Conclusão
p. 321-341
Texte intégral
1Importa agora recordar as diversas facetas da investigação sobre famílias camponesas, num contexto de semi-industrialização, e observar como responderam às principais questões orientadoras do estudo, a saber:
- Nos anos trinta e quarenta, encontramos «uma família camponesa» ou, pelo contrário, uma variedade de famílias na sociedade rural observada? Como se integravam as famílias camponesas na sociedade da época?
- No passado, qual a lógica de funcionamento da família de camponeses ricos (lavradores), e quais os factores privilegiados da sua dinâmica?
- Quais foram as principais transformações sociais da sociedade rural ao longo da últimas décadas, e qual foi o seu impacto na dimensão e na composição das famílias rurais?
- Como reagiu a família de lavradores durante esse período, e de que modo é que os novos condicionalismos influíram na construção da vida familiar? Será que tudo mudou? Ou, pelo contrário, não serão as tendências de mudança mais complexas, tendo a família de lavradores sofrido alterações sem perder a sua especificidade?
1. A dinâmica de uma sociedade rural: estrutura social, grupos domésticos, famílias camponesas
2Nos anos trinta e quarenta, as freguesias de Lemenhe e de Gondifelos faziam parte de uma sociedade que podemos designar por «proto-industrial». Não mecanizada e pouco especializada, a agricultura era a actividade mais importante. O sector secundário desenvolvia-se lentamente, apoiando-se em formas de produção quer artesanais quer manufactureiras. A zona este do concelho possuía uma indústria têxtil fabril, mecanizada e de média dimensão, mas só mais tarde é que esta indústria vai recorrer à população activa das freguesias observadas. No entanto, a proximidade de mercados importantes e do desenvolvimento industrial encorajava diversas actividades de transformação em pequena escala, exercidas em oficinas artesanais ou em condições ambulatórias simples: a carpintaria e a construção civil, a olaria e a alvenaria, os vimes e os têxteis. Neste último sector, para além de alguns trabalhadores ao domicílio, existiam também as oficinas semipatronais que trabalhavam em regime de subempreitada ou que se apropriavam da manufactura de um produto complementar da indústria têxtil. As freguesias especializavam-se em determinadas actividades de pequena escala: Lemenhe contava com várias famílias de cesteiros e marceneiros; Gondifelos distinguia-se pelos seus pedreiros, mineiros e moleiros. Algumas destas famílias (sobretudo as dos moleiros, dos merceeiros e dos marceneiros) aliavam a pequena agricultura a outras actividades profissionais. Mas os artesãos mais pobres — os cesteiros, os sapateiros, as tecedeiras que trabalhavam em casa — raramente possuíam uma parcela de terra.
3A análise da estrutura social das freguesias de Lemenhe e de Gondifelos revela uma população composta por grupos diferenciados consoante as suas relações com a terra e as suas condições de vida. Longe de remeter para um mundo rural igualitário e harmonioso, os dados do passado evocam um cenário social marcado pela distinção entre famílias «pobres», «remediadas» e «ricas», bem como pela dependência dos mais pobres relativamente aos mais ricos. Do ponto de vista das situações de classe, encontra-se uma estrutura desigual e hierarquizada: proprietários, na maioria ausentes, cujas terras eram exploradas por caseiros; lavradores que eram donos das terras que exploravam; caseiros de terra, ou camponeses pobres, que exploravam a terra de outrem, pagando elevadas rendas em géneros; camponeses a tempo parcial (pequenos proprietários) que aliavam a actividade agrícola e o trabalho independente, o que lhes permitia ter um nível de vida «remediado» ou até «mais do que remediado»; operários e artesãos de condição pobre ou remediada; e, por fim, criados e jornaleiros agrícolas, que nem sempre trabalhavam nas mesmas terras, pois vendiam a sua força de trabalho conforme a procura. Os criados e os jornaleiros agrícolas eram os membros mais carenciados da sociedade rural.
4Num contexto económico evocado como «miserável» e de trabalho duro, onde a comida era pouco abundante e a protecção social das famílias praticamente inexistente, a assistência às pessoas de idade ou carenciadas dependia, em primeiro lugar, dos parentes próximos, apelando-se também à caridade colectiva, isto é, às relações de mútuo auxílio entre grupos domésticos vizinhos ou amigos e às esmolas concedidas pelas famílias ricas e pela Igreja às famílias mais desfavorecidas.
5A comunidade local exercia um controlo considerável sobre a vida dos indivíduos e das famílias. O padre, as famílias mais abastadas, os responsáveis locais, exerciam uma influência predominante. Contudo, também aqui se observa a diversidade e a emergência de sociabilidades de classe e entre famílias variadas. Os jornaleiros agrícolas, os caseiros, os artesãos pobres agrupavam-se no espaço, ajudavam-se uns aos outros e circulavam constantemente entre freguesias e entre grupos domésticos; casavam de preferência entre eles e desenvolviam saberes periféricos. Em contrapartida, os grupos domésticos dos lavradores cercavam-se de altos muros e fechavam os portões: os membros da família eram vigiados de perto, sobretudo do interior, pelos mais velhos, mas também, de maneira mais indirecta, do exterior (entrada e saída de jornaleiros e criados, de parentes próximos e vizinhos, da parteira e do padre). Exercendo uma justiça familiar específica, a «Casa» era um mundo fechado sobre si próprio, muitas vezes afastado do espaço das outras casas vizinhas, menos acessível aos olhares e às potenciais desaprovações do exterior.
6Na sociedade rural do passado, fazer parte de um agregado doméstico significava quase sempre viver com pessoas aparentadas, embora nem sempre numa família numerosa, de dimensão elevada, nem mesmo alargada ou múltipla. A dimensão média do grupo doméstico não era muito elevada (4,7 em Lemenhe e 4,28 em Gondifelos), e a maior parte dos agregados (74 por cento em Lemenhe e 79 por cento em Gondifelos) tinham menos de seis membros. Em torno desta dimensão média, encontra-se uma grande dispersão de valores: nalgumas famílias, sobretudo nas mais ricas, como as dos lavradores que acolhiam criados e três gerações diferentes, a dimensão da família podia ser muito elevada; noutras, sobretudo nas mais desfavorecidas, o agregado podia ser composto apenas por uma só pessoa ou uma família monoparental. Do ponto de vista da estrutura familiar, era a família simples, sob a forma da monoparentalidade ou do casal com ou sem filhos, que predominava. A análise da composição dos grupos domésticos antes dos anos 60 mostra que estas famílias «simples» têm percentagens superiores a 70 por cento. Também existem percentagens elevadas de agregados «sem núcleo familiar» ou de pessoas sós (11 por cento a 15 por cento do total), bem como percentagens bastante elevadas de famílias complexas (16,3 por cento em Lemenhe e 13,1 por cento em Gondifelos), sendo a maioria destas «alargadas» por parentes em linha ascendente ou descendente.
7A análise dos tipos de grupos de parentesco e da dinâmica familiar consoante a situação de classe da família sugere que esta variável intervém de forma importante na vida familiar. Em primeiro lugar, a complexidade familiar caracteriza, sem dúvida, quase todas as situações de classes. No entanto, a proporção de famílias complexas varia bastante segundo a classe social. Os grupos domésticos complexos representam uma proporção muito elevada das casas de lavradores (45 por cento a 47 por cento), uma proporção média entre os camponeses a tempo parcial (até 20 por cento) e entre os jornaleiros agrícolas (até 30 por cento), e uma proporção bem menos elevada ou inexistente entre os camponeses pobres (8 por cento), na pequena burguesia independente (7 por cento) e na burguesia (0 por cento). Em segundo lugar, a análise pormenorizada da composição dos agregados simples ou complexos mostra que a forma de nuclearidade ou de complexidade podia variar de uma classe social para outra. Nas duas freguesias observadas, o exemplo mais marcante destes contrastes encontra-se entre as famílias de lavradores e as dos jornaleiros agrícolas. Nas primeiras, a maior parte das vezes, a família simples ou complexa compunha-se de casais com filhos; nas últimas, eram famílias monoparentais (mãe com filhos), em co-residência ou não com outros parentes, que predominavam.
8Em terceiro lugar, verificamos que a vida doméstica se constrói em torno de valores e de práticas distintas no interior das diferentes situações de classe ligadas à agricultura. Neste estudo, distinguimos três dinâmicas familiares:
a) Nas famílias de lavradores, o objectivo fundamental da união familiar é a solidariedade patrimonial, sendo a instituição da «Casa», associada à família-tronco, o seu enquadramento. As estratégias familiares assentam na continuidade da casa, e os filhos (bem como a sucessão beneficiada) ocupam aí um lugar central. Defendem-se as obrigações de mútuo auxílio, de trabalho entre gerações, assim como a subordinação das estratégias individuais e conjugais ao todo corporativo. Nesta família fortificada, onde se procura reproduzir o património e segurar as pessoas que o exploram, a norma é de que um filho “deve” permanecer na Casa a fim de assegurar a perenidade da exploração agrícola.
b) Nas famílias de camponeses pobres, a coesão familiar e o mútuo auxílio são bastante acentuados, muito embora esteja ausente o ideal de devolução de um património familiar indiviso ou da gestão da exploração. Na região estudada, onde as terras arrendadas mudavam frequentemente de mãos, era difícil prever as condições de transmissão das explorações. Os princípios de solidariedade centram-se pois na ajuda recíproca e na maximização da força de trabalho com vista a organizar a sobrevivência material e a amparar as pessoas ao longo da vida. Para estas famílias solidárias centradas no casal com filhos, procurar garantir alguma ajuda funcional significa viver, se possível, «perto» umas das outras ou acolher os parentes próximos consoante as necessidades, respondendo assim às carências temporárias de mão-de-obra, de serviços ou de alojamento das diferentes gerações. O património, quando existe, é repartido segundo os princípios da igualdade absoluta. Do ponto de vista da geração mais velha, prepara-se assim um terreno fértil em ajudas múltiplas e difusas entre os pais e todos os filhos.
c) Nas famílias de jornaleiros agrícolas, onde a norma advoga que cada um «vá à vida», insiste-se menos na solidariedade familiar. É raro as famílias possuírem algum bem móvel ou, mesmo, terem acesso a terras arrendadas. Nestes grupos domésticos, as mobilidades geográfica e de emprego intervêm cedo na vida do indivíduo, empurrando-o para longe da família e para fora da sua aldeia mal este demonstre capacidade para trabalhar e procurar no exterior os meios de subsistência que a família mutável, sujeita a permanentes carências e com poucas possibilidades de constante partilha de recursos e de espaços, não lhe assegura. Nesta situação de classe, o número de solteiros é elevado, e a formação de famílias de mulheres sozinhas com filhos assenta no nascimento de filhos ilegítimos ou na emigração prolongada do cônjuge. Neste contexto, também se constroem laços de solidariedade, mas de forma mais aleatória, sobretudo com base na relação mãe-filhas e, ocasionalmente, quer nas relações entre irmãos e irmãs ou entre cônjuges, quer ainda nas relações de vizinhança (isto é, entre pessoas sem laços de parentesco). A complexidade doméstica surge associada a percursos familiares fragmentados por dificuldades materiais, mobilidade de trabalho e monoparentalidades, reunindo por vezes, debaixo de um tecto comum, uma mãe solteira e os seus pais ou avós com netos deixados pelos que emigravam.
9Em resumo, a análise do material relativo à história oral e aos Róis de Confessados permite concluir que, na sociedade rural estudada, se cruzam várias formas familiares. A família-tronco — no sentido da lógica de perpetuação de uma «Casa» — predomina socialmente entre os lavradores abastados. Pelo contrário, entre os camponeses pobres, a vida familiar inscreve-se numa dinâmica familiar de mútuo auxílio e de maximização da força de trabalho. Isto nem sempre conduz à coabitação de três gerações. No que se refere ao proletariado agrícola, os laços de parentesco a longo prazo e os laços conjugais não são tão centrais na vida doméstica. A família complexa não está ausente, mas assume muitas vezes a forma de uma família monoparental associada a um casal, a um parente ou a outra família monoparental.
10No passado, a variabilidade das dinâmicas familiares em meios rurais não dependia apenas da classe social. As trajectórias individuais dos membros das famílias pertencentes a uma mesma situação de classe revelam um amplo leque de factores que podiam imprimir contornos particulares a uma dada dinâmica. A morte prematura ou a emigração de um parente, o número e o sexo dos filhos, as relações de poder e a fidelidade entre cônjuges, o grau de controlo exercido sobre os filhos, o problema do alcoolismo para a reputação da família, estas eram algumas das variáveis susceptíveis de colocar as famílias pertencentes a uma mesma situação de classe em posições diferenciadas relativamente à sobrevivência, à sucessão ou ao casamento.
11Por último, no que toca ao estudo da dinâmica familiar no passado, verifica-se que a norma ideal revela um modo preferencial de combinação de diversos factores. Tal como se verifica que as práticas, dados os condicionalismos mencionados, acentuam, com maior ou menor intensidade, os factores ideais privilegiados. Do ponto de vista da sucessão, por exemplo, preconizava-se, entre os lavradores, que «se segurasse», através de uma doação, o herdeiro privilegiado da Casa, sem negligenciar, porém, uma certa «precaução» dos pais no que respeita ao poder e à entrega do património. As normas jurídicas em vigor defendiam esta norma ideal, visto autorizarem a doação da terça parte do património e defenderem a autoridade do chefe de família. Todavia, diversos condicionalismos ou acontecimentos (más relações com a esposa do filho sucessor, recordação de uma crise económica devido a uma imprevidência, ausência de filhos e presença de um herdeiro «sobrinho», existência de vários filhos lavradores a querer herdar terras, etc.) podiam levar os pais a insistir mais na previdência e a efectuar mais tarde do que o previsto a devolução patrimonial. Em resumo, nas famílias abastadas do nosso estudo, a insistência na continuidade da casa e no facto de «segurar» o herdeiro com a quota-parte disponível não excluía a existência de uma certa diversidade de práticas de sucessão, que decorriam dos diferentes modos de resolução da tensão entre os vários factores reconhecidos como legítimos.
2. Família e mudança social ao longo das últimas décadas
12As décadas de 60, 70 e 80 trouxeram mudanças sociais importantes para as freguesias rurais estudadas. Recorrendo à força de trabalho dos homens, das mulheres e dos adolescentes, as fábricas multiplicaram-se no interior da região, nomeadamente perto de Lemenhe e na própria freguesia de Gondifelos. Novas facilidades de transporte aproximaram as pessoas de certas oportunidades de emprego, incentivando migrações quotidianas intensas entre as freguesias mais agrícolas e as zonas mais industrializadas. A necessidade de mão-de-obra nos países mais industrializados da Europa permitiu uma emigração em massa de operários não-qualificados dos sectores primário e secundário. Estas transformações conduziram, antes de mais, a uma transferência maciça da população activa do sector agrícola para o sector industrial, intensivo em mão-de-obra e oferecendo salários relativamente baixos. Contudo, comparado com o trabalho assalariado na agricultura, o emprego industrial era mais estável e mais protegido do ponto de vista da segurança social, já que proporcionava às famílias e aos indivíduos recursos pecuniários mais regulares e uma certa assistência na doença e na velhice progressivamente ao alcance de todos. A integração das famílias em instituições públicas de educação, de saúde e de segurança social efectua-se sobretudo nos anos 60 e 70: a escola secundária pública vem juntar-se à escola particular que existia em Famalicão desde os anos 40; nalgumas freguesias, foram criados centros de saúde, ligados ao sistema nacional de saúde, e, em Famalicão, foi construído um hospital público nos anos 70; enfim, a amplitude das prestações do sistema de segurança social é alargada.
13No que respeita à estrutura social, podemos dizer que se opera uma recomposição das situações de classe, quer no topo, quer na base da escala. Com efeito, o peso relativo dos proprietários fundiários diminui, e verifica-se o aparecimento de um certo número de patrões industriais bem como a emergência, ainda tímida, da pequena burguesia de enquadramento e das profissões intermédias. Junto dos camponeses, observa-se uma diminuição, quer em termos relativos quer absolutos, dos lavradores e dos camponeses pobres. Apenas as fileiras dos camponeses a tempo parcial são reforçadas, pois acolhem muitos pequenos lavradores e caseiros de terra, descendentes de famílias ligadas ao trabalho agrícola, que optam por uma estratégia de saída parcial da agricultura. Finalmente, nas classes populares que não exploram a terra, observa-se uma diminuição das situações de classe ligadas às profissões artesanais, uma brusca redução do número de jornaleiros agrícolas e um aumento acentuado de trabalhadores qualificados e não-qualificados do sector secundário. Assiste-se, igualmente, a um ligeiro acréscimo das situações de classe ligadas a trabalhos do terciário.
14A análise das situações de classe consoante os níveis de vida mostra-nos freguesias cujo nível de vida é, em geral, um pouco mais elevado, onde mais famílias possuem um nível de vida «remediado», mas onde a recomposição socioprofissional reproduz, ao mesmo tempo que as reformula, as desigualdades sociais. No topo da escala dos níveis de vida, encontramos a burguesia proprietária e profissional, a pequena burguesia proprietária e de enquadramento, alguns lavradores e alguns camponeses a tempo parcial; no escalão dos “remediados”, encontramos a pequena burguesia independente, os camponeses pobres e a tempo parcial, trabalhadores dos serviços e operários qualificados, mas também alguns lavradores proprietários; os trabalhadores agrícolas e os não-qualificados do secundário têm, a maior parte das vezes, um nível de vida pobre ou, como se prefere dizer hoje, «vivem mal».
15As freguesias e as famílias estão actualmente mais abertas ao exterior. Todas as manhãs, adolescentes e trabalhadores saem delas para ir à escola ou à fábrica. As estradas e os transportes públicos atravessam a freguesia, a televisão está presente em todas as cozinhas, e as famílias não só vão às festas dos arredores, mas também se deslocam a zonas mais afastadas: ao Porto e a Braga, por exemplo. A comunidade continua, contudo, a vigiar os actos e os gestos dos seus membros. Avalia também os novos valores, pesa-lhes as vantagens e os inconvenientes. Mas os valores e os comportamentos são agora postos em causa. Diz-se convictamente, por exemplo, que é preferível ter uma religião, seja ela qual for, do que não ter nenhuma; todavia, reconhece-se a diversidade dos comportamentos religiosos, bem como a possibilidade de optar, o que, por sua vez, conduz a interrogações sobre a razão de ser das representações dos não-crentes.
16As mutações da vida familiar rural são diversas. O crescimento da intervenção do Estado e dos seus serviços, acompanhado pela progressiva democratização da sociedade e pela mobilidade socioprofissional ascendente para a maioria das famílias rurais, afectou os valores e as relações familiares no interior da freguesia, sem com isso os abalar profundamente. As ideias de igualdade e de promoção social através da educação e da iniciativa individual determinam mais do que no passado as aspirações familiares, modificando o estatuto da criança e da mulher, reduzindo o grau de subordinação das estratégias individuais e conjugais à estratégia de sobrevivência do todo familiar. No entanto, isto não faz desaparecer a ideologia familialista do mútuo auxílio, nem a ética do trabalho «familiar», ou seja, da conjugação dos esforços e dos rendimentos. Dado o baixo nível de vida associado à sociedade «semi-industrial», estes princípios são considerados fundamentais para assegurar quer o presente nível de vida (que permite comer melhor e à vontade) quer a futura mobilidade social, esperança que é constantemente alimentada pelos «mass--media» e pela crescente aproximação dos modos de consumo rurais e urbanos. Por outro lado, o facto de algumas formas familiares de capitalismo existirem ainda num contexto de industrialização difusa também contribui para reforçar a ideia da família enquanto entidade colectiva de trabalho e de promoção social. Com efeito, é a partir da iniciativa familiar que surgem e desaparecem pequenas fábricas e oficinas complementares da produção fabril em grande escala. Nos anos 80, é a indústria da confecção de vestuário que estimula o maior número de iniciativas neste domínio.
17Paralelamente às transformações sociais, culturais e económicas referidas, as famílias e os grupos domésticos foram-se alterando ao longo destas décadas. No plano da estrutura, numa dinâmica complexa de tendências cruzadas, ressaltam dois grandes eixos de mudança. Em primeiro lugar, dá-se uma maior uniformização da vida familiar, assente em dimensões médias da família hoje muito parecidas em todos os grupos sociais. No passado, registou-se uma grande diversidade em relação à média, existindo muitos grupos domésticos com dimensão francamente superior ou inferior ao valor médio. No presente, observamos perfis próximos da média, o que significa que a maior parte dos grupos domésticos, sejam eles ricos ou pobres, lavradores ou trabalhadores ao dia, apresentam uma dimensão que vai de três a cinco pessoas.
18Num segundo eixo, deparamos com a tendência para uma maior conjugalização da vida doméstica, verificando-se hoje uma elevada proporção de grupos domésticos compostos por um ou mais casais (83 por cento e 86 por cento). O reforço de uma vida doméstica centrada no casal acompanha uma descida da proporção quer de agregados de pessoas sós ou sem núcleo familiar, quer de famílias monoparentais, outrora muito frequentes nos grupos sociais mais desfavorecidos. Observa-se assim um efeito de «nuclearização», cujo significado — que remete para o aumento dos núcleos conjugais — é, contudo, diferente do normalmente atribuído ao conceito, centrado no desaparecimento da complexidade.
19A par destes dois eixos de mudança, sublinhe-se a tendência para a persistência da complexidade familiar, centrada quer nas estratégias de sucessão patrimonial e empresarial de famílias que possuem património ou unidades de produção, quer nas estratégias de mútuo auxílio e de junção de recursos entre parentes próximos, quer ainda na articulação entre os dois tipos de estratégia. Os percursos de vida familiar mostram que a «ajuda funcional», justificação importante para a co-residência de parentes próximos, ocorre em certos momentos de transição familiar, desde a entrada na vida conjugal e o nascimento dos filhos até à ruptura conjugal ou à viuvez, ocorrendo também em situações de carência e dificuldade, associadas à doença, à falta de recursos, à sobrecarga de trabalho e à emigração. No total dos agregados domésticos, a proporção de famílias complexas manteve-se ou aumentou ligeiramente: nos anos 80, 18,9 por cento dos agregados de Lemenhe e 21,8 por cento dos de Gondifelos contêm famílias alargadas ou múltiplas.
20Podemos dizer que, por um lado, o reforço da vida em casal se efectuou à custa da diminuição dos adultos solteiros e da vida em família monoparental; e que, por outro lado, a importância da vida familiar complexa se manteve. Estas tendências estão ligadas a vários factores demográficos, económicos e socioculturais. É importante referir, em primeiro lugar, o declínio do celibato prolongado ou permanente, bem como a possibilidade de concretizar o que para muitos era apenas um «sonho» — o de construir e organizar um lar ou uma casa própria, dois factores que se associam à melhoria das condições de vida e de emprego na região. Nas classes populares, passar de uma economia centrada no trabalho à jorna para uma economia familiar assalariada pode permitir construir uma família solidária mais organizada do ponto de vista da partilha de recursos. Refira-se também, neste contexto de renovado acesso à casa e à conjugalidade, a emigração para França, que, contrariamente à emigração para a América do Sul, favoreceu o reagrupamento familiar e reduziu a tendência para a formação de agregados familiares compostos por mulheres cujo marido está ausente durante muitos anos. Em segundo lugar, é importante assinalar o aumento do peso do grupo etário das pessoas idosas na população total e uma certa renovação das casas de habitação (o que permite às famílias acolher com mais facilidade uma pessoa de idade ou um filho casado). Tal como importa assinalar o facto de persistir uma norma cultural que preconiza o mútuo auxílio entre parentes próximos. Trata-se de um factor importante, pois significa que o acolhimento de familiares que vêm juntar-se a uma família «conjugal» inicial permanece uma opção possível muitas vezes tomada em consideração pelas famílias.
21Já no plano das relações familiares ao longo das últimas décadas — e não só no da estrutura familiar —, observamos a passagem para uma família institucional mais privatizada, onde se elaboram significados mais privados da conjugalidade, menos assimétrica em termos do poder e da divisão do trabalho e, também, mais centrada nos valores do companheirismo conjugal: o entendimento e a compreensão acompanham os valores do dever e do respeito no casamento para toda a vida; a noção de uma infância protegida, que supõe mais «regalias» e atenção à criança, atenua a disciplina pelo trabalho e diversifica a cooperação no todo económico familiar.
22A análise dos tipos de agregado familiar e das dinâmicas familiares, segundo a situação de classe do representante de família, sugere que, a despeito do reforço generalizado de uma vida doméstica centrada na presença do casal, esta variável intervém, tal como no passado, de forma importante nas estruturas e nas relações familiares. No que se refere às estruturas, eis alguns contrastes a ter em conta. Há poucos agregados domésticos onde o representante da família é um trabalhador agrícola, mas subsiste nestas famílias uma tendência para a vida de solteiro ou em família monoparental, em detrimento da presença do casal na vida doméstica. Com efeito, o casal só está presente em 29 por cento a 39 por cento das casas cujo representante de família é um trabalhador agrícola. Em contrapartida, nos agregados cujo representante de família é um lavrador, encontramos sobretudo a estrutura de grupo doméstico complexo associada à família-tronco: agregados familiares compostos por um casal e alargados por um parente viúvo; e agregados múltiplos no interior dos quais coabitam dois casais (pais e filho/filha casado/a). Tal como no passado, há entre os agregados de lavradores uma fraca percentagem de famílias simples e uma proporção elevada (40 por cento em Lemenhe e 50 por cento em Gondifelos) de famílias complexas.
3. Famílias de lavradores: evolução e lógicas actuais
23No que se refere às famílias dos lavradores, a análise das principais dimensões da vida familiar e da sua dinâmica de evolução durante as últimas décadas permite fazer sobressair a passagem, pouco linear, da lógica da «Casa» para a lógica da «família empreendedora».
24A primeira assenta na protecção dos interesses da «Casa», na profunda imbricação dos domínios económico e doméstico, e numa dinâmica familiar que estimula o «amarrar» das pessoas ao trabalho agrícola e aos objectivos da auto-suficiência económica e social. A análise permitiu detectar alguns dos factores privilegiados na construção da vida familiar, inscritos na trama dos modos de inclusão, de produção e de troca da família rural abastada. Esses factores são a «assimilação» do herdeiro e a exclusão diferida dos outros filhos (foi aquilo a que chamámos o modo de inclusão absorvente); o trabalho intenso, a poupança e o facto de «sair pouco de casa»; uma sucessão beneficiada, assente na «precaução» e no facto de «segurar» os indivíduos e os bens; o saber-fazer e a experiência profissional; o controlo através da imposição, da punição e da violência, sejam estas simbólicas ou corporais; e, enfim, o medo e o respeito relativamente aos mais velhos da família, com a existência de uma enorme dívida dos filhos para com os pais. Tudo isto permite a sobrevivência do grupo no quotidiano, ao mesmo tempo que sustenta a ligação à casa e ao trabalho, o casamento tardio e arranjado (que não descura, no entanto, a mútua inclinação dos namorados) para uns e o celibato definitivo para outros, a continuidade através da sucessão privilegiada e a sobreposição das gerações sob tecto comum, bem como uma constante actividade dos homens e dos animais. O clima familiar é mais dominado, no nosso contexto particular, pelos laços criados quotidianamente numa vida de trabalho intenso do que pela autoridade paternal. É claro que a autoridade se apoia no trabalho e no estatuto para controlar e disciplinar os membros da família, mas é sobretudo a ocupação colectiva constante na terra e com os animais que invade o desejo e o gosto, a «paixão» daqueles que mais aderem à casa de lavoura do passado. Arrastada pelo património familiar transmitido de geração em geração, cercada pelos muros e presa ao trabalho — pela «paixão» do trabalho —, a família de lavradores constrói o espaço diferenciado da sua auto-suficiência e do seu prestígio. No interior do grupo, a troca nem sempre é comunitária: há uma permanente tensão entre o comunitário e o estatutário, entre as necessidades colectivas do grupo e o reconhecimento da autonomia do casal dirigente. A troca define-se, simultaneamente, pelo princípio da partilha comunitária do esforço e da alimentação e pelo da apropriação segregativa dos bens raros por parte dos «dirigentes». O estatuto baseado no poder económico manifesta-se pois de maneira acentuada, autorizando a construção de papéis autónomos para o «patrão» e a «patroa», bem como para o casal sucessor. É por isso que, apesar do predomínio do espírito corporativo, desde que a riqueza da Casa o permita, se procura constituir uma economia e uma cozinha autónomas para o casal sucessor.
25A segunda lógica assenta na protecção dos interesses da família simples, composta pelo casal e os filhos (ou aquilo a que os habitantes das freguesias estudadas chamam «lar»), numa flexível imbricação da família e da empresa agrícola (alicerçada agora na especialização e na rentabilidade) e numa dinâmica que estimula o «gosto» pelo trabalho centrado na agricultura. Mais precisamente, segundo os dados quantitativos e os processos familiares analisados ao longo desta investigação, verifica-se que:
26a) A dimensão e a estrutura do grupo doméstico mudaram. A dimensão da família de lavradores diminui em consequência do desaparecimento dos criados residentes, da ausência de irmãs e irmãos solteiros que continuem a viver na Casa até à morte e de uma certa planificação familiar dos nascimentos. A sua estrutura ainda tende a ser complexa, pois o casal sucessor e os pais coabitam muitas vezes na mesma casa (com cozinhas separadas), mas agora, em vez de aumentar lateralmente (ou ainda, devido aos criados e criadas), o grupo alarga-se no sentido vertical. Assim, entre os lavradores, a vida doméstica tornou-se mais familiar.
27b) No que toca às finalidades, advoga-se uma articulação mais flexível entre produção económica e vida familiar, com menor insistência na reprodução do capital económico a longo prazo (e, portanto, menor subordinação da família a esse «futuro»), concentrando-se mais na rentabilidade actual desse capital. As pessoas querem dinheiro para assegurarem um nível e um tipo de vida comparáveis aos das famílias urbanas, e a existência de modos de vida alternativos reduz as constantes inquietações com a poupança e a acumulação patrimonial. Para fazer avançar os negócios, a família «empreendedora» actual deve ligar-se de uma forma disciplinada ao trabalho. No entanto, quando os negócios são lucrativos, um certo afastamento torna-se desejável: todos merecem ir dar um passeio fora da freguesia, descansar ao domingo, tratar das crianças. Por outras palavras, o respeito pelas exigências da produção agrícola moderna não deve sobrepor-se a um certo bem-estar familiar, conjugal e individual.
28Finalmente, a subordinação a longo prazo dos interesses do «lar» aos da casa já não constitui uma exigência legítima. É por essa razão que a família constrói hoje em dia outra representação de si própria, abandonando progressivamente o conceito de Casa auto-suficiente, que assegura o pão e a sobrevivência a longo prazo dos membros do grupo doméstico, para se voltar para o de família empreendedora e intrépida, onde se promove uma actividade produtiva rentável. A noção de empenhamento e de participação familiares no trabalho está subjacente nas duas representações, só que a ideia de risco e de agressividade económica veio substituir a de prudência económica, de poupança com vista à lenta acumulação do património fundiário.
29c) No que respeita ao modo de inclusão, já não se insiste na inclusão absorvente centrada na total assimiliação de um sucessor principal e na assimilação parcial, até longa idade, dos outros filhos. Passou-se a uma inclusão restrita, que faz com que o filho que der provas de gosto e de vocação pelo trabalho agrícola seja considerado como o futuro agricultor da família, enquanto os outros filhos são orientados para destinos profissionais diferentes. O modo de inclusão continua a acentuar uma norma ideal que preconiza o «cativar» do herdeiro, que «irá ficar» na casa. Contudo, os factores que estão na base desta inclusão já não são os mesmos do passado: agora insiste-se mais na precocidade da escolha e na motivação do sucessor, e menos na autoridade paterna e na avaliação da experiência profissional do herdeiro. Isto não significa que a vontade paterna esteja ausente; esta é, de facto, considerada legítima sob a forma de uma certa persuasão. Assim, quando o herdeiro não se apresenta por vontade própria, os pais exercem uma certa influência no filho a fim de «segurá-lo». Deste modo, as práticas afastam-se por vezes da norma defendida — a do sucessor «vocacionado» —, que é também a norma proclamada pela ideologia dominante.
30d) No âmbito da produção da vida familiar, procura-se conciliar os factores mais constrangedores da vida agrícola — o trabalho físico e a actividade constante, os horários prolongados, as responsabilidades para com a empresa agrícola, o facto de a agricultura ser um trabalho sujo — com os factores recentemente valorizados do tempo livre, da adaptação aos gostos e às vocações individuais, da infância protegida, da negociação e da concertação familiares, da higiene absoluta, de um espaço doméstico mais privado. Isso incentiva o desenvolvimento de relações menos próximas do mundo dos animais domésticos e do trabalho agrícola, bem como a reorganização do espaço residencial, reorganização que denota uma reconhecida legitimidade dos direitos dos indivíduos e do casal a alguma autonomia e à privacidade. Neste contexto, a estratégia que outrora visava a constituição de laços sólidos com o trabalho e os interesses da casa foi substituída por uma estratégia de estímulo do «gosto» e de motivação (incentivando a vocação) que permita o estabelecimento de laços com a agricultura e com os interesses do lar-família. O domínio da sucessão representa um exemplo típico desta substituição: mais do que «segurar» o sucessor desde o seu casamento, através da doação de uma quota-parte disponível, procura-se, por um lado, incentivar uma vocação para a agricultura, através da aprendizagem precoce do trabalho agrícola e de retribuições frequentes; procura-se, por outro, «ajudar», em vez de «privilegiar», no momento da partilha do património. Trata-se de uma sucessão assistida, e já não de uma sucessão privilegiada. O domínio das relações conjugais constitui outro exemplo desta nova estratégia: em vez de se invocar os «arranjos» que permitem conciliar os interesses patrimoniais de duas famílias, defende-se a importância de um projecto agrícola elaborado em conjunto, bem como o facto de as pessoas gostarem uma da outra e de se entenderem mutuamente. A criação destes laços de entendimento conjugal, assentes na afinidade profissional e pessoal, situa-se num contexto onde deixaram de existir os trabalhadores auxiliares (criadas, irmãos, irmãs, etc.). Deste modo, marido e mulher não só têm que dirigir juntos a exploração, como também depender um do outro na realização do trabalho.
31No que se refere ao modo de produção, encontramos pois uma nova combinação de factores. A articulação entre família e empresa tornou-se mais flexível. A empresa ainda é prioritária em termos de investimentos familiares, mas considera-se a partir de agora que ela não deve reger o funcionamento familiar. Admitem-se novos valores: tempo livre, casa limpa e arrumada, motivação individual, necessidade de cuidar dos filhos e de tornar agradável a vida destes, possibilidade de gastar dinheiro desde que tal seja feito com moderação, entendimento aliado a respeito mútuo, maior negociação ao nível das relações familiares internas.
32e) No que diz respeito às trocas, a tensão entre o estatutário e o comunitário atenua-se: a tónica é posta na fusão e na partilha comunitária do trabalho e dos bens. As necessidades e as contribuições/retribuições de cada um são ponderadas, mas nunca questionadas, por razões de identidade social, e os princípios da avaliação das competências ou das preferências e «gostos» também são considerados como justos para repartir ou dividir tarefas e recursos. Por exemplo, toda a gente aprende a desempenhar todas as tarefas agrícolas e participa nelas consoante as suas capacidades, preferências e disponibilidade de tempo. A mulher talvez passe menos tempo a podar que o marido, mas não está excluída de nenhuma actividade. Procura-se pois construir trocas mais amplas no interior do lar-família, atribuindo maior importância do que no passado ao princípio da igualdade (igualdade dos esforços, dos sexos, material). Neste âmbito, a autoridade absoluta do «chefe de família» e a autonomia do «patrão» e da «patroa» (isto é, a existência de sectores económicos distintos para cada pessoa) dilui-se bastante e um lugar cada vez maior é atribuído à fusão conjugal (bolsa comum, tomada de decisões em comum, ausência de iniciativas económicas autónomas). Entre pais e filhos defendem-se também os princípios de uma forte entreajuda e da reciprocidade difusa e diferida no tempo. Contudo, reduz-se a dívida dos filhos para com os mais velhos, uma vez que a família tem agora o dever de assegurar a subsistência dos filhos, não tendo estes a obrigação de reembolsar essa dívida através de longos anos de trabalho. Por consequência, os filhos e as filhas da casa sentem que têm direito a negociar a sua participação na vida familiar e de irem a pouco e pouco delimitando o seu espaço autónomo de decisão. Por fim, as relações entre agregados familiares (lar dos pais reformados/lar do casal sucessor) definem-se subjectivamente como mais distantes do que no passado, embora a necessidade de maximização dos esforços conduza muitas vezes a trocas múltiplas e regulares entre as gerações. De qualquer modo, a independência dos casais é efectivamente maior, pois não há nenhum casal novo que se constitua hoje em dia se não dispuser de um espaço e meios económicos próprios.
33Em resumo, já não é aceite a ideia de uma dívida incondicional dos subordinados para com os dirigentes, insistindo-se antes na amplitude da solidariedade entre indivíduos que, além de se respeitarem, se apoiam mutuamente. São preconizadas trocas mais comunitárias do que no passado. E, apesar de se manter a possibilidade de tensão entre lógicas estatutárias e comunitárias (ao nível do trabalho doméstico, por exemplo, onde o estatuto masculino impede o marido de se submeter regularmente às ordens da mulher), admite-se pouco que essa tensão ponha em causa os direitos e os deveres, inicialmente iguais, dos membros da família sem a concordância destes.
34f) No âmbito da sociedade rural, a família de lavradores perde o prestígio e o poder que detinha numa sociedade onde a exploração da terra constituía o principal meio de produção e de sobrevivência. Na sociedade semi-industrial dos anos 80, a família tem um estatuto ambíguo, valorizado pelos seus rendimentos bastante elevados (os salários das fábricas são baixos), mas desvalorizado pela sua associação a um trabalho sujo e com horários muito pesados. Em termos económicos e sociais, a família está agora mais dependente das instituições e dos valores exteriores, tais como os organismos de financiamento e de controlo fiscal, a duração da escolaridade obrigatória, os novos valores da infância, ou ainda as ideias de justiça (que, mais do que no passado, acentuam a igualdade material absoluta). Reconhece-se que a diminuição da margem de manobra da família levanta problemas específicos ao agregado familiar agrícola, mas nunca se questiona — muito pelo contrário — o carácter positivo de um desenvolvimento que veio pôr fim à lógica da Casa auto-suficiente. O mais importante, hoje, é ter acesso a uma vida «como toda a gente».
35A análise das estratégias familiares revela que a disparidade entre os valores sociais preconizados e as práticas familiares é por vezes considerável. As famílias de lavradores estudadas procuram conciliar os seus objectivos instrumentais particulares com os novos valores. Isso torna-se particularmente difícil em certos domínios da vida familiar, nomeadamente ao nível da produção de uma sucessão no interior da família, da atenção que se dá às crianças ou ainda da possibilidade de férias. A primazia concedida à empresa agrícola e o facto de o desenvolvimento familiar estar ainda, em parte, confundido com o sucesso da empresa (pelo menos a curto prazo) levam as famílias a criar novas soluções ou, por vezes, a regressar a certos factores antigos de construção da vida familiar (diferenciação dos filhos relativamente à sucessão, actividade permanente dos indivíduos, autoridade mais firme, menor cuidado com os filhos) e a privilegiar esses factores apesar das críticas exteriores que a sua adopção suscita. Assim se explica a existência de uma família que apresenta por vezes uma dupla lógica de funcionamento. No plano das representações, é a ideia de uma vivência consensual e igualitária que predomina (possui-se uma «bolsa única», distribui-se o trabalho de modo igualitário, nada é decidido sem consultar o outro, já não se dá a quota-parte a um único filho, etc.). Em contrapartida, as práticas familiares assentam por vezes numa lógica de funcionamento menos fusionai e mais desigual. Procura-se, então, nalguns casais, uma certa autonomia das partes a fim de evitar os conflitos (cada um dos cônjuges terá, se o desejar, os seus próprios recursos de financiamento, cada um deles dirigirá um sector da economia doméstica, apesar de os dois saberem e fazerem um pouco de tudo, etc.). Por outro lado, as filhas e os filhos recebem por vezes um tratamento diferenciado relativamente à sucessão, e acontece deixar-se uma criança pequena sozinha em casa quando é urgente ir trabalhar para os campos. Trata-se de valores de que as pessoas não se gabam, mas que constituem soluções possíveis, aprovadas a nível interno para responder a problemas funcionais da família.
36Ao analisarmos estes procedimentos no seu conjunto, pudemos mostrar que a relação entre mudança social e lógica familiar é insidiosa. Em primeiro lugar, a «família» não reage em bloco aos novos condicionalismos internos e externos. Deste ponto de vista, não há nada menos «fusionai». Com efeito, são o fraccionamento e a diferenciação no interior da família — das gerações, dos sexos, dos interesses — que induzem eventuais oposições e negociações em torno da assunção de um novo valor, delas resultando quase sempre um complexo jogo de vaivém entre os valores de uma geração mais velha e os de outra, mais nova, que vai adquirindo poder.
4. Os resultados da investigação no contexto da história e da sociologia da família
37Face às conclusões da investigação e às interrogações que se colocam em história e em sociologia da família, os resultados do nosso estudo aproximam-se de certas hipóteses de trabalho e linhas de interpretação.
38No que se refere à história e à sociologia da família em Portugal, a investigação é limitada no tempo e no espaço mas permite constatar, para o caso do Minho, a necessidade de ter em conta uma diversidade de subculturas de classe e de lógicas familiares. Centrado nas coisas e nas obrigações recíprocas entre gerações e grupos domésticos, o familialismo de carácter mais «instrumental» admite uma variedade de interpretações e de desempenhos.
39No eixo daquilo que se pode designar por «história dos agregados domésticos» («household history»)1 da Europa do Sul, os nossos dados parecem aproximar-se, pelo menos no que diz respeito aos lavradores, do sistema de família-tronco patrilocal identificado por Lisón-Tolosana2 como norma comum a uma parte do Norte de Portugal, às províncias espanholas da Galiza e das Astúrias, ao País Basco espanhol, a Aragão e à Catalunha. Em contrapartida, os dados não parecem coincidir com as análises de Pina Cabral3 e de Brettell4, que identificam práticas mais uxorilocais no Alto-Minho.
40A nossa análise distingue-se, contudo, das investigações anteriormente mencionadas num ponto fundamental. Com efeito, a maior parte dos trabalhos sobre os sistemas familiares na Península Ibérica5 procura pôr em relevo o sistema que predomina numa dada região ou subregião. Ora, pelos dados aqui apresentados, não é possível afirmar que a família-tronco patrilocal tenha sido, no passado, a forma familiar predominante. É verdade que dominava socialmente sobre os outros tipos de grupos domésticos, representando o modelo familiar mais prestigiado, mas, ao nível das freguesias, entrecruzavam-se diversas lógicas familiares. A situação de classe e a dimensão da exploração não são as únicas variáveis que condicionam a vida familiar, mas foi possível demonstrar que a dinâmica familiar depende fortemente destas variáveis. Assim, antes de realçar a tendência exemplar de uma região, deve-se obviamente procurar ter em conta as variáveis, internas ou externas à família, susceptíveis de modelar uma lógica específica de funcionamento familiar. Por exemplo, no nosso contexto particular, certas variáveis tendiam a promover as sucessões em linha feminina e as sucessões mais «igualitárias», bem como os casamentos uxorilocais: a morte ou a emigração do herdeiro masculino; a «pequena» dimensão da exploração; o sistema de arrendamento como forma de exploração em vias de desvalorização; a insistência mais numa sucessão «funcional» de mútuo auxílio do que numa sucessão privilegiada, centrada na continuidade da Casa. É possível, pois, que alguns daqueles factores tenham tido mais importância no Alto-Minho, levando assim a um declínio da família complexa patrilocal.
41Os dados relativos às duas freguesias do Baixo-Minho aqui estudadas aproximam-se, assim, da tese, hoje em dia admitida pelos historiadores, sobre a diversidade dos sistemas familiares característicos da Europa do Sul pré e proto-industrial. Em contrapartida, permitem questionar a ideia da existência de um tipo de família predominante por sub-região: como pudemos demonstrar, existiam diversos sistemas familiares no interior da mesma comunidade rural. Por outras palavras, antes de mencionar «a» família de uma região ou de uma comunidade, seria bom especificar de que é que se está a falar. Trata-se de uma família que predomina pelo seu prestígio, de uma que predomina em termos numéricos ou, ainda, de uma forma familiar que sobressai como modelo normativo?
42Do ponto de vista da lógica de funcionamento da «família-tronco», os resultados relativos às duas freguesias retomam os de outras análises6 já efectuadas sobre este tipo de família e sobre os princípios da sua formação: são grupos domésticos nos quais um sucessor designado fica na Casa e nela se casa, enquanto os outros filhos a abandonam ou nela permanecem durante longos anos sem casar. Nessas famílias, o sistema de sucessão exige que a geração mais velha transmita, em dado momento do ciclo de vida familiar, as rédeas da exploração à geração mais nova. É necessário, contudo, esclarecer diversos pontos, em nosso entender menos claros nessas análises ou que o trabalho sobre as duas freguesias do Baixo Minho permitiu aprofundar.
43Em primeiro lugar, a investigação demonstrou que a prática da lógica da Casa baseada num sistema de sucessão privilegiada não decorre mecanicamente de um contexto económico onde o indivíduo depende da sua família para a sobrevivência, tal como não depende apenas das relações autoritárias no interior da família. A prática dessa lógica implica um modo de funcionamento em que as pessoas se esforçam por construir vínculos fortes à Casa e à terra através de um processo — o «amarrar» e o «segurar» os indivíduos — que consiste em formar os filhos no trabalho agrícola intensivo e bem executado, criando apego à natureza e à agricultura, e associando-os progressivamente à gestão e à propriedade da exploração agrícola. Este aspecto da dinâmica familiar foi muitas vezes ignorado porque se supôs que a família do passado funcionava de acordo com um modelo pré-estabelecido e autoritário.
44Em segundo lugar, um dos traços distintivos observados na família-tronco do passado de Lemenhe e Gondifelos diz respeito às trocas no interior do grupo. Estas trocas são regidas por uma lógica simultaneamente comunitária e estatutária. Nas famílias complexas mais abastadas, o estatutário proporciona uma posição à parte para os patrões e os herdeiros, o que conduz a trocas nitidamente separatistas, em particular com mesas ou comidas distintas e, outras vezes, cozinhas autónomas para os dois casais dirigentes. Este aspecto da dinâmica familiar no passado é geralmente pouco destacado. A ênfase é tendencialmente colocada na comunidade familiar, sem ter em conta as tensões entre os diversos princípios de troca. Pelo contrário, a comunhão da mesa e dos espaços caracteriza sobretudo as famílias camponesas pobres que arrendam terras.
45Em terceiro lugar, a nossa análise difere ligeiramente de outras no que toca à ideia comum de que, no passado, a família se encontrava «diluída» na comunidade circundante. Sem pretender negar a influência do controlo e das instituições exteriores, parece também evidente que a família de lavradores aqui estudada procura proteger-se das pressões e dos olhares de fora.
46No que se refere a outro resultado da análise — relativo ao estatuto da infância —, o trabalho realizado não põe em causa as análises mais clássicas de Ariès7 e de Shorter8. No passado, os direitos da criança eram pouco reconhecidos, apesar de ela se encontrar mais protegida nas famílias abastadas do que nas famílias pobres. Entre os lavradores, a educação era concebida como um processo destinado a moldar e a formar a criança nos projectos familiares e económicos da casa, exigindo-lhe, além disso, um sentido de liderança e uma competência profissional. A nossa análise contesta, no entanto, a de Pollock9, que pretendeu desmentir essa «lenda negra». É evidente que, no passado, a vida das crianças nas aldeias era bastante sombria, sobretudo para aquelas que nasciam em famílias de jornaleiros, de artesãos ou de camponeses pobres. Mas é claro que isso não significa que os testemunhos evoquem sempre uma infância infeliz, pois as crianças aceitavam essas condições, procurando, por vezes junto de um dos pais, embora frequentemente junto de outros parentes, criados ou vizinhos, relações de proximidade e companhia. Além disso, nas famílias de lavradores, as crianças sabiam que o facto de pertencerem a uma família-tronco lhes reservava um futuro bem mais seguro do que o dos criados ou criadas, que tinham sido obrigados a deixar as suas casas para «servir».
47Um último aspecto da vida familiar dos lavradores que o estudo parece não confirmar refere-se à ideia de uma lógica tradicional em que os comportamentos se submetem sempre e sem conflitos a um modelo normativo imposto. A análise dos factores de construção da vida familiar revelou famílias defensoras de valores específicos, mas com práticas e trajectórias diferenciadas consoante as suas relações internas (relações de poder, por exemplo) ou determinados condicionalismos (número de filhos, história da família, etc.), que as levam a privilegiar um ou outro factor. Mais diversificadas do que seria de esperar, as famílias que surgem nesta análise dificilmente se encaixam num «ideal-tipo».
48Importa também referir a segunda parte do nosso trabalho de investigação, baseado numa análise dos condicionalismos que marcaram a vida familiar ao longo das últimas décadas. Verificaram-se o reforço e a generalização, nos anos 60 e 70, de uma família institucional, solidária e conjugal, de carácter instrumental, assente nas novas oportunidades de acesso a um nível de vida melhor, de alguma protecção da criança e de uma economia conjugal assalariada. Nas duas freguesias, verifica-se a tentativa de ultrapassar um passado de miséria e de fome, de filhos ilegítimos, e de estreita dependência em relação à terra e a um trabalho agrícola penoso. É neste contexto que se pode falar, nas décadas de 60 e 70, de uma época de oiro da família institucional e solidária observada, nos dados demográficos, na maior uniformidade no plano da dimensão da família, no reforço da sua conjugalização e, também, na continuidade da complexidade familiar. Mais tarde, nos anos 80, numa clara abertura das novas gerações aos valores difundidos, despontam aspirações a relações familiares mais compreensivas e sentimentais.
49No que respeita às relações entre semi-industrialização e organização doméstica, as conclusões revelam-se idênticas às de Barbagli10 sobre o impacto da industrialização nas famílias em Itália. Segundo este investigador, o aumento do trabalho industrial não minou necessariamente as organizações familiares complexas, uma vez que as famílias puderam dele beneficiar, aliando os investimentos na agricultura aos investimentos da indústria.
50Os dados sobre as duas freguesias do Minho também mostram que a complexidade familiar se tem mantido desde os anos 60. A possibilidade de constituir agregados familiares ligados quer à terra, quer à indústria é um elemento importante na explicação dessa complexidade. Porém, a nossa investigação põe a descoberto a necessidade de adoptar uma perspectiva mais ampla para explicar os factos. Em suma, o estudo faz emergir três grandes linhas de interpretação: em primeiro lugar, é necessário explicar a manutenção da complexidade familiar à luz de uma ética (que persiste) de mútuo auxílio entre os membros da família e entre grupos domésticos; depois, importa ter cm conta o facto de ser uma industrialização «pobre», que remunera mal os indivíduos e não os liberta de uma certa dependência das estruturas domésticas de ajuda à subsistência; por último, é importante analisar a complexidade no contexto de um capitalismo largamente familiar, uma das vias possíveis de ascensão social no interior da comunidade.
51Nesta linha de ideias, parece-nos que o argumento de que o desenvolvimento da industrialização difusa teria dependido das relações dos agregados com a agricultura (que complementava os recursos das famílias) deve ser melhor esclarecido. E verdade que a pequena propriedade rural, associada a estratégias de reprodução e de iniciativa familiares, foi determinante para fazer emergir uma ética familialista de mútuo auxílio e de trabalho. No entanto, bem mais do que o acesso à terra e aos produtos agrícolas, é essa mesma ética e as trocas que dela decorrem que «pré-adaptaram» as freguesias rurais do Baixo-Minho à industrialização. Este aspecto é particularmente importante se tivermos em consideração a estrutura social das freguesias. Sendo estas compostas não só por famílias de camponeses, mas também por um número elevado de jornaleiros e de artesãos independentes, a solidariedade familiar (ou simplesmente feminina, ou então entre vizinhos) que nelas se praticava era fundamental para suportar uma industrialização ela própria centrada numa certa pobreza. Isto é visível nos agregados que não tinham rendimentos agrícolas, mas que partilhavam os seus recursos a fim de assegurarem a sobrevivência. Enfim, um outro aspecto da comunidade rural, que importa sublinhar a este respeito, refere-se à mobilidade geográfica dos indivíduos. Esta existia em todas as situações de classe, sendo, porém, particularmente intensa nas fracções de classe de baixo estatuto socioeconómico. O auxílio mútuo, desenvolvido no interior e entre agregados (avós que tomam conta de uma criança enquanto a filha trabalha na cidade; jornaleira agrícola idosa a viver sozinha, mas a cargo de um casal vizinho mais abastado, etc.), tornava possível a mobilidade geográfica dos outros membros do grupo doméstico. Esta mobilidade relativa da mão-de-obra, que permitia a uns circular e a outros trabalhar na freguesia (os que ficavam), tinha já introduzido uma certa flexibilidade dos agentes relativamente às oportunidades de emprego existentes fora da freguesia, podendo favorecer o recrutamento para a fábrica de pessoas de sexo e de idade diferentes. Importa, aliás, recordar que não estamos perante comunidades totalmente fechadas sobre si próprias: há muito que a emigração e a mobilidade de uma parte da população asseguravam a reprodução local da aldeia camponesa-artesã.
52Ao sublinhar o papel da organização doméstica a fim de compreender a pré-adaptação das freguesias estudadas ao modo de industrialização da região, não pretendemos criar um novo mito. Não se pode deduzir, por exemplo, que existe uma relação de sentido único entre organização doméstica e semi-industrialização. A análise efectuada mostra bem a influência mútua das duas variáveis. Apesar de o sistema familiar ter facilitado a implantação de uma indústria que emprega muitos trabalhadores não-qualificados e mal-remunerados, é também evidente que a vida familiar não deixou de se transformar no decurso destas mudanças.
53O nosso estudo demonstra igualmente que é difícil compreender a mudança social na ausência de uma grelha analítica que tenha em conta a diversidade evolutiva das situações. No que se refere à família simples proletária agrícola, de tendência monoparental ou constituída por uma única pessoa, o principal efeito da semi-industrialização e da modernização é a «conjugalização». Por outro lado, quem tem acesso a um pouco de terra e alia a pequena agricultura ao trabalho assalariado vê aumentar ainda mais a complexidade da sua família. Inversamente, no que respeita à família-tronco, a complexidade encontra-se em parte minada, pois desapareceram os criados, e os filhos já não permanecem durante muito tempo na casa. No entanto, a família múltipla composta por dois casais mantém-se. Nota-se, igualmente, ao nível do que entre os lavradores se considera desejável para a família, uma maior insistência na conjugalidade em detrimento do familialismo. A longo prazo, é provável que a tensão entre estes dois factores se resolva através de uma valorização crescente da conjugalidade nestas famílias, o que, em lugar de uma co-residência, tenderá a encorajar estratégias de residência em casas separadas.
54Enfim, no que respeita à evolução no tempo da dinâmica da família rural abastada, destaquem-se duas conclusões. Em primeiro lugar, quando se tenta interpretar os dados à luz das principais tipologias de interacção11 elaboradas em sociologia da família, verifica-se que no interior da família de carácter mais instrumental podem existir diferentes tipos de interacção. Por exemplo, no passado, a família de lavradores identificava-se mais com o tipo de família «paralela», onde uma forte coesão — centrada no trabalho de todos e na interdependência de papéis autónomos e diferenciados — surge associada ao «fechamento» como forma de integração. Ao longo das últimas décadas, esta família tornou-se mais aberta e centrou-se mais no consenso e no igualitarismo, aproximando-se, a partir de então, de uma lógica de coesão mais fusionai, que se caracteriza por uma conjugalidade assente na afinidade pessoal e profissional e por uma maior indiferenciação de papéis. Em suma, verifica-se que esta família mudou: sem perder de vista determinados objectivos instrumentais, estreitamente ligados à sua situação de família empreendedora, a sua dinâmica está agora mais próxima de um modelo companheirista de vida familiar.
55Em segundo lugar, perante os dados analisados, não basta falar apenas de triunfo da família «conjugal» ou «relacional». É certo que assistimos, nas famílias de lavradores, a um acréscimo do casal, mais centrado no «lar» do que na «Casa»: factores como a ideologia dominante, as condições de trabalho agrícola, os objectivos da empresa, conduzem agora a um maior centramento no «nós-casal» e na harmonia conjugal. Outros factores, como a necessidade de definir a sucessão ou a troca de serviços entre as gerações, continuam a exercer pressão sobre a família «conjugal» no sentido do familialismo. Assim, mesmo que já não possamos falar de uma lógica de perpetuação da «Casa», vemos ainda assim desenhar-se uma lógica própria, distinta da do companheirismo expressivo, na actual família de lavradores. A lógica do lar empreendedor aproxima-se de um companheirismo instrumental, conservando ao mesmo tempo uma relação importante com o familialismo.
Notes de bas de page
1 Para uma abordagem da investigação neste domínio, ver Kertzer, D.I., «Household history and sociological theory» in Annu. Rev. Sociol., 17, 1991, pp. 155-179.
2 Cf. Lisón-Tolosona, C., Invitación a la Antropología Cultural de España, La Coruña, Editorial Adara, 1977. Ver também Lisón-Tolosana, C., Antropologia Cultural de Galicia, Madrid, Esana Editores, 1974(2a ed.).
3 Cf. Pina Cabral, J., pp. cit., 1984.
4 Cf. Brettell, C., op. cit., 1986.
5 Para uma abordagem das tendências das investigações, ver Kertzer, D.I., op. cit., 1991; Douglas, W.A., «Iberian family history», in Journal of Family History, 13, 1988, pp. 1-12; e Kertzer, D.I., e Bretell, C., «Advances in Italian and Iberian Family History», in Hareven, T. e Plakans, A., (eds.), Family History at the Crossroads, Princeton, Princeton University Press, 1987, pp. 87-120.
6 Ver, entre outros, Collomp, A., La Maison du père: famille et village en Haute-Provence au XVIIe et XVIIIe siècles, Paris, Puf, 1983; Descamps, P. Histoire Sociale du Portugal, Section II, Paris, Firmin-Didot, 1959; Claverie, E. et Lamaison, P., L'Impossible mariage: violence et parenté en Gévaudan, XVIIe, XVIIIe, XIXe siècles, Paris, Hachette, 1982; Berkner, L.K., «Inheritance, land tenure and peasant family structure: a German regional comparison», in Goody, J., Thirsk, J., e Thompson, E. P., (eds.), Family and Inheritance—Rural Society in Western Europe, Cambridge, Cambridge University Press, 1976; O'Neill, B., op. cit. 1984; Lisón-Tolosana, C., «The ethics in inheritance», in Peristiany, J.G. (ed.), Mediterranean family structures, Cambridge, Cambridge University Press, 1976; Arensberg, C. e Kimball, S., Family and Community in Ireland, Cambridge, Harvard University Press, 1940; Douglass, W.A., Echalar et Murelaga: opportunity and rural exodus in two Spanish Basque villages, New York, St. Martin's Press, 1974; FineSouriac, A., «La famille souche Pyrénéenne au XIXe siècle: quelques réflexions de méthode», in Annales E.S.C., no 3, 1977, pp. 478-487.
7 Cf. Ariès, P., op. cit., 1973.
8 Shorter, E., The making of the modern family Glasgow, W. Collins, 1976.
9 Cf. Pollock, L., Forgotten Children: Parent-Child Relations from 1500 to 1900, Cambridge, Cambridge University Press, 1983.
10 Cf. Barbagli, M. Sotto lo stesso tetto, Bologna, Il Mulino, 1988.
11 Para uma abordagem das principais tipologias, ver Kellerhals, J., «Les types d'interactions dans la famille», in L'Annés Sociologique, 37, 1987, pp. 153-179.
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