Prefácio
p. 13-15
Texte intégral
1O livro de Fabienne Wateau retoma, em parte, a tese por ela defendida em 1996 sobre o papel da água na organização social de uma comunidade camponesa do Norte de Portugal. Ele inscreve-se numa série de trabalhos notáveis sobre a Antropologia em Portugal, uma parte dos quais foi já publicada na Colecção Portugal de Perto. Ele tem a meticulosa e tranquila modéstia da colecção. À sua imagem, limitar-me-ei a definir o lugar que este trabalho poderá vir a ocupar entre as Ciências Humanas nas suas abordagens das sociedades mediterrânicas.
2Tratar-se-á, verdadeiramente, de uma sociedade mediterrânica ou, neste caso, poder-se-á falar, até e mais simplesmente, de clima mediterrânico?
3Para um geógrafo, o segundo ponto não levanta dúvidas. Não somente a secura estival como também a irregularidade interanual das precipitações estão aqui presentes e assinam o clima mediterrânico. É verdade que com um carácter tão ténue e de tal maneira nuanceado que nos é permitido hesitar. Demasiado breve, a secura estival não chega a parar o escoamento e o ciclo vegetativo. Se acrescentarmos que no resto do ano a precipitação particularmente abundante impregna de água as areias graníticas, compreenderemos por que razão, até em pleno mês de Agosto, as paisagens estão ainda verdejantes e a água brota por toda a parte no flanco dos vales. Estamos de facto nas margens setentrionais de um clima mediterrânico exposto por acréscimo às influências atlânticas. Não podemos deixar de evocar o célebre livro de Orlando Ribeiro: Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Não se trata apenas de uma divisão do país em dois domínios climáticos, mas também de um entrelaçamento dos seus traços. Na região do noroeste, onde estão situados dois terços das terras regadas do país, a abundância da precipitação invernal e a brevidade do período seco estival não devem não obstante fazer-nos esquecer que os traços mediterrânicos subsistem e que a água estival constitui aí uma aposta no que toca à cultura do milho e à horta familiar.
4Conhece-se a rega das regiões da Ásia ligada à rizicultura, a das regiões desérticas onde nada poderia ser cultivado sem água e também a rega das huertas mediterrânicas que produzem prematuramente com destino aos mercados longínquos. Mas o específico das margens climáticas é que as sociedades humanas tenham uma liberdade de escolha para se adaptarem ao enquadramento climatérico por meio do emprego agrícola da água. É uma espécie de interpretação dos dados climáticos que os homens dão então por intermédio das suas actividades. Foi assim que no Sudoeste da França se entrou recentemente numa problemática mediterrânica da água por intermédio da extensão da cultura do milho. No Noroeste de Portugal, a cultura do milho dá uma resposta às necessidades alimentares de uma sociedade camponesa particularmente densa, desde o século xvi. Da antiga prática da irrigação invernal dos prados de fundo de vale, facilmente se passou à rega estival do milho. A opção mediterrânica estava tomada e já não há razão para nos surpreendermos com o papel da água nesta região húmida. Pelo contrário, a sua presença, a despeito do desaparecimento progressivo daquilo que a justificava, tem de que surpreender. Por um lado, a importância do êxodo rural, designadamente pelos anos sessenta, por outro lado, a modernização da agricultura com o desenvolvimento de uma viticultura de qualidade, reduziram a parte reservada ao milho e às culturas hortícolas, que exigiam a rega de Verão.
5Esta visão algo comportamental do clima leva-nos a colocar outra questão. Estaremos na presença de uma sociedade mediterrânica? É habitual associar a área mediterrânica a um certo número de condutas culturais relevando tanto da alimentação, da atitude para com as mulheres, da concepção de honra ou de certas formas de violência. Aqui, os conflitos por causa da água parecem relevar mais do desafio do que da violência e o papel das mulheres é determinante neste domínio, mas quem percorreu estas terras do norte conhece também a presença das cruzes à beira dos caminhos. Deixaremos aos antropólogos esse debate. De facto, muitos testemunhos levam-nos a pensar que se trata de uma civilização setentrional há muito influenciada por elementos característicos das civilizações mediterrânicas.
6Mas o que mais importa é que se defrontam à volta de uma água estival que perdeu muito do seu interesse e da sua razão de ser, tendo em conta a evolução recente da agricultura. Poderíamos pensar numa sobrevivência se a autora não nos mostrasse que estas tensões têm outro papel, mais importante talvez do que a rega das terras e que diz respeito ao próprio funcionamento da sociedade, cuja modernização condiciona. É essa a principal lição do livro, livro este que seria conveniente recomendar aos espíritos sistemáticos que facilmente identificam capital simbólico com capital físico.
7O que me impressionou neste livro de Antropologia é que a autora tem em conta, igualmente, uma abordagem histórica dos fenómenos. Não numa perspectiva passadista e nostálgica mas de maneira a dar ao tempo aquela espessura explicativa sem a qual corremos o risco de ficar à tona dos acontecimentos. Existe aqui um forte cunho do passado que, mesmo restringindo-se unicamente às representações, continua a ter um papel essencial no modo de funcionamento e na organização social da comunidade. Esta forma de transmissão da identidade de um grupo passa pelos ritos anuais de preparação da rega e pelo uso de instrumentos tradicionais. As pedras ou as frágeis canas que servem para medir os tempos ou as quantidades de água ganham neste caso um valor novo e simbólico.
8Pelo anedótico, não posso deixar de pensar na sugestão feita um dia por Joaquim Pais de Brito de dedicar uma colecção de livros a instrumentos manuais. Eu tinha-lhe chamado a atenção para o grande maço exposto no Musée du Compagnonnage em Tours e pertencente a um canteiro de grés, cujo cabo conserva a marca das mãos que o manejaram. É preciso saber que em Touraine, a pedra de construção é uma matéria branda, própria para as construções mas imprópria para as calçadas. O pavimento destinado ao rolar das carruagens vinha outrora de Armorique através dos barcos gabares cheios de grés veiado. Serravam-se os blocos directamente nos cais do Loire, na parte de baixo dos aterros, com o auxílio de um sólido maço de um longo cabo em madeira de sorveira. A cada trabalhador a sua ferramenta, a sua única riqueza, à semelhança da foice trabalhada das ceifeiras do Alentejo. Os grãos de grés espalhavam-se, cobrindo e colorindo braços e troncos inundados de suor. Abrasivos, eles davam às mãos dos obreiros o brilho das das donzelas. Para atenuar a queimadura, mergulhavam-nas de vez em quando numa selha de água fresca. Mas a pasta rugosa circulava entre a mão e o cabo do instrumento como um líquido orgânico e os dedos imprimiam a pouco e pouco a sua forma na madeira lisa e rija. Da mesma maneira, e desde há séculos sem dúvida, um sistema complexo e finamente adaptado ao meio foi posto em prática em Melgaço por acção de toda uma colectividade. Ele dá doravante a sensação de funcionar por si próprio e é na medida em que a questão económica que o justificava tende a desaparecer que vemos emergir o seu papel social regulador. Fabienne Wateau teve olhos para o ver e talento para o dar a ver.
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