Capítulo 4. Um Lugar Ameno no Campo: a Casa Portuguesa
p. 107-143
Texte intégral
1Um dos aspectos mais salientes da produção etnográfica e antropológica de Adolfo Coelho é constituída sem dúvida pelos sucessivos programas de trabalho que redigiu (1993b 11880], 1993d [1890] e 1993e [1896]). Esses programas são muito desiguais quanto às suas inspirações e alcances. Mas em todos eles Adolfo Coelho procede a uma listagem sistemática – por vezes extremamente desenvolvida – dos principais temas e objectos de estudo que deverão preocupar os etnógrafos e antropólogos portugueses.
2Este afã classificatório dos Programas de Adolfo Coelho é susceptível de vários comentários (cf. Leal 1993a). Por seu intermédio somos confrontados com as primeiras tentativas de sistematização de um campo de estudos que dava então em Portugal os seus primeiros passos. A um outro nível, eles são importantes testemunhos do processo de alargamento de interesses de pesquisa antropológica portuguesa no decurso do século xix.
3Gostaria porém de os considerar aqui, adoptando um outro ponto de vista, como uma ilustração daquilo que Richard Handler definiu como processos de objectificação da cultura (Handler 1988). Os planos de aplicação deste conceito na obra de Handler são dois. Em primeiro lugar, o conceito tem a ver com o modo como os discursos nacionalistas encaram a cultura nacional no seu conjunto. Esta é objectificada, no sentido em que, «como uma coisa, uma nação ou um grupo étnico são vistos como sendo permanentemente delimitados e como podendo ser distinguidos com precisão de outras entidades análogas» (id.: 15). Em segundo lugar, o conceito de objectificação tem a ver com o modo como a cultura nacional é vista como «um objecto natural ou uma entidade feita de (outros) objectos e entidades ou traços» (id.: 14). Isto é, segundo Handler, a possibilidade de se falar da cultura nacional como uma entidade estaria estreitamente ligada a um processo de objectificação dos próprios elementos componentes dessa cultura.
4Esta segunda acepção do processo de objectificação da cultura é desenvolvida com mais detalhe no capítulo que, na sua monografia, Handler consagra ao estudo do lugar do folclore na emergência e constituição de um discurso nacionalista no Québec. A objectificação da cultura é aí vista como um processo que transforma determinados traços da cultura tradicional em
objectos discretos que devem ser estudados, catalogados e mostrados. Esse processo envolve selecção e reinterpretação. O objectificador olha para um meio familiar e descobre que é formado de traços tradicionais, coisas que ele extrai daquilo que era tido até aí como um fundo cultural «encarado com naturalidade» e transforma em especímenes típicos (id.: 77)
5de outra coisa completamente diferente. A objectificação é justamente esse processo que consiste na transformação de determinados traços da vida tradicional em objectos representativos de uma cultura nacional, coisas que só nós temos e os outros não, coisas sobre que repousa a possibilidade mesma de se falar de uma cultura nacional como própria, específica, distinta, original.
6E, creio eu, particularmente sugestivo olhar para as listagens de temas e tópicos etnográficos de Adolfo Coelho à luz das concepções que acabámos de passar em revista. Mais do que simples tentativas de sistematização de um campo de estudos que dava então em Portugal os seus primeiros passos ou importantes testemunhos do processo de alargamento de interesses de pesquisa da etnologia portuguesa no decurso do século xix, as listagens de Coelho devem ser vistas como uma indicação dos vários traços e/ou aspectos da cultura tradicional portuguesa susceptíveis de serem transformados em «objectos discretos que devem ser estudados, catalogados e mostrados» na sua qualidade de objectos representativos da cultura tradicional portuguesa.
7Por seu intermédio somos pois confrontados com uma das dimensões centrais dos discursos etnográficos e antropológicos em Portugal: o modo, como, à semelhança dos estudos folclóricos analisados por Handler no Québec francês, a etnografia e a antropologia portuguesa – com a cumplicidade de outras áreas disciplinares de uma ou de outra forma interessadas no popular – podem ser encaradas como disciplinas onde se efectua esse trabalho de objectificação da cultura popular portuguesa, indispensável à plena assumpção de Portugal como nação distinta e singular.
8Ora bem, entre os objectos de pesquisa recorrentemente indicados por Adolfo Coelho nos seus Programas encontra-se a habitação. No Programa de 1880, a referência é ainda breve, resumindo-se à indicação da importância da realização de estudos etnográficos sobre a «construção das casas» e «cabanas» (1993b [1880]: 679). Apesar do seu carácter quase alusivo, é grande a importância dessa referência seminal ao tema da arquitectura popular. O Programa de 1890 é – como vimos no capítulo 1 – a primeira tentativa de organização programática do campo então emergente da antropologia e, por intermédio dessa breve referência, a arquitectura popular é como que incorporada no código genético da disciplina.
9No Programa de 1896, o tratamento do tema é já feito de forma bastante desenvolvida. Coelho lista de facto a habitação entre aqueles aspectos da vida popular portuguesa que «têm sido apenas levemente tocados» (1993e [1896]: 703). Consequentemente, ela surge depois em lugar de destaque entre as «divisões principais» (id.: 706) do programa proposto por Coelho, quer na entrada «habitação» (id.: 707), quer na entrada «arquitectura» (id., ibid.). No «Desenvolvimento do Programa» (id.: 708), a habitação volta a ocupar lugar de destaque, sendo-lhe consagrado uma secção especial intitulada «A habitação e em especial a habitação rural e suas dependências» (id.: 711). Ao longo de cerca de uma página, Coelho identifica sucessivamente os elementos que seria importante recolher na perspectiva de um estudo completo das formas de arquitectura tradicional portuguesas. Entre esses elementos encontrar-se-iam: «planos topográficos», «fotografias ou desenhos de aldeias ou outros lugares pequenos» e de «granjas, casais, herdades (montes), com todas as suas dependências»; «plantas e alçados» «modelos» e fotografias» não apenas de «casas rústicas e populares em geral» mas também de «simples choças, cabanas, choupanas»; documentação sobre «ornamentos das empenas, beirais (...), paredes, azulejos» (id., ibid.); «amostras de materiais de construção empregados nas aldeias»; e, por fim, «literatura da habitação popular portuguesa, compreendendo os usos e costumes que se lhe ligam» (id.: 712).
10Os apelos feitos em 1880 e 1896 por Adolfo Coelho no sentido de um estudo aprofundado da habitação e arquitectura populares terão algum impacto no campo etnográfico. Mas, no essencial, o interesse que esses temas despertarão entre etnógrafos e antropólogos será, a curto prazo, algo limitado. De facto, com excepção de Rocha Peixoto e de alguns dos seus colaboradores na revista Portugalia, foram escassos os ecos imediatos das sugestões de Coelho. Face a esta resposta menos entusiasta da etnografia e da antropologia, será a partir de outros especialistas e de outras áreas que se consolidará, no decurso da última década do século xix, um interesse mais sustentado pelo tema da arquitectura popular.
OS PROTAGONISTAS DA CASA PORTUGUESA
11No processo de desenvolvimento inicial desse interesse, o papel fundamental coube às propostas, análises e realizações produzidas – por arquitectos, historiadores da arte e simples curiosos – no quadro do movimento dito da «casa portuguesa». Desenvolvendo-se ao longo de um período que se estende grosso modo da década final do século xix até aos anos 40/50 do século xx esse movimento, ao mesmo tempo que defendeu a existência de um tipo específico de habitação popular que seria caracteristicamente português, procurou a institucionalização de um formulário arquitectónico inspirado nesse tipo de habitação.
12Desde os trabalhos pioneiros de José Augusto França (1990 [1967], 1991 [1974]), que os personagens centrais do movimento se encontram razoavelmente identificados. Entre eles avulta desde logo a figura de um pai fundador, Henrique das Neves (?-1915), obscuro militar de carreira que uma nota de rodapé escrita em jeito de sugestão ocasional iria projectar para a fama. Tendo cumprido em Viseu um período de quatro meses de vicatura num tribunal de guerra, o então tenente-coronel Henrique das Neves dedicava parte do seu tempo livre a investigar a famosa Cava de Viriato, tema sobre o qual viria em 1893 a editar um pequeno livro. É exactamente no decurso desse estudo, sem que o facto venha muito a propósito, que Henrique das Neves insere uma nota de rodapé de duas páginas de extensão em que, lembrando-se de uma conversa antiga com Paula de Oliveira – entretanto falecido – sugere poder-se encontrar também na Beira um tipo de habitação que aquele antropólogo físico havia sugerido ser característico de Trás-os-Montes e que se encontraria um pouco por todo o Norte do País, incluindo a cidade do Porto:
O característico destas construções é o ser reentrante a parede frontal do último pavimento em relação à parede mestra frontal que vem dos alicerces, dando assim espaço a um balcão largo e desoprimido, abrigado pelo telhado de modo a proteger contra as neves do Inverno e os ardores do estio (1893: 47).
13Simultaneamente, a escada exterior que dá acesso a esse balcão ou varanda, situar-se-ia perpendicularmente à frente da casa ou, nas casas mais pobres, abrir-se-ia numa das extremidades da varanda correndo paralelamente à frontaria. A observação, do ponto de vista etnográfico, era judiciosa – como o confirmaram pesquisas posteriores – mas não teria tido o destino triunfal que teve se, por um lado, a casa assim definida não fosse entendida por Henrique das Neves, no seguimento das sugestões de Paula de Oliveira, como o «tipo português de casa de habitação» (id., ibid.), e, por outro, não fosse vista como um modelo dotado de potencialidades estético-formais actuais. Ela seria de facto, segundo Henrique das Neves, «bem mais agradável e apropriada ao nosso clima variável do que muitas que por aí se vêem para uso particular» que, além de inadequadas ao clima, seriam ainda «dispendiosas» (id.: 48).
14Formuladas numa simples nota de rodapé, as observações de Henrique das Neves terão um eco que o próprio autor não esperaria. Enquanto que o livro em si cai no esquecimento, a nota de rodapé, pelo contrário, ganha rapidamente uma vida própria, sendo sucessivamente transcrita, sob a forma de artigo, em A Arte Portuguesa (1895), na revista Ocidente (1896), e, por fim, em 1915 – ano da morte de Henrique das Neves – em A Arquitectura Portuguesa (1915)1. Nunca uma simples nota de rodapé deverá ter tido um destino tão risonho.
15À medida em que são publicadas as reedições da nota de Henrique das Neves – significativamente rebaptizada entretanto com o título de «A Casa Portuguesa» – as opiniões e os comentários em tomo das sua propostas multiplicam-se. A casa portuguesa passa a ocupar um lugar importante na polémica cultural da época, mobilizando um grupo razoavelmente lato de protagonistas, com posições diversas acerca do assunto.
16Entre esses protagonistas, destacam-se Rocha Peixoto e João Barreira (1866-1961). São eles de facto os autores de duas das contribuições mais significativas para o «dossier» da casa portuguesa no seu período de desenvolvimento inicial. Rocha Peixoto, pelo seu lado, editou em 1904 o artigo «A Casa Portuguesa» (Peixoto 1967f [1904]), que, até aos trabalhos de Ernesto Veiga de Oliveira e dos seus colaboradores, permanecerá como a mais relevante contribuição etnográfica para o estudo da habitação popular em Portugal. Quanto a João Barreira, historiador de arte, é o autor, em 1909, da primeira grande proposta de abordagem sistemática da casa portuguesa subsequente aos contributos iniciais de Henrique das Neves (Barreira 1909).
17Para além destes dois autores mais relevantes, o movimento da casa portuguesa mobilizará ainda outras contribuições episódicas, vindas sobretudo do lado da então emergente história da arte. É o que se passará com Gabriel Pereira (1847-1911) (1895) – que teve também um papel central na difusão inicial da nota de rodapé de Henrique das Neves –, com D. José Pessanha, autor de várias contribuições publicadas na revista A Construção Moderna (cf. designadamente Pessanha 1902a, 1902b), e com Joaquim de Vasconcelos, que consagrou ao tema da casa portuguesa uma passagem do seu ensaio «Arte Decorativa Portuguesa» (1909). Simultaneamente ensaístas e literatos como Abel Botelho (1856-1917) (1903), e, sobretudo, Ramalho Ortigão (1836-1915) (1943 [1896]) ou Fialho de Almeida (1857-1911) (1915 [1903]: 234-241) darão também o seu contributo ao debate, que, no caso destes dois últimos autores, é particularmente importante, dada a projecção e a capacidade de influenciar a opinião intelectual que ambos tinham.
18À medida que o debate escrito progredia e se alargava, a casa portuguesa ia também ganhando a simpatia de um outro grupo de protagonistas, constituído sobretudo por arquitectos, engenheiros e construtores civis, fundamental mente interessados na experimentação prática das virtualidades arquitectónicas do ideal de um tipo português de habitação. Algumas dessas experimentações tinham sido de resto praticamente contemporâneas da nota de rodapé de Henrique das Neves. É o que se passa com a célebre Casa Arnoso (1894), de quem Ramalho Ortigão tinha publicado um rasgado elogio, classificando-a como um
tipo, único, de habitação (...) tão saudosamente semelhante à casa de nossos avós, com o seu pequeno eirado sobre uma arcaria de meio-ponto, a sua porta de alpendre num patamar de escada exterior, ao lado do retábulo em azulejo do santo padroeiro da família, as janelas de peitos guarnecidos de rótulas entre cachorros de pedra, destinados às varas do estendal, e servindo de mísula aos vasos de craveiros e manjericos, em frente do poço de roldana, no mais doce e tranquilo sorriso de outrora (1943 [1896]: 132).
19Mas é sobretudo à medida que nos aproximamos da viragem do século que as pesquisas estéticas tendentes ao reaportuguesamento da habitação em Portugal se fazem mais notórias. O processo ocorre primeiro de forma ainda isolada, como na casa O'Neill (Estoril, 1900), da autoria de Francisco Vilaça, e na casa Ricardo Severo (Porto, 1904). Mas, sobretudo a partir do início do século xx, ganha uma relevância cada vez maior. Nas principais revistas de arquitectura da época – A Construção Moderna, A Arquitectura Portuguesa, etc. – multiplicam-se os projectos com essas características, ora baptizados com recurso à designação de «casa portuguesa», ora classificados como sendo de «estilização regionalista», «tradicional», ou «tradicionalista». Entre os arquitectos que subscreverão propostas desse tipo contam-se – para além de Francisco Vilaça Álvaro Machado (1874-1923), Guilherme Gomes ou Edmundo Tavares (1892-?)2.
20Tendo em Henrique das Neves o seu pai fundador, desmultiplicando-se depois pelo conjunto de protagonistas que acabámos de evocar, será entretanto em Raúl Lino (1879-1974) – como é sabido – que a casa portuguesa encontrará a sua figura tutelar. Sendo – a par de Ventura Terra (1866-1914) – um dos mais importantes arquitectos portugueses das primeiras décadas do século xx, autor – entre outros projectos – da famosa Casa do Cipreste (Sintra, 1912-14), Raúl Lino foi também, ao longo do extenso período que se estende desde a viragem do século até à sua morte em 1974, o mais persistente e qualificado intérprete da casa portuguesa e o seu principal teorizador e divulgador.
21Regressado a Portugal – depois de uma estadia de estudo de cerca de quatro anos na Alemanha e na Inglaterra – em 1897, isto é, nos anos em que o tema da casa portuguesa iniciava o seu processo de implantação na cena intelectual portuguesa, Raúl Lino parece ter desenvolvido a sua simpatia por essas propostas em resultado de uma sensibilidade romântica e nacionalista desenvolvida no estrangeiro. No desenvolvimento dessa sensibilidade começou por ter grande influência, como se sabe, o historiador de arte alemão Albrecht Haupt, que incutiu no então jovem Lino o amor pela arquitectura portuguesa da Renascença. Simultaneamente, tem sido também destacado o valor formativo e a influência que tiveram em Lino autores como Ruskin, Morris e, em geral, as propostas do movimento inglês Arts and Crafts3.
22Solidificada pela leitura de Emersom e Thoreau – os dois autores clássicos da literatura pastoralista norte-americana –, por longos passeios em Sintra e no Alentejo – que percorre de bicicleta com o aguarelista Roque Gameiro (1864-1935) – e pela viagem que empreende em 1902 a Marrocos, a sensibilidade romântica e nacionalista de Raúl Lino não tardaria a traduzir-se num conjunto de projectos arquitectónicos cujas premissas se aproximam das advogadas pelos defensores da casa portuguesa. Entre esses projectos – alguns deles claramente influenciados pelas suas deambulações pelo Alentejo e por Marrocos – encontram-se o projecto para o pavilhão português da Exposição Universal de Paris (1899, não construído), as chamadas «casas marroquinas» – casas Rey Colaço (1901, Estoril) Montsalvat (1901, Estoril) e O'Neill (1902, Cascais)4 – a Quinta da Comenda em Setúbal (1903) e a Casa dos Patudos (Alpiarça, 1904), para além de vários projectos não construídos mas onde são evidentes as marcas de uma estilização tradicionalista5. Tendo suscitado os aplausos generalizados da crítica da época, esses e outros projectos rapidamente contribuirão para que Raúl Lino se tome na figura central do movimento da casa portuguesa. Em 1902, por exemplo, D. José Pessanha classifica já Raúl Lino – então com pouco mais de vinte anos – de «talentoso arquitecto», «inovador» (1902a: XX) e diz não ter dúvidas «quanto à existência futura da casa portuguesa», caso – acrescenta – «o movimento iniciado pelo sr. Raúl Lino (...) se for acentuando e generalizando» (id.: XIX). Num dos vários artigos consagrados a Raúl Lino pela revista A Construção Moderna, ele é também apresentado como
infatigável e inteligente artista, que tem dispersos por todo o país belos exemplares de arquitectura de todos os géneros, embora se tenha dedicado mais especialmente à arquitectura de estilização tradicionalista nacional (A Construção Moderna Ano V, n.o 122, de Fevereiro de 1904).
23É também no mesmo sentido que se pronuncia Fialho de Almeida, quando classifica aprovadoramente Raúl Lino como «o único arquitecto que até agora tentou renacionalizar a casa portuguesa» (1915 [1903]: 237).
24A centralidade de Lino no desenvolvimento do movimento da casa portuguesa é confirmada pela sua produção arquitectónica ao longo dos anos 1910 e 1920. Embora com acenos pontuais em relação a outras sensibilidades esta continuará de facto a ter no programa da casa portuguesa uma das suas inspirações principais. Mas para ela contribuirão também dois outros factos. O primeiro tem a ver com a relevante acção que Raúl Lino terá na teorização e divulgação da nova sensibilidade. Como se sabe, os momentos determinantes dessa sua acção passam pela edição em 1918 de A Nossa Casa, em 1929 do ensaio «Casas Portuguesas» e, em 1933, de A Casa Portuguesa e prolongamse posteriormente numa acção incansável de escrita em revistas como O Panorama, o Mensário das Casa do Povo ou jornais como o Diário de Notícias. O primeiro e o último livro, em particular, tiveram numerosas edições e uma larga circulação e contribuíram de forma relevante para a estabilização do novo gosto arquitectónico. O segundo facto decisivo para a consagração de Raúl Lino como figura central no movimento da casa portuguesa tem a ver com o modo como, a partir da década de 1940, as propostas de Lino encontram um acolhimento favorável na «política de gosto» do Estado Novo. O facto dará uma dimensão política e institucional decisiva à acção de Raúl Lino em favor da casa portuguesa. Até aí limitadas à esfera da habitação unifamiliar isolada, as propostas arquitectónicas apoiadas no figurino da casa portuguesa passam a inspirar importantes programas de habitação social ou equipamentos públicos como escolas primárias, casas do povo, estalagens, etc...
OS TEMPOS DA CASA PORTUGUESA
25Activado, sustido e desenvolvido pela galeria heterogénea de personagens que acabámos de passar em revista, o movimento da casa portuguesa conheceu quatro tempos principais no seu processo de desenvolvimento.
26Um primeiro tempo estende-se genericamente de 1893 – data da publicação da nota de Henrique das Neves sobre «um tipo português de habitação» e também das primeiras pesquisas arquitectónicas em torno do mesmo tema – a 1909. O traço central desse período é constituído pelo conjunto de discussões e debates, por vezes muito vivos, em torno da ideia mesma de casa portuguesa.
27Nessa discussão, para além de outros argumentos mais dispersos, a questão central que é repetidamente levantada é a da compatibilidade entre a ideia de casa portuguesa e a diversidade morfológica que a habitação popular apresentaria no país. A possibilidade de se falar de casa portuguesa num país de que se descobria simultaneamente a diversidade interna era de facto a parte mais fraca do argumento de Henrique das Neves. Era de resto o próprio a admitir que o seu modelo de casa portuguesa era um modelo centrado a norte, válido sobretudo no que ele apelidava de «país do tamanco».
28Será justamente em tomo dessa questão que se orientará o debate em torno da casa portuguesa entre 1893 e 1909. As primeiras objecções, ainda cautelosas, vêm de autores que se afirmam entretanto partidários da casa portuguesa. É este nomeadamente o caso de Gabriel Pereira (1895) e D. José Pessanha (1902a), que, sem esconderem o seu entusiasmo em relação à casa portuguesa, não deixam de suscitar a questão da compatibilidade entre a casa portuguesa e a diversidade da habitação popular em Portugal.
29A par destas reacções mais cautelosas, não tardarão entretanto a surgir vozes mais radicalmente cépticas. Entre elas está por exemplo a de Abel Botelho que, num artigo de 1903, não só retoma a questão da diversidade tipológica da habitação popular em Portugal, como denuncia a desadequação entre a inspiração ruralizante da casa portuguesa e as exigências do viver citadino. Mas a crítica simultaneamente mais profunda e com maior impacto será a formulada por Rocha Peixoto no seu artigo «A Casa Portuguesa» (1967f [1904]). Nele, Rocha Peixoto – que, como vimos no capítulo 1, era um dos etnógrafos portugueses que primeiro se tinha mostrado atento aos factores da diversidade do país – procede àquela que foi, até aos anos 1950, a argumentação etnográfica mais elaborada da diversidade de tipos habitacionais populares existente no país e à consequente contestação da existência de um modelo único de casa portuguesa6.
30Esboçadas sensivelmente na mesma altura, as críticas de Abel Botelho e Rocha Peixoto parecem ter tido algum impacto. De facto, ambas foram inicialmente publicadas em dois jornais diários de relativo prestígio, sendo posteriormente retomadas em revistas mais especializadas. O artigo de Abel Botelho seria designadamente reeditado na revista A Construção Moderna (n.o 92 de 1903). Quanto à contribuição de Rocha Peixoto, será publicada de novo na revista A Construção Moderna (n.o 141 de 1904) e, posteriormente, nas revistas Serões (Vol. I de 1905) e A Arquitectura Portuguesa (Vol. IX, n.o 8 de 1916), nesta última, entretanto, de forma truncada.
31O impacto destas críticas não foi porém suficiente para desarticular o movimento em torno da casa portuguesa. De facto, cinco anos depois da publicação da crítica de Rocha Peixoto a única voz deliberadamente discordante em relação à casa portuguesa parece ser a de Joaquim de Vasconcelos que retomava de novo, num tom fortemente crítico, o problema da diversidade «provincial» da casa portuguesa (Vasconcelos 1909).
32Mas a voz de Joaquim de Vasconcelos era já então uma voz isolada. Com o seu protesto encerra-se de facto este período inicial de debate e polémica em torno da casa portuguesa e abre-se um segundo tempo no ciclo de desenvolvimento do movimento, que se prolongará sensivelmente até ao início dos anos 1920 e que será marcado por um consenso relativamente alargado em torno das suas propostas. É certo que não desaparecem as dúvidas suscitadas pelos debates anteriores. Mas o programa da casa portuguesa parece ser mais forte do que essas dúvidas.
33É nesse sentido que aponta o importante contributo de João Barreira – de resto publicado na mesma obra onde Joaquim de Vasconcelos havia exarado o seu protesto contra a casa portuguesa. De facto, depois de uma parte inicial colocada sob o signo da constatação da diversidade etnográfica e histórica da habitação em Portugal, João Barreira acaba por, na conclusão do texto, admitir que esta não seria entretanto de molde a impedir que se falasse de uma certa unidade de motivos subjacente à casa portuguesa. Retomando de forma modificada as propostas de Henrique das Neves, Barreira diz que essa unidade resultaria antes do mais da relativa divulgação de um modelo de habitação «com escada exterior encostada a uma das fachadas do prédio ou caindo perpendicularmente sobre esta e coberta (...) por um alpendre assente em colunatas dóricos ou jónicos» 1909: (177). Simultaneamente, seria também possível detectar uma certa unidade ao nível do «pormenor decorativo» (id.. ibid.). Este, não obstante oferecer «uma abundante variedade de motivos locais» (id.: 178), seria «a pedra de toque de onde irradia a expressão regional da casa portuguesa, pois é ele que lhe imprime carácter e lhe dá vida nossa» (id., ibid.: os itálicos são meus).
34Um folhear atento das principais revistas de arquitectura do período confirma também o esgotamento das resistências à casa portuguesa. É certo que continuam a ser expressas dúvidas sobre a existência de um tipo único de habitação popular em Portugal, dizendo -se repetidamente que o assunto não está encerrado, que são necessários mais estudos. É por exemplo o caso de uma nota – assinada por Nihil – em torno de uma exposição de projectos de casa portuguesa realizada por Edmundo Tavares em 1915 na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA). Em 1917, A Arquitectura Portuguesa publica mesmo – conforme foi referido atrás – extractos dos textos críticos de Abel Botelho e de Rocha Peixoto. Mas o que avulta é o modo como, a par desses apontamentos mais cépticos, cresce de forma significativa o número de projectos publicados em revistas que, de uma forma ou de outra, se identificam com a casa portuguesa: um total de onze entre 1908 e 19177. E se algumas das dúvidas em relação à casa portuguesa são justamente expressas nas notas que acompanham esses projectos, o tom geral é elogioso.
35Isto é, no final da primeira década do século xx, não só os adversários da casa portuguesa deixam de se fazer ouvir, como parece ter-se gerado um certo consenso em torno da casa portuguesa. Embora não desapareçam, as dúvidas relativamente à possibilidade de se falar de casa portuguesa num quadro de marcada diversidade regional parecem mais apaziguadas e a casa portuguesa torna-se uma referência incontornável na cena cultural e arquitectónica portuguesa.
36É neste quadro que deve ser entendida a publicação em 1918 de A Nossa Casa de Raúl Lino. Inspirado num género que tinha tido bastante voga no século xix e no princípio do século xx, o livro assume-se como uma espécie de guia prático de arquitectura dirigido não tanto ao povo, mas «àqueles que sentem a necessidade de possuir uma casita feita com propriedade, aos que se enternecem pelo conforto espiritual dum ninho construído com beleza» (1918: 12). Esse guia mistura em proporções variáveis conselhos práticos de bom senso com a defesa de um modelo de casa que – embora a expressão não seja utilizada – remete para o formulário da casa portuguesa.
37Esse modelo de casa é, de facto, o das «boas casas portuguesas de há meio século atrás» (1918: 28), quando
as obras mais modestas, ou rústicas, se executavam por gente prática, obedecendo sempre às tradições regionais. Deste modo todas as cidades, vilas e aldeias ofereciam um aspecto agradável e interessante pela harmonia do seu conjunto, sem exclusão da variedade (id16).
38É o retorno a essas tradições regionais que justamente Lino advoga:
E lógico que se construa no estilo da região. É natural que se respeitem tradições locais, que adoptemos processos de mão-de-obra experimentados, que nos sirvamos dos materiais circunjacentes (id.: 27).
39Esse retorno ao regional é entretanto um retomo guiado pela mão experiente do arquitecto que insiste, antes do mais, na necessidade de respeitar algumas regras relativas à organização da planta da casa, de «adaptação absoluta ao ambiente em volta da casa» (id.: 37) ou na defesa das boas proporções desta, contra a tendência portuguesa de construir sobre o alto e de forma esguia. Mas, para além destas indicações de natureza geral, aquilo que avulta no modo como Lino se propõe guiar os seus leitores no retorno à «boa casa portuguesa de há meio século atrás» é um formulário estilístico assente num conjunto de soluções que traduzem uma nova aproximação à casa portuguesa vista simultaneamente como realidade etnográfica e como programa estético.
40Entre essas soluções avulta, antes do mais – e esse é um traço de união com as propostas anteriores de Henrique das Neves e de João Barreira –, o alpendre. Este é descrito com uma «feição caracteristicamente portuguesa cuja importância se não pode exagerar» (id.: 51). Dada essa sua importância,
o alpendre (...) entre nós deveria merecer tal desenvolvimento que se tornasse indispensável, principalmente nas habitações desprovidas de jardim. Para isso não nos faltam os melhores modelos nas nossas construções antigas (id., ibid.).
41A par do alpendre, a casa portuguesa seria caracterizada por um conjunto de outros traços suplementares, todos de alto valor cenográfico. Entre eles contar-se-ia desde logo a caiação, tanto a branco como a cores, à qual Lino dedica algumas passagens particularmente entusiastas. A caiação, embora possa não excluir a utilização de pedra aparelhada – cujo «emprego é sempre belo quando dentro das tradições regionais» (id.: 35) – é de qualquer forma um aspecto fundamental da casa portuguesa tal como Raúl Lino a concebe. O aspecto do telhado é outro dos elementos centrais das propostas de Lino, que, para além de se pronunciar a favor do emprego de telha manual portuguesa, procede a uma primeira caracterização e elogio do «beiral à portuguesa» (id.: 41). A presença de chaminés – «hospitaleiras e fartas» (id.: 28) – e o emprego do azulejo, embora não sejam tão desenvolvidamente tratados, são outros aspectos a reter nas propostas de Lino.
42Acompanhadas de um conjunto de aguarelas e plantas que pretendem evocar de forma eficaz as diferentes possibilidades regionais de construção da casa portuguesa, as propostas desenvolvidas em A Nossa Casa podem ser vistas como o ponto culminante de um processo que se iniciara quase vinte e cinco anos antes, com a nota de Henrique das Neves. Mais para além de textos ocasionais, alguns deles de circulação restrita, mais para além de análises etnográficas ou programas habitacionais avulsos, dispunha-se agora de uma referência de maior fôlego, que conhecerá uma circulação relativamente ampliada e onde se condensam as coordenadas do novo gosto.
43Atingindo um dos pontos culminantes do seu desenvolvimento em 1918, com a edição de A Nossa Casa, o movimento da casa portuguesa parece entrar nas décadas subsequentes numa terceira fase no seu processo de desenvolvimento, que se estende sensivelmente até aos anos 1940. Esta fase parece ser marcada antes do mais pela rotinização das suas propostas, acompanhada de uma certa perca generalizada de qualidade, contra a qual se insurgirá, de resto, o próprio Lino em Casas Portuguesas. Transformada em «casa à antiga portuguesa», a casa portuguesa – como escreverá Lino numa das suas últimas reflexões sobre o tema – tinha então caído «sob o domínio dos amadores e curiosos avessos a toda a disciplina, e pode dizer – se alheios a uma cultura artística mais aberta» (s/d: 209)8.
44Simultaneamente esse terceiro tempo no desenvolvimento da casa portuguesa é também caracterizado por uma certa perca de importância e visibilidade do seu formulário na cena arquitectónica e cultural portuguesa, onde as propostas art deco e a arquitectura modernista, fortalecidas pela divulgação dos novos materiais, em particular do cimento (cf. Femandes 1993), se tornam sucessivamente nas novas coqueluches.
45De acordo com João Vieira Caldas, «os primeiros indícios de mudança surgem logo por volta de 1920» (1997: 35), tendo inicialmente uma marca dominante art déco, particularmente importante nos primeiros projectos de Pardal Monteiro (1897-1957). Mas é sobretudo a partir de 1925 que o modernismo arquitectónico começa a fazer sentir a sua influência em Portugal. Datam desse período três dos mais emblemáticos projectos do primeiro modernismo português: o projecto do Bairro Económico de Olhão (1925) e o Pavilhão do Rádio do Instituto de Oncologia (1927-1933) de Carlos Ramos (1897-1969) e o Capitólio (1926-29) de Cristino da Silva (1869-1976).
46Isso não quer dizer que a casa portuguesa desapareça da cena arquitectónica portuguesa. Em 1926, por exemplo, Jorge Segurado (1898-1990) publica na revista Alma Nova um artigo extremamente elogioso sobre a casa portuguesa em que são listados cerca de uma dezena de arquitectos – alguns deles seduzidos pelas propostas modernas – que se identificariam com as suas propostas9. De facto, como tem sido sublinhado, muitos dos arquitectos do primeiro modernismo português não levaram o seu comprometimento com as ideias modernas ao ponto de recusarem propostas mais tradicionalistas e serão, em muitos casos, cultores simultâneos de umas e de outras (cf. Vieira Caldas 1997 e Portas 1970, 1999: 122)10. É também conhecida a influência do modelo da casa portuguesa no desenvolvimento de alguns programas de habitação social – os chamados «bairros económicos» – construídos em Lisboa ao longo dos anos 1930 (cf. Portas 1970: 18).
47Raúl Lino parece também manter intacta a sua crença nas virtualidades do modelo, como o testemunham a edição, em 1929, do ensaio «A Casa Portuguesa» e, em 1933, do livro Casas Portuguesas (1992 [1933])11. No primeiro texto, Lino tenta responder de forma mais detalhada, através de um estudo de natureza histórica e etnográfica, ao problema de determinar as grandes invariantes da arquitectura portuguesa. Ao mesmo tempo que retoma algumas das ideias já expostas em A Nossa Casa – relativas nomeadamente à importância do alpendre, da caiação e do azulejo – Lino introduz agora dois novos elementos definidores da especificidade da casa portuguesa. Um deles seria «o emprego de pedra no guarnecimento de todos os vãos exteriores» (1929: 13). Este traço seria de tal modo importante que «não temos maneira de dar carácter português a qualquer casa cujas portas e janelas não sejam completamente guarnecidas do seu lancil de cantaria» (id., ibid.). O segundo traço seria «a linha da (...) cobertura sanqueada e arrematada pelo beiral dito à portuguesa. Nunca o telhado assenta sobre as paredes, com a dureza geométrica usada noutras terras» (id.: 58). A importância deste tipo de cobertura seria tão grande que «esta disposição original, só por si, quase que marca o tipo da nossa casa» (id., ibid.).
48Publicado na sequência deste ensaio, o volume Casas Portuguesas constitui pelo seu lado uma espécie de versão razoavelmente corrigida e ampliada das ideias defendidas originalmente em A Nossa Casa. O modelo de casa portuguesa que é aí defendido articula-se, nessa medida, em torno de um conjunto de elementos já anteriormente tipificados: o alpendre, a caiação combinada com o guarnecimento a pedra dos vãos, o telhado sanqueado e o azulejo. Mas uma nova ênfase é agora colocada em dois pontos que, anteriormente tinham sido objecto de referências menos desenvolvidas. Um deles tem a ver com a integração da casa na paisagem. É sobretudo essa integração que Lino tem em mente quando indica como primeira qualidade importante de uma casa a sua «naturalidade». Esta exprimir-se-ia por exemplo no modo como «o construtor vai buscar os materiais que são de uso na respectiva região e que muito frequentemente apresentam caracteres pelos quais a casa construída se liga à própria paisagem» (1992: 50). Mas exprimir-se-ia também numa outra qualidade importante da casa que seria a sua «harmonia». «A construção – escreve Lino – deve estar de harmonia (...) com todas as condições do local onde for construída» (id.: 51). O segundo ponto tem por sua vez a ver com o sentido das proporções. «A proporção – escreve Lino – é a base de toda a arquitectura. Proporção, linha, volume, eis os elementos de que o arquitecto dispõe em primeiro lugar» (1933: 60). «Pelo intervalar das janelas, pelo espaçamento entre os vãos e a beira do telhado, pela altura que o andar principal paira acima da rua (...) apreendese o carácter nobre da moradia» (id.: 62).
49Entretanto, apesar destes factos, a sensação que fica é que a casa portuguesa já não ocupa na cena arquitectónica e cultural nacional o lugar que tinha ocupado no passado. O seu potencial renovador parece esgotado e a experimentação com outras propostas é agora o traço mais saliente.
50O advento do Estado Novo, num primeiro momento, não modifica substancialmente este quadro. De facto, na sua fase inicial, o Estado Novo parece coexistir bem com a arquitectura modernista, que inclusivamente chega a estimular de forma clara. É conhecido o papel de Duarte Pacheco (1899-1943) nesse processo. Não só é da sua responsabilidade directa a encomenda de um dos edifícios mais importantes do primeiro modernismo português – o Instituto Superior Técnico (Lisboa, 1927-1941), da autoria de Pardal Monteiro – como é em larga medida devido à sua acção que se fica a dever a adopção, nos anos 1930, do vocabulário modernista num certo número de edifícios públicos. Entre eles, os mais conhecidos são, sem dúvida, o Liceu de Beja (Cristino da Silva, 1930-34), o Instituto Nacional de Estatística (Pardal Monteiro, 193135), e, já no início dos anos 40, a Gare Marítima de Alcântara (Pardal Monteiro, 1943). Em resultado deste clima favorável à arquitectura modernista, o próprio Raúl Lino tem muito menos oportunidades para construir do que ele próprio esperaria.
51Entretanto, a partir de finais dos anos 1930 – «na fase fascizante do Estado Novo (guerra civil de Espanha, criação da Mocidade e da Legião Portuguesa)» (Teotónio Pereira 1996) –, este quadro de relativa abertura à arquitectura moderna conhece uma certa involução, derivada da adopção e imposição, pelo Estado Novo, de um receituário oficial para a arquitectura. Embora algumas das opções desse receituário já viessem de trás, ele torna-se então uma referência praticamente obrigatória na encomenda pública. De acordo com Teotónio Pereira, eram três as suas grandes orientações:
Para os grandes edifícios públicos (...) o carácter dominante era de uma monumentalidade retórica de raiz clássica, muito próxima dos modelos alemães ou italianos da época. (...) Já nos edifícios públicos de dimensão menor, em geral situados em pequenas cidades ou aldeias, os elementos de raiz rural ou regional assumem um carácter preponderante: telhados e beirados fortemente acusados, cunhais, cornijas e molduras dos vãos em pedra caprichosamente trabalhada, e por vezes até pináculos barrocos» (...). Modelos híbridos, de cariz monumentalista mas utilizando vocabulário histórico ou regionalista, aparecem por vezes em edifícios públicos de dimensão intermédia (...) e ainda nos prédios urbanos de habitação (1997: 36-37).
52É justamente na sequência da adopção desta política oficial de gosto arquitectónico que se abre um último e final tempo no desenvolvimento da casa portuguesa em Portugal, caracterizado por uma espécie de segundo fôlego – anti-modernista – das suas propostas tradicionalistas, que têm pela primeira vez condições para serem aplicadas com êxito a novos programas como escolas primárias, casas do povo, pousadas, programas de habitação social, etc... O lugar de Raúl Lino nesse processo, embora frequentemente referido, é relativamente mal conhecido. Sabe-se entretanto que a sua intervenção como ideólogo de soluções regionalistas para certos edifícios públicos foi relevante, tanto na revista Panorama – editada pelo SNI – como no Mensário das Casas do Povo – editado pela Junta Central das Casas do Povo. No plano das intervenções práticas, foi a Raúl Lino e a Rogério de Azevedo 1898-1983) (que o Ministério das Obras Públicas encomendou, ainda nos anos 1930, a elaboração dos «projectos-tipo regionalizados» das escolas primárias» (Escolas, Espaços de Educação 1995: 48). Em consequência, «em todo o país foram concluídos 32 edifícios Raúl Lino’, 12 (tipo Estremadura) e 56 edifícios Rogério Azevedo» (id., ibid.)12. Finalmente, é conhecida também a acção de policiamento do gosto arquitectónico desenvolvida por Lino em organismos oficiais e que fará com que ele ganhe a antipatia generalizada das mais jovens gerações de arquitectos associadas ao segundo modernismo português.
53Ao mesmo tempo que o triunfo do receituário arquitectónico do Estado Novo imprimia um segundo fôlego às propostas da casa portuguesa, a acção do SPN/SNI contribuía também para dar grande visibilidade a um «dossier» que o acompanhava: a arquitectura popular. O concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, em 1938 (cf. Pais de Brito 1982 e Alves 1997) e o Centro Regional da Exposição do Mundo Português, em 1940, podem ser vistos, a este respeito, como as expressões mais conhecidas de um processo, entretanto mais vasto, de emblematização folclorista da habitação popular portuguesa, que se prolonga, por exemplo, no espaço dedicado à temática pelas revistas Panorama ou Mensário das Casas do Povo. Nesta última, os artigos mais doutrinários de Raúl Lino (1946, 1946-47) coexistem frequentemente com notas e apontamentos de carácter etnográfico em que a habitação ocupa um lugar importante.
54Com este segundo fôlego, a casa portuguesa não só prolongou o seu prazo de validade até ao segundo surto do modernismo em Portugal, que se inicia nos anos 1950, como acabou por assumir uma dimensão política e cultural que não era previsível nos seus primórdios.
A CASA PORTUGUESA E A REFUNDAÇÃO DA NACIONALIDADE
55Ao longo destes sucessivos desenvolvimentos, a casa portuguesa conheceu várias deslocações de significado. Desde logo, como vimos, o modelo preciso que, em diferentes momentos, tipificou a casa portuguesa foi conhecendo algumas variações. Entre as propostas iniciais de Henrique das Neves e Barreira e a formulação final de Lino há de facto diferenças sensíveis. As interpretações arquitectónicas da casa portuguesa são também diversas e apresentam, sobretudo – como de resto é Raúl Lino o primeiro a reconhecer – uma qualidade bastante desigual. O próprio quadro cultural e ideológico mais vasto em que sucessivamente se desenvolve o movimento da casa portuguesa é também ele variável. No início, como tem sido sublinhado, este deve ser entendido como uma tentativa de regeneração da cena arquitectónica portuguesa por referência aos programas revivalistas de finais do século, com especial destaque para o neo-manuelino (cf. Paulo Pereira 1995 e França 1990 [19671) e possui, nesse sentido, um potencial renovador. No seu período áureo, pelo seu lado, o movimento opera – sobretudo por intermédio de alguns projectos de Raúl Lino, aos quais é generalizadamente reconhecida uma grande qualidade13 – como um dos factores de qualificação da arquitectura portuguesa e aparece em sintonia com um conjunto de outras tendências que percorrem a vida cultural da época. Nas fases finais do seu processo de desenvolvimento, a casa portuguesa, esgotada o seu tempo, assume um tom declaradamente antimodernista e torna-se num dos principais obstáculos à renovação da cena arquitectónica portuguesa.
56Entretanto, apesar destes – e certamente doutros – factores de variação, há algumas grandes constantes que é possível surpreender no movimento da casa portuguesa. Assim, antes do mais, este deve ser visto como uma das principais expressões daquilo que, na sequência de Rui Ramos (1994), podemos classificar como o processo de refundação da nacionalidade que caracteriza em plano de destaque a vida cultural portuguesa entre o final do século xix e o advento do Estado Novo e a que o próprio Estado Novo se encarregou de dar continuidade. Por seu intermédio ganha corpo um duplo programa, cujo primeiro objectivo – de natureza mais etnográfica – é a identificação «objectificadora» de um tipo português de habitação popular, susceptível de acrescentar ao conjunto de símbolos já disponíveis ou em processo de elaboração, um emblema suplementar da nacionalidade portuguesa. Simultaneamente, esse programa faz seu um objectivo pragmático, de mimetização – ou, para citar Cantwell (1993), de «etnomimetização» – estilizada e reciclagem erudita desse tipo habitacional como forma de renovação nacionalista do panorama arquitectónico português.
57Este duplo programa está em sintonia com tendências mais gerais que percorrem a cena arquitectónica e artística «não moderna» da Europa da primeira metade do século xx14. Foi no estrangeiro – como de resto tem sido repetidamente sublinhado – que Lino aprendeu o nacionalismo em arquitectura. E como reacção contra a importação dos «vernáculos» alheios – o «chalet», a «cottage» – que a casa portuguesa – a forma nacional de uma linguagem internacional – se começa por afirmar. De igual modo, o sucesso das propostas de Lino nas décadas de 1920 e 1930 inscreve-se numa tendência mais geral de retorno de expressões regionalistas na arte e na arquitectura do período de entre-guerras que, para a França, foi estudado por Romy Golan (1995) e Shanny Peer (1998) e que, na Alemanha, teve em Paul Schultze-Naumburg – um discípulo de Thessenow – uma das suas figuras centrais (Frampton 1996: 217-218). Finalmente quanto à adopção do formulário da casa portuguesa pelo Estado Novo, os paralelos com a França de Vichy e com a Alemanha nazi – onde a par do neoclassicismo triunfa também o heimatstil da escola de Stuttgard (cf. Nerdinger 1995) –devem ser também sublinhados15.
58Solidário destas tendências mais vastas, o duplo programa da casa portuguesa não é muito diferente daquele que os românticos tinham definido no início do século xix para a literatura. Também aí, o objectivo de postular a nacionalidade por intermédio da identificação de um corpus de literatura popular própria se articulava com processo de etnomimetização estilizada e reciclagem desse corpus literário para efeitos de criação de uma tradição literária erudita nacional. Mas é agora aplicado, por um lado, não a um elemento da «cultura espiritual» mas a um aspecto da «cultura material». Por outro, incide sobre um tópico particularmente significativo para a linguagem do nacionalismo. De facto, como tem sido repetidamente sublinhado por vários autores a linguagem do nacionalismo concede grande relevo a metáforas inspiradas na linguagem do parentesco. Uma das expressões desse facto – como tivemos oportunidade de verificar no capítulo 2 – prende-se com a conceptualização da nação como um corpo de descendência étnica. Mas é igualmente conhecido o peso que outras metáforas relacionadas com o mesmo domínio semântico têm na construção de identidade nacional. A concepção da nação como «uma grande família», a designação de «mãe pátria» atribuída ao colectivo nacional, a assimilação à figura paterna de vultos decisivos na emergência de uma nação são, por exemplo, dispositivos suficientemente conhecidos. Da mesma maneira, a metáfora da casa – entendida como o espaço físico da família, associada a ideias de máxima proximidade e intimidade – é também corrente no discurso nacionalista (cf. Sobral 1999). É nesta perspectiva que podemos justamente encarar a particular importância que o tópico da arquitectura popular assume no discurso nacionalista.
59É talvez nos textos do seu pai fundador, Henrique das Neves, que a inspiração nacionalista do movimento se encontra melhor expressa. Assim, em 1896, num prefácio explicativo a uma das várias reedições da sua nota de 1893 sobre a casa portuguesa, Henrique das Neves reconstitui desta forma o contexto da sua descoberta:
O que então sentimos (...) foi o acordar de uma forte paixão de portuguesismo, fenómeno cuja razão de ser descobrimos no nosso sangue, na hereditariedade. Assim, ao passo que estudávamos a Cava (...), recolhíamos a tradição oral do Grão Vasco, tomávamos notas e garatujávamos desenhos em que se fixava a forma estranha de algumas casas de habitação urbana (1896: 109).
60É de acordo com esta perspectiva patriótica que Henrique das Neves, no final do mesmo prefácio, encara a solução definitiva do problema da casa portuguesa: a confirmação da existência desta
não seria somente um característico [sic] a mais a definir a nossa poderosa individualidade nos tempos idos; serviria também praticamente na actualidade a restituir à nossa arquitectura urbana, especialmente das Beiras inclusive para o norte (o país do tamanco) o tipo tradicional criado pela observação e engenho dos nossos antepassados, que em tudo valiam mais do que nós (id., ibid.)
61Entre alguns dos mais destacados partidários do movimento da casa portuguesa estas motivações nacionalistas reencontram-se também. D. José Pessanha, por exemplo, nas notas que consagrou ao tema da casa portuguesa escreveu, a propósito de alguns dos projectos iniciais de cunho «tradicionalista» do então jovem Raúl Lino:
não é só na esfera política que devemos afirmar a nossa autonomia. É necessário também que todas as manifestações de arte nacional digam a nossa raça, o nosso temperamento, a nossa tradição, a nossa história (1902b: XLIV).
62As notas críticas publicadas nas várias revistas de arquitectura das primeiras décadas do século xx são também pontuadas frequentemente por formulações de sentido similar. Nunes Colares, da revista A Arquitectura Portuguesa, define como «um acto de patriotismo» o programa da casa portuguesa de «fazer renascer (...) do olvido (...) as construções tradicionalistas» (Colares 1914: 29). «Como os ingleses, alemães, suecos, noruegueses, russos e outros povos têm a sua casa caracteristicamente nacional» (id.: 32), também Portugal se deve orientar para idêntico ideal. Em 1915, idêntica ideia é desenvolvida por um outro articulista da mesma revista, que escreve:
oxalá que se prossiga na campanha [da casa portuguesa], pois terá como consequência a vitória de dotar o país com arquitectura propriamente sua, como a têm todas as outras nações, a não ser as de formação recente, que têm de seguir as normas das nações protectoras (A Arquitectura Portuguesa, Ano VIII, n.o 10, Outubro de 1915: 40).
63Mas é sobretudo em Raúl Lino que é possível encontrar uma formulação mais sistemática da casa portuguesa como programa de nacionalização da arquitectura portuguesa. Insistindo em A Nossa Casa que «o que nós queremos é o reconhecimento do que é essencial, é o aferro à nossa índole verdadeira, o sentimento e a intuição das coisas portuguesas» (1918: 47), Raúl Lino afirmará o conteúdo nacionalista das sua propostas sobretudo por contraposição à influência que correntes vindas do estrangeiro possuiriam em Portugal. No mesmo livro, por exemplo, a casa portuguesa é apresentada como uma reacção salutar à descaracterização desnacionalizadora da arquitectura portuguesa: sob a influência das «revistas francesas», generalizou-se o «barbarismo de construções que deslustram a maioria das localidades portuguesas e que amplamente atestam a corrupção absoluta do gosto nacional» (1918: 16-17). Entre essas construções encontrar-se-ia o chalet:
por uma quadra aziaga de um mau ano, surgiu o primeiro chalet, depois seguiu-se outro e logo mais outros – sintomas volumosos e obcecantes da moléstia que já então infestava o país todo: a desnacionalização (id:. 87; os itálicos são meus).
64Definida mais à frente como «o mais nefasto de quaisquer estrangeirismos que nos poderiam assolar» (id:. 123), foi contra a moda dos chalets que se ergueu a casa portuguesa, «abençoada (...) reacção» que «devia levar os artistas a estribarem-se nas boas tradições nacionais» (id., ibid.).
65Este elogio das virtualidades nacionalizadoras da casa portuguesa é retomado em «A Casa Portuguesa»: esta é aí de novo vista como uma «salutar reacção no sentido do reaportuguesamento da nossa casa (...) que (...) promete levar-nos outra vez a retomar a boa linha tradicional da casa portuguesa» (1929: 23; os itálicos são meus). Finalmente, em Casas Portuguesas é de novo o elogio do potencial nacionalizador da casa portuguesa que podemos encontrar, numa formulação onde os chalets são substituídos pelas construções da arquitectura moderna. Esta é descrita como «um estilo estranho à nossa índole» (1992: 53), que «corresponde ao triunfo do materialismo, ao auge da tirania da máquina» (id: 79), «que unicamente convém ao colectivismo presente e futuro» (id., ibid.). A esse estilo haveria que contrapor uma arquitectura apoiada «[n]aquilo que já existe: (...) a terra que nos serviu de berço, com as suas características, com o seu clima, com a sua tradição, (...) a índole da nossa gente» (id: 52). Respeitador dessa convicção, o arquitecto deverá opor-se «a tudo o que tenda à desnacionalização da nossa arquitectura doméstica», comportando-se «com a proficiência do verdadeiro arquitecto e a dignidade do bom português» (id: 60; os itálicos são meus).
UMA COMPOSIÇÃO INDIFERENTE À DIVERSIDADE
66Por detrás desse programa nacionalista encontra-se uma visão da cultura popular e, em particular, da habitação tradicional marcada, antes do mais, por uma imagem homogeneizadora do país, indiferente às expressões da sua diversidade interna. De facto, falar da casa portuguesa é, invariavelmente, postular um modelo ou um conjunto de soluções arquitectónicas cuja existência se verificaria à escala do país no seu conjunto e que se sobreporiam às expressões locais e/ou regionais que a habitação popular apresentaria.
67É contra essa visão do país e da sua habitação popular que se afirmarão algumas das vozes mais críticas em relação à casa portuguesa, em particular ao longo do período entre 1893 e 1909. Entre essas vozes encontra-se, antes do mais, como vimos, a de Rocha Peixoto (1967f [1904]). Etnógrafo importante na descoberta e tentativa de sistematização da diversidade etnográfica de Portugal (cf. capítulo 1), Rocha Peixoto faz sua uma crítica à casa portuguesa baseada justamente na diversidade do país tal como esta se reflectiria nos diferentes tipos de habitação popular.
68O ponto de partida dessa crítica é fornecido por uma abordagem proto-funcionalista (no sentido que esta expressão tem, não tanto em história da antropologia, mas em história da arquitectura) da habitação. Esta é vista como o resultado de um conjunto de condições naturais que influenciariam decisivamente a variedade de soluções construtivas. Essa diversidade resultaria por exemplo das condições geológicas prevalecentes em diferentes regiões do país, com o granito, o calcário e o xisto a determinarem formas distintas de agrupamento das casas e a influenciarem tanto soluções formais diferenciadas como variações importantes no aspecto exterior das casas. Por outro lado, «a adaptação ao clima obriga a providências e previsões que se exibem, em escala variável, no exterior do edifício» (id.: 155) – telhados, varandas, etc.. – e que são também elas variáveis. Por fim, a própria paisagem influenciaria também o aspecto geral do casario.
69Em consequência de todas estas diferenças, os tipos habitacionais concretos que seria possível encontrar em Portugal seriam também muito variáveis, não autorizando, «de modo nenhum», que se pudesse falar «duma casa ou casas de indefectível estilo nacional» (id.: 160). Entre esses tipos, Rocha Peixoto enumera – naquele que pode ser considerado como o primeiro esboço de uma tipologia da habitação popular em Portugal – a «cabana de madeira» – que ele já havia estudado nos «Palheiros do Litoral» (1967d [1899]) –, as «casas circulares colmadas», a «casa térrea da montanha», a «casa térrea da Ribeira» e, por fim, tipos mais sofisticados de habitações de dois pisos, com varanda e escada exterior.
70Assumindo uma dimensão particularmente clara em Rocha Peixoto, a crítica à visão homogeneizadora da habitação popular subjacente à casa portuguesa reencontra-se, como vimos, noutros críticos da casa portuguesa como Abel Botelho e Joaquim de Vasconcelos. Para Abel Botelho, é também
impossível estabelecer para todo o país um tipo, já não digo uniforme, mas nem sequer aproximado de construção civil (...). Em cada região mais acentuadamente caracterizada do nosso país se notam e se mantêm tipos especiais de habitação (1903: 2).
71Joaquim de Vasconcelos é também ele relativamente categórico quando, no seu artigo publicado sobre «Arte Decorativa Portuguesa» – de resto impregnado de um tom bastante nacionalista – escreve:
Fala-se tanto – tem-se falado de mais – na criação da Casa Portuguesa, com decoração própria, original, que já ninguém se entende no meio de tantas receitas e alvitres. Cada província tem felizmente o seu tipo. Procurai-os. Como pretendeis pois apregoar uma fórmula, um padrão único (1909: 185; em itálico no original).
72Entre os partidários da casa portuguesa, as questões levantadas pela diversidade tipológica da habitação popular portuguesa também não são ignoradas. No artigo em que reedita a nota de 1993 de Henrique das Neves sobre a casa portuguesa, Gabriel Pereira, pese embora a sua aprovação, não deixa entretanto de advertir para essa diversidade:
A casa varia, adapta-se ao clima e aos costumes do habitante. Estudando a casa portuguesa, devemos marcar a rural e a urbana. A minhota, com o seu eido, difere do casal alentejano, com o seu quintal ou quinchoso: diferem no aspecto, no lar e na chaminé, pela falta ou abundância de cal, nas varandas, que no sul chegam a ser terraços. Basta a neve, que na região norte do país forma no Inverno espessas camadas, para originar diferenças de construção (1895: 22).
73D. José Pessanha alinha pelo mesmo diapasão, quando escreve em 1902 que a diversidade regional portuguesa contribuiria
para a especialização das habitações (...). Os tipos tradicionais (...) devem, pois, variar, e variam com efeito, de região para região, no aspecto exterior, na ornamentação das portas e das janelas, nas varandas, nas escadas, na matéria das coberturas e pavimentos, no lar, na chaminé... (1902a: XIX).
74Mais tarde, em 1909, João Barreira, ao mesmo tempo que, como vimos, retoma e revê as propostas de tipologização da casa portuguesa formuladas por Henrique das Neves, não deixa entretanto de colocar a parte inicial do seu artigo sob o signo – paradoxal – da diversidade. Assim, no tocante à casa rural – que Barreira diferencia claramente da casa urbana – haveria que distinguir a casa de granito, prevalecente no Norte, da casa de calcário, dominante a sul. No sul do país, haveria também uma certa diversidade de tipos, expressa nas diferenças entre o monte alentejano e a casa do Algarve. Tipos especiais como a casacaverna ou os palheiros do litoral são ainda referidos por Barreira que sublinha, por fim, o modo como, nas vilas e cidades, a diversidade da habitação popular seria ainda maior, tanto do ponto de vista construtivo, como ornamental.
75Em todo este debate, o que ainda hoje surpreende o observador contemporâneo é a razão «etnográfica» que parece assistir aos argumentos daqueles que contestavam a casa portuguesa em nome da diversidade habitacional existente no país. Essa razão etnográfica parece ser de facto tão forte que nem mesmo um autor como Joaquim de Vasconcelos, num artigo que é de resto um manifesto nacionalista em torno da arte popular portuguesa, parece convencido pelos argumentos «homogeneizadores» dos defensores da casa portuguesa. Estes, de resto, não permanecem indiferentes à razão etnográfica e repetidamente reconhecem que há aí um ponto incómodo, um argumento a considerar, estudos a fazer. Mas, em última análise, como o provará a evolução do debate a partir de 1909, a razão nacionalista – ao contrário daquilo que aconteceu em relação às teses lusitanistas examinadas no capítulo 2 – acabará por sobreporse à razão etnográfica e, com ela, é não só a casa portuguesa que triunfa, mas também a visão homogeneizadora da cultura popular a ela associada.
76Agitada como argumento principal pelos críticos, mantendo-se como dúvida para muitos dos seus apoiantes, esta incompatibilidade entre a casa portuguesa e a diversidade de tipos habitacionais populares existente no terreno tem aliás uma das suas mais significativas manifestações no vocabulário «malgré lui» pronunciadamente regional que as diferentes propostas da casa portuguesa enquanto programa arquitectónico reiteradamente apresentam.
77O caso de Henrique das Neves é o mais óbvio. Como é o próprio a reconhecer, a sua casa portuguesa é uma proposta cuja eficácia se cingiria ao «país do tamanco», isto é, ao centro e ao norte de Portugal. Com João Barreira, por seu turno, a casa portuguesa, ao mesmo tempo que guarda parcialmente essa feição regional nortenha, inicia o seu processo de deslocação para o sul que – como o atestam os escritos de Vergílio Correia, Luís Chaves e do próprio Leite de Vasconcelos – se torna sensivelmente nessa altura num lugar importante de efabulação no pensamento nacionalista. De facto, embora algumas soluções tipificadoras da sua casa portuguesa – os dois andares, a escada exterior – evoquem soluções mais características do norte-o peso colocado no alpendre e, sobretudo, a importância atribuída à ornamentação – têm já a ver com o sul.
78Iniciado em João Barreira esse processo de deslocação para sul da casa portuguesa conhece o seu desfecho em Raúl Lino. De facto, como tem sido sublinhado, independentemente das suas reclamações de representatividade nacional, a casa portuguesa de Lino tem um forte sotaque do sul. Esse sotaque pode ser relacionado desde logo com o lugar que o sul parece ocupar no imaginário de Raúl Lino. Não apenas o sul de Portugal – que Raúl Lino percorreu de bicicleta no início do século – mas também Marrocos – que Lino visitou em 1902 – e a herança arquitectónica árabe16. Mas está também relacionado – de acordo com o seu contemporâneo D. José Pessanha – com a localização dominante das encomendas de Raúl Lino, situadas em Lisboa e arredores: «Raúl Lino percorreu todo o país», mas
prevendo que a sua actividade teria de exercer-se, de preferência, em Lisboa e cercanias, dedicou mais atenção às casas do Alentejo, por serem as do Norte e do Algarve menos adaptadas ao clima da nossa região (Pessanha 1902a: XX).
79Mas é sobretudo no seu modelo de casa portuguesa que esse sotaque do sul é mais evidente. O alpendre, a importância da cal, o azulejo, todos esses elementos têm a ver com o sul. O «antigo telhado da casa portuguesa» chega a ser sugestivamente comparado a uma tenda norte africana:
Toda a cobertura é como grosseira lona deitada sobre a construção em forma de tenda; e a quem tenha percorrido aduares mouriscos do norte de África, ocorrer-lhe-á facilmente a analogia (1992: 71).
80Não é que não existam preocupações de regionalização desta linguagem com forte sotaque de sul, como o mostram de resto as estampas que acompanham tanto A Nossa Casa, como Casas Portuguesas. Mas essas preocupações devem ser vistas como isso mesmo: como tentativas de readequação regionalizada de uma linguagem arquitectónica cujos elementos estruturantes são no essencial tirados de tipologias populares do sul.
81Deste ponto de vista, as propostas da casa portuguesa em geral e de Raúl Lino em particular são tributárias de um mecanismo recorrente no pensamento nacionalista, sobretudo nos seus estádios iniciais de desenvolvimento. Este, confrontado com a heterogeneidade e a diversidade do espaço nacional, cria os seus símbolos a partir de um trabalho de selecção de práticas e discursos com uma circulação restrita, local e/ou regional, que necessariamente envolve um duplo mecanismo de descontextualização e recontextualização17. Foi assim que, a partir do Minho, num processo que remonta às décadas finais do século xix – como mostra um trabalho de António Medeiros (1995) – foram criados um modelo de traje e de dança de vocação e circulação nacionais. O caso do fado, cantiga de Lisboa transformada em canção nacional no decurso dos anos 20 e 30 é também conhecido18. Foi também assim que se tentou criar um modelo de casa portuguesa.
UMA IDEOLOGIA PASTORAL
82Marcada por esta visão homogeneizadora do país e dos seus tipos de habitação popular, a ideologia da casa portuguesa possui também um forte acento pastoralista, no sentido genérico que esta designação tem recebido em história da literatura, onde se aplica a uma sensibilidade «gerada pela necessidade de fuga à complexidade e ao poder crescentes da civilização» e uma correspondente atracção pela «felicidade representada pela paisagem natural, uma paisagem preservada da civilização ou, quando cultivada, de características rurais». Produzida por citadinos, a sensibilidade pastoral origina
um afastamento simbólico do centro da civilização para a natureza, da sofisticação para a simplicidade, ou, para introduzir a metáfora central [deste] modo literário, da cidade para o campo (Marx 1967: 30).19
83Definida desta maneira, a sensibilidade pastoral é entretanto uma sensibilidade que se estende a outros discursos, com destaque para a pintura ocidental posterior ao século xviii (cf. Marx 1967, Helsinger 1997)20 e, também, para a arquitectura, onde a villa – como demonstrou por exemplo Ackerman (1995) – pode justamente ser visto como um modelo arquitectónico estreitamente associado a uma visão pastoral das relações entre campo e cidade.
84É justamente para esse tipo de sensibilidade que nos remete a casa portuguesa. Como é de esperar, é em Raúl Lino que essa visão se deixa surpreender com maior clareza. Leitor de Emersom e Thoreau, viandante fascinado pelo sul de Portugal e por Marrocos, amante de Sintra – onde construiu a sua Casa do Cipreste –, Lino parece ter de facto retido das suas leituras e deambulações juvenis, um intenso e marcado gosto pelo campo enquanto paisagem por excelência.
85Essa importância da paisagem campestre enquanto categoria central do pensamento de Lino foi sublinhada no estudo de Irene Ribeiro. Para esta autora,
a consciência do espírito da paisagem como vector determinante em todo o projecto construtivo e urbanístico, acompanha a sua intenção moralizante da arquitectura nacional, numa autêntica pedagogia da natureza que Raúl Lino encara na sua dimensão cósmica de envolvente sagrado da existência humana. (...) A natureza é um constante lugar de fruição estética e só em consonância com ela se poderiam atingir as condições ideais do construir e do habitar, em rigor, as formas superiores de toda a arte (1994: 164).
86É justamente este gosto pela paisagem que podemos encontrar em plano de relevo na reflexão de Lino sobre a casa portuguesa enquanto facto etnográfico. De facto, esta é, antes do mais, um elemento que empresta pitoresco à paisagem, saturando-a de notas evocativas e de referências pictóricas. Em A Nossa Casa, por exemplo, Lino evoca
essas casitas sorridentes, sempre alegres na sua variada caiação; casas dum branco radiante como a da roupa corada ao sol, outras da cor de rosa com os beirais verdes, dando-lhes uma impressão de frescura que lembra melancias acabadas de retalhar. Brancas, cor-de-rosa, vermelhas ou amarelas – quem não sentirá o aconchego expresso nos seu vãos bem proporcionados, a lhaneza das suas portas largas e convidativas, a linha doce dos seus telhados de beira saliente com os cantos graciosamente revirados, o aspecto conciliador dos seus alpendres, as trapeiras garridas respirando suficiência... finalmente as suas chaminés hospitaleiras e fartas! (1918: 28).
87Mas é sobretudo em Casas Portuguesas que as formulações de Lino a este respeito são mais claras. É o que se passa com o elogio da cal que aí podemos encontrar:
Abençoado o uso da cal que com a sua variegada paleta salpica a nossa paisagem de alegria, ora exuberante com as ocas e os vermelhos, ora cheia de delicadeza onde o acaso ou o instinto dos alvenéis justapõe as mais finas cambiantes dos amarelos claros e dos rosas numa tonalidade que lembra o aspecto apetitoso de alperces maduros. Não sabemos o que há de tão extremamente agradável, tão fresco e atraente para nós, portugueses, quando na rua da aldeia se alinham simpáticas casas de todas as cores mimosas do caiado – branco de natas, marfim, limão, flor de tília ou enxofre, rosa salmão, etc.; é como quando se abre uma gaveta bem arrumada, cheia de roupa multicolor lavadinha e perfumada a alfazema! (1992: 64).
88E é também o que se passa com a definição emblemática que Lino dá no mesmo livro da «boa casinha portuguesa» (id.: 72). Seria em Janeiro que
essas simpáticas casinhas à beira da estrada, ou entre os campos, melhor nos revelam o seu português sentido. Que alegres no seu variado matiz; que acomodadas nas proporções; que graça, que modéstia e contentamento não respiram! nada têm de forçado ou de menos seguro efeito; tudo parece nascido do próprio lugar com naturalidade. (...) Parece que estas casas eram dotadas de uma espécie de bom-senso que as impedia de tomar atitudes agressivas, na forma ou na cor, que incomodam o viandante, que nenhuma obrigação tem de aturar extravagâncias e imbecilidades (id.: 73).
89Finalmente, é também no mesmo sentido que milita um poema – uma espécie de Ave Maria da casa portuguesa – escrito por Lino:
Lindas casas do meu país! que repousais
entre oliveiras e virtudes no aconchego
da paisagem portuguesa
Que, desabrochando à luz suave manhã,
– brancas de neve, cor de rosa ou de
limão – nos dais os bons dias
por entre a neblina que nos vales se atarda;
Que às Ave-marias nos dizeis boa-noite,
desmaiando na esplandecência dos
poentes em flor;
Casinhas queridas do velho Portugal,
que foste berço dos nossos maiores,
que agasalhastes a nossa meninice, –
Guardai para todo o sempre a graça
do vosso sorriso, para que ele nos ilumine
assim como hoje, na hora do último
AMEN
(Lino 1937: 272)
90Em todas estas passagens o que transparece é sempre o mesmo fascínio que o «viandante» citadino sente por essa espécie de «paisagem intermédia» (Tuan 1974, Marx 1976) que seria a paisagem rural com casas. De facto, como tem sido sugerido por vários autores, a sensibilidade pastoral dirige-se para uma paisagem que não é nem uma paisagem natural selvagem completamente desprovida de traços de humanização nem uma paisagem completamente humanizada, mas para qualquer coisa situada entre ambas, «um produto da história parcialmente desenhado pelo homem» (Marx 1976: 63). No caso de Lino, é justamente a presença das «boas casas portuguesas de há cinquenta anos atrás» que opera como o elemento estratégico dessa semi-humanização securizante da paisagem. Ela introduz no cenário natural cor, formas, notas pitorescas, beleza. Ela é, literalmente, um elemento da paisagem vista pelos olhos do pastoralista21.
91Tal como na pastoral como género literário, também em Lino, essa paisagem com casas é apreendida de acordo com um certo número de convenções. A primeira e a mais evidente tem a ver com o código visual. A importância deste no desenvolvimento da pastoral a partir do século xviii foi sublinhada por Leo Marx (1967: 92). É justamente para a importância do código visual que nos remetem as descrições da casa portuguesa enquanto realidade existente no terreno em Raúl Lino. O ponto de vista é o do aguarelista interessado em captar o jogo de cores – os salmões, os rosas, os enxofres a frescura das formas, o jogo dos volumes, a disposição na paisagem – junto à estrada ou perto dos campos – de qualquer coisa que é sempre visto a partir da distância confortável do arlivrista. Não deixa de ser significativo a este respeito que Lino, apesar dos seus repetidos conselhos sobre a importância da planta e da organização interna da casa portuguesa enquanto programa arquitectónico, nunca entreabra sequer a porta da casa portuguesa enquanto realidade etnográfica. É de fora, do cavalete instalado no meio do campo, que são apreciadas as «boas casas portuguesas de há cinquenta anos atrás».
92Tal como na pastoral moderna, essa visão idílica está também impregnada de um elemento de tensão, que confere maior densidade à descrição proposta. De facto, como Leo Marx mostrou, o funcionamento do género pastoral não dispensa a presença de uma «contraforça». No caso por ele estudado – um texto de Hawthorne sobre um trecho da paisagem rural da Nova Inglaterra (EUA) no meio do século xix – essa contraforça é representada pela irrupção repentina do silvo de uma locomotiva no cenário idílico que está a ser descrito pelo escritor. É esse facto que, por contraponto, acrescenta mais força à evocação campestre de Hawthorne. Nas paisagens de Lino não há locomotivas. Mas há, significativamente «pontes metálicas de vias férreas» (1918: 18), e, claro, chalets e construções modernistas, que jogam o mesmo papel de contraforça. São elas que ameaçam destruir a paisagem com casas do pastoralista, é por referência a elas que a evocação dessa paisagem ganha uma espécie de urgência moral.
93De facto, e por fim, tal como nas convenções do género pastoral, a contraposição entre a paisagem com casas do pastoralista e a evocação dos seus inimigos, é uma contraposição de conteúdo moral. Por exemplo, insurgindose contra a ponte de ferro, Lino considera-a como «um esqueleto sem fisionomia orgânica que patenteia uma função sobretudo utilitária, sem qualquer sentimento» (id., ibid.). A mesma contraposição entre utilidade e sentimento reencontra-se na sua apreciação da arquitectura modernista. Esta, no seu despojamento e na sua orientação anti-ornamental, teria qualquer coisa de frio e materialista, em contraposição com a fantasia e o romantismo do ornamento e das soluções inspiradas na história. Mas é talvez num plano menos imediato que o conteúdo moral da casa portuguesa se deixa ver de forma mais importante. Esta é associada por exemplo a «um espírito de boas maneiras, de perfeita cortesia», de «bom senso» (1992: 73), a «coisas simples e ideias direitas» (id.: 70), que é contraposto à agressividade, às «extravagâncias e imbecilidades» (id., ibid.), a tudo o que é «afectado ou rebuscado» (id.: 50). Mais do que uma oposição entre simples categorias de gosto, estes contrastes devem ser vistos como um comentário sobre os universos morais representados respectivamente pela tradição e pela ruptura com os valores a esta associados.
94Enquadrada por esta ideologia pastoral, a habitação popular vista pelos olhos de Raúl Lino tem simultaneamente qualquer coisa de um objecto de arte popular. Os critérios de apreciação desses edifícios feitos pelo povo são de facto critérios eminentemente estéticos. Eles começam por valorizar a capacidade que esses objectos têm de não desmentir a beleza da paisagem. Eles são um adorno ou conjunto de adornos de valor essencialmente decorativo que, judiciosamente colocados na paisagem, lhe acrescentam uma reconfortante – sobretudo para os olhos – dimensão habitada. Mas é sobretudo ao nível da composição de pormenor que esta visão da habitação como um objecto de arte popular é mais evidente. De facto, a casa popular decompõe-se ela própria num conjunto de soluções menores elas próprias com elevado valor decorativo. Entre essas soluções a mais repetidamente referida por Raúl Lino é, claro, o alpendre, de que o autor elogia «o aspecto conciliador» (1918: 28), referindo-o como «agradável feição da nossa casa» (1992: 36) e de que fornece em A Nossa Casa uma descrição emblemática:
A porta, imaginamo-la bem acolhedora, antes baixa que alta, mas larga, abrigada por um alpendre com aos seus esteios de alvenaria, de pedra tosca ou lavrada, e assediada de todos os lados por plantas trepadeiras contidas por latada ou por caniçados em esmerado concerto (1992: 44).
95Outras soluções são objecto de elogios igualmente rasgados, como acontece com o valor decorativo da cal:
o caiado dá às superfícies uma certa palpitação de vida, dá-lhes uma auréola de fresquidão na ardência do estio, suspende e alivia em cintilações a luz esmagadora do sol de Agosto, aumenta a transparência nas projecções de sombra... Depois, com o tempo, nada perde do seu valor decorativo (1918: 32).
96Igualmente reveladora é a comparação que Lino faz entre a caiação das casas e o «fresco tecido de linho para a mesa das refeições» (id.: 34). A «linha doce dos (...) telhados de beiral saliente com os cantos graciosamente revirados» (id.: 28), as «chaminés hospitaleiras e fartas» (id., ibid.) são outras das soluções elogiadas por Lino.
97Incidindo sobre a casa e os seus elementos componentes, a ideologia pastoralista e esteticizante subjacente à casa portuguesa enquanto realidade etnográfica desdobra-se por fim numa visão do «povo» marcada ela própria por estereótipos amáveis e saturados de uma rusticidade virtuosa. Na sua feliz integração na paisagem, nas suas proporções adequadas, nos seus pormenores decorativos, a casa portuguesa seria um reflexo arquitectónico de valores espontaneamente presentes na «maneira de ser» (1929: 67) das camadas populares como a robustez, a sobriedade, a dignidade, a modéstia, a amabilidade, o contentamento, etc...
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98Transparecendo nos modos de apreensão da habitação popular portuguesa enquanto realidade existente no terreno, a ideologia pastoralista sobre a qual repousa a casa portuguesa reencontra-se também na sua componente de programa arquitectónico.
99Nesta sua faceta, a casa portuguesa é, de facto, uma casa de campo ou, pelo menos, uma casa que, podendo ser construída na cidade, tem como objectivo trazer para dentro da cidade o campo e os valores a este associados. Em qualquer dos casos ela pode ser vista como uma villa, no sentido em que Ackerman (1995) caracterizou este tipo arquitectónico. Tradicionalmente definida como «uma construção no campo destinada a proporcionar repouso e prazer ao seu proprietário» (1995: 9), a villa ganha de facto no decurso do século xix um sentido mais amplo de
qualquer residência separada ou semi-separada, seja na cidade, nos subúrbios ou no campo, com um pouco mais de espaço em sua volta do que as habitações das ruas densamente povoadas do centro urbano (id.: 18).
100É neste quadro que pode ser vista a casa portuguesa, tal como Lino a pensa. Para ele, esta é de facto uma «casa própria independente» (1992: 11) programada antes do mais para o campo. É a essa luz que se pode considerar a insistência de Lino na sua integração na paisagem (rural) circundante. É também a essa luz que pode ser considerada a argumentação de pormenor que Lino dá para algumas das suas escolhas, que pressupõem justamente a casa portuguesa como um locus privilegiado de contacto com a natureza e os elementos naturais.
101A importância da casa se abrir para o ar puro e para o sol é repetidamente sublinhada, sobretudo no tocante ao alpendre. Em A Nossa Casa, por exemplo, Lino escreve a esse respeito: «o alpendre pede muito sol (...). Um alpendre sem sol é coisa triste» (1918: 51). Mais tarde, nas Casas Portuguesas, essa argumentação solar do alpendre é apresentada de forma mais desenvolvida:
O alpendre é durante o Verão bom regulador de temperatura nas casas que lhe ficam anexas; quanto mais alto vai o sol, maior é a sombra que ele dá; no Inverno, e sempre que o sol anda baixo, o alpendre não põe estorvo à entrada de boa luz. (...) País soalheiro por excelência como é o nosso, temos obrigação de amar a carícia desse nosso ‘irmão’ mais velho e mais forte, quando dele mais precisamos; mas devemonos também acautelar quando, no meio do Verão, este afago carinhoso se transforma às vezes no terrível abraço do urso (1992: 34, 35 e 36).
102As próprias ilustrações propostas sublinham essa faceta de «casa de campo» da casa portuguesa. De facto, tanto em A Nossa Casa como, sobretudo, nas Casas Portuguesas, a maior parte dos exemplos publicados situam-se claramente em áreas suburbanas não edificadas – «Casa dos Arredores de Coimbra» (1992, ilustração 1), «Casa num Subúrbio do Porto» (1992, ilustração 2), «Casa nos Arredores de Lisboa» (1992, ilustração 12), «Casa Suburbana no Sul (1992, ilustração 33) – ou em áreas rurais – «Casas» na Serra da Estrela, Estremadura, Minho, Serra do Caramulo, Sul, Ribatejana, Rústica de Trás-os-Montes, Beira Litoral, etc. (1992, ilustrações 4, 7, 10, 13, 19, 20, 22), «Casita no Ribatejo» ou «à Beira-Mar» (1992, ilustrações 6 e 18).
103Finalmente, os exemplos mais conhecidos de aplicação desse programa arquitectónico – seja por Raúl Lino, seja por outros arquitectos ou construtores civis – sublinham essa vocação campestre da casa portuguesa. Em particular, tem sido sublinhado o peso da casa portuguesa na arquitectura balnear do princípio do século22.
104Simultaneamente, a casa portuguesa pode situar-se na cidade e o seu objectivo é então o de recriar o campo na cidade. Para isso, ela deve estar implantada num terreno largo, deve ser murada, criando uma espécie de écran contra «o mundo exterior que deixamos lá fora e que nos é estranho, indiferente e por vezes hostil» (1992: 24). Mas é sobretudo ao jardim que é confiado um papel fundamental nesse processo de recriação do campo na cidade. Aí, insurgindo-se contra «disposições estranhas que, transpostas sem critério e incompletamente (...) se tomam muitas vezes insípidas e inadequadas» (id.: 82) e, em particular, contra a «sensaboria dos jardins lisboetas» (id.: 83) e a «desgraçada melancolia dos jardins modernos» (id.: 84), Raúl Lino defende um retorno à flora endógena, aos «jardins de murta e alecrim», às «bordaduras de alfazema e manjerona», ao cedro-caramanchão, ao «teixo escuro que guarda a sombra da noite», ao azereiro, às «romãzeiras granadinas, com a girândola dos seus loendros sempre florescidos», ao aroeiro e ao zambujo, à «figueira da Berbéria», aos «pinheirais, revestidos do mais belo e variado mato que há na Europa e que o medronheiro sem par semeia de rubis no Outono» (id.: 82). O seu jardim pode ser, nessa medida, encarado como um transplante para o coração da cidade da paisagem rural, em particular, mais uma vez, da paisagem rural do sul de Portugal23.
105Nesta sua dupla faceta de casa de campo ou de casa que traz o campo para dentro da cidade, a casa portuguesa possui algumas das características da «open extended villa», descrita por Ackerman como um dos dois tipos principais da villa como categoria arquitectónica (Ackerman 1995: 18). Em oposição ao modelo compacto-cúbico, esse tipo «é mais adequado à identificação do meio natural com ideias de saúde e repouso» (id.: 20) e as suas modalidades de interacção com a natureza são «integrativas, imitando as formas naturais nas irregularidades da sua planta e dos seus alçados, agarrando-se ao chão, assumindo cores e texturas naturais» (id:. 22). «A imitação paradoxal da natureza por elementos artificiais», descrita por Ackerman como um processo de «rustificação» (id.: 31), é também um elemento importante neste tipo de villa.
106Alguns destes elementos são justamente decisivos na prática arquitectónica da casa portuguesa tal como esta foi teorizada e praticada por Raúl Lino. A sua insistência da integração da casa na paisagem e na utilização de materiais de construção locais, o papel de mediação exercido a este respeito pelo alpendre ou pelo jardim, os alçados movimentados desdobrando-se frequentemente em volumes secundários, a pedra à vista no guarnecimento dos vãos ou dos embasamentos, as decorações florais que deveriam embelezar janelas, varandas e o próprio alpendre, devem ser lidos como um conjunto de dispositivos que acentuam esta vocação de «open extended villa» da casa portuguesa.
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107Embora expressa de forma mais categórica em Raúl Lino, a ideologia pastoral em que se inscreve a casa portuguesa é reencontrável noutros autores. Por exemplo, para Henrique das Neves, o elogio da casa portuguesa é desde logo indissociável, como vimos, do panegírico, de contornos pastorais, do «país do tamanco» como um repositório de virtudes rurais:
belo país, característico país, tão belo e característico como o Alentejo e Algarve árabes, ou antes berberes. (...) É, como dizíamos, aquele o país do tamanco, e com ele o da broa, do caldo verde, do vinho verde, do gabão varino (...), da cachopa de seios fartos, grandes argolas pendentes das orelhas, e lenços de ramagens vivas cruzados no peito e atados no alto da cabeça, das lavradeiras trabalhando de sacho ou guiando os bois, das barqueiras, enfim da alegria própria duma natureza pujante e feliz (Neves 1893: 49).
108Simultaneamente, as virtualidades actuais do modelo de casa portuguesa defendido por Henrique das Neves têm muito a ver com a capacidade que a varanda no último piso teria de introduzir uma nota higienicamente campestre nas casas citadinas. Estas varandas ou balcões assegurariam de facto «um refúgio desafogado e livremente arejado» (1905: 19) ao mesmo tempo que proporcionariam um espaço para «fragrantes e ensombrados jardinzinhos de Verão (...) enflorados e arbustivos» (id.: 27).
109Em João Barreira (1909), uma visão igualmente idílica do campo, das suas paisagens e das suas gentes, pontua o seu estudo sobre a casa portuguesa, transformando mais uma vez a arquitectura popular num conjunto de edifícios que estão lá fundamentalmente para alindar a paisagem. O seu elogio do monte alentejano é, a esse respeito, particularmente revelador:
Na monótona ondulação do país alentejano, no alto da lomba ou a meio das encostas, sob o reverbero inalterável da luz, os montes desenham-se em destaque nítido, brancos como marabutos, desdobrando a horizontalidade das suas linhas e o leve pendor dos seus telhados faiscantes, acima dos quais apenas irrompe o recorte geométrico da chaminé (id.: 156-157).
110É em João Barreira que a concepção da casa portuguesa como um objecto de etnografia artística é também mais clara. Conferindo, como vimos, grande importância à ornamentação da casa, Barreira tende a vê-la como um conjunto de objectos de arte popular, particularmente no sul, onde
a alvenaria, com os seus variadíssimos recursos, a plasticidade da pedra, o conjunto das indústrias do barro, o tijolo, o azulejo, a telha recortada, e também a figura decorativa, dão à habitação aspectos de constante policromia e pasto à imaginação do artista regional, que assim vivia numa constante labutação criadora (id.: 153; os itálicos são meus).
111Abobadilhas, janelas em ferradura, platibandas, rótulas, azulejos, chaminés, «figuras de olaria popular nas extremidades das empenas ou perto dos ângulos dos beirais» (id.: 154), etc., são aqui literalmente vistas como objectos decorativos em si, cujo somatório constitui a casa ela própria como objecto de arte popular.
112Inversamente, é entre os autores que não escondem a sua hostilidade ou, pelo menos, as suas reservas à casa portuguesa, que podemos encontrar uma apreciação mais indiferente às suas virtualidades pastorais. É esse, desde logo, o caso de Abel Botelho, para quem, como sugerimos, um dos aspectos mais críticos do programa estético da casa portuguesa tem justamente a ver com as suas preocupações pastorais de recriação do campo na cidade. De facto, segundo Botelho,
a casa transmontana ou beiroa, dentro do seu corte rudimentar, do seu arcaboiço acanhado e singelo, seria estética e socialmente incompatível com uma grande cidade. Pretender arruar a nova Lisboa com prédios transplantados dos contrafortes do Marão ou do Caramulo, seria tão grande e absurdo contra-senso como obrigar, nesses apartados rincões, os carneiros e os pastores a andar de luvas (1903: 2).
113A cidade é a cidade, o campo o campo, e o sonho pastoral de reintroduzir o campo na cidade só contribuiria para que Lisboa se ficasse a parecer com «um bairro de Zanzibar» (id., ibid.). O melhor seria pois deixar essas casas rurais lá onde «vegetam (...) na sua tranquilidade bucólica» (id., ibid.).
114Mas é sobretudo em Rocha Peixoto que a hostilidade em relação à casa portuguesa e a indiferença às virtualidades pastorais da habitação popular se exprime de forma mais clara. Essa indiferença avulta antes do mais na abordagem proto-funcionalista da arquitectura popular empreendida por Rocha Peixoto. Esta dialoga não tanto com a paisagem do aguarelista, mas com as condições naturais do cientista. Por outro lado, nessa sua submissão às condições naturais, a habitação popular compreenderia um conjunto de tipos – como as «cabana(s) de madeira» ou as «casas circulares colmadas» (1967f [1904]: 157) – que, no contexto da ideologia da casa portuguesa, se prestam mal a tipificações pastorais. Finalmente, vista pelos olhos de um etnógrafo que, além do exterior da casa, olha também para o seu interior e para as pessoas que lá vivem, e que o faz, além de tudo, com o olhar céptico de alguém que acredita que a cultura popular é um reflexo da decadência nacional, a habitação popular situa-se nos antípodas da pastoral. De facto, segundo Rocha Peixoto, aquilo que na habitação popular permitiria surpreender um eventual espírito nacional seria o interior da casa. Só que o que este mostraria seria
a impressão da (...) tradicional penúria, da índole rude e violentamente utilitária, da indigência mental dum povo absolutamente carecido de faculdades artísticas, a um tempo amorudo e interesseiro, pagão irredutível ainda quando beato, escravo por vício de origem, por hábito histórico e por eterno assentimento grato e conformado (id.: 160).
115Vista a partir de dentro, a casa portuguesa estaria pois nos antípodas da visão que Raúl Lino dela deu a partir de fora.
A CASA PORTUGUESA E A ETNOGRAFIA ARTÍSTICA DA HABITAÇÃO POPULAR
116Caracterizada pelos motivos que acabámos de passar em revista, o movimento da casa portuguesa deve ser visto como parte integrante de uma sensibilidade mais geral relativamente ao tema da habitação popular que podemos detectar, ao longo do período que medeia entre os finais do século xix e as primeiras décadas do século xx, em pelo menos dois outros registos: o da etnografia propriamente dita, e o da produção de imagens do mundo rural na pintura e na fotografia.
117Comecemos pela etnografia. De facto-como foi referido no início deste capítulo –, na sequência dos apelos de Adolfo Coelho e dos estudos pioneiros de Rocha Peixoto, assiste-se a um acréscimo do interesse da etnografia e da antropologia pelo tema da habitação popular. Embora não origine uma investigação e uma reflexão sistemática sobre o tema – que apenas surgirá com os trabalhos de Veiga de Oliveira e dos seus colaboradores – esse interesse traduz-se de qualquer forma na publicação de alguns artigos.
118Inicialmente, no período da viragem do século, a habitação popular interessa sobretudo o círculo dos etnógrafos mais ou menos ligados a Rocha Peixoto. É o caso do artigo de Manuel Monteiro (1879-1952), publicado na Ilustração Transmontana, sobre as «Varandas Transmontanas» (1909), de um ensaio de Albano Belino (1863-1906) sobre «Habitação Urbana» (1903) e de duas breves contribuições sobre «As Azenhas do rio Ardila» (1903a) e sobre «As Chaminés Alentejanas» (1904) de Melo de Matos (1856-1915)24 publicadas na revista Portugalia. Duas das monografias publicadas por etnógrafos vinculados ao círculo de Rocha Peixoto – Através dos Campos de Silva Picão (1903-05) e O Poveiro de Santos Graça (1882-1956) (1992 [1932]) – contêm também capítulos consagrados à habitação.
119Este interesse pelo tema da habitação popular prolonga-se nas primeiras décadas do século xx, sobretudo por intermédio de Vergílio Correia, que aborda o tópico, primeiro no quadro dos seus textos pioneiros sobre «Arte Popular Portuguesa» (1915a) e, depois, no quadro de um conjunto de artigos sobre «As Cabanas da Assafarja» (1915b), «As Alminhas» (1916b), «Esgrafitos» (1916c) e «Chaminés do Sul» (1916/17). Dirigida por Vergílio Correia, a Terra Portuguesa publicará ainda contribuições sobre o tema de Mesquita de Figueiredo (1917), Luís Keil (1841-1947) (Keil 1918/19) e Tude de Sousa (1874-1951) (Sousa 1924). Leite de Vasconcelos (1926) não permanecerá também indiferente ao tópico, que suscitará ainda pequenos estudos de Alves Pereira (1911), Luís Chaves (1924) e José Dias Sancho (1898-1929) (Sancho 1926), entre outros.
120Partilhando com o movimento da casa portuguesa um mesmo interesse pelo tema da habitação popular, muitos destes textos remetem-nos também para algumas das grandes constantes ideológicas que pudemos surpreender naquele. É nomeadamente possível detectar em muitos deles a mesma atracção pastoral pela habitação popular vista como um adorno da paisagem, na qual funciona como um objecto de arte popular.
121Os textos de Vergílio Correia são, a esse respeito, particularmente elucidativos. Neles podemos detectar antes do mais a ideia de acordo com a qual os produtos da arquitectura constituem elementos fundamentais para a apreciação estética da paisagem rural. É talvez em «As Alminhas» que essa ideia aparece mais claramente formulada:
aos olhos cansados da cidade, que algum dia puderam espraiar-se retouçando, na verdura dos matos e dos lameiros ou na aspereza violeta e cinzenta das montanhas, causa uma deliciosa sensação de repouso, o encontro de perdidas, pequeninas coisas que os fixem e prendam por instantes em meio da grandiosidade ou gracilidade dos quadros naturais.
Não têm conto sobre a fisionomia da Terra, esses sinais que desenfastiam e fazem descansar o olhar. Facilmente os encontramos nas povoações, Uma janela entre cachorros floridos, um portal brasonado, uma chaminé que a luz atravessa estranhamente recortada, uma faxa de esgrafitos, um nicho devoto, desmonotonisam a frontaria de um edifício, enchem de vida os muros caiados. Nos campos, uma fonte, uma nora, um baldão, uma cabana de pastor, de colmo ou pedra vã, um cruzeiro, uma capela de almas, servem para marcar no rosto fresco da paisagem esse qualquer coisa de humano que os nossos sentidos civilizados sobretudo apreciam» (Correia 1916b: 9).
122Marcada por este gosto quase aguarelista, a sensibilidade de Vergílio Correia relativamente ao tema da habitação popular, ao mesmo tempo que sublinha a capacidade de diálogo que esta tem com a paisagem, valoriza também a sua condição de produto por excelência da arte popular. De facto, para Vergílio Correia, o estudo da habitação popular é um capítulo fundamental da «etnografia artística» de Portugal. Foi no ensaio «A Arte Popular Portuguesa» que esta sua concepção foi desenvolvida de forma mais sistemática. A casa é aí vista, em primeiro lugar, como um dos grupos principais da tipologia da arte popular então proposta. Em segundo lugar, o olhar que ele pousa sobre ela não tem tanto a ver com «o plano e a arquitectura da habitação» (1915a: 241) mas, sobretudo, com «os acessórios», isto é, com elementos avulsos de elevado carácter decorativo. Seria neles que a arte popular se revelaria «de modo exuberante, nas varandas, nas chaminés, nos beirais e grimpas dos telhados, nos esgrafitos e decorações, nas madeiras e ferragens das aberturas» (id., ibid.). Fiel a esta sua concepção da casa como um domínio da etnografia artística que se exprimiria sobretudo em soluções de pormenor dotadas de alto valor decorativo, Vergílio Correia consagrará dois dos seus mais importantes estudos neste domínio aos esgrafitos (Correia 1916c) e às chaminés do sul (Correia 1916/17). Neles, aquilo que deve ser retido é justamente a capacidade de tratamento esteticizante de elementos decorativos avulsos da habitação popular.
123O seu fascínio pelas virtualidades estéticas da chaminé do sul é, a esse respeito, particularmente elucidativo. Definidas como uma «nota de arte popular mais do que nenhuma outra sugestiva» (id:. 22), como «cândidos turíbulos do lar» (id: 24), ou, ainda, como «monumentozinhos consagrados às divindades caseiras» (id.. 25), as chaminés seriam não só «o mais seguro indicador (...) do bom senso estético do povo que as levanta» (id: 27), como, buscando inspiração «nos edifícios que as rodeavam» (id: 25), poderiam mesmo ser vistas como uma espécie de miniatura da arquitectura tradicional enquanto objecto por excelência de arte popular.
124A habitação rural constitui também um dos temas da primeira e segunda gerações da pintura naturalista portuguesa. Um dos pintores exemplares deste arlivrismo fascinado pela habitação rural é sem dúvida Henrique Pousão (1859-1884), a propósito de quem uma familiar sua, perplexa por esta atracção, confidenciaria numa carta: «sempre se inspira[r] este rapaz [Pousão] em coisas tão desengraçadas» (in Rodrigues 1998: 90). Dotado de uma particular sensibilidade arquitectónica, Pousão construirá de facto uma parte importante da sua obra em tomo de motivos da arquitectura popular, que pinta tanto em França e em Itália, como, antes e depois dessa estadia no estrangeiro, em Portugal25. Mas, para além do caso de Pousão, outros pintores do primeiro e segundo naturalismo, como Marques de Oliveira (1853-1927), João Vaz (1859-1931), José Sousa Pinto (1856-1939), Artur Loureiro (1853-1932), Sousa Lopes (1879-1944), Ernesto Condeixa (1857-1933), Acácio Lino (18761956) ou Sofia de Sousa (1870-1970)26, não deixarão também de abordar pontualmente o tema. Algumas das «paisagens» que muitos deles pintaram – é o caso, por exemplo, de Marques de Oliveira, Ernesto Condeixa ou Sousa Lopes – são paisagens com casas. Os «recantos de aldeias» – título de um quadro de Marques de Oliveira – e as «ruas de aldeias» – título de um quadro de Artur Loureiro – podem ser vistos, por seu turno, como paisagens feitas de casas.
125Finalmente, a arquitectura popular é um tema presente nalgumas das mais importantes revistas de arte portuguesas da viragem do século, sob a forma de estampas, gravuras, etc... Algumas delas reproduzem pinturas e aguarelas dos pintores acima indicados. Mas outras enveredam pela publicação de fotografias do mundo rural. Nessas fotografias, mais uma vez, a habitação popular é um dos temas mais recorrentes. A Arte, editada entre 1905 e 1912 por Marques de Abreu, constitui um bom exemplo. Ao mesmo tempo que reproduz composições de pintores como Silva Porto, Malhoa, Marques de Oliveira, Cândido da Cunha, Acácio Lino ou Aurélia de Sousa, a revista publicará também entre os seus inúmeros clichés, um «trecho de uma rua» em Candosa, um «trecho de aldeia» em local não identificado, umas «ruínas» de habitações abandonadas, «a azenha de S. Cristóvão do rio Mau», uma «casa rústica» e uma «cozinha aldeã».
126Esta presença da habitação popular entre os motivos da pintura naturalista e da nascente fotografia deve ser sublinhada. Tal como em muitos dos textos produzidos pelos partidários da casa portuguesa ou pela etnografia artística da habitação popular, com destaque para Raúl Lino e para Vergílio Correia, o que está em questão é, por um lado, a centralidade da habitação popular na percepção da paisagem rural, e, por outro, o seu valor como motivo estético autónomo. Mas não se trata apenas disso. Creio que as modalidades de representação da habitação popular na pintura do primeiro e segundo ciclos naturalistas ajudam a constatar qualquer coisa que foi sugerido neste capítulo: o modo como a produção escrita sobre casa portuguesa e a habitação popular pode ser vista como uma transcrição para o suporte textual de impressões e metáforas contaminadas pela linguagem da pintura naturalista. Essa produção, como vimos, apoia-se de facto numa linguagem eminentemente visual. Mas é, sobretudo, uma produção que nos restitui o campo em geral e a habitação rural em particular de forma homóloga à que podemos encontrar no pintor ou no aguarelista arlivrista: como um motivo estético que, pela suas cores, formas e tipicidade, alinda a paisagem, introduzindo nela um elemento securizante.
Notes de bas de page
1 Henrique das Neves publicará também na Construção Moderna um artigo, subordinado ao título «A Casa Portuguesa», em que procurará desenvolver e fundamentar mais detalhadamente as suas propostas acerca do tema (Neves 1905).
2 Cf. nota 1 da página 116 do presente capítulo para uma listagem mais precisa dos arquitectos ligados à casa portuguesa entre 1908 e 1919. Em muitos casos, esses arquitectos, dentro do espírito ecléctico que caracteriza a cena arquitectónica da época, não são entretanto cultores exclusivos da casa portuguesa. É o que se passa por exemplo com Norte Júnior ou com Álvaro Machado, este último mais conhecido pelas suas propostas neo-românicas.
3 Para uma apresentação geral do movimento Arts and Crafts, cf., por exemplo, Cumming & Caplan 1995 e Davey 1987. A história do impacto do movimento Arts and Crafts em Portugal está em larga medida por fazer. Deve sublinhar-se entretanto o papel pioneiro que Joaquim de Vasconcelos parece ter tido na sua divulgação em Portugal. Cf. também as referências de Ramalho Ortigão em «O Culto da Arte em Portugal» (1943 [1896]).
4 Para além destas casas mais conhecidas, Raúl Lino foi o autor de outros projectos habitacionais no Estoril e em Cascais, como sejam as casas Avilez (Cascais), Carlos Ferreira (Estoril) e José Gomes (Monte Estoril). Cf. A Construção Moderna, n.o 122, de Fevereiro de 1904.
5 Veja-se nomeadamente «Casa para os Arredores de Lisboa», publicada no n.o 65 de A Construção Moderna (Julho de 1902), «Casa do Exmo. Sr. António Maria Pimenta, a construir em Coimbra», publicada no n.o 90 de A Construção Moderna (Março de 1903), «Casa do Exmo. Sr. A. Duarte em Queluz», publicada no n.o 115 de A Construção Moderna (Dezembro de 1903), «Casa do Exmo. Sr. J. J. Ferreira na Avenida Ressano Garcia», publicada no n.o 136 de A Construção Moderna (Julho de 1904), «Casa do Sr. Albino Caetano da Silva em Coimbra», publicada no n.o 328 de A Construção Moderna (Maio de 1919) e ainda no vol. II, n.o 8 de A Arquitectura Portuguesa (Julho de 1909).
6 Tendo como seu ponto de partida a casa mandada construir pelo seu amigo Ricardo Severo (1869-1940) no Porto – que foi, como vimos, uma das primeiras experiências de adopção do formulário da casa portuguesa como programa estético – o artigo de Rocha Peixoto não hostiliza o projecto. Mas sublinha, com um argumentação etnograficamente muito cerrada, o modo como essa casa só seria portuguesa porque tinha justamente renunciado a reproduzir um modelo único, para operar como uma espécie de pastiche de diferentes elementos regionais e históricos, numa espécie de «hibridismo etnológico e arqueológico» (id.: 163) que seria a melhor confirmação da impossibilidade de se falar de um estilo nacional de arquitectura. Em resumo, «de modo nenhum» haveria lugar para falar «duma casa ou casas de indefectível estilo nacional» (id.: 160).
7 Numa nota que acompanha a publicação de fotografias e plantas do solar de Vila Meã, da autoria do arquitecto João d’Almeida d’Eça (1873-1954), faz-se um balanço dos projectos tradicionalistas publicados na revista A Arquitectura Portuguesa: «no n.o 8, do ano de 1908, foi publicado o projecto da casa do Sr. Formigai de Morais, na Avenida D. Francisco de Almeida, Estefânia, Sintra, do arquitecto Francisco Carlos Parente. Nos n.os 7 e 8 de 1909, no primeiro a casa do Sr. Avelino Augusto Correia, em Vila Nova de Gaia, do arquitecto José Teixeira Lopes; no segundo a do Sr. Albino Caetano da Silva, em Coimbra, do arquitecto Raúl Lino: Nos n.os 7 e 8 de 1913, no primeiro a do Sr. Dr. Posser de Andrade, no Monte Estoril, do arquitecto António Couto e no segundo a do Sr. Manuel Veiga Ottolini, no bairro Herédia, Estrada de Benfica, do arquitecto Guilherme Eduardo Gomes. Nos n.os 5 e 8 de 1914, no primeiro, o solar do Sr. Elói Castanha, na Moita, do arquitecto Guilherme Gomes; no segundo, a casa do Sr. Cruz Magalhães, no Campo Grande, do arquitecto Álvaro Machado. Nos n.os 9, 10 e 12 de 1915, todos do arquitecto Edmundo Tavares. No n.o 4, de 1916, o Hotel para S. Martinho do Porto, dos engenheiros Perfeito de Magalhães e Fernando Fuschini. Nos n.os 6 e 8 de 1916, no primeiro, casas para a Póvoa de Varzim, do arquitecto Moura Coutinho e no segundo, a casa do engenheiro Sr. Ricardo Severo, na rua do Conde, projecto do proprietário» (A Arquitectura Portuguesa, Ano X, n.o 11, 41-42).
8 Vale a pena reter a análise de Nuno Portas a respeito deste processo de desqualificação da casa portuguesa, ao qual não seriam estranhas, segundo o autor, algumas das limitações das propostas de Lino (Portas 1970).
9 «Hoje Gonçalo de Melo Breyner, Norberto Correia, Paulino Montez, Carlos Ramos, Tertuliano Marques, Raúl Martins, Vasco Regaleira, Cristino da Silva, Eugénio Correia, Frederico de Carvalho e tantos outros arquitectos, incluindo o autor destas linhas, cultivam dedicadamente a ‘casa portuguesa’ dentro duma expressão moderna, lógica com o meio e a vida actual» (Segurado 1926).
10 O caso de Carlos Ramos – autor do modernista Pavilhão do Rádio do Instituto de Oncologia e simultaneamente da tradicionalista leprosaria Rovisco Pais (1934) – é talvez o mais conhecido. Acerca do eclectismo de Cristino da Silva, cf. Femandes 1998.
11 Sempre que referirmos o livro Casas Portuguesas, utilizaremos como edição de referência a de 1992, que é hoje em dia a de mais fácil acesso.
12 De acordo com a mesma fonte, «a introdução de alterações na execução de algumas das escolas que projectou, levou o arquitecto Raúl Lino a enjeitar a autoria das obras que considerou adulteradas» (id., ibid.).
13 Para uma apreciação arquitectónica de alguns projectos de Lino, com a destaque para a famosa Casa do Cipreste em Sintra, cf. designadamente Almeida, Pedro Vieira 1970.
14 As amarras internacionais do movimento da casa portuguesa são relativamente difíceis de reconstituir de forma sistemática, dada a orientação maioritariamente modernista das histórias da arquitectura disponíveis. O que em seguida se apresenta são algumas notas breves, que não esgotam certamente a complexidade do assunto, merecedor de uma investigação mais aprofundada.
15 Este aspecto foi também sublinhado por Paulo Varela Gomes, para quem a inflexão nacionalista dos anos 1930 «não foi uma fatalidade portuguesa devida ao conservantismo fascista. Foi uma tendência europeia, um ‘neoacademismo europeu’, que se prolongou até ao triunfo do ‘estilo internacional’ no final da Guerra» (1989: 73). Sobre o mesmo tópico cf. também as considerações de Ana Tostões acerca da «recuperação classicista de clara tendência conservadora» na arquitectura europeia do período 1930-1945 (Tostões 1997: 95).
16 Esta, de resto, foi citada expressamente por Lino nos seus primeiros projectos—as chamadas casas marroquinas (cf. Pedro Vieira de Almeida 1970).
17 Cf., a este respeito, Foster 1991.
18 Cf., a este respeito Brito 1994 (ed.) e Leal 1999a: 183.
19 Embora esta seja a visão mais generalizada da pastoral como género literário, alguns autores têm chamado a atenção para o seu carácter excessivamente abrangente. Cf., a este respeito, Alpers 1996.
20 Em Leal 1999b, tive ocasião de mostrar o modo como géneros científicos como a geografia humana e a antropologia podem ser encarados como expressões de uma sensibilidade pastoral.
21 Cf. a este respeito o elogio do pitoresco feito por Lino na Auriverde Jornada: «é pitoresca a choupana que se encosta à escarpa do monte, amoldando-se ao rochedo; a árvore que, cedendo ao impulso do vento, abraça a casa numa onda de verdura; mais pitoresca é a chaminé da rústica moradia quando deita fumo na luz crepuscular» (1937: 229).
22 Cf. a este respeito Briz 1989.
23 Na mesma linha, veja-se o elogio da oliveira como uma «das mais portuguesa de todas as árvores» na Auriverde Jornada (Lino 1937: 170-171).
24 Melo de Matos teve também uma breve intervenção no debate sobre a casa portuguesa por intermédio de um artigo publicado em A Construção Moderna (Matos 1903b).
25 Do período anterior à estada de Pousão em França e Itália, registem-se os quadros A Barça do Rio Odemira (1879), Casas Rústicas de Odemira (1879?), Casas Rústicas da Campanhã (1880) e Horta Alentejana (1880). Depois do seu regresso a Portugal, registe-se sobretudo Pátio da Casa do Primo Matroco (1883).
26 De Marques de Oliveira, veja-se Recanto de Aldeia (c. 1882) e Paisagem (1899), de João Vaz, Torre das Cabaças, Santarém (c. 1885), de Sousa Pinto, Efeito de Sol ao Fim da Tarde (1913), de Artur Loureiro, Rua da Aldeia (n/d), de Sousa Lopes, Paisagem (n/d), de Ernesto Condeixa, Paisagem (n/d), de Sofia de Sousa, Quinta do Bairral ((n/d).
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