cuja teimosa presença remete para uma dimensão de quase invisibilidade social: são eles chamados, na gíria profissional dos tipógrafos, os trabalhos comerciais (e incluem documentos variados como facturas, recibos, fichas, etc.).
4O que foram, durante anos, os tipógrafos? Será que os tipógrafos podem ser caraterizados como um grupo sócio-profissional4 particular no seio da classe operária e da sociedade portuguesa?
5O processo histórico de entrada dos tipógrafos em Portugal merece uma nota a partir da revisão histórica de Barreto (1980, 1981, 1982). A impressão com caracteres móveis demorou três ou quatro décadas até chegar a Portugal, já em finais do século xv. O seu desenvolvimento deveu-se à presença de estrangeiros no país a trabalhar para os reis, clero e alta nobreza. O tipo de produção manteve-se artesanal e em ateliers de reduzidas dimensões até, pelo menos, à época pombalina, aquando do surgimento da Impressão Régia (mais tarde Imprensa Nacional), o primeiro grande estabelecimento do género. No século xix esta instituição seria o principal núcleo de formação de operários tipógrafos. Entre 1768 (ano de criação da Impressão Régia) e 1821 o número de tipografias em Lisboa apenas aumentou de 11 para 12, criaram-se 3 estabelecimentos no Porto e um em Coimbra. Só em meados do século xix português arrancaria a mecanização do sector, embora sempre de modo penoso, lento e tardio, com especial ênfase nos períodos do pós-guerra e mais tarde com a proliferação da actividade dos jornais, entre 1865 e 1885 (tengarrinha 1989, 213). O processo foi iniciado pela impressão, fundição de tipo e outras operações acessórias, que só na década de 1930 seria timidamente acompanhado pela composição, ao contrário do que sucedia noutros países da Europa central. A estrutura da mão-de-obra, com grande peso de compositores manuais, viria a marcar a presença da tipografia em Portugal e a fazer com que a representação do grupo profissional se confundisse, até pelo menos finais da primeira década do século xx e em alguns contextos estendendo-se ao presente, com a especialidade de compositor.
6Herdado do século xix, os tipógrafos conservaram durante o século xx, ao seu nível, poder efectivo e simbólico que lhes advinha do domínio de saberes e fazeres e sua transmissão dentro do grupo. Tal competência investiu-os de um certo controlo do trabalho no seio das oficinas e mesmo das empresas. Embora não detivessem os meios de produção (nos séculos xix e xx passam a ser operários e deixam de ser artesãos) controlavam os meios de transmissão dos saberes5. Isto quer dizer que o grupo, ao manter esse domínio das técnicas, se reproduziu enquanto grupo profissional e atingiu certa autonomia na organização do trabalho, a qual se estendeu a fases da vida da organização tão importantes como o recrutamento de pessoal6. Essa autonomia relativa e poder, sempre pontuados pelo estatuto de assalariado dos tipógrafos, alargava-se nas formas de contratação colectiva. Desde a origem dos movimentos associativistas em Portugal, no final do século xix, os tipógrafos dos meios urbanos foram dos primeiros a associar-se no trabalho e a encontrar formas de negociação colectiva, num tempo em que todo o processo era ainda embrionário. Com o início do Liberalismo em 1834 (até à queda do regime republicano em 1926), são formadas pelos tipógrafos do país, sobretudo em Lisboa (onde está concentrada grande parte da actividade), e menos no Porto, diversas associações e desencadeados movimentos sociais que vão de um fundo mutualista e socorrista à negociação de verdadeiros contratos colectivos de trabalho. Segundo a longa investigação de Barreto (1980, 699-711), estes operários foram os responsáveis pelo despontar desse tipo de contratação. À imagem do que acontecia por toda a Europa, foram criando convenções colectivas de trabalho, inicialmente «espontâneas», resultantes da evolução das relações laborais do capitalismo7. Os tipógrafos de Lisboa sobressaem por terem conseguido «o primeiro contrato colectivo realmente merecedor dessa designação» (idem, 699) em 1904, até atingirem, após várias tentativas, resultados duradouros nos anos que se seguem à Primeira Guerra Mundial. Para Alexandre Vieira, um dos mais ilustres tipógrafos do movimento anarco-sindicalista dos anos 20, o Convénio de Trabalho – com salários mínimos para todas as tipografias de Lisboa e outras regulamentações importantes (redução do horário de trabalho, tarifas salariais de acordo com categorias e especialidades, regulamentação do número e promoção dos aprendizes, etc.) – assinado em 1919 pelos tipógrafos dos jornais diários, e no ano seguinte pelos tipógrafos das casas de obras de Lisboa, representou «uma das mais importantes conquistas operárias de todos os tempos» para Portugal (barreto, 1982, 204). A situação não se generaliza ao país, onde se verificam, na época, diversas condições de trabalho. À excepção da capital, o movimento associativista dos tipógrafos era pouco coeso e muito desorganizado. Mas o referido acordo irá resistir de tal maneira ao tempo que, nos anos 40, se verificam algumas tentativas patronais no sentido de anular as regalias que vinham sendo conquistadas pelos tipógrafos desde os finais do século xix e princípios do século xx. Mas é indesmentível que o Estado Novo (1933-1974)8 e o seu regime corporativo vieram prejudicar e travar a institucionalização do sindicalismo «numa linha de evolução idêntica à das relações conflituais e contratuais nos regimes liberais europeus» (idem, 710). Barreto (1980), ao lado de outros autores como Lucena (1976), admite que o corporativismo estado-novista, quando instituiu o seu regime conservador, não só alargou como fortaleceu a parcela de patronato renitente à contratação colectiva, sendo que a obrigação legal de negociar só surgiria em 1969. A «domesticação dos sindicatos» e a proibição da greve, principais medidas de controlo dos poderes «perigosos», desabituaram o patronato da obrigação de negociar, ficando os operários privados dos meios de os pressionarem.
7Ao lado das características sociais sobressaem outras mais propriamente técnicas, determinadas pelo tipo de trabalho que se efectua. O facto de no trabalho lidar com mensagem escrita obriga os tipógrafos a um mínimo de alfabetização. Os processos de aprendizagem e transmissão de saberes são geralmente complexos. Para a sua acção os tipógrafos são obrigados a adquirir, na prática laborai, todo um corpo de conhecimentos técnicos e artísticos. O contacto com gentes das letras, com a difusão de informação, cultura e ciência, sublinham hábitos de leitura e consumos culturais comuns entre tipógrafos. Por tudo isto estes detiveram durante muito tempo um certo reconhecimento social. Os chamados artistas da arte gráfica são dos operários mais qualificados9.
8Entre os tipógrafos, o subgrupo profissional que maior visibilidade conquistou foi o dos compositores. Durante o século xx, no decurso de processos de racionalização sobretudo em unidades de produção com razoável dimensão, a especialidade foi-se subdividindo noutras subespecialidades que ganharam alguma autonomia: a de distribuidor, paginador, revisor de provas, etc. É Freire quem afirma que durante a primeira metade do século, mas, acrescentaria ainda, com repercussão sócio-identitária nas décadas seguintes, «o grupo dos compositores é aquele que se situa numa posição de maior realce na organização da produção. Necessariamente possuidor de uma instrução e cultura superiores a qualquer outro grupo operário, o compositor exerce frequentemente funções de revisão de provas, procede à tiragem [de provas] em prelos, pagina e, de uma maneira geral, controla intelectualmente todo o processo de produção até ao produto final. Não é, pois, de estranhar que tenha sido o grupo-chave na acção e organização dos operários gráficos» (freire 1992, 106-107). Segundo alguns autores, a meio do século passado, quando a maioria dos operários do ramo eram os compositores manuais, a «classe dos tipógrafos»10 era «sem contestação, uma de entre as mais instruídas da sociedade» (barreto 1981, 263).
9PROBLEMÁTICA Desde um primeiro momento estabeleci para o estudo das tipografias tradicionais uma problemática de alcance geral: escrever uma espécie de etnografia de urgência. Tinha pressa em documentar, pelo seu interesse patrimonial, o registo dos mundos sociais, culturais e profissionais em desaparição e ampla transformação. O processo parecia marcado por um movimento mais geral de transferência das unidades industriais tipográficas e outras do tradicional meio comercial no coração das cidades para as periferias, assistindo-se à remodelação do sistema tecnológico e, pensava eu, a uma extinção apressada dos saberes e fazeres.
10No período em que decorreu o trabalho de campo (entre o início de 1995 e finais de 1996) o declínio das tipografias era já uma evidência para todos. Desenvolvi observações em cinco oficinas de Lisboa. Na tipografia maior e com mais pessoal, onde efectuei a estadia mais prolongada, à qual chamei Tipografia Gloriosa, desde o momento em que entrei, era do conhecimento geral a existência de uma directiva da União Europeia que proibia a exploração de ligas metálicas com chumbo (cf. Directiva do Conselho 1982, Rectificação de 82/605/CEE)11. Ou seja, a proibição «legal» vinda de cima (imperativos globais, pressão social) apontava claramente o fim da também chamada por eruditos «arte negra» (pacheco 1988; santos 1941). E os tipógrafos falavam sem rodeios na morte da tipografia, diziam «isto está tudo a morrer». Várias questões apontavam o declínio. Por todo o país, as técnicas começavam a ficar obsoletas e a ser substituídas. A desmaterialização da produção era um processo em curso desde há mais de uma década. Do uso dos tipos móveis, a produção passou a centrar-se em processos de composição informática12; da impressão directa (por uma espécie de carimbagem) caminhou-se para um tipo de impressão indirecta (à base de chapas previamente fotografadas), o chamado sistema offset13. Desde 1980, com a informática a dar entrada no país, os meios de produção do sector foram sendo progressivamente reconvertidos, embora em muitos casos, e em particular em várias das empresas estudadas nesta pesquisa, se conservassem esquemas mistos ou paralelos de produção que intercalavam recursos técnicos tradicionais e outros mais modernos.
11Os processos propriamente tipográficos, que anteriormente constituíam a base do trabalho, foram perdendo a complexidade de antigas aplicações. A antiga oficina tipográfica, de produção unitária ou dividida por especialidades14 mas a trabalhar dentro de um mesmo ramo produtivo, e em geral com tais especialidades (a composição, a impressão e até os acabamentos) integradas num mesmo espaço produtivo, disseminou-se em múltiplos ateliers e núcleos gráficos, começando estes a aparecer como espaços autonomizados (coincidindo frequentemente com empresas diferenciadas), como enuncia o estudo de reto et al. (1996, 65), por fases: concepção, pré-impressão, impressão e pós-impressão. Devido aos movimentos de renovação técnica do sector, por um lado, e por outro devido à profusão mais geral da publicidade, marketing e produção de imagem, ganharam expressão social no Portugal moderno novas profissões gráficas. Enquanto que anteriormente era frequente ser o tipógrafo a concentrar em si todas as fases da produção, incluindo a mais nobre e emblemática, a concepção das obras, na década de 1990 é já uma realidade a figura do designer gráfico que se dedica ao trabalho mais livre e imaginativo15.
12As organizações oficinais deixaram portanto de ser modernas16. Mais uma vez, recorrendo ao exemplo da empresa onde incidi o olhar antropológico, constatei que de um total de 30 pessoas empregadas, a maioria eram ainda tipógrafos; a produção por trabalhador era escassa; o trabalho estava desigualmente distribuído (80% da produção estava nas mãos dos 3 impressores offset); os salários eram também desnivelados e baseavam-se mais em preferências afectivas e lealdades antigas do que em competências ou distribuição de responsabilidades. Não admirava, até certo ponto, que as pequenas oficinas (as chamadas catrais e casas de obras) resistissem, sustentadas por um comércio local e apoiadas na fidelidade de antigos clientes. Na maior parte delas trabalhavam os patrões, às vezes os filhos e, aqui e ali, em oficinas quase seculares, mantinham-se contratados alguns operários que ou não tinham passado por uma fase de «reciclagem» dos saberes ou já estavam formalmente reformados do ofício e insistiam em manter-se ocupados. Todavia, a sobrevivência de uma empresa como a Tipografia Gloriosa, já de maior dimensão que as restantes quatro oficinas da investigação (todas com menos de 4 pessoas ao serviço), e com tanto pessoal na área de tipografia, pareceu-me ser algo de uma outra dimensão e que era necessário perscrutar.
13No decurso da pesquisa, com algum conhecimento acumulado sobre a realidade social, ao primeiro veio juntar-se um segundo problema mais teorizante que foi ganhando de dia para dia novos contornos. A actividade oficinal, ao invés de cessar, continuava. Pôs-se a questão de saber que «poder» é esse, aqui claramente identificado como estando do lado dos operários e dos assalariados da empresa em geral – assente num «conflito estrutural» (goldthorpe 1961, 17) que, latente ou manifesto, atravessa as situações de trabalho – que serve para afrontar o curso da história e se torna motor para dificultar o sentido da mudança organizacional e técnica local e o adiar do encerramento de empresas. Sem estratégias de mudança, apercebi-me de que as próprias organizações seguem o rumo impresso pelos operários com muitos anos de casa, cujo interesse se centra na manutenção dos seus postos de trabalho17. A diferença fundamental é que o problema, ao ser colocado desta forma, em vez de contornar a mudança social e profissional (global e local) a ocorrer no meio ou integrá-la como uma espécie de fatalidade, incluiu-a na reflexão teórica. Deste modo, assumi o interesse em fazer uma antropologia do presente, tentando escapar a ideias de homogeneização e ideologias predeterministas, mas sem esquecer o processo histórico que, pelo menos durante o período biográfico dos meus interlocutores, afectou as ocupações e as organizações de trabalho tipográfico.
14A fundamentação empírica para tal problema avivou a pesquisa. A recolha etnográfica foi efectuada ao nível dos dados sociais, uma vez que às contas das empresas eu não tive acesso directo, o que também não afectaria o âmago da investigação. Mas é necessário recordar que a investigação social e cultural centrada nos tipógrafos não menosprezou as oficinas, empresas elas mesmas em crise. Era do conhecimento comum e muito falado que as empresas tinham escassos lucros que, se chegavam para cobrir os salários dos efectivos, dificilmente abrangiam os subsídios de férias e o 13.° mês dos trabalhadores. Os custos eram acrescidos devido à necessidade frequente de recorrer a serviços externos para colmatar as falhas técnicas dos processos gráficos mais modernos que algumas das oficinas iam integrando. Assim, o panorama financeiro facilmente se adivinhava difícil. O panorama social, durante os dois anos que estive em trabalho de campo era, por oposição, relativamente estável (se pouca gente era contratada também pouca saía)18. Verifiquei que no geral existia pouca mobilidade de pessoal para outras empresas (gráficas ou de outros ramos). O presente contradizia aquilo que tinha sido a dinâmica do passado recente: a grande mobilidade dentro do ofício (de empresa para empresa), uma das formas mais utilizadas para negociar individualmente situações de trabalho, limitado que esteve durante os anos do Estado Novo (1933-1974) o êxito das negociações colectivas19. No final do século, as pessoas tentavam tudo por tudo para permanecer na empresa.
15Também, ao contrário do passado em que a maioria dos assalariados eram jovens aprendizes e auxiliares, o grupo social das empresas estava envelhecido20. Todos sabiam poder enveredar pela reforma antecipada, mas ninguém queria ouvir falar em tal coisa e só o fariam se obrigados. Durante o período da pesquisa assisti ainda a situações em que mesmo quando atingida a idade da reforma os empregados continuavam ao serviço das empresas, num período em que as dificuldades de gestão e manutenção desta eram evidentes. Nem os patrões nem o gerente conseguiam facilmente convencer as pessoas a deixar de trabalhar.
16Os exemplos surgem a ilustrar. Dois anos antes de ter iniciado a investigação, o chefe da composição, já após vários anos de reforma, e quem mais tarde vim a conhecer, tinha sido pressionado para se retirar, pelo gerente e também por colegas que ansiavam por uma redistribuição de poderes e mudança no ambiente de trabalho. Muito contrariado, o operário-chefe seria obrigado a aceitar a situação de indesejado. Mas não era alheio um certo mal-estar geral em relação a este assunto, em obrigar sujeitos que desde pequenos viviam do oficio a deixar de trabalhar. NaTipografia Gloriosa contava-se, de um passado bem próximo, um outro caso de um tipógrafo-compositor que com mais de 90 anos continuava a apresentar-se ao trabalho todos os dias e que só quando ficou fisicamente paralisado deixou de o fazer. Estava tão debilitado que embora morasse na mesma rua despendia uma hora no trajecto pedestre até à oficina; e nem mesmo as necessidades fisiológicas o faziam sair do posto de trabalho assim que diariamente aí se fixava (urinando para uma velha latrina, lembrando os anos idos, até cerca de 1950, em que muitas oficinas se mantinham sem casas de banho).
17Portanto, olhando para a configuração social dos operários, tudo continuava a processar-se como que numa resistência à ideia de uma organização e profissão elas mesmas em crise. Todos sabiam estar a avistar o fim, mas este tardava em chegar, até porque os próprios se implicavam nesse processo. Os superiores alimentavam dependências21. No jogo de forças entre o social (particularmente percepcionada do lado dos operários) e a (in) eficácia financeira e administrativa, as forças sociais pesavam claramente. O movimento aqui era, neste sentido, oposto à dinâmica mais actual e global de gestão de empresas22.
18O segundo problema, com focagem nas formas como o grupo de trabalho e a organização se apropriam e simultaneamente rejeitam a mudança, obriga também a situar a investigação no contexto teórico legado pela antropologia. Levantaram-se questões em três planos: definição e peso de culturas de trabalho e de profissão; construção, fixação e afirmação de identidades e memórias (sociais, profissionais, individuais); negociação dos poderes (atribuídos, conquistados e contestados) e da hierarquia neste tipo de organizações23.
19A antropologia tem sido a disciplina que mais problematizou o conceito «cultura», embora para o estudo dos contextos de trabalho este fosse mais detalhado por sociólogos. Sainsaulieu (1977, 478) referiu-se à cultura como «um conjunto de representações mentais às quais se referem os indivíduos para agir e reagir às acções dos outros» onde «uma conduta não tem finalmente sentido social senão em relação a um certo código de explicação do mundo». O autor introduz várias categorias no interior desses elementos de representação: todo o domínio dos valores (cujas raízes tocam no sagrado e no estético), mas também do político, do jurídico e do filosófico. Mas na cultura expressam-se as maneiras de executar, as soluções. Por isso Sainsaulieu analisa não só as normas que orientam as decisões e as escolhas mas também os «modelos do quotidiano» que Costa e Guerreiro (1984, 14) retratam como autêntica «gramática do quotidiano» que os indivíduos comunicam interagindo. A contemporaneidade, não alheia à movimentação histórica, tem obrigado a antropologia a uma ampla redefinição do conceito, sublinhando outros aspectos que igualmente a delimitam. Cada vez menos se contesta que os grupos criam as suas políticas em mudança, em construção, revisão e apropriação permanentes de sentidos para as práticas.
20Nem sempre a definição de cultura foi pensada nas suas multiformas, considerando as diferenças e as alteridades. Sem querer enveredar pela história do conceito, grosso modo, até à primeira metade do século imagina-se a cultura como sendo algo homogéneo, por vezes herdado e incondicionalmente partilhado. Dicionários técnicos (boudon et al. 1989; panoff & perrin, 1973) continuam a deixar de lado as polémicas que nas últimas décadas ocuparam a disciplina e a preferir a «cultura» de Tylor (1924 [1871]), que no século xx orientou os autores responsáveis pelo paradigma funcionalista britânico na busca de descrições de uma totalidade inter-relacionada complexa (cf. hamada 1994, 10). A cultura era vista como o conjunto complexo de elementos estáveis, com fraca variabilidade e mudança, sendo que a existir mudança esta se produzia essencialmente no domínio de um colectivo cuja pertinência ficava frequentemente por delimitar. Usado como sinónimo de etnia, a cultura teve o mérito de destronar esse outro conceito de classificação duvidosa, a «raça», que abarcava grupos humanos pelo tipo físico.
21É de sublinhar que a visão da etnografia como algo problemático e parcial não conduz ao abandono do conceito cultura, mas antes à descoberta de formas mais subtis e concretas de escrita e leitura, a novas concepções da mesma como processo político, interactivo e histórico (clifford 1986, 25). Os primeiros textos pós-modernos valem por aquilo que dizem acerca do que a cultura não é: uma «coisa» para ser descrita (concepção do objecto que até as ciências naturais têm problematizado); um corpo unificado de símbolos e significados que podem ser definitivamente interpretados; uma visão totalizante e acabada onde todos os pensamentos, acções e produções humanas cabem (cf. clifford 1986, 18-19). Embora correndo o risco de encontrar em tudo efemeridade e hibridismo, por contraste com o que antes era estabilidade e lei, os autores de Writing Cultures servem-se da revisão da escrita etnográfica e do papel do observador para conceber uma cultura inscrita em processos de comunicação, entre sujeitos e relações de poder, historicamente assinaláveis. Se a cultura é contestada, temporal e emergente, as diversas representações e explicações (de insiders e de outsiders) estão implicadas nessa emergência (clifford 1986, 15, 19).
22Existirão especificidades culturais no trabalho? Todas as temáticas tratadas ao longo do livro traçam a convergência de factores, expressos e discursados por tipógrafos, que indicam a centralidade da identidade profissional na vida social dos sujeitos. O grupo sócio-profissional surge como núcleo produtivo mas também simbólico da actividade empresarial das tipografias e é ele que orienta valores e práticas, muitas vezes tomadas também pelo conjunto dos assalariados e até por superiores. As oficinas, os espaços de trabalho, são os locais onde se transmitem e reproduzem tais valores e práticas.
23A reflexão proposta conduz necessariamente à crítica do conceito «cultura de empresa»24 recentemente criado que veio invadir o universo do estudo das instituições de trabalho e que resulta de uma ressuscitação grosseira de um conceito passadista de cultura (que valorizava a imutalidade, o estático, o permanente, por vezes o original) que por si só deixou de servir a antropologia. O problema fundamental está na afirmação simplista de uma certa coesão e homogeneidade, que não só passa por cima das conceptualizações dos sujeitos envolvidos no processo, como tende a obliterar as complexidades do conflito, das mobilidades ascendentes e descendentes, das variações estratégicas presentes nos mundos sociais que povoam as empresas e que análises sérias podem revelar. Os estudos da gestão empresarial que adoptaram e divulgaram a expressão «cultura de empresa» não fizeram mais do que retirar à cultura a complexidade que entretanto a antropologia lhe restituía. Desde as décadas 1970 e 80, visando impor um sistema de representações e valores positivos de cima para baixo, o uso da ideia das empresas como culturas não chegou para as «humanizar» nesses tempos de crise económica, mas revelou-se como manipulação ideológica de um conceito antropológico, destinada a legitimar a organização do trabalho no interior das organizações (cf. cuche 1999, 146). A noção destinava-se ainda a legitimar uma ideologia social mais global, fazendo pesar a economia sobre a sociedade. Hoje sabe-se que a cultura da harmonia e do convívio pacífico das contradições é uma invenção, mas é uma invenção que ameaça a imagem pública de uma disciplina se o que dela publicamente sobrevive e é reutilizado são as dimensões empobrecidas dos conceitos. Quando se identificam as empresas com «tribos» ou «famílias» salta ainda mais à vista a desadequação do tipo de terminologia e conteúdos que os estudos de gestão apropriam. Ora, se em alguma coisa a antropologia inova é precisamente na identificação das diferenças e multidimensionalidades dos factos sociais, como tal, a resposta desta não se fez esperar (wright 1994). Afirma Wright, numa antologia dedicada ao estudo de diversos contextos organizacionais, que na maior parte da literatura organizacional a cultura deixou de ser algo que a organização é para passar a ser algo que uma organização tem, deixando por isso de ser um processo incrustado no seu contexto para passar a actuar como mera ferramenta de controlo de gestão. Assim, os estudos antropológicos de culturas organizacionais têm oferecido modelos de interpretação, através dos quais se devem compreender as organizações como lugares de construção de significados (wright 1994, 3) – investigando não tanto a «cultura das organizações» mas sobretudo «a organização como cultura» (wright, 1994, 19). Em anos recentes, a cultura nas organizações tem vindo a ser estudada fundamentalmente enquanto processo político e ideológico situado (wright, 1994, 27), conferindo grande importância ao desvendar das relações de dominação no trabalho. A esse projecto convém aliar o estudo das trajectórias técnicas e profissionais25.
24O objectivo deste livro não é anular as continuidades das expressões culturais presentes nas tipografias, nos grupos sociais, continuidades que por si só conferem ao objecto uma expressão de singularidade, mas antes fazer notar, através de documentação etnográfica, que não é necessário existir homogeneidade e anulação de diferenciações entre pessoas e grupos para se verificar manifestação e construção cultural.
25Concretamente para os domínios do trabalho e das profissões a antropologia tem construído linhas teóricas que permitem avançar para monografias etnográficas26, ainda que intimidada por campos que se firmaram para as sociedades letradas na sociologia27. Estando a antropologia sensível às questões da humanização dos patrimónios culturais do trabalho, têm surgido em língua francesa resultados de estudos sobre profissões oficinais e industriais, investigações resultantes de equipas organizadas em missões de pesquisa. Desde 1980/81, a Mission du Patrimoine Ethnologique promove programas de investigação nos domínios dos ofícios em desagregação. Destacam-se dois volumes: Cultures du Travail (morel 1989) e Savoir Faire et Pouvoir Transmettre (chevallier & chiva, 1991)28. Os estudos recuperam a componente material da cultura (remetida para segundo plano pelos autores anglo-saxónicos que se demoram menos na análise das técnicas29 e mais na organização social do trabalho), partindo frequentemente do seu estudo, embora não se fixem apenas na descrição e apreciação dos sistemas técnicos. A preocupação de reconstituição de alguns patrimónios de trabalho é particularmente explicitada na segunda obra, que investiga ofícios cujo saber fazer se vê ameaçado. O primeiro volume dedica-se às problemáticas dos «mundos do trabalho» e todos os investigadores se interessam invariavelmente pelas técnicas de produção, considerando que essas são elementos incontornáveis dos seus sistemas de interpretação. Casos existem em que as técnicas são o objecto central das pesquisas (morel 1989, 3). Desta forma, a cultura do trabalho é considerada sobretudo do ponto de vista dos saberes próprios da fabricação (idem, 2). No segundo volume, é de assinalar a preocupação em cobrir as mais variadas dimensões culturais da vida social no trabalho. Todavia, as «aprendizagens» e as «técnicas» continuam a ser temáticas privilegiadas, avançando-se o desejo de construção de novos complexos conceptuais que dêem conta das análises etnológicas da tecnologia (chevallier & chiva 1991, 1). É na afirmação da relação íntima entre os processos de reprodução técnica, social e cultural que os autores da segunda obra inovam relativamente à primeira. Se é verdade que o inventário das instalações, dos locais do trabalho e das técnicas, a fina descrição das cadeias operatórias e a identificação dos detentores do saber-fazer são aproximações indispensáveis a qualquer análise que incorpore os factos técnicos, estes indicadores não são suficientes para proteger o potencial adaptativo e criativo dos saberes e das técnicas de produção, nem suficientes para assegurar a sua manutenção. Neste sentido, proteger significa transmitir e, como tal, devem ter-se em conta todas as modalidades psicológicas, sociais e culturais do acto e processo de transmissão (cf. chevallier & chiva 1991, 2).
26Nesta investigação acompanho os autores citados na busca dessa teimosia das continuidades culturais presentes no trabalho, mas pretendo colocá-las face às dinâmicas de mudança e modernização social que as cruzam e, a mais das vezes, as desafiam no presente. Até porque o interesse teórico numa abordagem deste tipo está, como diriam Werne & Schoefple (1987, 152) em tentar não perder a integração dos pequenos grupos em etnografias de sistemas sociais mais alargados.
27Recentemente os estudos das organizações não esquecem as duas faces da cultura. Estes reclamam-na como conceito analítico para a problematização do campo das organizações e do trabalho; nesse campo a cultura é uma demanda ideológica, enraizada nas condições históricas, sujeita a mudança (cf. wright 1994, 27). Sejam os processos cognitivos individuais enformados pelas instituições sociais e pela sua cultura (douglas 1987) ou as culturas semióticas, vistas como «teias de significado» que apontam a imensa variação no plano mais intersubjectivo (geertz 1989 [1973]), a cultura no trabalho é construída, negociada, contestada, pensada no quotidiano. Wright (cf. 1994, 27) sublinha que cultura é processo e ideologia: a questão é demonstrar como o discurso que define palavras, ideias, coisas ou grupos ganha autoridade. Quando se pretende estudar a cultura como processo e ideologia, como a referida autora esclarece (1994, 20), o trabalho efectivamente sobressai. O meio laborai apresenta-se então como lugar «concentrado» onde se detectam a alteridade e as ambivalências que desta derivam. Foi preciso efectuar-se essa revisão séria dos conceitos usados em antropologia, entre os quais sobressai a «cultura», para que tanto em termos de método como em teoria pudessem ser abarcadas as complexidades presentes nos mundos do trabalho das sociedades contemporâneas ocidentais e não-ocidentais (selim 1998; bazin 1998).
28Antes de avançar para o problema dos poderes, torna-se necessário explicitar outros dois termos que surgem ao longo do livro: identidade e memória. Cabe aqui a ideia de identidade tal como foi reflectida por Madureira Pinto (1991). Se as identidades se expressam ao nível individual, a análise sociológica deve todavia insistir na dimensão relacional: no eixo das sincronias sociais as identidades constituem-se enquanto processos de identificação (aproximação, inclusão entre as pessoas e grupos) versus identização (distanciamento, exclusão de pessoas e grupos). Nesta dinâmica, nenhum processo de identidade exclui a alteridade (conivências e infidelidades). No eixo das diacronias aquelas formam-se a partir dos trajectos sociais dos seus agentes, da posição que ocupam na estrutura social e dos projectos sociais em que se enquadram. Quando se pensa nas identidades do trabalho têm necessariamente de ser integradas as características técnico-materiais da produção, hierarquias de saberes e esquemas prático-simbólicos, assim como o efeito das estruturas na sua construção, os sistemas de legitimação e práticas de poder (as ideologias profissionais e laborais reflectidas nas formas de apropriação simbólica que os agentes produzem, reproduzem).
29Quando se fala da construção de identidades dos grupos não se pode ficar alheio ao processo que nelas ocupa a memória social. Leroi-Gourhan afirma que se na ordem global da evolução do homem, na sua relação com a sociedade, «o progresso está submetido à acumulação das inovações. (...) A sobrevivência do grupo é condicionada pela inscrição do capital colectivo, apresentado aos indivíduos no âmbito de programas vitais de carácter tradicional» (1987,25.) Esta afirmação também encontra validade em dimensões mais restritas da realidade social, no trabalho e nas suas aprendizagens, nos gestos e representações das profissões. Por seu lado, José Manuel Sobral insiste na indissociabilidade entre memória e identidade30: «a primeira [a memória] assenta num certo sentido de permanência do “semelhante” no tempo e no espaço, sustentado pela rememoração, enquanto, por sua vez, aquilo que se recorda depende da identidade que se assume.» (1995, 294.) O autor procura esclarecer os mecansimos sociais da «memória operatória» (leroi-gourhan 1987, 25) correspondentes à «socialização primária» (berger & luckmann 1973, 173-184), na reconstituição sociológica de memórias locais e familiares. Através do estudo dos grupos profissionais e das memórias operatórias adquiridas no meio laborai, pretendo centrar-me nas «socializações secundárias» (berger & luckmann 1973, 184-195), certamente complementares das «socializações primárias». Os autores definem: «A socialização secundária é a interiorização de “submundos” institucionais ou baseados em instituições. A extensão e carácter destes são portanto determinados pela complexidade da divisão do trabalho e a concomitante distribuição social do conhecimento.» (berger & luckmann 1973, 184-185.)
30Tendo em conta que a memória é socialmente construída, e tal como já demontrara Halbwachs (1968 [1950], 1994 [1925]), é a pertença aos grupos sociais «satélites» que demarca o tipo particular das memórias pessoais e colectivas, memórias que se localizam nos espaços materiais e mentais do grupo, Namer (1987) introduz a dimensão retórica da memória na discussão. Contesta a dimensão normativa que Halbwachs imprime à memória (a qual se definia num colectivo) e faz realçar os contextos, os interesses e constrangimentos da produção em que esta, a memória social, se produz. Através da noção de «memória-mensagem» (idem, 1987, 236), Namer conceptualiza a ideia de que existem correntes de memória social cujo itinerário é possível definir. O autor demonstra como certas mensagens podem ser recebidas mas não repetidas, como outras continuam a existir sem ser recebidas e como existem grupos de pessoas que, durante a vida, se ocupam em lançar memórias-mensagem, e como estes processos estão directamente vinculados à construção das memórias dos grupos sociais. Nesta perspectiva, o autor aproxima-se, como se verá na discussão da metodologia, das abordagens levadas a cabo pelos investigadores que utilizam as narrativas de vida como instrumento privilegiado na análise da memória social.
31Já terá ficado patente, mas volto a enunciar que a acção e construção simbólica de culturas, identidades e memórias não obrigam à anulação de alteridades, tensões e conflitos entre pessoas e grupos. Em boa parte tal fica a dever-se à divisão social do trabalho mas também à distribuição desigual dos poderes no seio das organizações. A hierarquia é um elemento incontornável em qualquer análise antropológica que pretenda compreender as complexidades da divisão social do trabalho, mesmo em domínios micro-situados. Numa obra cuja contribuição fundamental assenta no conjunto diversificado de análises etnográficas, Hamada define a perspectiva cultural dos antropólogos por oposição aos estudos organizacionais que se centram na racionalidade e linearidade: «Acredito que o poder da metáfora cultura está na sua orientação holística: unifica vários aspectos do fenómeno organizacional como os processos cognitivos individuais, os aspectos simbólicos e da linguagem, manifestações comportamentais, os produtos materiais, as estruturas sócio-políticas do poder e hegemonia, e os ambientes mais latos e alargados da organização, contribuindo todos para partilhar, criar, contestar, negar, interpretar e mudar as actividades humanas. Ainda que os antropólogos contemporâneos não sigam necessariamente o funcionalismo ou o configuracionismo, é seguro afirmar que os antropólogos estão e estarão sempre interessados em revelar as dinâmicas e por vezes as contradições, as relações entre diferentes aspectos da cultura, tais como as experiências inter-subjectivas, as interpretações simbólicas, as reflexões e representações de tais experiências, e situar especificamente o desenvolvimento político, económico, as estruturas sociais e as alianças de poder entre as pessoas.» (1994, 26.) Reportando-me apenas ao meio tipográfico, as carreiras, as aprendizagens, os estatutos ocupacionais e remuneratórios evidenciam nas trajectórias dos sujeitos sobretudo a diferenciação, e por isso mesmo este livro demora-se sobre os aspectos hierárquicos. A contrastar com os quotidianos laborais repletos de desigualdade, os ideais de comunhão e igualdade31 estão mais reservados para os momentos festivos, na vivência colectiva dos lazeres, e surgem com assumida intensionalidade: o reforço do estatuto de assalariado, como algo que é comum a todos, com o intuito directo de conservar postos de trabalho em progressiva precarização para uma maioria de sujeitos sem futuro profissional à vista. A imagem repetida nesses momentos de que «somos todos uma família», fazendo momentaneamente tabua rasa das diferenciações de base que separam patrões e operários mas também operários mais qualificados de outros menos, pretende sobretudo revigorar e, se possível, restaurar uma empresa em declínio e não tanto anular a heterogeneidade no seu interior que se conhece tão bem.
32No caso de tipografias onde a maioria dos assalariados tem uma média de idades elevadas, muitas décadas de fidelidade a uma empresa, as tensões e conflitos, marcados pelos lugares que se ocupam no trabalho e as mobilidades de carreira, foram sendo construídos e por vezes fixados no tempo. Não é desmentível que as empresas são espaços de tensão, conflituosidade e hierarquia. Mas será que temos essa mesma percepção de heterogeneidade quando pensamos exclusivamente no grupo dos operários?
33Como adiantaram Costa e Guerreiro (1984), os trabalhos dos sociólogos que mais longamente se debruçaram sobre o assunto «classe operária», Touraine, Naville e outros, está no facto de demonstrarem a sua não homogeneidade sociológica, sobretudo ao nível dos sistemas de trabalho. Ao nível das vivências quotidianas e culturas profissionais, Renaud Sainsaulieu (1988 [1977]) caminhou no mesmo sentido: as identidades sociais, profissionais e individuais cruzam-se nas empresas. Os mesmos foram sensíveis à hipótese de que «existem continuamente processos complexos de diferenciação no interior do operariado (e na reformulação das fronteiras com outras classes), conduzindo a novas qualificações e desqualificações de conteúdo renovado, ou seja, um permanente processo de recomposição da heterogeneidade interna do proletariado» (costa & guerreiro 1984, 12).
34À antropologia não escapou a problematização da ideia de classe operária, sobretudo aliando-a à dimensão de procura das constantes de uma cultura de classe. Mas não são alheios, como referiu Schwartz (1998, 151-155), os perigos inerentes à utilização do conceito de cultura operária, podendo fazer crer que existem universos «puramente» operários e por, ainda que inadvertidamente, atribuir ao termo conteúdos que apresentem a cultura como algo imutável e homogeneizante. Outros antropólogos, em diálogo com sociólogos e historiadores, não negam a operacionalidade dos conceitos. Andersen (1989, 23) argumenta que «classe operária» é uma fórmula reduzida para uma série de objectos e fenómenos diferentes, sublinhando que a cultura da classe operária é heterogénea e complexa (idem, 39), mas, entretanto, também defende a ideia de que apesar da heterogeneidade interna se pode muito bem falar de uma cultura da classe operária, tornando a visão unificadora possível (idem, 35).
35Diferenciação e unidade parecem ser os eixos inevitáveis que perseguem as análises sobre o operariado. Embora tivesse a preocupação de situar os tipógrafos no processo histórico que os investiu de uma autonomia e singularidade enquanto grupo sócio-profissional no mundo social mais amplo da chamada classe operária, não me vou fixar neste conceito. Uma vez que me restringi ao estudo das relações sociais mantidas nas organizações e não tanto a outras externas ou alargadas na sociedade, prefiro usar a noção de grupo32 (ora demarcado por características técnicas e profissionais ora pelo estatuto de assalariado; ora em confronto face a outros grupos ora em diálogo e cooperação com eles). Desse modo, mantive-me afastada dessa confusão entre os diversos grupos de operários e do diálogo e comunhão de interesses que permite percepcioná-los como classe social. Só a julgar pela realidade restrita à observação das empresas de tipografia e das mudanças que necessariamente afectam os seus operários, toda a diferenciação bastou para evidenciar os cuidados a ter com tal expressão. Além disso, embora se autoclassifiquem como operários (mais os tipógrafos, menos os novos gráficos) que garantias existem de uma identidade de classe se os seus discursos não acusam de dentro uma conceptualização do termo, antes se demoram em diferenças (de qualificação, de género, de idade, de situação na repartição dos poderes)? A própria dinâmica de mudança global a ocorrer na sociedade que afecta os modos de organização empresarial do trabalho, a resposta e manifestação diferencial de grupos sociais que à partida pareciam ser homogéneos, são alguns dos aspectos que têm obrigado a reequacionar um tal conceito cuja complexidade não desejo afrontar33. O objectivo deste livro não reside no estudo sobre a classe ou sequer as classes operárias, mas sim, a partir da etnografia de contextos empresariais e oficinais, onde os tipógrafos aparecem como grupo central da produção e da organização simbólica, compreender como se fixam e transformam culturas de trabalho.
36Quando se pensa sobre os domínios do trabalho, só em língua francesa sobressaem vários eixos de análise, os quais no final não considero incompatíveis: uma antropologia mais ao estilo de estudo de culturas (técnicas e aprendidas) da qual já falei, e uma outra, emergente, que começa a preocupar-se com as políticas de empresa, com a discussão das questões hierárquicas e as diferentes formas que definem as organizações (selim & sugita 1991; althabe, ent. por Selim, 1991). Nesta última vertente, os fenómenos de poder e as políticas das instituições e dos grupos passam para o centro das investigações, recuperando a tradição dos programas de antropólogos anglo-saxões continuados por Wallman (1979) eWright (1994).
37Sobre a perspectiva mais concreta das políticas de investigação antropológica detecta-se que para o campo do trabalho as dificuldades são suplementares. Por se tratar de um objecto novo no quadro disciplinar (praticamente inexistente em Portugal34) tem suscitado aos investigadores questões metodológicas como: o lugar de incerteza do antropólogo nas empresas e nas suas configurações hierárquicas; o problema da proximidade cultural dos que investiga ou, como diria, Oliveira (1998, 23), da partilha de «idiomas culturais», ultrapassando essa ruptura constitutiva da investida antropológica em mundos não ocidentais; a manutenção da tradição disciplinar nestes novos terrenos; a construção destes novos objectos; a restituição dos resultados da pesquisa, etc. (selim & sugita 1991,9-16). E como sabemos bem da prática as questões metodológicas afectam e determinam as teóricas. Chegou o momento certo para passar ao esclarecimento dos procedimentos envolvidos na presente investigação.
38METODOLOGIAS A pesquisa foi feita num período de 21 meses entre 1995 e o final de 1996, com visitas esporádicas mas constantes durante os dois anos que se seguiram. O contacto com a Tipografia Gloriosa foi mantido mesmo no período da minha gravidez, mas a minha filha não chegou a conhecer o local. A última notícia que tive foi que a empresa tinha finalmente falido em 2000, em processo litigioso entre patrões e assalariados. Alguns dos trabalhadores associaram-se e criaram uma pequena gráfica já longe do centro da cidade, os restantes não ficaram tão bem. Uma das pequenas oficinas foi convertida numa espécie de museu ao vivo, a mais obsoleta acabou por sucumbir e as duas restantes trabalham com assinaláveis dificuldades. Fazer trabalho em meio urbano implica, como nos outros, visitas quotidianas e frequentes, mas neste caso não foi impositiva a ausência do ambiente familiar e da cidade de origem. Assim, pude facilmente conciliar a investigação bibliográfica e arquivística (em bibliotecas públicas, universitárias, centros de documentação, gabinetes e arquivos, associações patronais e sindicatos do sector, mas também em bibliotecas pessoais e espólios pessoais, etc.) sempre com a preocupação de não esmorecer o tempo reservado para a observação participante35.
39O tempo do trabalho de campo pode ser dividido em períodos. A Tipografia Gloriosa fixou o ciclo da investigação; as restantes oficinas, menos complexas e com menos pessoal, foram remetidas para segundo plano. Inicialmente, assim que entrei para a oficina fui considerada, por opção pessoal, uma espécie de aprendiz de composição. No primeiro dia, o gerente encaminhoume para os mestres do ofício dizendo: «eles sabem tudo», primeiro para junto do encarregado geral que no segundo dia me reenviou para o então chefe da composição manual, o Álvaro. Facilmente me apercebi da centralidade simbólica da fase de composição na tipografia36, já o tinha compreendido antes, no contacto com outra pequena oficina responsável pelo despertar do interesse da investigação37. Familiarizei-me com as técnicas, aprendi-lhes os nomes, os materiais, os pesos. Passado poucos meses compreendeu-se a minha inoperância e o maior interesse em fazer perguntas e observar, em conversar livremente e, progressivamente, em registar as biografias profissionais, liberdade que nunca me foi negada embora eu fosse aprendendo com os meandros do constrangimento a «comportar-me». Desde o início, ainda que sem estatuto de assalariada e com a flexibilidade inerente à investigação, decidi permanecer durante toda a jornada de trabalho para melhor entrar nos quotidianos oficinais e também escriturários (embora tivesse sempre passado mais tempo nas fases da produção). Foi na minha ida na viagem à Galiza na qual se envolviam a maioria dos assalariados, decorridos seis meses de trabalho de campo, que deixei de ser a outsider, num meio onde tal é particularmente difícil para uma mulher38. No dia em que paguei o cheque que confirmou a minha adesão à excursão várias pessoas me deram os parabéns. Os comentários foram muito calorosos, logo a lembrar o tipo de sociabilidade local: «Agora é que vais alinhar connosco nos comes e bebes. (...) Se te portas mal, em vez de dois litros, bebes cinco.» Já não era apenas uma amiga dos tipógrafos, adquiri o estatuto de «amiga» do Grupo Desportivo, uma entidade central e merecedora de muito empenho na organização dos lazeres colectivos locais do pessoal da Tipografia Gloriosa. Ganha a confiança dos tipógrafos, fui contemplada com a simpatia dos superiores, em particular do gerente. Durante um pequeno período foi-me dada permissão para ficar numa secretária a «estudar» os registos de pessoal e todo um conjunto diversificado de arquivos privados da empresa39. Um episódio menos agradável pontuou a experiência de campo. Surgiram hesitações no momento em que comecei a escrever artigos sobre a tipografia e a editar, aspectos que analisei noutro lugar (durão & leandro 1997, 175-192). No ano de 1996, passei ainda por um período em que a estadia se caracterizou sobretudo pela filmagem dos espaços e das pessoas em interacção e entrevista directa, o que originou um pequeno e experimental filme etnográfico40. Já sem a câmara de filmar, desenvolvi o trabalho de campo até ao final do ano.
40Ao optar por pesquisar pequenas e médias unidades de produção não fugi às características do sector em Portugal. A indústria gráfica tem sido desde sempre marcada por um elevado número de pequenas empresas, um número modesto de unidades de média dimensão e um número restrito de grandes unidades industriais. De igual modo, a distribuição do desenvolvimento técnico-produtivo no país também não foi homogénea41. Num dos poucos estudos sectoriais recentes (reto et al., 1996, 40), apurou-se para o ano de 1991 um número de 4354 estabelecimentos, estando 2152 empresas sem trabalhadores ao serviço (cerca de 49,4% do total!), embora o grupo deva ser heterogéneo, constituído tanto por trabalhadores em nome individual como por empresas cuja actividade tenha cessado ou que recorrem a trabalhadores independentes ou clandestinos. O sector é claramente dominado pelas pequenas empresas: a larga maioria (42,57% do total) tem menos de 20 trabalhadores ao seu serviço. As que têm entre 21 a 99 trabalhadores, 293 empresas, correspondem a uma percentagem inferior a 8,04% do total. Com 100 a 1000 trabalhadores apenas existem 55 empresas no mercado português (1,28% do total), sendo que com 500 a 999 existem 3 e com mais de 1000 apenas uma. E de registar que no Anuário de 1997 das Empresas Associadas na Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel (APIGTP), onde a tendência é para associar as maiores e mais importantes empresas (com mais capital), mesmo assim apenas 29 estabelecimentos têm contratados entre 100 a 1000 trabalhadores, num total de 944 empresas associadas42.
41Se recuarmos no tempo, ainda maior se torna a evidência de uma pequena indústria com dificuldades, concentrada nos centros urbanos e com maior expressão em Lisboa. Por exemplo, de acordo com os dados avançados pela investigação de Freire (1992, 168-172), a partir do inquérito industrial de 1917, existem 259 estabelecimentos tipográficos em Portugal (apenas no continente), onde 213 são pequenas empresas (1 a 20 trabalhadores), 13 médias (21 a 100 trabalhadores) e 5 grandes (mais de 100 trabalhadores). Como se vê, o número de pequenas empresas «familiares» ou «semi-familiares» é maioritário, o que aliás é uma tendência na época, entre os ofícios.
42A observação participante e as entrevistas informais constituem o núcleo da recolha, embora as narrativas biográficas43 sejam importante alicerce, sobretudo no acesso ao estudo dos discursos e representações identitárias que complementam e accionam práticas. A apresentação dessas narrativas (citações de biografias ou de relatos mais informais, em tom oral) merece um certo destaque e visibilidade na investigação. Como diria Pujadas Munoz (1992, 43), os relatos pessoais são uma espécie de termómetro que permite apresentar a complexidade extrema das trajectórias vitais dos sujeitos (e também dos grupos primários: família, grupo de amigos, irmandade, pequena comunidade, grupo de trabalho), mostrando a irredutibilidade (parcial) destes processos aos modelos normativos da sociedade. Mas mais ainda: «o seu interesse reside no facto de permitir aos investigadores situar-se num ponto crucial de convergência entre: o testemunho subjectivo de um indivíduo à luz da sua trajectória de vida, das suas experiências e da sua visão particular do mundo; a leitura de uma vida que reflecte a sua época, certas normas do social e os valores da comunidade de que o sujeito faz parte» (pujadas munoz, 1992, 44).
43Tanto o método biográfico de recolha das narrativas de vida como o método de observação participante são essencialmente qualitativos e de interesse focal, mais do que intrinsecamente generalizáveis, e resultam de processos que o antropólogo acciona, embora a realidade existencial prossiga antes e depois da sua investigação. São assim métodos que valorizam as intersubjectividades humanas e as organizam num contexto de interpretação das lógicas sociais. Em resumo, trata-se de assumir o valor sociológico da experiência humana (ber-taux 1980, 218). Já Wright Mills remetia para a necessidade de se considerarem constantemente as relações entre biografia e História e uma estrutura social na qual se cruzam ambas (1980b, 160-162). Vários autores que quiseram estudar os processos de mudança social serviram-se do método (bertaux 1981; bertaux & thompson 1997; thompson, 1980), o que reforçou a minha opção: «o relato biográfico constitui um dos materiais mais valiosos para conhecer e avaliar o impacto das transformações, na sua ordem e importância na vida quotidiana, não só do indivíduo como do seu grupo social primário e do seu ambiente social circundante.» (pujadas muñoz 1992, 45.)
44Nas cinco empresas estudadas foi realizado um total de 35 entrevistas tipo narrativas biográficas (distribuídas por um total de 75 cassetes áudio), estando o respectivo guião sempre em fase de aperfeiçoamento. A maior parte da recolha foi feita na média empresa: 18 entrevistas tiveram lugar entre tipógrafos e outros trabalhadores da Tipografia Gloriosa; 10 entrevistas foram recolhidas entre operários e patrões das cinco pequenas empresas de tipografia estudadas (Limpinha, Cacilhas, Rosa eTécnica); 5 entre tipógrafos reformados e 2 entre profissionais em actividade noutras empresas. Embora não tenha sido possível efectuar narrativas biográficas com todos os empregados das empresas referidas, porque nem todos os sujeitos contactados se disponibilizaram para falar da sua vida, a grande maioria foi muito participativa e empreendedora, gerando-se em alguns casos relações que se estenderam para fora do âmbito social e espacial do trabalho, ajudando a melhor conhecer o meio social e contactar mais de perto com familiares e amigos. O total de 6 entrevistas semiabertas corresponde aos testemunhos de outros sujeitos situados no campo social, que não tipógrafos. Trata-se de entrevistas a dois escritores-jornalistas, três editores e uma programadora de edição. Tanto as narrativas de vida como as entrevistas foram geralmente sujeitas a variadas sessões repartidas por diferentes dias e épocas do ano.
45Para a interacção criada entre o etnólogo e o narrador na utilização do método biográfico em antropologia, tendo em conta que, segundo especialistas como Paul Thompson (1980, 255), se trata de um método eminentemente «flexível», tomei em linha de conta as considerações de Franco Ferraroti, numa das obras que dedicou ao problema (1991 [1986]). Embora o autor defenda não existirem regras fixas para a interacção no momento da pesquisa, sendo que cada investigação cria as suas, o sucesso da utilização deste método está contido, em larga medida, no papel central que ocupam as relações interpessoais.
46Na fase de transcrição adoptei aquele a que chamaria o processo sociológico, interessando-me fundamentalmente pelos dados subjectivos e objectivos dos trajectos e carreiras e pela «estrutura sócio-cultural na biografia pessoal» (no dizer de balan & jelin 1980, 269). Tendo em conta a vocação sociológica, assim como a delimitação necessária a um texto deste género, reconheço, no tratamento dos blocos de discurso, a ausência de uma aproximação sócio-linguística complexa.
47O livro estrutura-se em torno das problemáticas propostas. No capítulo que se segue farei uma descrição do corpus empírico, com particular destaque para o caso paradigmático da Tipografia Gloriosa, onde foram recolhidos grande parte dos dados que suportam a investigação. A partir de então a obra organiza-se em torno de dois grandes eixos. Os capítulos 3, 4 e 5 reflectem as permanências culturais que têm estado presentes ao longo dos anos nas oficinas tipográficas, demonstrando como se produzem identidades e reproduzem socialmente os grupos (particularmente o grupo ocupacional dos tipógrafos) nas organizações de tipo oficinal. Os capítulos 6, 7 e 8 desenham-se no sentido de retratar as configurações sócio-simbólicas particulares dos quotidianos de trabalho (tanto a partir de observações como de relatos sobre o passado) onde a realidade social e técnica é mais complexa, nas interpretações e respostas que os tipógrafos imaginam para lidar com o fenómeno global e localmente perceptível da mudança.
48Devo ainda precisar o itinerário de cada parte do texto. Logo a iniciar a discussão analiso no capítulo 3 o sistema de produção tipográfico, na explicitação e análise das implicações sócio-culturais dos métodos de trabalho deste ofício. Tendo em conta que importa saber como se formam e estruturam as identidades e culturas profissionais (que asseguram a reprodução social do grupo e imprimem continuidade a este tipo de organizações), a análise situa-se nas formas de transmissão e aprendizagem dos saberes e fazeres entre operários; na incorporação, prolongada no tempo e por acumulação de experiência, daquilo que Bernot 1991, Carré & Tiévant 1990, Chevallier & Chiva 1991 definiram como códigos e sentidos sócio-técnicos. No capítulo 4, tendo em conta a importância que assume no meio a progressão técnica e estatutária para o desenrolar da vida profissional dos sujeitos, detalho a noção de carreira, nas dimensões mais objectivantes e subjectivantes propostas por Hughes (1958), e no percurso que entretanto o conceito adquire entre autores da antropologia, carreira que é tida pelos tipógrafos como garantia de serem operários qualificados. Reporto-me sobretudo à fase das aprendizagens, acompanhando os relatos do passado de trajectórias vividas no ofício. O interesse reside na compreensão das dinâmicas informais, ao lado dos estatutos mais formais, que distinguem percursos. Assim, organizo a argumentação de acordo com os temas mais relevantes e discutidos na vida social dos operários: a iniciação na vida activa, as precariedades do neófito, as oficinas como lugares de incerteza, as mobilidades inter-oficinais, a carteira profissional. No capítulo 5 centro-me nas definições sociais da diferença, analisando o lugar ocupado pelos diferentes grupos de indivíduos nas empresas de tipografia. Na primeira parte é apresentada a evidência de uma organização hierárquica do trabalho, de acesso diferencial ao saber-fazer, carreiras e estatutos (que descriminam, de acordo com o género, homens e mulheres; pelo estatuto e idade, chefes e não chefes; pela idade, novatos e adultos). Na segunda parte, apoiando-me nos relatos biográficos e menos na observação, avanço para algumas das formas de recepção que o grupo dos operários elaboram quando se reportam a outros grupos presentes na vida laborai: os patrões e os clientes.
49Será feita uma abordagem sobre a forma como são seccionados no trabalho e socialmente apropriados os espaços e tempos do trabalho no capítulo 6, adoptando como referência principal o caso da Tipografia Gloriosa. A descrição etnográfica percorre a organização espacial: os espaços produtivos (oficinas e postos de trabalho) e os administrativos, as vias de acesso e circulação que viabilizam a comunicação e os espaços socializantes e periféricos em volta do trabalho. Toda a vivência espácio-temporal nas empresas tem subjacente uma organização tripartida: domínios claramente identificados como de trabalho, outros de não trabalho e ainda os mais híbridos, indefinidos, esses onde se revelam muitas configurações sociais que geralmente escapam às observações sociológicas que não dão uso a metodologias etnográficas. Será dado destaque à última dessas dimensões, construindo-se uma reflexão sobre as liberdades intersticiais, as práticas de pequeno desvio e as elasticidades possíveis nos domínios do trabalho. Todo o argumento segue os princípios gerais enunciados por Fischer (1980, 63): o espaço não existe senão através do que o preenche e os trabalhadores têm um estatuto espacial, níveis de personalização e apropriação dos locais de trabalho. A análise empírica surge a comprovar as ideias do autor de que os assalariados povoam e se apropriam desses espaços, na experiência da acção quotidiana, como vivem a natureza das relações sociais de trabalho: entre apego e enraizamento, entre contestação e conflito. No capítulo 7, mais uma vez circunscrevendo-me à etnografia da Tipografia Gloriosa, indago as formas como os factores mais globais de mudança afectam e pesam nas realidades localizadas. São sistematizadas as expressões da diferença nas representações identitárias, tendo presente que estas não são estáticas ou acabadas mas que no momento e espaço da observação ganharam configurações particulares. Embora nas tipografias o cruzamento de diferentes trabalhadores (mais e menos qualificados) obrigue a reconhecer a distinção no seio dos assalariados, é a partir das velhas e novas técnicas que surge o principal confronto inter-identitário. Quando os sujeitos pensam sobre os modos de fazer e os modos de ser presentes na tipografia, surgem aspectos a organizar o valor do trabalho. A partir desse pano de fundo, na primeira parte do capítulo são exploradas as ideias que os sujeitos elaboram acerca dos dois sistemas técnicos integrados na Tipografia Gloriosa (o tipográfico e o infográfico). Na segunda parte, a pretexto do surgimento na oficina de um jovem designer gráfico que ali esteve temporariamente a aprender as técnicas da composição manual em tipografia, é feita uma análise etnográfica amiúde das representações e das relações interpessoais que resultam desse encontro. Embora muito centrado nas interacções locais entre dois sujeitos, o segundo caso tem a preocupação de analisar a extensão das mudanças no meio e de se apresentar como representativo dos problemas globais que se colocam na contemporaneidade aos profissionais de tipografia.
50É deixada para o final a reflexão sobre as políticas das tradições. No capítulo 8 adopto a noção de «tradição inventada» (hobsbawm & ranger 1984) para melhor compreender o empenhamento local dos assalariados no revigorar e na repetição cíclica de eventos locais que os agregam em momentos de festividade: o almoço de Natal da empresa e a excursão anual em camionete a um local do país ou de Espanha. A inspirar tais convívios surge a comemoração do feriado do 1de Maio, o qual muitos grupos de tipógrafos adoptaram desde a sua origem e conservaram como direito durante o período não-democrático: 1926-1974. Ainda que o evento tenha perdido o seu valor tipicamente corporativista, uma certa orientação simbólica surge indelével ao longo dos anos. Torna-se então obrigatório fazer o percurso pela instituição local que organiza na empresa as reuniões festivas, o Grupo Desportivo da Gloriosa, criado para que os operários pudessem beneficiar de lazeres colectivos durante o Estado Novo (1933-1974), um tempo que era adverso a esse tipo de liberdades, grupo por eles apropriado e restaurado como símbolo de igualdade durante o período revolucionário de 1974. Com grande detalhe etnográfico demoro-me também numa análise diacrónica desse que é o evento central: a viagem excursionista (no modelo adoptado, nos programas descritivos, na fixação de itinerários, nas normatividades enunciadas, nas rupturas e continuidades). A preparação da excursão ocupa, ao longo do ano, muitos momentos da vida quotidiana laborai, numa gestão que alterna entre o privilegiar a produção material e a produção dos lazeres em grupo. Não deixarei de reflectir que, no contexto social estudado, rememorar tem fins objectivos: uns mais simbólicos, como conservar o valor profissional e social do trabalho; outros mais funcionais, como conservar postos de trabalho, a existência e operância da empresa, sendo que ambos se cruzam e apoiam. O capítulo conclusivo avalia o projecto de escrita de uma etnografia que contempla vias complementares: a retratação e análise de um grupo sócio-profissional e de um tipo de organizações de trabalho com peso e história na sociedade portuguesa e a análise dos processos de mudança recente que os fazem, lentamente e de modo negociai, «passar à história».
Notes de bas de page
1 A Tipografia surge a partir do século xv quando Gutenberg e os seus pares descobrem a forma de imprimir um texto por meio da composição com caracteres móveis. Não é sua a invenção da prensa, já antes utilizada na fabricação do vinho e do papel, mas concretamente algo que está mais do lado da metalurgia: Gutenberg permite «fundir um caracter em relevo numa peça metálica e fazer desse um sólido de 3 dimensões» (dreyfus & richaudeau 1990 [1985], 63). Uma vez inventado o molde não foi difícil reproduzir. A dificuldade não estava tanto na obtenção de matrizes mas sim na sua adaptação a necessidades tipográficas, ao desenho das letras e também ao encontro de uma liga metálica que permitisse aos caracteres resistirem a muitas impressões. Desta forma, emprega-se o termo tipografia para ambas as funções principais: a composição e a impressão. Outros procedimentos técnicos foram sendo desenvolvidos, mas o de «tipografia» conservou-se para a impressão mediante elementos impressores em relevo (por prensagem directa da folha). Esta implica assim um conjunto de técnicas de composição na junção de caracteres (tipos móveis ou em linha) que formam textos (formando palavras, linhas ou parágrafos); técnicas de montagem e imposição do material composto pelas diversas páginas da rama que vai à máquina; e de técnicas de impressão onde a superfície impressora é constituída por elementos planos em relevo com relação ao suporte (tanto em máquinas planas como em rotativas).
2 Casa é um nome tradicionalmente utilizado na língua portuguesa para designar empresa, firma ou estabelecimento e remete para características de familiaridade, ainda que nem sempre coincidentes com a pequena dimensão dos estabelecimentos. Numa grande empresa os assalariados também podem promover o «espírito casa» (cf. fischer 1980, 154).
3 Minerva é o nome técnico de um tipo de máquinas de impressão mecânica tipográfica (anterior à plano-cilíndrica, esta mais sofisticada e de impressão em maiores volumes).
4 Mesmo tendo em conta a distinção de origem anglo-saxónica entre «profissão» e «ocupação», pode certamente aqui falar-se de grupo profissional, tendo em conta a comum origem (nas corporações) dos ofícios e das artes liberais (dubar 1997 [1991]) e a aplicação a ocupações operárias de noções como «profissionalidade» (bouvier 1989) ou «sistema profissional de trabalho» (touraine 1955). Além de que na língua portuguesa ofício e profissão são usados indistintamente.
5 Como já foi dito noutro lugar, Sandra Wallman (1979, 22), numa das obras de referência da antropologia para o campo do trabalho, «estabelece uma relação estreita entre identidade (vs. alienação) e o exercício de controlo sobre o trabalho por parte do executante. De facto, por menos ampla que seja, a autonomia no trabalho prende-se com a afirmação do conhecimento associado à ocupação, com uma reivindicação de capacidade e valor, com uma apropriação e reconstrução dos quotidianos de trabalho» (durão & marques, 2001,47-68).
6 Nestes processos, as figuras das chefias operárias directas são preponderantes, tal como se verá no capítulo 5.
7 O quadro jurídico dos contratos de trabalho evolui, por toda a Europa do século xx, a posteriori, «conferindo um estatuto jurídico a práticas nascidas espontaneamente», alicerçadas em primeiro lugar no acordo de cavalheiros, destituído da obrigatoriedade legal, com «um forte carácter de instituição auto-regulamentada, privada, fundada no costume» (barreto 1980, 700-708).
8 «Estado Novo é a designação com que o regime institucionalizado pela Constituição de 1933 se auto-intitulava. O período cronológico do Estado Novo pode considerar-se compreendido entre a entrada em vigor, a 9 de Abril de 1933, da nova Constituição, fruto do processo político iniciado pela Ditadura Militar saída do movimento militar de 28 de Maio de 1926, e outro golpe militar que, a 25 de Abril de 1974, derruba o regime e põe termo ao longo ciclo autoritário e antiliberal em Portugal» (rosas & brito 1996, 315).
9 Como já foi referido na conclusão de um estudo sobre meios operários em comparação, entende-se que «a qualificação assenta na posse de competências indispensáveis ao desenrolar do processo técnico e adquiridas mediante treino específico, envolvendo este duração e/ou recursos tais que inviabilizem a rápida substituição do indivíduo qualificado por recém-chegados à actividade» (marques, com durão e lúzia 2000, 9-41).
10 O termo remete para organizações associativistas da Primeira República.
11 Neste documento são feitas sugestões de actuação que de facto contrastam com uma cultura profissional da qual o chumbo é não só parte integrante como parte decisiva. Os operários, mesmo sem o lerem e tendo apenas conhecimento de boca conhecem o contraste e sabem bem o que ele anuncia. Na lista das actividades de risco lá consta a fundição e a impressão que comportem a utilização de chumbo. A directiva propõe medidas de vigilância clínica dos trabalhadores (vigilância que os tipógrafos só muito circunstancialmente e por iniciativa privada efectuam) e o controlo da concentração do chumbo no ar numa regularidade mínima trimestral (controlo praticamente ausente do meio gráfico com que lidei) e fala mesmo na necessidade de modificação do material no trabalho.
12 Ainda antes foi adoptado pelas oficinas de composição e impressão de jornais e das maiores editoras um método intermédio, o da fotocomposição, assente num processo de projecção de letras sobre um filme ou papel fotográfico.
13 Tal como a litografia – e por oposição à tipografia e à heliografia –, o offset assenta num fenómeno de natureza físico-química. «Offset» significa em inglês «transporte» ou «decalque». Existem diferenças radicais entre este e a tipografia. A demarcação entre as zonas impressas e não impressas da chapa já não se dá a partir de uma diferença de nível (da altura da letra e do material que vai a imprimir), mas a partir do uso de líquidos (tintas e água) que levam à aceitação ou rejeição das diferentes partes da superfície que vai à máquina. A aquisição técnica que distingue o offset é de facto a supressão do contacto directo entre as formas impressoras e o material impresso (neste caso, o papel) (cf. dreyfus & richaudeau 1990 [1985], 566). A impressão substituiu definitivamente a litografia no decénio 1950-1960 (cf. dreyfus e richaudeau 1990 [1985], 93) e ocupa desde então progressivemente e predominantemente o papel da tipografia no mercado da impressão em papel. O processo recente preferencialmente associado a este tipo de impressão é a composição informática, ao qual se segue um trabalho de preparação, de montagem das películas que serão transformadas nas chapas para impressão. Este tipo de impressão foi descoberto em inícios do século xx, embora tivesse sido inscrito na herança da litografia, fruto do processo iniciado em 1850 com a aparição da fotografia e da fotogravura. Convém lembrar que a técnica, por ser mais dispendiosa, começou por colmatar os limites da tipografia e ser aplicada em impressões de qualidade, de carácter artístico e a cores, mas acabou inevitavelmente por progressivamente ultrapassá-la a partir da segunda metade do século xx. A grande liberdade, facilidade e agilidade na paginação do texto e ilustrações (em computador); a possibilidade de multiplicação dos exemplares através da simples duplicação fotográfica (em película); a rapidez da produção; a fácil conservação das matrizes; a poupança numa série de etapas intermédias da produção e consequentemente na mão-de-obra são razões suficientes para que este tipo de impressão tenha vingado.
14 Na Tipografia Gloriosa, como em muitas empresas maiores e mais sofisticadas, a divisão do trabalho começou desde os anos 1930 a ser organizada por especialidades. Todavia, essa não foi a tendência predominante. Até aos anos 1950 queixavam-se os grémios de que a maioria das oficinas portuguesas, muito atrasadas, pouco especializadas, com material obsoleto, de pequeno investimento e baixos salários faziam concorrência desleal às «verdadeiras» tipografias (cf. figueiredo 1957). Freire confirma para o período que «o tipo de produção é unitário, onde a seriação é um caso de espécie e não um princípio geral» (freire, 1992, 115-116). No decurso da minha observação verifiquei que nas oficinas mais pequenas tal esquema de trabalho, onde um mesmo tipógrafo se encarrega da produção de uma obra do início ao final, se mantém.
15 No capítulo 7 o último ponto reflecte, a partir de uma observação etnografada, a influência e reacção nas oficinas a novas figuras profissionais, como a de designer gráfico.
16 Concordo que modernização é um conceito vago, mas ainda assim definidor da situação. Para simplificar o que não o é, diria que no caso das organizações de trabalho este conjuga alguns aspectos fundamentais: melhoramento e manutenção de níveis de produtividade em geral associados à renovação tecnológica, insistência na formação profissional e sem esquecer o ingrediente fundamental que é o da adequação do modelo industrial ao modelo económico-político dominante.
17 A julgar pelas biografias dos sujeitos estes apenas perpetuam e reproduzem, num tempo adverso, uma lógica antiga: a de preservar para si o valor social do trabalho. Ter um oficio e um posto de trabalho é de tal modo central na definição de identidades que se arrisca a definição etic, já previamente adiantada por Medeiros, citado por Freire (1992, 48), do ofício-propriedade: «a profissão pode ser encarada enquanto património na medida em que ela dava frequentemente lugar a uma transmissão por via de herança», e compara este sentido ao vínculo do aldeão na apropriação da terra. Tal definição não é estranha se atendermos também ao que Verret (1982, 36-37) nos diz sobre a qualidade do ofício: trata-se de trabalho diversificado, plural e variado; trabalho complexo, associando o olho, o pensamento e a mão em talentos lentamente aprendidos ao longo da experiência e transmitidos através dela. Num outro estudo sectorial, Bilbao (1990) fala na identidade social do trabalhador em Artes Gráficas (o tipógrafo), concebendo-a como o processo mediante o qual o indivíduo se define socialmente por aquilo em que trabalha, constituindo o ofício a forma mais marcada dessa identidade.
18 Na Tipografia Gloriosa, apenas na fase de impressão offset, naquele tempo a mais moderna da empresa, existia alguma mobilidade de aprendizes que ali permaneciam o tempo necessário para aprender as técnicas. Era por conseguinte a única fase de trabalho que mantinha a divisão tradicional por categorias: com oficial, auxiliares e aprendizes.
19 A reflexão será alongada no capítulo 4.
20 Na Tipografia Gloriosa registei, para o ano de 1996, uma média de idades biológica de mais de 46 anos. Dos contratados, 5 pessoas tinham entre 20 e 30 anos de idade; 7 tinham entre 30 e 41 anos. Depois, já entre os 50 e os 60 anos de idade encontravam-se novamente 7 pessoas e com mais de 60 anos ainda havia 7 pessoas, um número razoável de trabalhadores.
21 No capítulo 8 analisam-se alguns exemplos de ritos de empresa onde se concretiza e revigora o ideal partilhado do «aqui somos todos uma família».
22 Sobretudo a partir da década de 1990, assiste-se a uma política do sector no sentido de aumentar a qualidade na produção. Uma vez que as empresas mais competitivas fizeram investimentos em equipamento industrial para remodelação dos sistemas técnicos, as discussões promovidas pela APIGTP (Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel) giram em torno da formação profissional como meio de redefinição do sector, encabeçando o conceito de «qualidade total». «A direcção da empresa deverá publicamente dar conta de uma nova política de actuação a nível de objectivo da empresa, incluindo as normas por que toda a empresa se deverá reger para alcançar mais produtividade, competitividade e qualidade.» (canaveira 1994, 9.) É assim que o então director-geral da Associação define, em seminário da especialidade, a política interna industrial.
23 Falo aqui em hierarquia porque nas tipografias a divisão do trabalho assenta logo em primeiro lugar na separação do trabalho oficinal e administrativo, mas também em várias fases da produção e em trabalho auxiliar (geralmente coincidentes com postos que obrigam a exigências diferentes de qualificação). À medida que a empresa cresce e se especializa, geralmente mais complexa e diferente se torna a separação de poderes. Simultaneamente, no grupo nuclear destas empresas, responsável pelo ciclo propriamente produtivo que intervém na obra (compositores, impressores, acabadores), existem diferenciações subprofissionais e pessoais, de acordo com as trajectórias delineadas e a posição na carreira oficinal.
24 Tal conceito não se confunde com um outro, o «espírito de casa» (fischer 1980, 154; sainsaulieu 1988, 367), mais detalhado no capítulo 4, que retrata um vínculo afectivo ao local e organização de trabalho, esse sim, operatório e moralmente assumido pelos assalariados.
25 Toda esta problemática mereceria uma discussão mais aprofundada, que não é todavia possível fazer aqui mas terá sido iniciada noutro lugar (cf. roca i girona 2001, 69-99).
26 Uma obra pioneira aparece como declaração preliminar de uma antropologia do trabalho (wallman 1979, vi). De facto nesta obra é colocada novamente a questão essencial de saber o que é que a antropologia social tem a dizer sobre o trabalho e como pode contribuir para avançar na reflexão. Sublinha-se o modo micro-situado de perspectivar o olhar e a pluralidade comparativa da multiculturalidade. Mas o conjunto de textos também problematiza os sentidos de toda uma série de dimensões (energia, incentivos, recursos, valor, tempo, espaço, pessoa, tecnologia, identidade) que, presentes no trabalho, o afastam de uma noção estritamente economicista (wallman 1979, 4-22). Noutras obras sobre os mundos do trabalho, efectuadas por antropólogos de língua inglesa, continua a sobressair a tradição etnográfica e o detalhe descritivo e analítico das organizações sociais micro-situadas (mars & nicod 1984, spradley & mann 1979 [1975]).
27 Leiam-se as revisões históricas para o estudo da indústria em Freire (1993) e das profissões em Rodrigues (1997). Na antropologia, os problemas são não só recentes como ameaçam os cânones da investigação tipicamente académica. Mesmo quando assumem uma perspectiva mais especificamente antropológica nas suas heranças teóricas e conceptuais, os investigadores a estudar neste campo não se restringem, como acontece geralmente com outros campos e objectos da disciplina, à comunidade de antropólogos académicos. Em meios onde se incentivam tais investigações, profissionais a trabalhar em contextos organizacionais, formados em antropologia ou em gestão, dialogam com a comunidade científica (cf. hamada 1984, wright 1994). Na verdade, num texto de revisão e contextualização dos problemas que atravessam os estudos das organizações de trabalho na nossa disciplina, Wright (1994, 1-31) relembra a presença dos mesmos na antropologia norte-americana e britânica, no decurso dos seus diversos estádios de desenvolvimento, para o período da década de 1920, entre 1950 e 60 e a actualidade. Hamada (1984, 9-22) situa a antropologia industrial nascida nos Estados Unidos e explica os paradigmas seguidos. Assumindo uma perspectiva crítica e de delimitação dos campos, ambos intersectam o desenvolvimento teórico da antropologia com o movimento de estudos da cultura organizacional fora da antropologia que entretanto na década de 1980 cresceu.
28 O primeiro destes volumes resulta de um Seminário de Royaumont em Janeiro de 1987 e o segundo dos Encontros no mesmo local já em 1990. Ambos pretendem que a pesquisa etnográfica em contextos profissionais constitua um domínio fundamental da antropologia.
29 Wallman (1979, 15-16) no texto que enumera as várias dimensões que situa como centrais nos «sistemas de trabalho» e que estarão presentes nos textos da obra, diz ser a tecnológica a menos discutida.
30 Também Fentress e Wickham vieram reafirmar o papel da memória na constituição das identidades: «As análises de todos os tipos de identidade social bem podiam dar mais atenção à memória como um dos seus principais elementos constitutivos e um dos mais claros guias para a sua configuração.» (1992, 156.)
31 Se nos dicionários «igualitarismo é o sistema dos que proclamam a igualdade social» (figueiredo 1996 [1963]), no contexto organizacional estudado surge explicitado um ideal simples de igualdade, evidentemente contrastante com a hierarquia subjacente à divisão do trabalho. Só se é igual em situação. Isto é, há uma contextualização da afirmação que remete a evocação deste tipo de valor para momentos específicos de festividade e comensalidade. Mais complexa torna-se a organização dos sujeitos numa espécie de democracia representativa na actividade do Grupo Desportivo da empresa (veja-se capítulo 8).
32 As próprias nomeações que utilizo traduzem a variação de presenças no seio das empresas de tipografia. Quando falo em grupo sócio-profissional ou simplesmente profissional, como terá ficado patente mas que convém agora explicitar, remeto-me evidentemente para os tipógrafos; o grupo de operários alarga-se a outros sujeitos que trabalham igualmente e lado a lado de tipógrafos nos contextos oficinais (com categorias ocupacionais tão variadas como embaladores ou encadernadores) que também surgem como trabalhadores correlativos; a designação assalariados ou trabalhadores amplifica-se a todos os sujeitos contratados das empresas que analiso (e que pode incluir indivíduos com funções administrativas). Uma outra distinção fica expressa quando falo de tipógrafos (compositores manuais e mecânicos, impositores e impressores) e de infográficos (na empresa, os impressores e montadores offset).
33 Desde meados dos anos 1980 não tem cessado a publicação de textos que ora afirmam ora contestam o fim da classe operária, o fim do trabalho como valor social, a substituição do trabalho operário pela máquina, etc. (azémar 1992; clot 1995; dodier 1995; méda 1995; terrail 1990; verret 1995, entre tantos outros.)
34 A antropologia do trabalho, das organizações e das profissões ainda não parece ter dado sinais da sua existência editorial em Portugal. A realização de etnografias que respondam a problemas de fundo, como as construções sociais das profissões e dos mundos do trabalho, estão ainda por fazer.
35 A ideia de participação merece uma referência simples. Trata-se, como tão bem sintetizou o casal Spindler (1970, 295) de uma abordagem do terreno que permite observar as pessoas na vivência quotidiana dos seus vários papéis sociais.
36 A centralidade da composição no meio é simbólica e real. João Freire evidenciou domínios diferenciados do trabalho entre trabalhadores ligados ao ramo gráfico: os compositores (manuais, linotipistas e outros) detêm um tipo de trabalho-saber; os impressores e encadernadores (assim como os gravadores, os fotógrafos e outros profissionais do ramo) conjugam trabalho-saber e trabalho-máquina, estando o trabalho-força mais confinado a alguns sectores dos trabalhos finais, aos serventes da movimentação dos materiais e aos vendedores de jornais e aos distribuidores de material impresso (freire 1992, 106-107). Desta forma, o trabalho de composição, porque frequentemente abarca concepção artística e formal da obra, foi durante muito tempo a fase mais prestigiada do ofício.
37 A presente surgiu primeiro em forma de dissertação a finalizar o curso de mestrado em antropologia na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (1999), intitulada: «Os tipógrafos, a arte negra e o seu fim. A antropologia nas tipografias de Lisboa», com bolsa da então Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica durante o período de Março de 1995 a Março de 1997, ao abrigo do Programa de Formação Avançada de Recursos Humanos (jnict/ praxis xxi/ bm/3922/94). Mas já no ano de 1993 tinha realizado um primeiro ensaio etnográfico com o título «A Resistência Operária na Tipografia Confiança» (cunha & durão 1993) para uma disciplina do curso de licenciatura de antropologia, leccionada por aquele que viria a ser o meu orientador de tese, Jorge Crespo.
38 As oficinas tipográficas não são lugares familiares para as mulheres, tal como se verá no decurso do livro. A divisão do trabalho excluiu-as até anos recentes das especialidades principais. Se o facto de ser identificada pelo meu género parece ter facilitado o acesso a determinados dados e relações (confidenciavam-me: «sinto-me bem a falar consigo», «é como quando falo com a minha médica», «é uma pessoa que sabe ouvir os outros») dificultou o acesso a outros, sobretudo no domínio das sociabilidades masculinas mais fechadas. Não era raro eu chegar às oficinas e um grupo de homens interromper a conversa, usarem expressões do calão e pedirem desculpa, pagarem-me o café porque queriam «ser cavalheiros», etc. Todavia, a situação podia ser contrabalançada identificando-me pelas características que consideravam mais masculinas e que, confesso, por vezes me convinha alimentar: «Parece mesmo um rapazinho», «tem um aspecto simples».
39 A partir dos registos de pessoal da empresa num movimento de contratação entre 1960 e 1996, construí uma base de dados de 145 fichas individuais, contendo essas informação social diversificada. Também tive acesso a fontes que me permitiram compreender as dinâmicas da mecanização da empresa desde o seu início, a actas da Comissão de Trabalhadores. A partir desse momento acedi a toda uma panóplia de impressos, fotografias pessoais e da empresa. Alguns operários mais motivados pela minha investigação redigiram-me textos, escreveram-me cartas com considerações, sugestões, desabafos. Em bibliotecas privadas de mestres fui encontrar velhas obras de tipografia, referências teóricas e plásticas importantes.
40 O filme «Além do trabalho» (19 minutos; SVHS e Betacam) foi realizado no âmbito do Curso de Antropologia e Imagem do Museu Nacional de Etnologia (MNE), entre Janeiro e Junho de 1996.
41 Embora a electrificação (geradora de luz e força motriz) de um grande número de oficinas tivesse ocorrido no primeiro quartel do século xx, processo iniciado em 1903 pela Imprensa Nacional (que substituiu os motores a gás), a mecanização das várias fases de produção da Tipografia começou logo por ser desigual, o que criou empresas muito diferenciadas entre si (barreto 1982, 185).
42 Numa análise do estado da indústria em Portugal entre 1960 e 1980, Guimarães e Martins (1989, 41-42) já tinham avançado com informação sectorial a partir do número de estabelecimentos por escalões de pessoal ao serviço, a partir da análise da Estatística da Actividade Industrial de 1982. De um total de 927 tipografias: 666 empresas tinham entre 1 e 19 empregados; 165 empresas entre 20 e 49 empregados; apenas 45 estabelecimentos chegariam a contratar entre 50 e 99 pessoas e 50 estabelecimentos 100 a 999. Com mais de 1000 empregados apenas se registava uma empresa. As estatísticas já indicavam a perpetuação de uma tendência para a pequena indústria. Embora o número médio de pessoas por estabelecimento cresça de 22 (em 1976) para 26 (em 1982), o sector indicava à época unidades com tecnologias e métodos de produção tendencialmente tradicionais, baixos níveis de produtividade «estruturais» e uma orientação de base para o mercado interno que nunca desaparecerá (que com a abertura dos mercados europeus se verá ameaçada pela concorrência espanhola, sobretudo para a fase de impressão).
43 O termo mais abrangente história de vida remete para estudos que ambicionam pesquisar aprofundadamente a vida de um só sujeito e cujo modelo pode ser o de Sidney Mintz (1974 [1960]). Sem me fixar demasiadamente na conceptualidade desta técnica, adopto o termo relato biográfico (pujadas muñoz 1992, 13-14) ou o seu sinónimo narrativa biográfica (bertaux 1997) que correspondem à história de uma vida ou a partes desta tal como a pessoa que as viveu as narra. Bertaux (1976, 1981, 1991, com thompson 1997) foi sem dúvida aquele que levou mais longe a problematização das récit de vie, recolocando-as no centro das metodologias de investigação em etno-sociologia. O seu texto, L’Approche Biographique. Sa validité méthodologique, ses potencialités (1980, 197-225), num dos mais importantes volumes sobre o tema, é determinante para compreender a sua perspectiva e a extensão de usos dos métodos biográficos.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000