Capítulo 3. Psicologia Étnica: Invenção e Circulação de Estereótipos
p. 83-104
Texte intégral
1Há várias razões para sublinhar a importância de 1950 – o ano do seu 43.° aniversário – na obra de Jorge Dias. A publicação, nesse ano, de «Os Abrigos Pastoris na Serra do Soajo» (Dias 1950), marca – como vimos no capítulo anterior – o termo da sua atracção pelas teses lusitanistas. Simultaneamente 1950 é também um ano fundamental na transformação do trabalho etnológico de Jorge Dias num trabalho de equipa. De facto, dois dos artigos por ele então publicados – um deles escrito em conjunto com Margot Dias (Dias & Dias 1950) e o outro com Fernando Galhano (Dias & Galhano 1950) – constituem as primeiras de um conjunto de colaborações que, com o tempo, darão continuada expressão pública à natureza cooperativa do seu empreendimento antropológico. Por fim, 1950 é ainda o ano em que Jorge Dias inicia, por intermédio de uma viagem de cinco meses aos EUÃ marcada pela realização de inúmeras conferências (Lupi 1984: 383), o processo de aquisição de visibilidade internacional para a nova antropologia por ele proposta. Em resumo, 1950 configura-se, sob vários ponto de vista, como um ano de viragem na carreira de Jorge Dias.
2É justamente nesse ano de viragem que Jorge Dias escreverá aquele que é um dos seus mais importantes e influentes ensaios: «Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa». Apresentado inicialmente ao Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros que teve lugar em Washington (EUA) e que foi um dos pontos altos da sua viagem aos EUA, o ensaio só viria a ser publicado em 1953 (Dias 1953b), sendo posteriormente objecto de sucessivas reedições (1961, 1971a, 1985, 1990a)1.
3Consagrado a uma caracterização da cultura portuguesa baseada na indicação de um conjunto de qualidades psicológicas que definiriam a especificidade do ser português, «Os Elementos Fundamentais...» são antes do mais importantes pelo lugar que ocupam na economia interna da obra de Jorge Dias. O ensaio deve de facto ser visto como uma das peças essenciais na tentativa de interpretação sistematizada dos factores de diversidade e unidade da cultura portuguesa que, como vimos no capítulo 1, marca em plano de relevo o projecto antropológico de Jorge Dias. Apoiando-se no modelo tripartido de Orlando Ribeiro para pensar a diversidade da cultura popular portuguesa (1948b, 1990b [1955], 1990c [1960]), Dias tenta em «Os Elementos Fundamentais...» mostrar como essa diversidade, expressa na existência de três áreas culturais distintas e individualizadas em Portugal, é compatível com a simultânea existência de factores de unificação da cultura portuguesa. Estes assentariam não tanto nas «formas e instituições» avulsas que esta apresentaria, mas no seu «conteúdo espiritual» e no seu «fundo temperamental», que apresentariam «carácter de permanência através das transformações morfológicas e ideológicas que se vão sucedendo no tempo» (1990a: 138). Simultaneamente, «Os Elementos Fundamentais...» constituem também uma das mais precoces expressões da atracção de Jorge Dias pela antropologia cultural norte-americana. De facto, esta tinha desenvolvido a partir de 1940 um forte interesse pelos chamados «estudos de carácter nacional», que tem a sua mais conhecida expressão na monografia de Ruth Benedict sobre a cultura nacional japonesa (1946)2. Embora as referências explícitas a esse campo de estudos sejam reduzidas, alguns dos conceitos e formulações utilizadas – com relevo para o conceito de personalidade base – sugerem a importância desse tipo de aproximação no ensaio de Dias, que pode nessa medida ser visto como a primeira manifestação de um interesse – que depois terá expressões mais consolidadas – pelo culturalismo norte-americano.
4Para além do lugar que ocupam na economia interna da obra de Jorge Dias, «Os Elementos Fundamentais...» são sobretudo importantes num plano mais decisivo. De facto, o ensaio deve ser simultaneamente visto como um dos textos essenciais de um debate que se desenvolvia em Portugal desde pelo menos finais do século xix e que interessava não apenas os antropólogos e etnólogos mas outras figuras destacadas da cultura portuguesa. Esse debate centravase em tomo da possibilidade e dos termos precisos a partir dos quais se poderia encarar a identidade nacional portuguesa como uma identidade apoiada num conjunto de características espirituais ou psicológicas próprias que fariam dos portugueses, portugueses.
A PSICOLOGIA ÉTNICA OU A NAÇÃO COMO INDIVÍDUO COLECTIVO
5Como foi sugerido na Apresentação este nível de construção da identidade nacional-que, no século xix e em boa parte do século xx, era designado por intermédio da expressão «psicologia étnica» – deixa-se ver como um dos níveis fundamentais de construção imaginária da nação no discurso etnogenealógico. Definida como um colectivo com uma genealogia étnica caracterizada pela máxima antiguidade e especificidade possíveis, a nação tende também a ser vista como um colectivo unificado por uma alma própria, reflectida numa maneira de ser que lhe é particular.
6A importância da psicologia étnica no imaginário nacionalista tem sido sublinhada por diversos autores (Llobera 1983, Nipperdey 1992). Mas é sobretudo no ensaio de Dumont «Le Peuple et la Nation chez Herder et Fichte» (1983) que é possível encontrar uma reflexão mais aprofundada sobre o tema.
7De acordo com Dumont, a ideologia nacional alemã, tal como se encontra expressa na obra dos filósofos românticos Herder e Fichte, caracterizar-se-ia por uma estranha combinação de elementos holistas e individualistas e de princípios hierárquicos e igualitários. Para esses pensadores alemães,
em vez de ser um indivíduo abstracto, representante da espécie humana, portador de razão, mas desprovido de particularidades, o indivíduo é o que é, em todas as suas maneiras de ser, de pensar e de agir, em virtude da sua pertença a uma comunidade cultural determinada (1983: 118)
8cujas características culturais próprias ele reproduziria. Assim, numa primeira aproximação, a ideologia nacional alemã apresentaria uma forte componente holista. Entretanto, um exame mais atento permitiria também surpreender nela fortes tendências individualistas. De facto, as culturas nacionais como entidades que englobam o indivíduo seriam recorrentemente pensadas como indivíduos colectivos:
as culturas são vistas como outros tantos indivíduos, iguais, apesar das suas diferenças: as culturas são indivíduos colectivos. (...) O individualismo [é transferido] para o plano de entidades colectivas até aí desconhecidas ou subordinadas» (id.: 119)
9As mesmas tendências contraditórias encontrar-se-iam também no modo como a ideologia alemã articularia os princípios hierárquico e igualitário. Uma vez definidas como indivíduos colectivos, todas as culturas nacionais seriam consideradas, para além das suas diferenças, como iguais. Num segundo tempo, porém, uma forma de pensar propriamente hierárquica não deixaria de se manifestar: para cada período histórico determinado, era uma cultura nacional precisa que era considerada representativa da humanidade. Latente em Herder, esta ideia – que irá conduzir mais tarde ao pangermanismo – encontrar-se-ia já, segundo Dumont, claramente expressa em Fichte.
10É justamente a partir de algumas destas ideias, como sugeriu Richard Handler no seu estudo sobre o nacionalismo no Quebec (1988), que se torna possível apreciar a importância do tema da psicologia étnica nos discursos de identidade nacional. Por seu intermédio, as culturas nacionais são literalmente vistas como indivíduos «que têm uma alma, um espírito ou uma personalidade» (Handler 1988: 41). Simultaneamente, a concepção de nação presente nos discursos centrados na psicologia étnica apresenta também uma componente fortemente hierárquica. As qualidades espirituais e psicológicas da nação definida como um indivíduo colectivo – ou, para recorrer à terminologia de Mauss (1983 [1938]), como uma «pessoa» colectiva – servem não só para reivindicar a sua singularidade, mas para conferir valor e superioridade a esse colectivo nacional.
A BUSCA DA PSICOLOGIA ÉTNICA: PRIMEIROS ENSAIOS
11É no interior do quadro genérico que acabámos de reconstituir que é justamente possível situar o debate travado em Portugal a partir de finais do século xix em torno da possibilidade e dos termos precisos de definição da identidade nacional portuguesa como uma identidade apoiada numa psicologia étnica própria que faria da nação portuguesa um indivíduo colectivo caracterizado por qualidades espirituais específicas.
12Nesse debate, começam por ter uma intervenção relevante os antropólogos dos anos 1870 e 1880. Entre eles, encontra-se antes do mais Teófdo Braga. Foi na sua opus magna O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições (1985 [1885]) que o assunto foi mais aprofundadamente desenvolvido. Configurando-se como uma das primeiras tentativas de abordagem sistematizada da cultura popular portuguesa tal como era esta entendida pelos etnólogos das décadas de 1870 e 1880, O Povo Português... consagra de facto um dos seus primeiros capítulos à caracterização da psicologia étnica portuguesa enquanto somatório de um conjunto de qualidades resultantes da etnogenealogia pluralista da cultura popular portuguesa. Entre essas qualidades. Braga refere sucessivamente o «excessivo orgulho» (id.: 62), o «génio imitativo» e «amoroso» (id.: 65) e o carácter pouco especulativo – que remeteriam para o fundo turaniano da cultura portuguesa –, a tendência para o fatalismo – de origem árabe –, e, em particular no Norte do país, «uma certa brandura [de carácter], o génio aventureiro e a tendência para a exploração marítima» (id.: 73) – de extracção celta.
13Algumas destas ideias serão posteriormente retomadas em A Pátria Portuguesa. O Território e A Raça (1894). O objectivo geral do livro é o de proceder ao estudo dos elementos que contribuíram para as «manifestações (...) complexas do génio nacional e do carácter individual português» (id.: X). Neste quadro, ao mesmo tempo que retoma e desenvolve – por vezes revendoas – as teses anteriormente expressas em O Povo Português... relativamente à etnogenealogia de Portugal, Braga retorna também aos temas da psicologia étnica, na linha das ideias inicialmente desenvolvidas na sua opus magna. Estes tópicos são inicialmente abordados a propósito da proximidade geográfica de Portugal em relação ao mar. A esse respeito, o autor sublinha não apenas a vocação para a «actividade marítima» (id.: 26), mas também a capacidade de «fácil adaptação ao meio» (id., ibid.), o «cosmopolitismo», o «ecletismo étnico» (id., ibid.) e a tendência para assimilação de novas ideias que seriam características dos portugueses. Mais à frente, em torno da influência celta na cultura portuguesa, Braga retoma e expande os temas do espírito de aventura e, sobretudo, do génio amoroso que marcariam a psicologia étnica portuguesa. A propósito deste último, são referidas, por exemplo, a tendência fácil para o suicídio – que seria em Portugal «uma doença contagiosa» (id.: 161), a nostalgia – também ela «uma doença privativa do galego e do português» (id., ibid.) – o carácter triste e apaixonado e o lirismo intenso e fortemente subjectivo (id.: 161-162) que seriam apanágio do carácter nacional português. Finalmente, ao evocar a influência semita, Braga sublinha a sua importância como elemento explicativo daquilo que ele classifica como «um desequilíbrio mental» do carácter português, responsável pela «alucinação do génio e [pela] exaltação do sentimento, prevalecendo este último na forma do fanatismo da honra, da cavalaria e na intolerância (...) da religião» (id.: 217).
14Finalmente, no prefácio à 2.a edição do Cancioneiro Popular Português (Braga 1911) são ainda as mesmas preocupações de caracterização da psicologia étnica portuguesa que podemos reencontrar, formuladas agora em torno do tema mais restrito da poesia popular. Esta, segundo Teófilo Braga, além de um testemunho das correntes étnicas subjacentes à cultura popular portuguesa, seria também a expressão do «lirismo espontâneo (...) vibrante, emotivo, intensamente apaixonado, da mais ingénua afectividade» (1911: V) que caracterizaria o «ethos passional» (id.: VII) do povo português. O cancioneiro sagrado, em particular, estaria ligado a uma religiosidade que se exteriorizaria em «festas, romarias, arraiais e feiras, dando ocasião a uma larga sociabilidade com o franco carácter de júbilo, que corrigem o isolamento doméstico das famílias» e que consistiria num «carácter étnico» (id., ibid.) do povo português.
15Adolfo Coelho foi outro antropólogo português que, no decurso dos anos 1870 e 1880 se preocupou também com a caracterização da psicologia étnica portuguesa. Logo no seu primeiro programa etnológico, escrito em 1880, o assunto é indicado como uma das prioridades de investigação da então nascente etnologia portuguesa (1993b [1880]: 679). No programa de 1896, ele é de novo enfatizado:
É mister estudar de modo mais sério do que se tem feito até hoje o temperamento, o tipo moral e o carácter do nosso povo nas suas variantes, o conjunto de sentimentos que nele se revelam; as ideias que o agitam relativamente ao mundo sobrenatural, à natureza e à sociedade; fazer um inquérito completo acerca do que ele sente, do que ele sabe, do que ele pensa e do modo por que ele sente, sabe e pensa e apreciar ainda sobre dados seguros o grau da sua energia volitiva, fazer enfim a sua psicologia étnica (1993e [1896]: 704).
16Mas é sobretudo em dois outros textos que o problema é mais extensivamente abordado. Um deles é o programa antropológico que Coelho escreve em 1890 (1993d [1890]). O outro é o ensaio «A Pedagogia do Povo Português», inicialmente publicado na revista Portugália (Coelho 1993f [1898]). Estes dois textos são muito diferentes entre si, tanto no tema, como nas referências disciplinares de que se reclamam. O primeiro é um programa de estudos antropológicos escrito a pedido da Sociedade de Geografia de Lisboa e marcado pelo diálogo com disciplinas como a demografia, a patologia social ou a antropologia física. O segundo é um ensaio – incompleto – sobre formas populares de educação onde Adolfo Coelho tenta cruzar os seus interesses simultâneos pela antropologia e pela pedagogia. Independentemente destas diferenças, porém, estes dois textos convergem na preocupação comum de identificar alguns elementos constitutivos da psicologia étnica portuguesa. Datando de uma fase da obra de Coelho em que, como vimos no capítulo 1, se assiste ao triunfo de uma visão negativizada e decadentista da cultura popular portuguesa, ambos traçam entretanto um quadro extremamente crítico do carácter nacional português, que contrasta de modo flagrante com a visão mais optimista de Teófilo Braga.
17Esse aspecto é particularmente evidente no «Esboço de um Programa para o Estudo Patológico e Demográfico do Povo Português» de 1890. Escrito na sequência directa do Ultimatum, o retrato da psicologia étnica portuguesa que aí se impõe é particularmente violento. Preocupado com os factores de degenerescência do povo português, Coelho fala da decadência como uma espécie de doença étnica de Portugal ou, como ele também diz, de depressão nervosa da nação (1993d [1890]: 692), que poria em evidência traços do carácter nacional como o «espírito quase constante de hesitação», a «incapacidade progressiva para o trabalho», o «predomínio dos sentimentos egoístas sobre os colectivistas, [a] falta de espírito de generalidade», o «espírito excessivo de imitação», a «insânia moral frequente», o «pessimismo, [a] hipocondria e [o] fatalismo social» (id.: 692 e 693).
18No ensaio sobre «A Pedagogia do Povo Português», embora mais matizada, é uma aproximação idêntica que podemos encontrar. O objectivo geral do estudo, como referimos acima, é o de proceder ao estudo das formas populares de pedagogia em Portugal. Nesse quadro, Adolfo Coelho chama a atenção para a importância dos modelos nacionais de «pessoa» que seriam inculcados pelas formas tradicionais de educação. É a essa luz que o problema da psicologia étnica portuguesa é de novo tratado. Segundo Coelho, o carácter nacional português seria baseado num conjunto de qualidades morais, entre as quais se encontrariam a «franqueza, [a] lealdade, [a] tenacidade, [a] coerência nas acções» (1993f [1898]: 222-3). Definido como o «português velho», o «português de antes quebrar que torcer» (id. ibid.), este modelo encontrar-se-ia entretanto – em coerência com a visão céptica de Adolfo Coelho já afirmada em 1890 –, em decadência, e essas qualidades – dos «Nunos, Albuquerques e Pachecos» (id.: 223) – seriam mais típicas do passado de Portugal como indivíduo colectivo do que do seu presente.
19É na mesma linha de ideias que podem ser abordadas as referências – entretanto mais esparsas – que podemos encontrar ao tema da psicologia étnica na obra de Rocha Peixoto. Reconhecendo-se igualmente numa imagem negativizada da cultura popular portuguesa organizada em torno do tema da decadência nacional, Rocha Peixoto propôs também retratos pouco animadores da psicologia étnica portuguesa. Assim, ao falar sobre o interior da habitação no ensaio que consagrou à arquitectura popular portuguesa. Rocha Peixoto considerou-o como um fiel reflexo da alma nacional:
ele nos dá a impressão da sua tradicional penúria, da índole rude e violentamente utilitária, da indigência mental de um povo absolutamente carecido de faculdades artísticas, a um tempo amorudo e interesseiro, pagão irredutível ainda quando beato, escravo por vício de origem, por hábito histórico e por eterno assentimento grato e conformista 19673 ([1904]: 160).
20É entretanto no ensaio «O Cruel e Triste Fado» que esta caracterização violentamente negativa da alma nacional atinge o seu paroxismo. Encarando o fado como «a expressão flagrante e nítida das (...) tendências, da (...) sentimentalidade e do (...) entendimento» (1897: 293) do povo português, Rocha Peixoto traça dele um retrato que não poderia ser mais severo, em particular na conclusão, quando escreve, sintetizando o seu argumento:
ontem, ali na rua, passavam homens harpejando, macilentos, queixa de peito, olho em alvo, grenha ao vento, pró pagode. Um cantava (...) [um] conhecido mote dum fado típico, com todo o temperamento dum povo lá dentro, imundo, vadio, hipócrita, malandro. Miséria social, miséria orgânica, melopeia sem encanto, sem frescura, sem ingenuidade, modismo de desespero, de conformação, de penitência e de perdão, atitude e marcha, emprego de vida e ideal, tudo dá, ao contemplar destes grupos, uma noção: É a pátria que passa! (id.: 302)1.
21Neste conjunto de desenvolvimentos dois factos avultam. Em primeiro lugar, o carácter apesar de tudo pouco sistemático das reflexões sobre a psicologia étnica. Embora em termos programáticos o tópico ocupe um lugar de destaque, os tratamentos concretos que ele acaba por ter encontram-se dispersos em estudos ou ensaios debruçados sobre outros temas. Em segundo lugar, não há um verdadeiro consenso sobre o que é a psicologia étnica portuguesa. Se Teófilo Braga, por exemplo, acentua o modo como esta se organizaria sobretudo em torno de sentimentos – como o lirismo, a nostalgia ou o génio aventureiro Adolfo Coelho e Rocha Peixoto tendem a enfatizar características intelectuais – como a preguiça e a penúria mental – ou morais – como a ausência de tenacidade e de coerência, a mentalidade utilitária, etc.. Se, nuns casos, a psicologia étnica é a alma nacional tal como esta pode ser depreendida da cultura popular e, em particular, da literatura popular – é esta, frequentemente, a visão de Teófilo Braga – noutros casos – como por exemplo no programa de 1890 de Adolfo Coelho – ela situa-se mais ao nível de uma corporalidade pensada com o auxílio da antropologia criminal. Mas onde as divergências são maiores é no tocante aos modos de avaliação do carácter nacional português. Enquanto que, para Teófilo Braga, este se construía em torno de um conjunto de qualidades avaliadas positivamente, no diagnóstico de Adolfo Coelho e Rocha Peixoto predominavam os traços negativos.
22Apoiando-nos nas propostas teóricas de Dumont, é pois possível dizer que os antropólogos portugueses do século xix estavam de acordo em considerar Portugal como um indivíduo colectivo, mas divergiam, por um lado, acerca do modo como esse indivíduo colectivo devia ser definido, e, por outro, acerca das consequências hierarquizadoras – positivas ou negativas – desta sua visão do país e dos seus habitantes. Esta oscilação entre uma avaliação positiva e uma avaliação negativa da psicologia étnica portuguesa pode ser analisado à luz da ideia de «sentimento de desvalia trágica» proposta por E. Lourenço (1978) a propósito do ensaísmo português sobre a decadência nacional. Mas não deixa de ser também tentador encará-la-à luz das propostas de Herzfeld em Cultural Intimacy (1997) – como uma expressão das características dissémicas que, segundo este antropólogo, caracterizam os discursos de identidade nacional. Estes, para além da forma mais corrente de um discurso oficial afirmativo, podem também assumir a forma de um discurso paralelo, de natureza não oficial e mais íntimo, frequentemente negativo. Teófilo Braga exemplificaria o primeiro caso, ao passo que Adolfo Coelho e Rocha Peixoto seriam representativos do segundo.
PASCOAES E A «INVENÇÃO» DA SAUDADE
23O quadro que acabámos de descrever conhecerá uma significativa alteração a partir dos anos 1910 e 1920. Mas, tal como no caso das teses lusitanistas – formuladas basicamente no âmbito da arqueologia e só depois trabalhadas pelos antropólogos –, também neste caso o impulso transformador provém de um campo exterior à antropologia no sentido mais estrito da palavra. De facto, foi a partir da literatura – ou, se se quiser, do ensaísmo de natureza literária – que o tema da psicologia étnica foi decisivamente reestruturado nas primeiras décadas do século xx.
24Nesse processo um personagem desempenha um papel central: Teixeira de Pascoaes. Poeta, escritor, ensaísta, Pascoaes é também o chefe de fila de um movimento literário conhecido por «saudosismo» que se desenvolveu a partir de 1912, como um movimento artístico e literário de reacção contra o cosmopolitismo. Centrado na revista A Águia e caracterizado inicialmente por uma grande abrangência, o movimento liderado por Pascoaes insere-se no quadro mais geral das tendências nacionalistas que se desenvolviam na vida portuguesa desde os anos 90 do século xix e que se acentuaram com a implantação da República (cf. Ramos 1994), encarada como uma ocasião única para a regeneração do país. Os principais objectivos do movimento eram devolver à cultura nacional e à vida portuguesa em geral a sua grandeza perdida, substituindo as influências estrangeiras – tidas como responsáveis pelo declínio do país desde os descobrimentos – pelo culto das coisas portuguesas, que reflectissem a alma nacional.
25É neste quadro genérico que Pascoaes irá propor a saudade como tema estruturador central do carácter nacional português. Não era esta a primeira vez que o tópico era tratado dessa maneira. Como de resto Pascoaes é o primeiro a lembrar, D. Duarte, Duarte Nunes de Leão, Luís de Camões, Rodrigues Lobo ou Almeida Garrett já tinham encarado a saudade como um motivo especificamente português. No final do século xix, António Nobre (1867-1900) tinha de novo colocado o tema da saudade na agenda poética e cultural portuguesa, estabelecendo um nexo entre a nostalgia da grandeza perdida da pátria e nostalgia da felicidade da sua infância. Mas, independentemente destes desenvolvimentos anteriores, com Pascoaes era a primeira vez que alguém considerava a saudade não apenas como um tema especificamente português, mas como o tema português por excelência, no quadro de um empreendimento de cariz declarada e resolutamente nacionalista com repercussões importantes na vida cultural portuguesa.
26Propondo a saudade com núcleo estruturador da alma portuguesa, Pascoaes irá reestruturar profundamente o modo como a temática da psicologia étnica portuguesa era até então vista. Assim, e em contraste com a dispersão até então prevalecente, parece gerar-se um consenso sobre a melhor maneira de caracterizar a psicologia étnica portuguesa. Esta – na continuidade das propostas de Teófilo Braga – deveria ser pensada, por um lado, ao nível dos sentimentos. E, por outro lado, deveria ser também vista – contra Adolfo Coelho e Rocha Peixoto – como um factor de hierarquização positiva do povo português.
27De facto, e em primeiro lugar, Pascoaes encarava a saudade como algo que definiria a especificidade da psicologia étnica portuguesa ao nível dos sentimentos e das emoções. No seguimento de Duarte Nunes de Leão e de Almeida Garrett, Pascoaes definiu a saudade como «o desejo do ser ou da coisa amada, em conjunto com a dor pela sua ausência. Desejo e dor confundem-se num só sentimento» (Pascoaes 1986 [1912]: 25) que combina um elemento carnal ou material – o desejo – com um elemento espiritual – a dor –, uma orientação em relação ao passado – a dor como recordação – com uma orientação em direcção ao futuro – o desejo como esperança. A saudade seria nessa medida, de acordo com Pascoaes, um sentimento contraditório que ligaria universos tidos usualmente como separados, como o material e o espiritual, o passado e o presente.
28Definida desta forma, a saudade deveria ser considerada, em segundo lugar, não apenas como a essência mesma da alma portuguesa, mas como um factor de hierarquização positiva da cultura nacional. De facto, a saudade seria o grande sentimento que se encontraria por detrás da grandeza de Portugal e dos principais acontecimentos que sucessivamente lhe deram expressão, como a fundação de Portugal por D. Afonso Henriques, a vitória de 1385 em Aljubarrota, os descobrimentos, o sebastianismo, a Restauração de 1640 ou a revolução republicana de 1910. Nessa exacta medida, restituir à saudade o seu lugar central na vida portuguesa seria equivalente a recuperar para Portugal a sua grandeza perdida.
29Produzida a partir do ensaísmo literário, a saudade de Pascoaes não releva entretanto exclusivamente de uma reflexão de matriz literária. A grande inovação que Pascoaes introduziu no tratamento da saudade passa efectivamente pelo modo como ele elabora uma espécie de «etnografia espontânea» do tema, isto é, como produz em seu torno um conjunto de reflexões de forte orientação etnocultural em que conceitos e ideias sobre o povo, sobre raízes étnicas e sobre cultura ocupam um lugar relevante (cf. Brito e Leal 1997). Assim, a saudade poderia ser vista, antes do mais, como uma criação colectiva do povo português, enquanto entidade etnogenealogicamente concebida. A sua existência remontaria de facto ao tempo dos lusitanos, vistos como o produto da combinação de um elemento ária – ou ariano – com um elemento semita. Esta origem dual da cultura lusitana e, depois, portuguesa, expressar-se-ia de resto na própria concepção contraditória da saudade como dor e desejo. Enquanto que a dor se ficaria a dever à influência semita, o desejo reflectiria o peso das raízes árias na formação étnica de Portugal.
30Simultaneamente, na argumentação do carácter português da saudade, Pascoaes recorreu abundantemente a factos extraídos do universo da cultura popular portuguesa. À semelhança de Teófilo Braga, concedeu grande importância à poesia popular portuguesa e, em particular, ao cancioneiro popular, encarando-o como «a obra mais representativa da raça» e como aquela onde melhor «transparece a fusão dos contrastes» (Pascoaes 1978 [1915]: 86). Rituais religiosos como a Encomendação das Almas4 assim como outras expressões da religiosidade popular foram também utilizadas por Pascoaes como instâncias fundamentais de demonstração do carácter português da saudade.
31Como se sabe, a publicação das teses de Pascoaes suscitou uma polémica muito viva. Um dos adversários mais virulentos de Pascoaes foi António Sérgio (1883-1969). Defendendo enfaticamente um ponto de vista racionalista e anti-nacionalista acerca do tópico, Sérgio optou por centrar os seus ataques a Pascoaes em torno do carácter supostamente intraduzível da palavra saudade. De facto, segundo Pascoaes, o povo português seria
o único Povo que pode dizer que na sua língua existe uma palavra intraduzível nos outros idiomas, a qual encerra todo o sentido da sua alma colectiva. (...) Sim: a palavra Saudade é intraduzível. O único povo que sente a Saudade é o povo português (...). Os outros povos europeus sentem naturalmente uma espécie de saudade que em francês é souvenir, em espanhol recuerdo, etc. Mas este sentimento, nesses Povos, não toma a alma e o corpo que adquire no sentir português. Souvenir ou recuerdo são apenas um elemento da Saudade, cujo perfil é inconfundível. E por isso, ela se exteriorizou numa palavra portuguesa que não tem equivalente noutras línguas (1986 [1912]: 30).
32Para António Sérgio, pelo contrário, a palavra saudade não era de maneira nenhuma intraduzível:
muito ao contrário do que Pascoaes afirma, a palavra saudade é traduzível. Várias nações a representam por um termo especial: o galego tem soledades, soedades, sau dades; o catalão anyoransa, anyoramento; o italiano, desio, disio; o romeno, doru, ou dor, o sueco saknad; o dinamarquês, savn; e o islandês, saknaor... (Sérgio 1986 [1914]: 61).
33Carolina Michaelis de Vasconcelos também não subscrevia as teses de Pascoaes sobre o carácter intraduzível da saudade, tentando igualmente – à semelhança de Sérgio – mostrar que um certo número de línguas europeias possuíam também equivalentes da saudade:
É inexacta a ideia que outras nações desconheçam esse sentimento. É ilusória a afirmação (já quatro vezes secular) que o mesmo vocábulo Saudade (...) não tenha equivalente em língua alguma do globo terráqueo e distinga unicamente a faixa atlântica, faltando mesmo na Galiza de além-Minho (1986 [1914]: 145).
34Segundo Carolina Michaelis, saudade tinha de facto equivalentes em quatro outras línguas da península ibérica: soledad ou soledades em castelhano, senhardade no asturiano, morrinha no galego e anoryanza e anoryament no catalão. De resto, seria possível encontrar termos similares noutras línguas europeias: sehnsucht em alemão, längtan ou lãngta em sueco. A particularidade da saudade residiria no seu uso mais frequente em português, por exemplo, durante os descobrimentos ou na literatura, e na importância da sua contribuição para a configuração da «alma portuguesa».
35Apesar desta controvérsia, as ideias de Pascoaes receberam em geral um acolhimento bastante favorável. Como escreveu Óscar Lopes, «as principais ideias de Pascoaes estão em sintonia com a cultura portuguesa do seu tempo» (1994: 129) e, entre as elites culturais portuguesas, a saudade torna-se num instrumento relativamente usado para falar das especificidades do ser português. É conhecido o seu continuado impacto no desenvolvimento da chamada filosofia portuguesa e nos principais autores associados a esta, como Leonardo Coimbra (1883-1936), Delfim Santos (1907-1966), António Quadros (19231994) ou Cunha Leão (1907-1974).
36Na etnografia portuguesa, como provável resultado das referências ao universo da cultura popular contidas nos textos de Pascoaes, o tema da saudade encontrará também um eco razoável, tanto nos estudos sobre literatura popular, como nos retratos do povo português implícitos nalguns textos sobre arte popular dos anos 1910 e 1920. A exportação do tema da saudade para tentativas mais localizadas de pensar especificidades regionais da alma portuguesa, deve ser também sublinhada. Uma das mais interessantes dessas tentativas – como teremos ocasião de verificar no capítulo 8 – é a feita pelo etnógrafo açoriano Luís Silva Ribeiro (1882-1955), quando em 1919, propôs uma primeira caracterização da psicologia étnica açoriana. Definindo os açorianos como «mais e melhores portugueses», Silva Ribeiro sublinha a importância que a saudade teria na sua configuração psicológica: «o delicioso pungir do acerbo espinho e a suydade que faz chorar e suspirar, ninguém a sentiu tão intensamente, ninguém a exprimiu melhor que o poeta povo dos Açores» (Ribeiro 1983 [1919]: 6).
JORGE DIAS E «OS ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DA CULTURA PORTUGUESA»
37A tentativa de Pascoaes não é, no período considerado, única. Mendes Correia ensaiará também algumas aproximações ao tema da psicologia étnica portuguesa (Mendes Correia 1913, 1919). Conduzidas a partir do horizonte da antropologia física e da antropologia criminal, essas aproximações – onde ecoa por vezes o cepticismo de Adolfo Coelho – terão entretanto um impacto relativamente pouco importante e revelaram-se impotentes para contrariar a hegemonia da narrativa saudosista na caracterização da psicologia étnica portuguesa5.
38Será preciso esperar justamente por 1950 e pelos «Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa» para que o dossier da psicologia étnica volte a conhecer desenvolvimentos razoavelmente mais significativos.
39A atracção de Jorge Dias pelo tema tinha já ficado patente em 1942, ano em que foi publicado aquele que, na sua bibliografia oficial, é referenciado como o primeiro ensaio escrito pelo autor. Intitulado «Acerca do Sentimento da Natureza entre os Povos Latinos» (1942), este texto é consagrado a uma primeira incursão nos territórios da psicologia étnica. O seu ponto de partida é fornecido pela contestação da asserção segundo a qual os povos latinos, comparativamente aos povos germânicos, só possuiriam «em grau reduzido, o sentimento da Natureza» (1942: 1). Recusando-se a aceitar a pura e simples integração do povo português num conjunto cultural mais vasto que seria formado pelos povos latinos, Jorge Dias procurará demonstrar que essa afirmação não seria válida para Portugal.
40De facto, no caso português, a inexistência de um culto da natureza similar ao que seria possível encontrar nos povos germânicos ficar-se-ia a dever à «falta de uma verdadeira vida urbana (...) e de uma extensa e intensa industrialização do país» (id.: 5). Em consequência, não se teria desenvolvido em Portugal «a reacção que se verifica nos grandes países industriais da Europa, em que a ida para o campo, nos momentos livres, toma um aspecto de fuga» (id., ibid.). Apesar disso, seria possível encontrar expressões do sentimento da natureza entre o povo português, testemunhados essencialmente por intermédio da sua literatura, que Dias considera ser o mais «perfeito espelho da vida interior» (id:. 6) de um povo. O que este espelho mostraria, entretanto, seria um sentimento da natureza que, devido a traços de carácter que seriam específicos do povo português, assumiria uma feição introvertida caracterizada por um lirismo sentido, em contraste com a orientação extrovertida prevalecente nos restantes povos latinos. A introversão e o lirismo – responsáveis por um peculiar sentimento da natureza – seriam pois características fundamentais da «alma portuguesa» distinguindoa claramente dos restantes outros povos latinos-que seriam mais extrovertidos – e aproximando-a «mais de outros povos nórdicos do que à primeira vista pode parecer» (id: 14).
41É no seguimento das preocupações expressas neste texto seminal que devem ser encarados «Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa». Como se sabe, o ensaio começa por fazer seu um tom cauteloso. Por um lado, não haveria ainda os elementos para uma síntese segura. Por outro lado, «a heterogeneidade cultural que se verifica no espaço (sincrónica) e no tempo (diacrónica), complicada ainda pela heterogeneidade vertical dos vários estratos sociais» (1990a: 138) dificultaria sobremaneira a tarefa. Em função dessas dificuldades, Dias afirma que esteve quase a desistir do ensaio – «perante a dificuldade do tema», escreve, «cheguei a pensar fugir-lhe» (id., ibid.) – atribuindo-lhe assim implicitamente o carácter de uma síntese provisória. Nessa síntese, Dias procura, para além da diversidade das formas, captar o conteúdo espiritual da cultura portuguesa, retendo aquilo que seria o seu fundo temperamental fixo, «a personalidade-base da nação» (id.: 139). Ecoando concepções próximas das desenvolvidas por Ruth Benedict em Patterns of Culture (1934) e retomadas depois, em torno da cultura nacional japonesa, em The Crysanthemeun and the Sword (1946), Dias defende que a cultura nacional portuguesa encarada desta maneira seria não um mero somatório das suas partes constitutivas mas a integração destas – a sua «sublimação» (1990a: 140) – num nível superior.
42Fixando-se desta forma no conteúdo espiritual próprio da cultura portuguesa, ou no seu fundo temperamental fixo, Dias privilegia inicialmente duas ideias a esse respeito. A primeira tem a ver com «o carácter essencialmente expansivo» (id.: 141) da cultura portuguesa:
a força atractiva do Atlântico (...) foi a alma da Nação e foi com ela que se escreveu a história de Portugal. (...) Os quatro pilares do génio criador português: Os Lusíadas, os Jerónimos, o políptico de Nuno Gonçalves e os Tentos de Manuel Coelho, são quatro formas de expressão verdadeiramente superiores e originais de um povo que durante mais de um século esquadrinhou todos os mares e se extasiou perante as naturezas mais variadas e exóticas (id.: 142).
43A segunda ideia, pelo seu lado, tem a ver com a complexidade da personalidade psico-social portuguesa, que, segundo Dias, estaria indissoluvelmente ligada ao pluralismo etnogenealógico característico da cultura popular portuguesa: «A personalidade psico-social do povo português é complexa e envolve antinomias profundas, que se podem explicar pelas diferentes tendências das populações que formaram o país» (id., ibid.).
44É justamente em torno desta ideia da complexidade psico-social do fundo temperamental português que Dias estrutura a parte mais substancial do seu argumento. De facto, em função dessa complexidade, a personalidade base do português assentaria num conjunto de contradições próprias, apresentadas inicialmente de uma forma sintética (id.: 145-146) e aprofundadas depois ao longo do texto. A primeira dessas contradições seria entre sonho e acção: «o português é um misto de sonhador e homem de acção, ou melhor, é um sonhador activo, a que não falta um certo fundo prático e realista», (id.: 145). A segunda contradição seria entre a bondade intrínseca do português e a violência e crueldade de que é capaz, «quando ferido no seu orgulho» (id., ibid.). Mas é mais no primeiro termo da contradição que Dias coloca o acento: «para o Português o coração é a medida de todas as coisas» (id.: 149). A própria religião teria «o mesmo cunho humano, acolhedor e tranquilo» (id.: 150), em contraste com a vivência mais trágica e dolorosa prevalecente em Espanha. Haveria também no carácter português uma contradição entre «uma enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres» (id.: 146) – responsável de resto por uma «atitude de tolerância (...) que imprimiu à colonização portuguesa um carácter especial inconfundível» baseado na «assimilação por adaptação» (id., ibid.) – e uma forte capacidade para guardar o seu próprio carácter. Outra antinomia característica do temperamento português seria aquela que Jorge Dias já tinha surpreendido no seu ensaio de 1942, entre «um vivo sentimento da natureza» e «um fundo estático e contemplativo diferente do dos outros povos latinos» (id., ibid.). Esta orientação introspectiva do fundo temperamental português seria também responsável pela falta de «exuberância e (...) alegria espontânea e ruidosa» e pelo carácter inibido dos portugueses, em contraste, mais uma vez, com os restantes povos mediterrânicos. A contradição entre «uma forte ansia de liberdade individual (...) muitas vezes anti-social» (id.. 154) e poderosos valores de solidariedade e de simpatia humana – que por vezes se sobrepõem à lei e são responsáveis pelo peso dos empenhos na vida social e pública – e entre uma certa falta de sentido de humor e um espírito trocista capaz de uma intensa ironia, seriam, por fim, outras antinomias fundamentais da personalidade base dos portugueses.
45Este carácter contraditório e paradoxal do temperamento português, além de ser a principal característica distintiva da cultura nacional, seria também responsável pela oscilação que se poderia verificar na história portuguesas entre «os períodos de grande apogeu e de grande decadência» (id.: 146). Nas circunstâncias desafiantes viriam ao de cima as qualidades do português, ao passo que «se o chamam a desempenhar um papel medíocre, que não satisfaz a sua imaginação, esmorece e so caminha na medida em que a conservação da existência o impele» (id.: 146-7).
46Neste conjunto de argumentos, dois factos devem ser retidos. O primeiro tem a ver com a opção por retratar o temperamento base dos portugueses recorrendo a sentimentos. De facto, as qualidades sobre as quais se apoiaria o carácter nacional português situar-se-iam no universo das emoções e dos sentimentos. O segundo aspecto que deve ser sublinhado tem, pelo seu lado, a ver com a opção por pôr em evidência o carácter contraditório desses sentimentos. Em ambos os casos, estamos perante opções bastante similares às que encontramos nos estudos de carácter nacional de matriz culturalista, como decorre de uma leitura atenta do argumento desenvolvido por Ruth Benedict em The Crysanthemum and the Sword (1946). Para esta autora, de facto, a cultura nacional japonesa baseava-se não apenas em dois princípios contraditórios representados justamente pelo crisântemo e pela espada, como esses princípios tinham também a ver com o domínio dos sentimentos. Enquanto que o princípio do crisântemo estaria associada a valores como a cortesia, a delicadeza e a afabilidade, o princípio da espada, ligar-se-ia, por seu turno à imprevisibilidade, à violência e à crueldade que seriam simultaneamente características da cultura nacional japonesa.
47No caso de Jorge Dias, entretanto, essa dupla opção deve ser sobretudo relacionada com a influência que a aproximação «saudosista» de Pascoaes parece ter tido na sua reflexão sobre a psicologia étnica portuguesa. De facto, tanto a opção por retratar a personalidade base portuguesa por intermédio de sentimentos como a enfase colocada carácter antinómico da personalidade base dos portugueses prolongam duas das opções centrais de Pascoaes em relação à saudade. Esta, como vimos, construir-se-ia não apenas em torno de sentimentos, mas de sentimentos contraditórios entre si – a dor e o desejo – que articulariam um elemento carnal com um elemento espiritual e uma orientação para o passado com uma orientação para o futuro.
48Essa influência de Pascoaes remonta aliás ao texto de 1942, no qual Jorge Dias referia já a importância da saudade – teorizada de uma forma bastante próxima da de Pascoaes, ele próprio objecto de um rasgado elogio no decurso do texto – no sentimento introvertido da natureza que seria característico do povo português: «A saudade portuguesa (...) que de todos os tempos é característica do nosso temperamento, é bem significativa do movimento de fora para dentro, de perfeita introversão» (1942: 13) que caracterizaria o sentimento da natureza em Portugal. Mas é justamente em «Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa» e nas referências que aí de novo podemos encontrar à saudade que essa influência de Pascoaes tem a sua mais importante expressão.
49De facto, para Jorge Dias, a saudade seria uma das melhores provas desse carácter contraditório do temperamento português: «A mentalidade complexa que resulta da combinação de factores diferentes e, às vezes, opostos dá lugar a um estado de alma sui generis que o Português denomina saudade» (Dias 1990a: 146). O modo como esta ideia é depois desenvolvida no texto, ecoa claramente as concepções de Pascoaes. Quando Dias escreve por exemplo que a saudade ora se «compraz na repetição obstinada das mesmas imagens ou sentimentos» (id., ibid.), ora se apresenta como «ânsia permanente da distância, de outros mundos, de outras vidas» (id., ibid.), ele está a fazer sua a diferenciação de Pascoaes entre a saudade como dor e a saudade como desejo. Tal como em Pascoaes, também em Dias esta orientação contraditória da saudade ficar-se-ia a dever à filiação multi-étnica do povo português, com o elemento germânico a ser responsável pelo lado activo da saudade e o elemento semita a justificar o seu lado fatalista. Finalmente, um conjunto de outras ideias ao longo do texto ecoam também temas implícita ou explicitamente presentes na conceptualização da saudade em Pascoaes. É o que se passa por exemplo com o acento que Dias coloca no panteísmo do carácter nacional português ou na natureza branda da sua religiosidade6.
50Mas ao mesmo tempo que ecoa Pascoaes, a análise de Jorge Dias introduz um conjunto de inovações relativamente às propostas do poeta. Uma dessas inovações tem a ver com a maior abrangência da sua aproximação. Esta pode ser surpreendida, antes do mais, ao nível das instâncias de demonstração. Assim, no tocante à cultura popular, os exemplos são agora mais diversificados dos que os propostos por Pascoaes – ou não fosse o texto escrito por um antropólogo. Assim, a simpatia humana e o fundo bondoso que caracterizariam a personalidade base portuguesa são ilustrados com a religiosidade popular e o comunitarismo agro-pastoril, a violência é exemplificada com referências a lutas entre aldeias vizinhas, a adaptabilidade com indicações acerca da capacidade de readequação dos emigrantes retomados, o espírito trocista com exemplos sobre alcunhas e apodos tópicos, etc. Simultaneamente, diversifica-se o peso da cultura erudita na caracterização proposta: para além dos exemplos literários, surgem agora longas referências ao estilo manuelino e ao ostinatismo como características essenciais da cultura – erudita – portuguesa. Mas, sobretudo – de acordo com uma característica genérica que é possível reconhecer a muitos textos consagrados a este tipo de problemática –, parece ser maior a capacidade de Dias para se apoiar no universo da experiência diária de quem conhece Portugal e os portugueses. As referências informais ao «medo do ridículo», ao peso dos empenhos na vida social e pública ou à crença no milagre como solução de última hora, tomam de certa maneira mais concreta e menos literária a imagem que é proposta do temperamento base dos portugueses.
51É entretanto ao nível da caracterização proposta – isto é, não tanto no tocante ao ponto de partida da análise, mas no referente aos seus resultados – que a proposta de Jorge Dias se revela particularmente abrangente. Em primeiro lugar, onde Pascoaes tinha trabalhado um só sentimento – a saudade – Jorge Dias trabalha com um conjunto interligado de sentimentos de que a saudade seria uma espécie de metáfora. A nação dá-se assim, se se quiser, como um indivíduo colectivo mais completo. Aplicando a esse conjunto de sentimentos o tratamento constrastante que caracterizava já a aproximação de Pascoaes à saudade, Dias, em segundo lugar, dota as suas propostas de uma capacidade muito mais clara de resistência às objecções, na medida em que o carácter nacional português é sempre visto como uma coisa e o seu contrário. E a partir desse tratamento mais sistemático dado ao carácter nacional português como um conjunto de traços que se contradizem entre si que – em terceiro lugar – se torna possível a Jorge Dias reformular as próprias avaliações contraditórias feitas no final do século XIX em torno da psicologia étnica. De facto, como vimos, segundo Jorge Dias, seria esse carácter contraditório do temperamento português o responsável pela coexistência de períodos de decadência e de grandeza. A sua construção consegue nessa medida superar a dissentia dos discursos portugueses sobre identidade nacional, integrando na sua fórmula a oscilação entre um pólo negativo e um pólo positivo.
PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES
52Posteriormente a 1950, o tema do carácter nacional português – para além de intervenções avulsas – só voltará a ser formalmente retomado por Dias em 1968, através do ensaio «O Carácter Nacional Português na Presente Conjuntura» (Dias 1971b). A importância desse texto prende-se sobretudo com a maneira como ele compatibiliza o pluralismo etnogenealógico português com a particular capacidade para a miscegenação que a cultura portuguesa apresentaria. De facto, segundo Dias,
a unidade étnica portuguesa que resultou do caldeamento de várias sub-raças da raça caucasóide, a que se vieram mais tarde misturar, em proporções variáveis, elementos de outras raças, como a negróide e mongoloide, [é que contribuiria] para dar aos Portugueses enorme plasticidade humana e invulgar sentido ecuménico (1971b: 39).
53Embora ambos estes temas já se encontrassem presentes em «Os Elementos Fundamentais...», só no ensaio de 1968 são formalmente pensados em conjunto, como provável consequência da assimilação das ideias de Gilberto Freire, que entretanto tinham conhecido uma certa divulgação em Portugal7.
54Mas nessa altura, os tempos – designadamente na antropologia – começavam a não ser já propícios nem à psicologia étnica, nem sequer e de uma forma mais larga a uma excessiva conjunção entre antropologia e identidade nacional. Talvez por essa razão, «Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa» tornou-se num texto relativamente negligenciado pelos antropólogos portugueses – que têm preferido reter como textos mais emblemáticos da produção de Jorge Dias Rio de Onor (1953a) e Vilarinho da Fuma (1948a) ou a sua monografia sobre os Maconde. Dir-se-ia estarmos, então, perante mais uma história de insucesso.
55Esse insucesso é porém relativo. Tendo a sua primeira edição em 1950, «Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa» conheceu posteriormente, como sublinhámos no início deste capítulo, um conjunto de reedições – uma delas numa colecção da Imprensa Nacional – Casa da Moeda com larga difusão (Dias 1985) – que fazem dele um dos textos antropológicos portugueses com maior circulação.
56De acordo com essa sua capacidade de circulação, «Os Elementos Fundamentais...» tomaram-se também em certas áreas da cultura portuguesa, um texto de referência mais ou menos obrigatória. Assim, historicamente, é grande a sua influência na chamada «filosofia portuguesa» e, em particular, nalguns dos seus cultores. É o que resulta de uma leitura atenta de O Enigma Português de Cunha Leão (1973 (1960]) e, sobretudo, do Ensaio de Psicologia Portuguesa, do mesmo autor (Leão 1971). Neste último texto, em particular, a tentativa de tratar «a enigmática alma portuguesa» como encerrando «antinomias profundas» (1971: 18) ou como «um génio de harmonizar opostos» (id., ibid.) ecoa de forma óbvia as considerações de Dias em «Os Elementos Fundamentais...». Algumas das antinomias propostas por Cunha Leão como sendo características da alma nacional, de resto, retomam oposições originalmente formuladas por Dias em 1950.
57Mas a influência de «Os Elementos Fundamentais...» não se limita a este ramo de estudos, cujo impacto na cena cultural portuguesa tem sido, de resto, limitado. Simultaneamente, o ensaio de Jorge Dias tem sido uma presença assídua nalguns debates recentes mais significativos em torno da identidade nacional portuguesa. Eduardo Lourenço, por exemplo, numa mesa-redonda interdisciplinar subordinada à interrogação «Existe uma Cultura Portuguesa?» (Santos Silva & Oliveira Jorge 1993) utilizou-o como argumento contra os antropólogos que, nesse debate, punham em causa que se pudesse falar numa cultura nacional minimamente unificada de um ponto de vista antropológico. Depois de uma acerada crítica aos antropólogos e à perspectiva antropológica, Lourenço procura virar o feitiço contra o feiticeiro recorrendo justamente a «Os Elementos Fundamentais...»:
A cultura portuguesa tem uma história, tem uma série de mitos, tem uma série de características que seria impossível enumerar. Se eu convencer as pessoas que estão aqui a darem uma vista de olhos pelas páginas deste pequeno livrinho de Jorge Dias, O Essencial sobre os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, já ganhei o dia. Porque, fundamentalmente, as questões à volta das quais nós andámos aqui toda a tarde estão aqui todas mais ou menos explicitadas» (Lourenço in Santos Silva & Oliveira Jorge 1993: 131-2; os itálicos são meus).
58Também José Mattoso, num texto de síntese sobre a identidade nacional portuguesa onde adopta uma visão essencialmente modernista do problema, embora considere que o tema do carácter nacional seja «uma questão (...) duvidosa e (...) discutível», dado «o teor habitualmente subjectivo dos critérios e o método impressionista das observações, sempre impossíveis de demonstrar» (Mattoso 1998: 104), refere-se desta maneira ao ensaio de Jorge Dias, que, de resto, já havia citado aprovadoramente antes (id.: 101-2):
uma das tentativas mais elaboradas de traçar esse perfil [do português] deve-se a um antropólogo bastante conceituado, Jorge Dias, o que não basta evidentemente, para lhe conferir a necessária autoridade, mas deveria constituir motivo para estudos mais atentos da parte da psicologia social (id.: 105; os itálicos são meus).
59Finalmente, num dos capítulos mais lidos do seu Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade – «Onze Teses por Ocasião de mais uma Descoberta de Portugal» (1994a) – Boaventura Sousa Santos tratou o ensaio de Jorge Dias como um dos textos mais representativos daquilo que ele próprio classifica de discursos míticos sobre Portugal, elaborando a seu respeito uma desenvolvida crítica. Sousa Santos começa por referir-se desta forma às ideias de Dias: «Duvido que o [o que Dias escreve acerca do povo português] não possa ser dito a respeito de qualquer outro povo, ou de um grupo social adequadamente numeroso e estável» (1994a: 55). Mais à frente, distancia-se também daqueles que são, na sua opinião, os «três topoi retóricos fundamentais» (id., ibid.) do ensaio de Jorge Dias e de outros textos similares: «O primeiro é que somos espanhóis diferentes» (id., ibid.);, «O segundo (...) é que no carácter português se misturam elementos contraditórios, o que lhe confere uma ambiguidade e uma plasticidade especiais» (id.: 56). «o terceiro (...) consiste na oscilação entre visões positivas e visões negativas da condição do ‘homem português’ » (id., ibid.).
60No essencial, as críticas e observações de Boaventura Sousa Santos são bem fundamentadas e seriam certamente subscritas pelos antropólogos portugueses que têm procurado reflectir sobre este tipo de discursos (Almeida 1998, Leal 1999a). Mas a força do ensaio de Jorge Dias parece ser tal que a denúncia das suas teses por Sousa Santos é mais nominal do que real. De facto, na parte final das «Onze Teses...», ao mesmo tempo que procura fazer uma caracterização da situação portuguesa alternativa aos discursos míticos sobre a identidade nacional, Boaventura Sousa Santos não resiste a entrar em diálogo com as teses de Jorge Dias, de uma forma que deixa o leitor mais atento algo perplexo.
61Assim, por exemplo, para Boaventura Sousa Santos, «O facto de Portugal ter sido, durante muitos séculos, simultaneamente o centro de um grande império colonial e a periferia da Europa é o elemento estruturante básico da nossa existência colectiva» (id.: 59). Seria justamente a «duplicidade de imagens e de representações [suscitada por essa condição] a chave para a alegada plasticidade, ambiguidade e indefinição que os discursos mítico e psicanalítico atribuem ao ‘carácter do homem português’ » (1994a: 60). Mais à frente, Sousa Santos é ainda mais claro:
A coexistência de representações sociais discrepantes [ora típicas dos países centrais, ora dos países periféricos] e o seu accionamento diferenciado consoante os contextos de acção confere às práticas sociais uma certa instabilidade, que se manifesta como subcodificação e abertura a novos sentidos. Daí, a ponta de verdade das leituras idealistas do ‘português como um polvo’ (Unamuno), ‘com capacidade de adaptação a todas as coisas’ (Jorge Dias) ‘essencialmente cosmopolita’ (Fernando Pessoa) (id., ibid.).
62Dada a heterogeneidade do tecido social português, «Portugal tem a mais elevada percentagem europeia da população a viver em meio rural e o operariado português típico é ainda hoje um semiproletário, pluriactivo, isto é, obtém simultaneamente rendimentos do trabalho industrial e agrícola. Será talvez por isso – pergunta Sousa Santos – que ‘o português tem um vivo sentido da natureza e um fundo poético e contemplativo estático diferentes do dos outros povos latinos’ (Jorge Dias)?» (id., ibid.). Do mesmo modo, «as deficiências do serviço nacional de saúde, em processo de liquidação, têm algo a ver com ‘a forte crença no milagre e nas soluções milagrosas que Jorge Dias atribuiu ao ‘carácter nacional’ » (id.: 61). A centralidade que o Estado tem na formação social portuguesa aliada à ineficiência da sua acção justificaria ainda, segundo Sousa Santos, a faceta atribuída por Jorge Dias ao carácter nacional de «‘sobrepor a simpatia humana às prescrições gerais da lei’, a qual ‘fez com que durante muito tempo, a vida social e pública girasse à volta do empenho ou do pedido de qualquer amigo (...)’ » (id.: 62). Finalmente, a prevalência em Portugal de uma sociedade-previdência que supre os vazios da inexistência de um Estado-providência reflectir-se-ia na convicção de que o português é um ser «‘profundamente humano’, que ‘não gosta de fazer sofrer e evita conflitos’, que ‘possui um grande fundo de solidariedade humana’ e é ‘extraordinariamente solidário com os vizinhos’ » (id.: 64).
63Se lermos numa perspectiva comparada um outro texto de Boaventura Sousa Santos publicado em Pela Mão de Alice – «Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira» (1994b) – chegamos a uma conclusão muito similar. Entre a sua caracterização da cultura portuguesa como uma «cultura de fronteira» e as teses acerca da capacidade de adaptação da cultura portuguesa desenvolvidas inicialmente por Jorge Dias nos «Elementos Fundamentais...» e retomadas na primeira parte de «O Carácter Nacional na Presente Conjuntura», há uma proximidade genérica difícil de desmentir. Em ambos os casos, fala-se dessa aptidão que a cultura portuguesa teria para se se deixar contaminar pelo que está fora de si, que faria dela uma entidade «poliglota», no dizer de Jorge Dias (1990: 156), ou, na expressão de Sousa Santos, uma entidade marcada por uma grande «disponibilidade multicultural».
64Isto é: volvido quase meio século sobre a sua publicação, «Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesas» continuam a projectar a sua sombra nas discussões contemporâneas acerca do que é ser português.
65Passa-se qualquer coisa de similar com outro tema que, embora presente em Jorge Dias, foi criado por Pascoaes – o tema da saudade. Não me refiro apenas ao episódio – em si negligenciável – da súbita redescoberta do saudosismo de Pascoaes pela «moda literária». Ou ao facto de, na sua mais recente tentativa ensaística de pensar temas relacionados com a identidade portuguesa (Lourenço 1999), Eduardo Lourenço ter procedido à recuperação do tema da saudade, depois das aproximações mais distanciadas contidas por exemplo em O Labirinto da Saudade (1978).
66Mais importante parece ser a utilização da saudade num conjunto de processos associados à transnacionalização da cultura portuguesa iniciados nos anos 1960 e com contínuos desenvolvimentos ao longo das últimas três décadas. Tive ocasião de examinar num outro ensaio (Leal 1999a) alguns desses processos, tomando como pontos de partida a edição do romance Saudade (1994), da autoria da escritora norte-americana de ascendência açoriana Katherine Vaz e o persistente e continuado êxito dos Madredeus, grupo que se transformou no porta-voz contemporâneo da saudade como tema estruturalmente definidor da originalidade portuguesa. Um e outro facto, como sugeri nesse texto, confrontam-nos com a capacidade que o tema da saudade tem vindo a ganhar de funcionar como um símbolo da identidade portuguesa em contextos sócio-culturais precisos. Assim, Katherine Vaz e Saudade remetemnos para o peso da saudade como idioma da portugalidade em contextos de emigração. Os Madredeus, pelo seu lado, confrontam-nos tanto com a importância que o tema da saudade tem vindo a adquirir na percepção exterior de Portugal, como com a sua crescente influência no «capital nacional cultural» (Löfgren 1989) de uma classe média portuguesa cada vez mais cosmopolita.
67Nesse sentido, o dossier da psicologia étnica – apesar da indiferença que perante ele evidenciam os antropólogos actuais – constitui de facto uma história de sucesso. Uma história de sucesso que deve entretanto desafiar os antropólogos. De facto, depois de ter sucessivamente contribuído para a formulação «científica» do tema e para a sua desconstrução crítica, a antropologia deverá agora encarar, por um lado, a necessidade de estudar alguns destes processos da sua circulação ampliada. Por outro, deverá colocar de forma mais clara na sua agenda da pesquisa a necessidade de uma reflexão sobre Portugal e a identidade nacional capaz de subverter radicalmente os termos em que a questão tem até agora sido posta, dentro e fora da antropologia.
Notes de bas de page
1 No decurso deste capítulo, sempre que citar o ensaio de Jorge Dias, utilizarei como edição de referência a de 1990, que é, hoje em dia, a de mais fácil acesso.
2 Para uma presentação dos estudos de carácter nacional da escola norte-americana da cultura e personalidade, cf. Nieburg & Goldman 1998.
3 Embora a conclusão constitua a passagem mais significativa de «O Cruel e Triste Fado», podemos reencontrar o mesmo tom um pouco por todo o texto. Assim, no seu início, Rocha Peixoto, fundamenta do seguinte modo a homologia que estabelece entre o fado e o temperamento português: «a sina, o acaso, a sorte que preside ao nosso destino, que determina as nossas acções e que explica os mais vários aspectos da nossa existência, ou seja numa angústia colectiva, ou, individualmente, atirando-nos com o pé direito à ventura ou com o esquerdo à desgraça, eis o que define o povo português, eis o que num antropismo universal donde herdou ou recebeu a maioria dos seus mitos, se destaca como característica própria» (1897: 293). Ou, mais à frente: «tudo entre nós corre o fado, os navegadores e os lobisomens, as bruxas e as rainhas: e cada um de nós, chegada a tirana morte, tem acabado o seu fadário. Nesta fé cega, que o génio e a vida portuguesa explicam, a lassitude na iniciativa, a carência de um ideal colectivo, o alheamento do povo na obra político-económica dirigente, compreende-se na nação entontecida de grandezas ou resignada nos desastres que só atribui ao destino. Nunca o povo português se ocupou das grandes revoluções na ciência e nas artes, nunca o uniu o sentimento consciente e altruísta da nacionalidade. Clamores isolados, pequenas revoltas, é nada: o cepticismo de hoje é o de sempre. Contra o descalabro da pátria e na ruína própria, não reage nem combate: espontaneamente nunca reagiu nem combateu. Foi heroico por dever, se o mandavam: que quanto a si apenas pede que o deixem emigrar, sem protesto, resignado, ou a céu aberto, ou oculto num porão, em sacos, em pipas, em caixões» (id.: 298 e 299). E já perto do final do texto: «o critério geral da sorte do país, a cujo governo o povo nunca deixará de ser alheio, é o do fado que correm os lobisomens, à meia-noite, nas terças e nas sextas-feiras, olheirentos, chupados, vagabundos, funéreos: sete adros, sete encruzilhadas, sete rios, sete vilas acasteladas, sete vales e sete outeiros» (id.: 301 e 302).
4 Acerca da Encomendação das Almas, cf. nomeadamente Dias & Dias 1950 e 1956.
5 Esta é de tal maneira que não deixará indiferente Mircea Eliade. Cf. a este respeito Lorenzana 1986: 650-651.
6 Um elemento suplementar acerca da importância de Pascoaes nas reflexões de Jorge Dias acerca do carácter nacional português encontra-se no facto do primeiro ensaio de Pascoaes sobre o tema da saudade, ser uma das poucas referências não-antropológicas sobre psicologia étnica indicadas por Benjamim Pereira na sua Bibliografia Analítica da Etnografia Portuguesa (1965).
7 Acerca do impacto das ideias de Gilberto Freire em Portugal, cf. Castelo 1999. Sobre o luso-tropicalismo, cf. também Vale de Almeida 1998. Consagrando a primeira metade do ensaio a uma extensa glosa do tema da particular capacidade de adaptação dos portugueses tal como esta se teria exprimido na sua colonização. Dias vê essa característica como uma consequência de alguns dos traços do carácter nacional português tal como ele os havia descrito cm 1950: «a tradição comunitária, outrora muito difundida entre nós, a família patriarcal multifuncional, o costume arreigado de muitos trabalhos rurais serem colectivos, gratuitos e recíprocos, os hábitos de sobriedade resultantes de economia de subsistência deram ao Português uma feição típica que o predispunha a aceitar de maneira natural as chamadas culturas primitivas, que de maneira nenhuma o podiam chocar» (Dias 1971b: 39).
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1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000