Capítulo 5. Pastoral e Contra-Pastoral: o Inquérito à Habitação Rural
p. 145-164
Texte intégral
1Tendo hegemonizado a reflexão sobre a habitação e a arquitectura populares ao longo do período de meio século que se estende de 1890 a 1940, o movimento da casa portuguesa passou a enfrentar, a partir de década de 40, um conjunto de resistências provocadas, em grande medida, pelo crescente alinhamento das suas propostas com a ideologia do Estado Novo.
2O sinal de partida para essas resistências é dado pelo Inquérito à Habitação Rural, organizado no quadro do Instituto Superior de Agronomia (ISA), cujos resultados serão dados à estampa nos anos 1940 (Basto & Barros 1943, Barros 1947). Dez anos mais tarde, com o Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, organizado pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos (SNA) (Arquitectura Popular em Portugal 1980 [1961]), é a vez de uma nova geração de arquitectos marcar as suas distâncias relativamente à casa portuguesa. Finalmente, no mesmo período em que os «novos» arquitectos percorriam o país em busca da sua própria versão da arquitectura popular, Veiga de Oliveira e os seus colaboradores do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular (CEEP) do Porto e, mais tarde, do Museu de Etnologia de Lisboa, começavam também a elaborar a sua visão do tema, mais uma vez distinta da proposta pela casa portuguesa.
3Tendo-se afirmado desde a implantação da I República como um espaço de inequívoca consensualidade na sociedade e na cultura portuguesas, a casa portuguesa passa então a estar no centro de um processo de polémicas e tensões que – como foi sugerido no capítulo 1 – pode ser interpretado à luz do conceito de guerra cultural, tal como este foi trabalhado por Lebovics (1992).
4Por seu intermédio, visa-se designar uma luta de ideias particularmente forte e significativa, que, embora estruturada em tomo de um tema específico – ou de um conjunto interligado de temas precisos-, teria repercussões ideológicas, políticas e culturais mais vastas. Para Lebovics, seria justamente a partir deste conceito que se poderia interpretar uma parte da paisagem intelectual francesa na primeira metade do século xx. Esta teria sido marcada em plano de relevo por uma luta de ideias em torno da imagem da França e do lugar que nela deveriam ocupar os camponeses e a cultura popular. Estruturando-se em tomo de três posições distintas – a proposta pela direita, a defendida pela esquerda e a subscrita pelos meios intelectuais mais cosmopolitas próximos dos surrealistas – essa guerra cultural replicaria, no plano dos discursos de identidade nacional, as principais clivagens e conflitos políticos da sociedade francesa da época.
5É justamente nesta perspectiva que deve ser examinado o processo de resistências e conflitos que, a partir dos anos 1940, passa a rodear a investigação em torno da habitação e da arquitectura populares em Portugal. Os sucessivos inquéritos e estudos produzidos pelos engenheiros agrónomos do ISA, pelos arquitectos do SNA e pelos etnólogos da equipa de Jorge Dias podem ser de facto vistos como peças de uma guerra cultural que incidiu não apenas sobre a arquitectura popular, mas sobre as imagens do povo e do país subjacentes às caracterizações em cada caso propostas da habitação popular portuguesa.
O INQUÉRITO À HABITAÇÃO RURAL: ASPECTOS GERAIS
6Desencadeada pelos engenheiros agrónomos do ISA, essa guerra cultural começou por colocar-se sob o signo – aparentemente paradoxal – do neofisiocratismo que, como se sabe, foi uma das correntes fundamentais do pensamento agrário português do século xx.
7Inspirando-se nas propostas sobre a questão agrária portuguesa formuladas no final do século xix por Oliveira Martins, o neo-fisicocratismo – ou reformismo agrário – advogava
um regresso modernizante à terra como base da estratégia de desenvolvimento do País, incluindo o seu arranque industrial, dificilmente concebível sem a prévia reforma da agricultura (Rosas 1991: 776).
Esta deveria assentar
8num minucioso programa de reforma agrária no qual se previa o emparcelamento das pequenas propriedades a norte do Tejo, paralelamente ao parcelamento das do Sul, instalando-se nestas colonos provenientes das anteriores; para que as novas pequenas propriedades fossem viáveis deveriam ser regadas, pelo que a colonização teria de ser acompanhada por importantes obras de hidráulica agrícola; enfim como se considerava que grande parte do nosso solo não tinha aptidão agrícola mas sim florestal, aquele que a não tivesse devia ser convenientemente arborizado (Amaral 1996a: 822).
9Estas ideias tiveram defensores politicamente muito diversificados – Basílio Teles 1856-1923), (Lino Neto (1873-1971), Quirino de Jesus (18651935), Ezequiel Campos (1874-1965), o próprio Salazar – e chegaram a ter um papel relativamente importante durante o Estado Novo, ao inspirarem a política agrária de Rafael Duque (1893-1969), ministro da Agricultura entre 1934 e 1940 e ministro da Economia – com responsabilidades de supervisão da agricultura – entre 1940 e 19441.
10Entre os mais destacados defensores das ideias reformistas agrárias encontra-se Eduardo Alberto Lima Basto (1875-1942). Com uma experiência política considerável interrompida com o 28 de Maio – havia sido deputado e ministro nalguns governos da I República, bem como presidente da Câmara Municipal de Lisboa – Lima Basto era ainda um académico prestigiado. Professor do ISA desde 1911, havia sido o introdutor nesta escola da área de Economia Agrária. As suas intervenções em torno da questão agrária em Portugal, tanto durante a I República, como no decurso do Estado Novo faziam dele uma figura respeitada. Foi designadamente devido à sua acção que foram criados, durante a I República, o Ensino Agrícola Feminino e o Ensino Agrícola Primário.
11No quadro do seu interesse pela questão agrária, Lima Basto é também um dos autores que, de forma mais insistente, advoga a necessidade de um conhecimento aprofundado da situação da agricultura portuguesa como base para um trabalho de reforma sério e informado. Familiarizado com as metodologias sociológicas de Le Play e com as directivas de organismos internacionais vocacionados para o estudo de problemas económicos e sociais, é designadamente da sua autoria o Inquérito EconómicoAgrícola (1936), que, pelo seu carácter «metodologicamente globalizante», foi já classificado como um «estudo pioneiro» em Portugal (Castro Caldas 1991: 500).
12Foi justamente na sequência do Inquérito Económico-Agrícola que Lima Basto lançou no final dos anos 1930, no quadro do ISA, o Inquérito à Habitação Rural. Inserido numa linha de «inquéritos sobre problemas nacionais de natureza económica» (Azevedo Neves in Basto & Barros 1943: V) apoiada pela recém-criada Universidade Técnica de Lisboa e contando ainda com a ajuda financeira da Federação Nacional de Produtores de Trigo, o Inquérito, de acordo com ideias relativamente consensuais noutros países europeus da altura, considerava a habitação rural como uma variável importante na produtividade e na organização racional das explorações agrícolas e como um factor fundamental para a melhoria do nível de vida das populações rurais e para o desenvolvimento agrícola do país.
13Partindo de uma expectativa baixa em relação à situação existente no terreno – que se admitia ser crítica-, o objectivo do Inquérito era o de «conhecercer as condições económicas e higiénicas em que, nas diversas regiões do país, se alojam as famílias dos trabalhadores agrícolas e dos pequenos agricultores» procurando recolher
elementos de estudo para determinar (...) a forma de melhorar essas condições, dentro das possibilidades actuais das famílias; [e] as medidas a tomar para modificar essas condições dentro das possibilidades financeiras da Agricultura e do Estado» (Basto & Barros 1943: 27).
14Dois conceitos fundamentais parecem ter orientado o Inquérito na prossecução deste objectivo genérico. Por um lado, o conceito de «custo de vida». De facto, um dos objectivos do Inquérito era o de «averiguar quais os encargos que, ao orçamento de um chefe de família profissional agrícola, traz a casa de habitação» (id.: 28), incluindo os gastos com o recheio, alimentação, aquecimento e iluminação. O levantamento deveria ser exaustivo: «deve fazer-se a discriminação e averiguar-se o que actualmente se gasta durante o ano e [se] se gasta o suficiente para ter mínimas condições de conforto» (id., ibid.).
15Por outro lado, tratava-se também de averiguar o «nível de vida»2, sobretudo por referência às «condições higiénicas em que a família vive» (id., ibid.). A capacidade dos compartimentos e as suas aberturas de ar e luz; o número de pessoas que vive em cada um; o modo como se efectuam as dejecções e esgotos; o acesso à água e o seu uso no «asseio do corpo»; a detecção de focos de infecção e mau cheiro nas imediações da habitação; eram, em consequência, alguns dos aspectos valorizados nesta aproximação de recorte higienista à habitação rural.
16Assente num «questionário-guia» minucioso – que deveria ser complementado com plantas e fotografias de cada habitação inquirida – o Inquérito foi administrado em todo o país, que, para o efeito, foi dividido em onze proprovíncias: Minho, Douro Litoral, Trás-os-Montes e Alto Douro, Beira Litoral, Beira Alta, Beira Baixa, Estremadura, Ribatejo, Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Algarve. Em cada uma destas províncias era seleccionado um conjunto de cerca de duas dezenas de localidades consideradas representativas, procurando-se que os inquéritos sucessivamente administrados reflectissem a diversidade social interna do grupo-alvo, constituído, como vimos, por pequenos proprietários e trabalhadores agrícolas.
17Definido nestes termos genéricos, o Inquérito à Habitação Rural envolveu uma equipa de trabalho que, para além de Lima Basto, incluiu ainda Henrique de Barros e contou com o contributo de vários finalistas e recémlicenciados em Agronomia como Eugénio Castro Caldas (1914-1999), Fonseca George, Laborde Basto, Lobo Martins, Flávio Martins, Francisco Rosa, Simões Pontes, Faria e Silva, Rodrigues Pereira e Carlos Silva. Para além de Lima Basto – que faleceu em 1942, com o Inquérito ainda em curso –, Henrique de Barros e Eugénio Castro Caldas foram os elementos mais destacados desta vasta equipa. Henrique de Barros, que havia concluído a licenciatura em Agronomia em 1927 e era assistente do ISA, assumiu a direcção do Inquérito após a morte de Lima Basto e foi, em conjunto com este último, um dos co-editores do I volume e o editor único do II volume. Quanto a Castro Caldas – professor do ISA e um dos mais destacados defensores, nos anos 1950 e 1960, das ideias do reformismo agrário3 –, foi um dos colaboradores principais de Henrique de Barros – de quem era primo direito – e, após o afastamento deste último do ISA, por razões políticas, assegurou a coordenação efectiva do II volume. Quanto aos restantes elementos, foi a seu cargo que esteve a realização do Inquérito nas várias províncias indagadas. Fonseca George e Laborde Basto trabalharam no Alto Minho e no Minho Litoral, Lobo Martins no distrito de Bragança, Flávio Martins no Barroso, Francisco Rosa e Faria e Silva nas Beiras – onde tiveram também a colaboração de Simões Pontes e Castro Caldas – e Rodrigues Pereira e Carlos Silva – apoiados por Francisco Rosa – cobriram parcialmente o sul do país4. Se uma parte importante destas recolhas foi realizada expressamente para o Inquérito, algumas delas – casos por exemplo de Flávio Martins, Simões Pontes e Carlos Silva – foram executadas e redigidas simultaneamente como contributos para o Inquérito e como Relatórios de Tirocínio – designação dada ao trabalho individual de fim de curso a que estavam então obrigados os finalistas do ISA.
18Com os seus trabalhos de campo terminados por volta de 1946 (cf. Silva 1989: 758-759), os resultados do Inquérito à Habitação Rural só parcialmente foram publicados, por intermédio de dois volumes publicados em 1943 e em 1947 pela Universidade Técnica de Lisboa e consagrados respectivamente ao norte do país e às Beiras (Basto & Barros 1943, Barros 1947). O III volume, com que fecharia a edição dos resultados do Inquérito – e que seria consagrado ao sul do país – não chegou, por razões que teremos ocasião de detalhar mais adiante, a ver a luz do dia, permanecendo os seus relatórios preliminares inéditos5.
A MISÉRIA DA HABITAÇÃO RURAL I
19Num contexto marcado – como vimos anteriormente – por um conhecimento lacunar e intermitente do universo da arquitectura popular, o Inquérito à Habitação Rural deve ser visto como o primeiro levantamento exaustivo da habitação rural portuguesa.
20Nele avulta antes do mais a cobertura extensiva e diversificada do país. Tomando como referência os volumes editados, o Inquérito publicou um total de oitenta estudos de caso de habitações do Norte e das Beiras e propunha-se produzir um número idêntico ou superior de estudos similares para o sul do país. Será preciso esperar pelos estudos de Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira e pelo Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal do Sindicato Nacional dos Arquitectos para que um volume de informação comparável fique à disposição dos interessados.
21A minúcia do levantamento efectuado deve ser também destacada. O questionário-guia que orientava os pesquisadores do Inquérito era de facto exaustivo e a informação recolhida ainda hoje impressiona pelo detalhe. Idealmente cada estudo de caso compreendia, antes de mais, informações completas sobre a composição e principais características socioeconómicas da unidade doméstica estudada e da exploração agrícola a ela eventualmente associada, com indicações quantificadas das suas principais receitas e despesas. Seguia-se uma apresentação detalhada da casa, com a sua localização, a indicação eventual da sua data de construção e do seu valor actual, a caracterização do seu aspecto exterior, a indicação dos materiais utilizados na sua construção e a enumeração e identificação dos principais anexos agrícolas. As condições de acesso à água e aos esgotos eram também especificadas. Cada uma das divisões internas da casa era depois apresentada, com medidas exactas, indicação das principais mobílias existentes, condições de arejamento e iluminação, etc.... Uma planta detalhada – com indicação da localização das mobílias – era também publicada, eventualmente acompanhada de uma ou outra fotografia. Seguia-se o inventário quantificado do recheio da casa, incluindo móveis, utensílios de cozinha e «roupas da casa» – lençóis, mantas, toalhas, etc... – com a especificação do seu estado – usado, novo, etc... – e respectivo valor monetário. A fechar, eram fornecidos dados sobre o aquecimento e a iluminação da casa, produtos utilizados para tal efeito e respectivo valor monetário. Como facilmente se depreende desta síntese, nunca se tinha ido tão longe na identificação precisa, minuciosa, quase obsessiva, dos modos de habitar nos campos portugueses.
22Mais para além destas facetas que acabámos de pôr em relevo, entretanto, aquilo que faz a singularidade do Inquérito à Habitação Rural são os horizontes disciplinares a partir dos quais a habitação é encarada. Sendo até então um universo abordado exclusivamente do ponto de vista da arquitectura e da etnografia, a habitação rural é encarada no Inquérito a partir da área disciplinar da economia agrária, tal como esta era praticada, nos anos 1930 e 1940, pelos agrónomos do ISA.
23De acordo com esta perspectiva, trata-se de olhar para a habitação rural como um elemento de economia agrária: isto é, como um instrumento de reprodução da força de trabalho que é parte integrante da exploração agrícola. Como escreve Lima Basto na introdução ao I volume do Inquérito,
da robustez de uma população, do seu bem estar [influenciados decisivamente pelas condições de habitação], dependem em grande parte, a sua capacidade de produção e desta a riqueza nacional (Basto 1943: 22).
24É justamente porque a habitação é encarada deste modo que a descrição da exploração agrícola é parte importante do Inquérito: a casa é um dos seus elementos fundamentais. A concepção alargada da habitação prevalecente no Inquérito – na qual se inclui, designadamente, o recheio – ou as preocupações higienistas que este reflecte, testemunham também desta visão: o que está em causa é o apuramento do conjunto de condições materiais, articuladas no espaço físico da habitação, necessárias à reprodução da força de trabalho. É finalmente nessa linha que deve ser entendida a adopção pelo Inquérito de critérios de representatividade medidos por referência aos diferentes estatutos socioeconómicos das unidades domésticas estudadas – dimensão da propriedade, montante dos rendimentos, etc... O que se procura, neste caso, é relacionar explicitamente condições socio-económicas com condições habitacionais e perceber o modo como umas interagem sobre as outras.
25Simultaneamente a esta perspectiva ancorada na economia agrária, o Inquérito à Habitação Rural faz sua uma perspectiva genérica de «engenharianharia social». Um dos seus objectivos fundamentais é contribuir para o melhoramento das condições habitacionais no campo, através de um programa que, embora envolvendo a habitação, pretende também actuar, por intermédio de políticas governamentais adequadas, nas condições de vida – ou no «nível de vida», para retomar a expressão de Lima Basto – das populações rurais e no próprio desenvolvimento agrícola português. O que se pretende é não apenas o conhecimento da realidade, mas a intervenção nela: como afirma Lima Basto a este respeito, «precisamos de auscultar os (...) males [da população rural portuguesa] para lhes procurar remédio eficaz» (Basto & Barros 1943: 22).
26Marcado por estes horizontes disciplinares peculiares, o Inquérito à Habitação Rural deve simultaneamente ser visto como uma aproximação às condições habitacionais em meio rural onde é possível encontrar, à sua maneira, uma «etnografia espontânea» extremamente valiosa da habitação rural. Nessa «etnografia espontânea», a par de muita outra informação, o que se impõe de imediato à leitura são a frequência e a força das referências às más ou mesmo muito más condições habitacionais e de vida que o Inquérito encontra no meio rural português na passagem dos anos 1930 para os anos 1940. Embora o Inquérito tenha partido – como foi referenciado atrás – de expectativas já de si baixas em relação às condições habitacionais prevalecentes em meio rural, a realidade parece ter excedido – para pior – essas expectativas e o Inquérito acaba por ser marcado em plano de relevo pela revelação da miséria dos campos portugueses, tal como esta poderia ser percebida a partir da habitação.
27O tom é dado logo na abertura do I volume, na apresentação geral do Alto Minho, a cargo de Eugénio Castro Caldas. As aldeias desta região, embora situadas numa
paisagem, rica de tons verdes e frescura de água (...) constituem conjuntos de aspecto pobre, senão miserável. (...) Retalhados de caminhos de piso irregular, encharcados de águas (...), atravancados de lenhas e estrumes – passeio de homens e animais e recreio de crianças sujas, piolhosas e assustadiças que precocemente saem do berço, a gatinhar, para acompanhar porcos e galinhas – estes aglomerados populacionais oferecem o espectáculo de quase todas as condições de que os homens se rodeavam em tempos primitivos (Castro Caldas in Basto 1943: 74).
28Vistas mais de perto, as casas, onde a maior preocupação é a «defesa contra o frio» (76), não são melhores: «no compartimento, em geral único, onde dormem todos os membros da família na maior promiscuidade» (id., ibid.), as aberturas são escassas, criando, «no interior das habitações, atmosfera imprópria, viciada e saturada de fumo» (id., ibid.). A tudo isto soma-se a falta de iluminação, de limpeza interior e exterior, apresentando os «soalhos em toda a sua extensão, um aspecto de nódoa» (id., ibid.).
29Na apresentação geral do Minho Litoral, a cargo de Fonseca George e Laborde Basto, o tom não é muito diferente:
a casa [que o minhoto] habita é geralmente má, e ele não alimenta esperanças de a poder melhorar, dadas as circunstâncias económicas em que vive» (Fonseca George & Laborde Basto in Basto 1943: 140).
30A sua aparência exterior também «é má», as divisões de superfícies «semprepre exíguas» (id.: 141) e o arejamento deficiente. A estrumeira situa-se excessivamente perto da casa e é
um amontoado de dejectos orgânicos em franca decomposição, cujo cheiro pestilencial se espalha por toda a casa. Às vezes, encontra-se mesmo junto à porta de entrada, obrigando as pessoas a pisarem-na antes de penetrarem na habitação (id.: 142).
31No interior, os móveis, as roupas de casa e os utensílios e louças são escassos e em estado de conservação «sempre péssimo» (id.: 143).
32Na apresentação geral do Barroso é ainda a miséria que surpreende Flávio Martins: «miséria material que impossibilita a divisão do interior em compartimentos mais ou menos individuais. Atrás daquela miséria material caminha a miséria moral» provocada pela promiscuidade (Flávio Martins in Basto & Barros 1943: 358-59). O recheio da casa não é mais animador: as roupas da casa «nem por sombra são suficientes para a satisfação do mínimo necessário», as mantas são «trapos remendados todos os dias, para que não se desfaçam» (id., ibid.), e os objectos de cozinha são «tão só os precisos e bem primitivos» (id., ibid.).
33Os estudos de caso apresentados reiteram e especificam esta visão da habitação rural como um espaço de miséria. Logo no primeiro estudo de caso, respeitante a Castro Laboreiro, o panorama não poderia ser mais desanimador: a casa estudada, de pedra à vista e telhado de colmo, tem um «aspecto [exterior] deplorável de miséria e desconforto» (Castro Caldas in Basto & Barros 1943: 80), sem «qualquer elementar preocupação de asseio ou bom gosto». O interior não é muito melhor: a «atmosfera é impenetrável de fumo», tecto, paredes e mobília «tudo é negro» e o ambiente «é inconcebivelmente desconfortável e nojento» (id., ibid.). No Soajo, a par de construções recentes e confortáveis de emigrantes retornados da América, há também o reverso da medalha: «os bairros de miséria no arrabalde (...); a chusma de garotos raquíticos atolada no esterco de vielas imundas; as casa-buracos onde só há lamentações» (id.: 101). Em Arcos de Valdevez, a habitação seleccionada pelo inquiridor tem também «aparência externa muito má», com um telhado em «péssimo estado de conservação». São «péssimas [as] condições de conforto e higiene em que são obrigadas a viver sete pespessoas», partilhando a mesma divisão, «o que necessariamente implica promiscuidade moral» (id.: 110). Em Vale de Bouro o adjectivo utilizado para descrever a aparência externa da casa estudada é «péssima» (id.: 117) e «pestilencial» (id.: 118) é como é classificado o cheiro que exala da estrumeira situada perto desta.
34Esses e outros adjectivos – miserável, mau, precário, nauseabundo, pobre, etc... – são correntes a propósito de muitas das casas analisadas no Inquérito. Mas, por vezes, a situação encontrada impressiona de tal forma os inquiridores que eles se sentem obrigados a detalhá-la de forma mais minuciosa. É o que se passa em Carvalhais (Mirandela). Descrevendo uma casa em «estado de conservação (...) precário» (Lobo Martins in Basto & Barros 1943.: 297), Lobo Martins não resiste a explicitar algumas das facetas dessa situação. Assim, o «estado de ruína» do pavimento da varanda torna-a inutilizável: «de Inverno [como não há vidraças] ou se passa frio ou se vive às escuras» e as muitas fendas na parede garantem «circulação de ar intensa [x/c]». Mas o pior de tudo seria o telhado: «o madeiramento de negrilho deu de si, e a linha apresenta uma curvatura inquietante; além disso não haverá talvez mais de 10% de telhas em perfeito estado de conservação», fazendo com que a água «entre dentro de casa com grande facilidade não sendo preciso chover muito para os sobrados ficarem todos molhados» (id.: 299).
35Ainda em Carvalhais, uma outra casa apresenta um estado ainda mais precário. Trata-se uma habitação construída a partir de «uma antiga loja para porporcos»:
à mudança do género dos habitantes não correspondeu qualquer outra que tendesse a torná-la mais confortável e higiénica; o pavimento continuou a ser de terra batida, as paredes não foram caiadas e além da porta de entrada, baixa demais para pessoas, nenhuma outra abertura se praticou; apenas houve o cuidado de durante algumas semanas não fechar a porta para conseguir a extinção dos maus cheiros (...). Nunca houve o propósito de na casa abrigar seres humanos e só a muita necessidade poderia obrigar alguém a viver nas condições em que vive [esta família] (id.: 306).
36A própria família seria, também ela, um retrato vivo da miséria:
Exceptuando os dois filhos mais velhos, todos os membros desta família têm um aspecto de miséria confrangedora. O chefe de família, em idade que lhe permitiria em casos normais dispor de todos os seus recursos físicos [37 anos] está tão envelhecido que ninguém lhe dará menos de 50 anos. Sua mulher há muitos anos doente [33 anos] parece ter pelo menos 45 anos (id.: 304).
37Por vezes, na descrição das condições miseráveis com que são confrontados, os inquiridores não resistem a uma nota de humor. Assim, em Castelãos (Macedo de Cavaleiros), Lobo Martins, comentando o ar «arrumado e limpo» do interior de uma habitação, acrescenta de imediato: «o que mais contribui para este aspecto é talvez o facto de não haver muita coisa para arrumar» (id:. 323). Mais à frente, o humor parece partir do próprio inquirido. Assim em Cambros (Lamego), numa casa em que apenas existiam um prato, duas malgas e uma garrafa, o proprietário comenta o facto do seguinte modo: «para comer, era necessário que uns esperassem pelos outros, mas em geral não era preciso esperar muito» (id.: 410).
38No II volume, consagrado às Beiras, o tom adoptado é similar ao usado no I volume. Embora não faltem «alguns felizes (...) que são aqueles que de quem (...) reza a História que a aragem do progresso lhes entrou pela casa» (Barros 1947: 33), o panorama dominante seria caracterizado – sobretudo na Beira interior – por «núcleos populacionais pobres, famílias desprovidas dos meios indispensáveis para conseguirem, por si só, melhorarem as condições de habitação» (id., ibid.). Apesar de todo o progresso,
em muitos lugares da Beira a habitação rural continuou a mesma de há cem, duzentos ou trezentos anos, ou outra de pedras iguais e de igual engenharia... talvez menos ampla agora por estar mais cheia, mercê da rápida multiplicação da vida (id: 34).
39Embora, comparativamente ao I volume, os estudos de caso revelem uma situação menos grave do que a prevalecente no Norte do país, alguns exemplos de condições habitacionais mais gritantemente problemáticas são também dados. Por exemplo, em Torres (Trancoso), a casa estudada
é pobre de aspecto e encontra-se arruinada, mais parecendo um «cómodo» agrícola do que uma habitação. (...) Nota-se em toda a casa um cheiro desagradável proveniente não só das emanações da pocilga mas ainda da falta de higiene e de arejamento convenientes. (...) Os quartos são bastante escuros e abafados, principalmente aquele onde dormem os filhos que em certas noites frias de Inverno preferem ficar sobre a palha na loja (Francisco Rosa & Faria e Silva in Barros 1947: 301).
40Em Moreira do Rei (Trancoso), a habitação inquirida «encontra-se muito danificada» necessitando de «urgentes reparações, principalmente na fachada posterior que está prestes a ruir» (id.: 307). Existindo apenas uma cama, no Inverno, os pais dormem «nas lojas, junto do gado» (id.: 310). Quando as casas estudadas apresentam, pelo contrário, condições de conforto e higiene acima da média, os inquiridores sublinham frequentemente o carácter excepcional da situação. Assim, em Ricardães (Águeda) a cozinha da casa inquirida, caracterizada como ampla, «não apresentava o aspecto desagradável da maioria das casas de trabalhadores rurais [da localidade]» (Castro Caldas et al in Barros 1947: 90; os itálicos são meus). Da mesma maneira, a habitação estudada em Abraveres (Viseu) tem um aspecto exterior que a faz «destacar das vizinhas por estar caiada e arranjada» (Faria e Silva in Barros 1947.: 253, os itálicos são meus). Em Fiais (Trancoso), é feita também uma observação de sentido idêntico a propósito de uma casa «com bom aspecto exterior, em contraste flagrante com as outras moradias do mesmo arruamento» (Francisco Rosa & Faria e Silva in Barros 1947: 293; os itálicos são meus).
41É certo que, no cômputo global, os casos de miséria mais gritante não são maioritários, como de resto já não o eram no I volume. Dotado de preocupações de cobertura equilibrada da população rural do país, o Inquérito, a par dos exemplos mais críticos que tenho vindo a citar, fornece outros onde a situação descrita era de algum conforto. Por outro lado, as condições habitacionais mais degradadas possuem uma distribuição regional que não é suficientemente posta em evidência pelo Inquérito: elas tendem a concentrar-se nas regiões serranas do interior como a Beira Interior, o Alto Minho e certas áreas de Trásos-Montes, enquanto áreas de agricultura mais progressiva como o Douro Litoral, o Alto Douro e a Beira Litoral apresentam uma situação globalmente mais favorável. Finalmente, é também claro que aquilo que em muitos casos é interpretado como sendo um sinal de miséria – a proximidade entre homens e animais, o aspecto interior desagradável das cozinhas, etc... – é o resultado de constrangimentos e concepções que não estavam então forçosa e directamente relacionadas com o nível de vida das populações camponesas. Apesar destas circunstâncias, entretanto, a revelação da miséria constituiu sem dúvida a descoberta principal do Inquérito.
42Mesmo não sendo, em termos genéricos, estatisticamente maioritária, foi de facto a miséria que surpreendeu, antes do mais, os próprios inquiridores. Na entrevista que me concedeu, foi aí que Castro Caldas colocou o acento. Originário de uma família de abastados proprietários rurais de Arcos de Valdevez, para ele o Inquérito foi sobretudo a revelação da miséria:
Aquilo era de facto uma miséria. Eu, quando fui lançado para ali, sem termos de referência, levei tempo a perceber o que era a miséria camponesa nessa época. Dei-me conta disso a partir de uma certa altura. Há um sítio em que a coisa me impressionou tanto que eu disse a mim próprio: «que diabo, e se eu for estudar casos de agricultores tecnicamente mais evoluídos?» E foi o estudo desses casos – em Marco de Canaveses e em Amarante – que me revelou quão pobres eram os outros. É impressionante o que se apura neste Inquérito: o recheio da casa, uma cama de ferro, etc... Isto era a pura expressão da verdade. Isto era uma miséria (Castro Caldas 1996).
43Surpreendido pela miséria, é sobretudo desses casos que Castro Caldas guarda ainda hoje memória mais viva:
Lembro-me de uma casa em Castro Laboreiro com telhado de colmo em que entrei – foi no Inverno – e em que o tipo que lá estava tinha as barbas cheias de chamusco. E, depois, para eu ver a casa, teve que se arranjar uma corrente de ar para o fumo sair (id.).
Para Carlos Silva, também
o elemento de base à partida do Inquérito era realmente a preocupação com as pessoas que viviam mal. A preocupação era com uma situação social inquietante. E a miséria era de facto muito grande: procurava-se até não gastar um fósforo. Durante o Inquérito, por exemplo, o inventário do recheio da casa não era problema de maior: estava à vista, havia poucos meios, era só abrir as gavetas e contar (Silva 1996).
44Tendo impressionado fortemente os inquiridores, as condições habitacionais mais críticas inventariadas no Inquérito impressionaram também Lima Basto: «Não calcula o entusiasmo (sic) com que o Lima Basto recebeu o meu trabalho, sobretudo a parte mais crítica, referente ao Alto Minho» (Castro Caldas 1996).
A MISÉRIA DA HABITAÇÃO RURAL II
45Será também a revelação da miséria a nota dominante na recepção que o Inquérito à Habitação Rural teve, logo após a edição do I volume, em 1943. É de facto nesse sentido que se manifestam, antes do mais, os sectores oposicionistas ao regime, para quem a miséria dos campos portugueses mostrada por um Inquérito subvencionado por organismos oficiais poderia ser lida como a melhor prova do fracasso das políticas governamentais e um desmentido da imagem paradisíaca que este dava da situação dos camponeses.
46Francisco Ramos da Costa – economista próximo do PCP –, por exemplo, publica em 1944 um volume centrado na análise do I volume do Inquérito, dominado justamente por uma leitura que enfatiza o seu lado de revelador da «realidade negra» (1944: 10) dos campos portugueses. Reproduzindo algumas das fotografias publicadas originalmente no Inquérito, Ramos da Costa sublinha que, apesar da diversidade de tipos habitacionais que testemunham, «elas estão [todavia] bem identificadas num aspecto comum que as banaliza numa identidade económica: índice de miséria, insalubridade e desconforto» (id.: 26). A sua atenção fixa-se também no recheio das casas e no que este revela da miséria rural no norte do país.
Os números que o Inquérito nos dá do recheio da casa, são na sua maioria testemunho eloquente do índice paupérrimo das condições de vida dentro da habitação. Isto é tão evidente, que só fustigado pelo frio, pela neve ou pela chuva o nosso rural prefere a casa à rua (id.: 23; os itálicos são meus).
47Mais à frente, na mesma linha, Ramos da Costa escreve que «falta [no recheio destas casas] o que o que há de mais elementar para que a vida do homem se não identifique à do animal» (id.: 26).
48As próprias críticas que Ramos da Costa tece ao Inquérito têm a ver com as suas eventuais limitações na demonstração ainda mais categórica das condições de vida miseráveis prevalecentes no norte do país. Assim a ênfase colocada pelo Inquérito nas «camadas mais baixas da população agrícola, sendo completamente omisso sobre as condições económicas, sociais, estéticas e de higiene das camadas superiores e médias» dificulta, pela «ausência de contraste e comparação» (id.: 15), uma percepção ainda mais clara da miséria existente nos campos portugueses. No único caso em que esse contraste foi tentado, os dados seriam, por essa razão, ainda mais eloquentes, como no Barroso, «onde a diferença entre o grande proprietário e as camadas mais baixas, em termos de rendimento, é de mais de 500%» (id., ibid.). Não são também fornecidos
dados concretos locais sobre o valor da situação das habitações em relação com a proximidade ou distâncias das fontes de exploração da riqueza local, com o traçado de caminhos vicinais e vias de comunicação (id.: 21).
49Finalmente, Ramos da Costa lamenta ainda que a informação acerca do recheio miserável das casas inquiridas «não tenha sido exuberantemente posto em relevo» através de «fotografias dos interiores» (id.: 23).
50Do lado do regime, entretanto, as reacções ao Inquérito não se fazem sentir de imediato. Inspirado por ideias neofisiocráticas, o Inquérito à Habitação Rural parece ter beneficiado de uma atitude inicialmente expectante por parte do governo, expressa de resto no envolvimento na sua realização e financiamento de organismos oficiais como a Universidade Técnica de Lisboa ou a Federação Nacional de Produtores de Trigo.
51Entre as ideias inspiradoras do Inquérito à Habitação Rural e a política agrária seguida pelo governo havia então um certo número de convergências, que podem ajudar a explicar tal atitude. De facto, entre 1934 e 1944 – como foi notado no início deste capítulo – assiste-se ao triunfo, a nível governamental, de uma política – encabeçada por Rafael Duque – marcada justamente pelos valores do reformismo agrário6, isto é, com semelhanças grandes com o ideário de Lima Basto e com o tipo de propósitos do Inquérito à Habitação Rural. Muitas das ideias de que este se faz eco são ideias aparentemente caras à política que Duque se esforçava por implementar. É o que se passa com a perspectiva genérica de transformação da situação nos campos subjacente ao Inquérito e com a centralidade que nele tem a questão da dimensão certa da propriedade – expressa no elogio da exploração familiar de dimensão viável como futuro para a agricultura portuguesa – ou o horizonte da colonização interna – patente, por exemplo, nas referências francamente favoráveis à colónia de Martim Rei (Sabugal). As citações aprovadoras que Lima Basto faz de Mussolini na introdução ao I volume situam também claramente o Inquérito no interior de uma nebulosa ideológica em que reformismo agrário e «revolucionarismo de direita», como notou Fernando Rosas (Rosas 1994: 432), se confundem.
52Entretanto, depois de um período inicial em que pareciam reunidas as condições para o seu triunfo, a política reformista de Rafael Duque conhece uma certa involução com o dealbar da II Guerra Mundial. Esta
inviabilizou (...) os grandes projectos de hidráulica e colonização interna, uma vez que se tornou imperativa a contenção das despesas públicas e se definiram outras prioridades conjunturais para os gastos do Estado (Rosas 1991: 784 e 785).
53Uma vez terminada a II Guerra, o tempo político para essas propostas parecia, por sua vez, ter-se esgotado. Propondo-se mexer na estrutura da propriedade a sul do país, as propostas reformistas de Rafael Duque revelaramse incapazes de resistir às pressões dos «lobbies» ruralistas – que as classificavam de «bolchevistas» – e Rafael Duque acaba por ser substituído no Ministério da Economia. Com a sua substituição, o reformismo agrário perde os favores governamentais e a política agrária do Estado Novo passa a pautar-se pelas preocupações de defesa dos interesses dos grandes «lobbies» agrários.
54Essa viragem política parece ter sido fatal para o Inquérito. Perdido o enquadramento político favorável em que se tinha começado por desenvolver, transformado em bandeira de denúncia da miséria nos campos pela oposição, o Inquérito passa a constituir um incómodo sério para o governo. Esse incómodo é tanto maior quanto, simultaneamente, uma parte dos próprios colaboradores do Inquérito não esconde as suas simpatias com a oposição. E o caso de Henrique de Barros – próximo da oposição republicana – e de Flávio Martins, Francisco Rosa e Carlos Silva, próximos do Partido Comunista7. Daí que, em 1947, na sequência de um conjunto de outras intervenções de personalidades próximas do regime desfavoráveis ao Inquérito, o governo tenha pressionado no sentido da suspensão da edição do III volume do Inquérito8. Como refere Castro Caldas,
a descrição da miséria incomodou o regime logo com a publicação do I volume. Então um governo que não fazia nada, que consentia uma miséria daquela ordem... O Inquérito nunca podia agradar ao regime. Já antes, o Inquérito Económico-Agrícola havia também sido encarado com desconfiança (Castro Caldas 1996).
55Para Carlos Silva, que refere a propósito do Inquérito, as «zelosas suspeições (...) por parte de um membro do governo» (Silva 1989: 757), o desfecho dificilmente poderia ter sido outro: na sua denúncia da miséria, «o Inquérito era subservivo» (Silva 1996).
56Essa proibição – como de resto todas as proibições – não impediu entretanto que o Inquérito tenha continuado a ser usado pela oposição como uma arma de arremesso contra o regime. E sabido por exemplo, o papel que o Inquérito à Habitação Rural terá na Contribuição para o Estudo da Questão Agrária (1976 [1968]) de Álvaro Cunhal. Consagrado à caracterização e à denúncia da miséria que se viveria nos campos portugueses, o livro usa de forma abundante dados extraídos do Inquérito. Este ocupa, no capítulo intitulado «Abaixo da Linha de Miséria», um papel destacado, em particular na secção «A Sepultura da Vida» (1976: 88-99). Iniciando-se pela apresentação do Inquérito, a secção reserva um lugar importante à transcrição de alguns dos estudos de caso apresentados no Inquérito, para, a partir deles, generalizar para o conjunto dos campos portugueses:
De uma maneira geral, em nenhum dos casos referidos no Inquérito, se encontra uma só das condições fundamentais de uma habitação conveniente. Nem defesa do frio no Inverno, nem temperatura ambiente adequada, nem pureza e cubagem de ar, nem luz solar durante o dia, nem iluminação artificial nocturna bastante, nem espaço para se moverem as pessoas e em especial as crianças, nem divisões suficientes e quartos separados, nem latrinas, nem esgotos, nem água canalizada, nem limpeza, nem o mínimo, o verdadeiramente mínimo, indispensável de mobiliário, de roupas, de utensílios (1976: 89).
57«Não há – conclui Cunhal – qualquer exagero em dizer-se que, na sua grande maioria, os trabalhadores rurais habitam pardieiros impróprios para habitação e os seus lares são verdadeiros lares de mendigos» (id., ibid.; os itálicos são meus).
HABITAÇÃO RURAL VS. CASA PORTUGUESA: PASTORAL E CONTRA-PASTORAL
58Sendo utilizado pela oposição como uma arma de denúncia da situação nos campos portugueses, o Inquérito à Habitação Rural foi simultaneamente usado como um instrumento mais preciso de combate à ideologia ruralista do Estado Novo de que a casa portuguesa se tinha transformado um dos elementos essenciais.
59De facto, não tardarão a ser produzidas leituras que tornarão explícitas as potencialidades do Inquérito à Habitação Rural como instrumento de combate à ideologia da casa portuguesa. É o caso, desde logo, de Ramos da Costa que, em 1944, no seu já citado Inquérito à Habitação Rural. Crítica à Obra, na sequência da denúncia da «miséria, insalubridade e desconforto» da habitação rural, sugere aos artistas e estetas da casa portuguesa
para que ajuizassem do primário desta condição e dessem ao esteticismo de seus cuidados o lugar secundário que lhe convém, [que] vivessem as emoções estéticas de que são tão ciosos, durante um ano, em qualquer dos exemplos paupérrimos que o Inquérito mostra (1944: 26).
60Esta observação crítica de Ramos da Costa surge na sequência de um artigo de Armando Lucena, publicado, «como é óbvio no Diário de Notícias» que, a propósito do Inquérito, «lembra a fundamental conservação das características estéticas e pitorescas da Casa Portuguesa» (Ramos da Costa 1944: 25)9.
61Mais tarde, em 1948, no I Congresso Nacional de Arquitectura – que, como tem sido sublinhado, teve um papel destacado no combate à casa portuguesa – uma das linhas de ataque a esta – sobretudo por parte de alguns arquitectos do Porto politicamente mais engajados não dispensa também o recurso ao Inquérito à Habitação Rural. O tom é dado por António Veloso – irmão do falecido dirigente comunista Ângelo Veloso e ele próprio próximo do PCP numa comunicação sobre «Habitação Rural e Urbanismo (in 1.° Congresso Nacional da Arquitectura Portuguesa s/d: 189-196). Recorrendo ao Inquérito para a caracterização da situação – que ele classifica de grave – da habitação rural, Veloso defende um ponto de vista sobre a solução do problema habitacional nos campos portugueses marcado pela formulação de soluções alternativas às que estavam implícitas no projecto da casa portuguesa. Assim, segundo este arquitecto, «não é a cidade que é preciso ruralizar, baixando o seu nível de civilização, mas sim o campo que é preciso urbanizar, civilizar, mecanizar» (id.: 192). A obtenção deste objectivo, pelo seu lado, não se parece compadecer com os regionalismos próprios da casa portuguesa: «não são as características arquitectónicas inerentes e próprias de cada região que é preciso respeitar, mas sim os dados imperativos do clima, dados topográficos, meio geográfico» (id.: 194). Na intervenção de Lobão Vital, a presença do Inquérito à Habitação Rural é ainda mais explícita, como mais clara é a sua contraposição à ideologia ruralista que subjaz à casa portuguesa. Depois de sumariar as conclusões do Inquérito, Lobão Vital – recorrendo a passagens da Linha de Rumo de Ferreira Dias (1900-1966) – contrapõe a realidade do Inquérito ao imaginário da casa portuguesa tal como este se expressaria no Concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal (id.: 207-208).
62Estas contraposições e contrastes entre o Inquérito à Habitação Rural e a casa portuguesa devem ser vistos como o resultado da tomada de consciência, por parte de alguns dos actores directamente envolvidos no processo, das diferenças – grandes – existentes entre ambas as abordagens da habitação popular portuguesa.
63Essas diferenças estão de alguma forma inscritas e são a consequência de horizontes disciplinares de partida distintos. Enquanto que o Inquérito à Habitação Rural, como vimos, opera a partir da economia agrária e se constitui, a essa luz, como um momento de inquérito e conhecimento da realidade que tem em vista um programa mais vasto de engenharia social susceptível de melhorar as condições de vida nos campos portugueses, a «casa portuguesa» parte de uma concepção da arquitectura como ramo das «Beaux Arts» e definese como um programa estético originalmente vocacionado para as classes médias urbanas. O que cada um destes olhares disciplinarmente diferenciados vê, são, obviamente, coisas diferentes.
64A paisagem, envolvente central na apreciação da arquitectura popular por parte dos cultores da casa portuguesa, é substituída pela economia e pela sociologia agrárias. É, de facto, como um elemento fundamental do funcionamento da economia camponesa que a habitação rural é apreendida pelo Inquérito à Habitação Rural. A sua funcionalidade não é a funcionalidade de um elemento decorativo judiciosamente colocado num cenário natural, mas a funcionalidade – ou a disfuncionalidade – de um conjunto de condições materiais necessárias ao funcionamento da exploração agrícola enquanto entidade economicamente definida.
65Onde os cultores da casa portuguesa tinham visto formas e tipos arquitectónicos desenraizados de qualquer referência personalizada, os inquiridores do Inquérito à Habitação Rural vêem habitações onde vivem famílias e indivíduos inseridos em grupos sociais particulares, caracterizados por condições de vida e habitação que justamente o Inquérito se esforça por reconstituir. Não é que, ocasionalmente, não se possam encontrar no Inquérito à Habitação Rural comentários mais atentos às formas e à arquitectura. Castro Caldas, por exemplo, não se coíbe de manifestar a sua admiração relativamente a certos tipos de arquitectura popular do Alto Minho. Surpreendido – como muitos outros depois dele o serão – pelo conjunto de espigueiros do Soajo, escreve que alguns desses espigueiros «construídos em bom granito (...) são verdadeiras obras de arte, duma solidez que promete eternizar-se» (Castro Caldas in Basto 1943: 76). Mais à frente, não regateia também aplausos a algumas «construções sólidas, de bom granito» (id.: 90) que encontra no Lindoso. Nestas, a escada e o patamar possuem frequentemente «uma disposição (...) ingenuamente artística que profundamente impressiona» (id., ibid.). No II volume, algumas casas precisas são objecto de comentários de sentido similar, em Cortes (Leiria) (Castro Caldas & Faria e Silva in Barros 1947: 149), Moreira do Rei (Trancoso) (Francisco Rosa & Faria e Silva in Barros 1947: 307), Castelo Rodrigo (Castro Caldas & Faria e Silva in Barros 1947: 313) ou em Salvaterra do Extremo (Idanha-a-Nova) (Francisco Rosa & Faria e Silva in Barros 1947: 408). Neste último caso e ainda em Gouveia (Francisco Rosa in Barros 1947.: 282), os engenheiros agrónomos do Inquérito vão mesmo ao ponto de esboçar uma tipologia dos tipos habitacionais dominantes nestas localidades. Mas estes são, apesar de tudo, exemplos isolados e, no essencial, a energia descritiva é colocada não na catalogação de formas e de tipos, mas na apresentação da casa como um complexo habitado.
66Finalmente, se, na casa portuguesa, a habitação era olhada do exterior de acordo com um código visual dominado pelo aguarelismo etnográfico, no Inquérito à Habitação Rural ela é mostrada, a partir de dentro, de acordo com o que pode ser visto, é certo, mas sobretudo, de acordo com o que pode ser sentido e cheirado – o ar que não circula, os cheiros das estrumeiras, etc... – e de acordo com o que pode ser contado e inventariado – os utensílios domésticos, as roupas, etc... Ao pormenor decorativista do aguarelista, contrapõe-se a minúcia descritiva do inquiridor que não vê apenas as casas de longe, mas entra dentro delas e fala com quem lá está. Como é afirmado na Introdução ao II volume, na sequência de uma citação do geógrafo Amorim Girão de acordo com a qual «a casa é uma imagem de quem viva lá dentro», o objectivo do Inquérito é «saber quem mora lá dentro, como vive e de que vive quem lá mora» (Barros 1947: 59).
67Vendo coisas diferentes, o olhar que o Inquérito à Habitação Rural deita ao universo da habitação rural introduz, nessa medida, um conjunto de rupturas significativas com os modos de olhar a arquitectura popular característicos da casa portuguesa.
68Antes do mais, da pastoral passa-se à contra-pastoral, no sentido em que esta foi definida por Raymond Williams (1993 [1973]: 13-34)10. A atracção pelo campo enquanto «paisagem intermédia» saturada de belezas naturais e de valores éticos securizantes é substituída por um olhar sobre a agricultura enquanto modo de vida incapaz de fornecer condições de vida e habitação aceitáveis. Nesse olhar, o fascínio dá frequentemente lugar à repulsa: pelos cheiros, pelo fumo, pela miséria «material e moral» – de que fala, na secção sobre o Barroso, Flávio Martins –, pela promiscuidade, etc... Do campo, por fim, os engenheiros agrónomos do ISA retêm não tanto a beleza das suas paisagens com casas, mas a dureza da vida e a frequente miséria de quem nelas habita. Nessa exacta medida, o campo em geral e a habitação rural em particular são não tanto valores a partir dos quais é possível restaurar as virtudes campestres na cidade e conter os excessos do progresso, mas lugares físicos vistos como atrasados, arcaicos, sobre os quais pousa, inversamente, um olhar marcado pelo desejo modernista do progresso, associado à denúncia de modos de habitar julgados como primitivos, carecendo – como se dizia no 1.° Congresso Nacional de Arquitectura – de urgente «urbanização». De paradigma moral bom para criticar a civilização, o campo passa a ser visto como um espaço arcaico a partir do qual se pode fazer a crítica do atraso.
69Trocando a pastoral pela contra-pastoral, o olhar que o Inquérito à Habitação Rural deita sobre a habitação procede, em segundo lugar, à desesteticização desta. Esta resulta, desde logo – conforme foi referido atrás – da pouca atenção dada pelo Inquérito aos aspectos formais e arquitectónicos da habitação rural e da ênfase colocada, inversamente, em registos como a higiene, o conforto ou o nível de vida. Simultaneamente, o modo como esses registos são apreendidos acaba por produzir um retrato da casa popular que põe implicitamente em questão a sua natureza de objecto artístico. Observada pelos engenheiros agrónomos, a casa popular deixa de ser analisada através de qualidades como a beleza, a harmonia da composição, o vicejo da cor, para passar a ser vista a partir de categorias como a miséria, a sujidade, a falta de condições higiénicas, o cheiro nauseabundo, etc... As suas opções formais são, nessa medida, julgadas a uma luz completamente distinta. O telhado deixa de ser uma solução volumétrica mais ou menos conseguida para passar a ser um sítio por onde passam o vento e o frio. O espaçamento entre janelas não é tão importante quanto o facto de estas serem poucas, pequenas e desprovidas de vidraças. As proporções exteriores equilibradas dão lugar a um olhar que constata a exiguidade interna do espaço e o amontoado de pessoas na habitação. Ao branco exterior da cal opõe-se o «negro interior» da fuligem. E assim sucessivamente...
70Por fim, o Inquérito à Habitação Rural faz-se eco de uma visão distinta do povo português. Este deixa de ser visto como uma entidade mais ou menos essencializada dotada de qualidades étnicas positivas que a arquitectura popular se encarregaria de reflectir – como «o bom senso» ou «o sentido da medida» de que falava Raúl Lino –, para passar a ser visto, na sua matriz rural, como um grupo social internamente diversificado, caracterizado por condições de vida determinadas, em que a miséria ocupa um lugar de destaque. A uma visão esteticizada do povo opõe-se uma visão de matriz «neo-realista» deste.
Notes de bas de page
1 Para detalhes acerca de Rafael Duque, cf. Rosas 1991 e Amaral 1996b.
2 Acerca do carácter pioneiro destes conceitos – que já haviam sido utilizados no Inquérito Económico-Agrícola – nos estudos de economia agrária em Portugal, cf. Castro Caldas 1991: 500-502.
3 Acerca do papel de Castro Caldas na defesa de propostas de reformismo agrário em 1950 e 1960, cf. Amaral 1996a.
4 Parte dos dados respeitantes à parte sul do território nacional foram publicados no Relatório de Tirocínio de Carlos Silva, de que existe apenas um exemplar, na posse do próprio autor. Para um excerto desse relatório, cf. Silva 1989.
5 Segundo Carlos Silva, o «material informativo de base (...) para o previsto 3.° volume, estava todo reunido e disponível em 1947, com possível excepção, ao menos de parte, dos artigos introdutórios e dos capítulos de enquadramento geral» (Silva 1989: 758).
6 Cf., a este respeito, os trabalhos de Fernando Rosas (1991, 1994), Oliveira Baptista (1993, 1996a e 1996b) e Luciano do Amaral (1996a).
7 Elementos extraídos de uma entrevista com Carlos Silva realizada em 3 de Julho de 1996. De acordo com Carlos Silva, a Guerra Civil de Espanha parece ter sido um elemento fundamental na tomada de consciência política de alguns dos colaboradores do Inquérito.
8 De acordo com Castro Caldas, essa medida teria ainda afectado o II volume do Inquérito, então acabado de editar, que teria sido deficientemente distribuído, tendo «ficado em monte numa sala do antigo ISCEF» (Castro Caldas 1996). Nesse processo parece ter desempenhado um papel de destaque André Navarro (1904-1989), professor do ISA e deputado da União Nacional à Assembleia Nacional, onde produziu, em 1945 ou 1946 (não consegui apurar a data precisa), uma intervenção crítica acerca do Inquérito.
9 Todo o texto de Ramos da Costa surge de resto marcado pela preocupação de contraposição do Inquérito à ideologia ruralista do regime, de que a casa portuguesa seria apenas um dos elementos. Veja-se, por exemplo, o seguinte excerto, relativo ao Minho: os números do Inquérito relativos às «regiões do Alto Minho e Minho Litoral (...) negam com eloquência a honestidade de quantos [no-las] têm mostrado sob o prisma de um bucolismo poético, donde parece sempre desprender-se luz, cor e felicidade ambiente. Quantas vezes o Minho tem sido mostrado a estrangeiros como tipo de felicidade rural e alfobre de inspirações folclóricas, através de meia dúzia de meninas da sociedade elegante de Viana do Castelo e de Braga, a quem, por desfastio, se manda vestir os trajes regionais, e carregadas de oiro verdadeiro e falso, símbolo da riqueza, as mandam bambolear com artes de modelo de casa de alta costura. A realidade rural, porém, é bem outra: a média do valor actual das roupas de todos os exemplos do Inquérito no Alto Minho é (...) 227$34; se descermos aos extremos encontramos que, em Passô, um rendeiro e trabalhador rural (...) tem como único enxoval para marido, mulher e cinco filhos, 3 lençois, 6 mantas, 2 travesseiros e 2 fronhas, isto tão velho e esfarrapado que os engenheiros-agrónomos lhe deram como valor actual 38$50. Como loiça e vidros tem esta família 8 pratos, 2 garrafas para azeite e uma candeia» (id.: 36-27).
10 Para uma exploração da dialéctica entre pastoral e contra-pastoral, centrada na análise das concepções de Portugal Mediterrânico presentes nas obras de Orlando Ribeiro, Jorge Dias e José Cutileiro, cf. Leal 1999b. O leitor poderá encontrar aí um conjunto de referências teóricas complementares às que utilizo neste capítulo.
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