Capítulo 4. As Famílias de Lavradores no Presente: uma Lógica de Família Empreendedora
p. 193-311
Texte intégral
1No passado, o ideal de auto-suficiência implicava, para a família-unidade de produção e de reprodução, uma forte imbricação dos aspectos económico e doméstico. A família estava agarrada à casa e à terra, trabalhava intensamente, vivia ao lado ou mesmo por cima dos animais e não saía praticamente nunca. Para ela, o principal problema era produzir o suficiente e conseguir «amarrar» os membros do grupo doméstico ao trabalho agrícola e aos interesses da Casa de lavoura.
2Nas décadas de setenta e oitenta, a família de lavradores não abandona abruptamente esta atitude mas adopta alguns critérios novos no que respeita ao nível e ao modo de vida desejáveis. Isto significa que os lavradores vão repensar os principais factores de produção da vida familiar e estabelecer novas relações entre eles. Tentaremos evidenciá-los considerando sucessivamente as finalidades das famílias, a maneira como se processa a inclusão na família, a forma de produção e as trocas. A análise baseia-se na observação dos seguintes domínios de vida familiar: a produção económica, a organização do trabalho e do espaço de residência, os tempos da vida familiar, a construção de laços relativos ao trabalho agrícola, a sucessão, a gestão do dinheiro, o lugar da criança e a escolha do cônjuge. Como para a análise do passado, vai ser possível detectar não só as tendências predominantes mas também uma certa diversidade das práticas familiares. É por isso que iremos, por um lado, citar casos exemplares de tendências gerais e, por outro, passar parcialmente em revista a variedade existente.
As finalidades
3Apesar de continuar a arvorar orgulhosamente o grande portão — de ferro e não de madeira —, a casa de lavradores hesita hoje em dia entre um espaço fechado sobre si mesmo e um espaço mais aberto, que se dá a ver ao exterior. As casas antigas não foram abandonadas mas foram parcialmente arranjadas. E alguns lavradores também construíram casas novas. Nas primeiras, as modificações são muito ligeiras. Por exemplo, chegados ao portão, fechado e mergulhado como de costume no silêncio, encontramos por vezes uma pequena campainha que permite comunicar com o interior sem que tenhamos de abrir nós próprios o portão. Mas a campainha pode retinir em vão quando a família do lavrador está a trabalhar no campo e, por isso, a maior parte das casas opta ainda pelo cão-de-guarda. No interior, as alterações são mais importantes. No pátio, cujo solo foi coberto de cimento, já se não vêem os montes de mato que lá encontrávamos antigamente. No seu lugar, vê-se um bricabraque de peças metálicas e utensílios, às vezes um tractor ou um automóvel e, um pouco mais separado da casa e afastado dos olhares dos seus moradores, um estábulo novo com o silo de milho triturado, que serve para alimentar o gado, ao lado.
4Quanto às casas novas, mantêm esta separação entre a residência dos homens e a dos animais. Também são mais abertas para o exterior. Por exemplo, na casa de Daniel, um lavrador filho de lavradores que comprou terras em Lemenhe e construiu uma nova habitação, a casa já não está cercada por muros altos e construída à volta de um pátio no qual desembocam todas as entradas. A casa pode ser avistada de vários sítios e vista de diversos ângulos. Há no entanto, é verdade, um portão grande de ferro, mas este está quase sempre aberto, o que torna fácil olhar para dentro e ver uma casa branca com um pequeno jardim à frente e pessoas atarefadas num vaivém contínuo entre a casa e o estábulo situado a uns cinquenta metros, à direita da casa. Quanto ao cão, costuma estar preso perto do estábulo, entre este e a casa. Na casa de Augusto, lavrador filho de lavradores que reconstruiu uma casa pequena herdada pela mulher, encontramos o mesmo género de disposição no espaço. Um portão novo que dá para uma entrada cimentada, sem muros da mesma altura a cercar a casa, e uma moradia um pouco retirada, com um jardinzinho à frente. Como de costume, uma escada sobe ao longo da fachada que dá para a rua e conduz directamente à «sala». O estábulo novo situa-se atrás da casa, no eido ou campo contíguo: para ir até lá, é preciso passar pelo portão, atravessar a entrada cimentada (onde está estacionado o tractor) e sair para o eido atrás da casa. Não há nem campainha nem cão a impedir a nossa passagem.
5O mundo da produção agrícola e o da habitação familiar são pois vizinhos, mas não se cruzam talvez tanto um com o outro como no passado. As famílias, essas, declaram que o espaço que rodeia a casa se tornou mais limpo e que se suja menos o interior da casa do que antigamente.
6Esta ligação mais flexível e menos estreita com o mundo da produção agrícola que se nota ao nível do espaço existirá também noutros domínios da vida familiar?
7É importante, antes de mais, perceber a maneira como a família se vê a si própria e os objectivos que define. Neste sentido, a primeira interrogação é a seguinte: actualmente, num contexto em que as oportunidades sociais e económicas mudaram, o grupo doméstico dos lavradores põe a tónica na auto-suficiência ou noutro valor? No passado, a «casa» continha tudo: alimentos, emprego, os conhecimentos necessários, a formação, a força de trabalho, a sobrevivência a longo prazo, a justiça. A «casa» e a sua estratégia colectiva condicionavam as estratégias conjugais e individuais. Promovia-se apesar de tudo alguma heterossuficiência ao estabelecer alguns dos filhos no exterior da exploração ou dando-lhes um pequeno capital para poder emigrar, mas a «casa» permanecia o pivot de toda a vida familiar.
8A auto-suficiência centrada no património fundiário perdeu, ao longo das três últimas décadas (anos 60, 70 e 80) muito do seu carácter premente. Na aldeia, pode-se «ter que comer» e até mais, sem possuir ou explorar a terra. Antigamente, quem não «fazia terras» era pobre porque não tinha «de onde tirá-lo», «onde colher para comer». Hoje em dia, apesar da «propriedade da terra» ser um trunfo importante, a agricultura por conta própria já não é considerada acima de todos os outros modos de sobrevivência. Tornou-se um modo de vida entre outros, bem cotado quando se tem «muitas terras e muitas máquinas», mas descrito como sendo o mais «sujo» de todos.
9Os lavradores mais velhos — os que se encontravam à frente das casas de lavoura nos anos de 40, 50 e 60 — são quem exprime mais vivamente a ideia de uma perda de estatuto da agricultura em relação ao tempo antigo. O seu discurso sublinha diferentes aspectos duma perda que alguns deles encaram como uma «destruição da agricultura»: hoje sentem que já não dominam os conhecimentos mecânicos; dependem economicamente não só do mercado dos produtos agrícolas, mas também do mercado dos bens intermédios (rações para animais, gasóleo, etc.); têm de aprender contabilidade e o Estado mete o nariz nas suas contas e lucros; já não há mão-de-obra para ajudá-los; os próprios filhos rebelam-se por vezes contra os interesses da casa porque, ao sair da aldeia para ir estudar, deixam de ser influenciados pela família e de aprovar as decisões que os pais consideram justas. Hoje, os filhos têm uma autoridade exterior à família que lhes permite pôr em causa essas decisões. Desencorajado com esta evolução, Jorge (lavrador de Gondifelos, nascido em 1919) diz-nos:
«Hoje, já não dá gosto a um homem trabalhar, nem dá gosto a poupar nem dá gosto a nada. Dantes apurava-se um bocadinho, guardava-se. Agora se se apura um bocado, eles vêm buscá-lo, que vida é a nossa? Por exemplo, a gente agora está a fazer muito com o gado, com o leite e essa coisa. Mas veja lá: a gente faz por o leite, eles vêm, por exemplo, as rações para os animais, é um dinheirão que a gente dá logo ali assim para as farinhas e essa coisa. Depois vem o senhor veterinário a casa, é logo assim porradas de contos. Vaise à farmácia, e aí são os medicamentos que custam caro. O que é que fica para o lavrador? Vai descontando, só para farinhas vai metade ou mais. E agora que o leite estava a dar um bocadinho, a gente estava a fazer pelas coisas, agora vem esta coisa de ter de descontar o IVA, e é claro, a gente é analfabeta e não sabe. É claro naquele tempo, ia-se pouco tempo à escola, porque o tempo não dava. Então o que é que se vai fazer? É preciso arranjar um contabilista e é preciso pagar-lhe, e é preciso dinheiro para isso tudo. A vida agora está boa é para esses grandes armazenistas e estes senhores doutores que andam para lá a estudar para prejudicar um homem. De resto a lavoura está perdida por completo, mais vale um homem virar costas e entregar tudo e deixar ficar. No mundo de agora, no geral... bem, eu não tenho nada a dizer dos meus filhos, porque os meus ainda são cá obedientes, ainda concordam com tudo. Mas vê-se para aí filhos que os pais se sacrificaram a trabalhar, a consumir-se por eles e agora foram para fazer a divisão e eles ainda foram descontrolar-se uns com os outros, foram para tribunal e o caraças. Há um caso assim aqui, na freguesia de B. Era meu primo. Quando morreu, eles zangaram-se todos por causa das partilhas. Esse meu primo dava-se muito com o filho mais velho, e esse filho casou tarde, mas para tudo era aquele filho que andava sempre à frente do serviço. E casou tarde e depois o pai deixou mais algum a ele, tinha o papel feito mas ninguém sabia. O pai morreu, alevantouse aquele papel e tinham de dar, ele herdava mais que os outros e os outros não concordavam. Então, ele concordou em dar aos outros mais algum para eles ficarem calados. Mas eles nem assim, queriam que fosse como eles diziam e foram para tribunal. O pior é que agora é uma despesa muito grande e não sei como vai ser. Agora o juiz juntou a família toda para entrar num acordo e eles lá foram. Uns foram e outros não foram, vá, e então um dos que foi, que tinha andado a estudar e ficou com os estudos, o pai pagava e os irmãos trabalhavam, para ele estudar, e ele agora é o cabeça da guerra. Portanto, a gente consome-se, mata-se e sacrifica-se, consome-se a trabalhar e é isto. Vêem que um homem começa a ter duas coroas e vêm buscá-lo. Então mais vale um homem deixar, dá gosto é não trabalhar.»
10Pelo contrário, quem viveu a infância e/ou a adolescência nos anos 60 valoriza mais o actual estado da agricultura. Para esses, a agricultura ficou a ganhar com as transformações recentes: o antigo sistema evoca um trabalho de escravo e uma autoridade familiar rígida, a falta de dinheiro e a ausência total de conforto moderno. As mulheres recordam os horríveis vestidos cinzentos que usavam quando eram crianças; os homens falam das manhas a que recorriam para conseguirem que o pai lhes desse dinheiro. Todos se lembram de como o trabalho agrícola feito à mão era duro e cansativo. Em resumo, para estas pessoas, o facto de se insistir menos na auto-suficiência e na autonomia doméstica é perfeitamente normal na medida em que a agricultura deixou, por esta via, de ser um trabalho penoso e pouco compensador.
11Assim, para os jovens casais de lavradores que têm entre 30 e 45 anos, a agricultura tornou-se actualmente num empreendimento como qualquer outro, que permite lucros e que exige investimentos como qualquer outra actividade de produção. Tendo assistido à mecanização da agricultura enquanto adolescentes ou jovens adultos, lembram-se do entusiasmo que sentiram quando o pai comprou o primeiro tractor. Foram os primeiros a querer mudar ainda mais o sistema de produção quando as cooperativas e o Estado procuraram fazer aumentar a produção do leite, nos anos 70, e a introduzir novas tecnologias. Lucinda, uma camponesa abastada nascida em 1945, explica a diferença entre o sistema «antigo» e o actual da seguinte maneira: «Agora, há mais dinheiro. Quem não corre riscos, tem menos dívidas, mas também menos dinheiro. É como na casa dos V., que ainda é segundo o regime antigo. Quase não têm máquinas, a roupa deles é velha, andam com umas calças a semana toda, enquanto nós, nós estamos habituados a mudar de roupa todos os dias. É assim, eles gastam menos e ganham menos, nós gastamos mais, temos outra vida. Na nossa casa, a gente tem com certeza mais dívidas, só que há mais dinheiro a entrar e mais dinheiro a sair. E ao fim e ao cabo, temos mais. E assim temos outra vida.» (Lucinda, Gondifelos, nascida em 1945.)
12A noção de rentabilidade da exploração agrícola, por oposição à de sobrevivência do grupo na casa, emerge com força no discurso dos lavradores que se encontram à frente das casas de lavoura actuais. Transparece, por exemplo, na ideia de que é preciso uma pessoa especializar-se um pouco mais e calcular «o que é mais compensador», «o que dá uma margem de lucro» em termos de mercado. Transparece igualmente nas dúvidas que estes lavradores exprimem quanto à rentabilidade («isso não dá para pagar o que uma pessoa investiu») de determinados produtos que ainda se cultivam para autoconsumo, para a casa. Transparece por último na vontade de contrair empréstimos a fim de criar uma exploração agrícola mais rentável, que possa produzir mais para o mercado por menos dinheiro e com uma mão-de-obra menos abundante.
13Para o grupo doméstico que, nos anos 80, gere uma exploração mecanizada e mais voltada para o mercado, isso significa, segundo os próprios interlocutores, que é preciso «uma pessoa empenhar-se a fundo e investir», «estar pronto a arriscar para obter mais lucros ao fim de contas», «não ter medo de seguir em frente», «não ficar por aquilo a que já se está habituado». Novos valores se erigiram ao longo destes anos, suscitando uma representação nova da família rural abastada: a família deixou de ser uma entidade auto-suficiente que assegura o pão e a sobrevivência aos seus membros, transformou-se numa unidade empreendedora, mais audaciosa, que faz funcionar uma actividade produtiva rentável que permite obter lucros substanciais. A ideia de um esforço familiar de empenhamento e de trabalho está subjacente às duas representações, mas a ideia de risco e de audácia económica substitui em grande medida a da prudência económica, a de redução dos gastos com vista à lenta acumulação de património fundiário.
14Neste contexto, o principal bem raro que mobiliza as energias familiares não é a terra (e os produtos dela), mas sim o dinheiro. A casa de lavoura já não se considera no dever de se bastar totalmente a si própria do ponto de vista da propriedade da terra e da subsistência imediata (pão, batatas, legumes, produtos derivados da carne, etc.), apesar de continuar a ter nisso algum prazer. Em contrapartida, sente-se na obrigação de ter dinheiro em quantidades suficientes para poder cobrir as despesas e as dívidas. A principal finalidade do grupo doméstico consiste agora em conseguir enraizar-se, através da rentabilidade da exploração agrícola, num certo bem-estar pecuniário, que possa garantir a curto prazo o estatuto socioeconómico e as oportunidades de vida profissional dos seus membros. Nesta perspectiva, ela assenta cada vez menos na vontade de reproduzir a longo prazo «a casa que garante a sobrevivência», trabalhada por todos e para todos (pois o conceito pressupõe a existência de laços que unam fortemente o grupo doméstico, a casa-edifício e a terra). Em contrapartida, admite-se a ideia de uma reprodução a longo prazo da «exploração que garante lucros» e que pode ser gerida apenas por um dos membros da família.
15O universo ideal da família «empreendedora» faz pois apelo a múltiplas finalidades internas: uma produção agrícola mais especializada do que outrora, uma modernização ao nível das ferramentas de trabalho e da organização do trabalho, uma acumulação de terras (que não consiste apenas em adquirir, mas também em arrendar a baixo preço), e uma produção com excedentes elevados que permita reinvestir na modernização permanente e assegurar o bem-estar material da família. A curto prazo, é preconizado o estabelecimento de reciprocidades difusas e negociadas a fim de garantir o desenvolvimento de um esforço familiar conjunto e «harmonioso» que seja benéfico à gestão da exploração. A longo prazo, preconizam-se trocas específicas com o membro da família que venha a suceder (por vocação) aos mais velhos à frente da exploração agrícola. Visa-se a produção e a educação de uma descendência directa cuja sobrevivência a longo prazo não será assegurada pela família, e que deverá portanto ser «respeitada» em vez de «forçada» e «moldada» à lavoura. O objectivo é assegurar um modo de vida alternativo àqueles que não irão trabalhar na agricultura.
16Estas finalidades fazem intervir os valores seguintes: o esforço e o trabalho em família visando o «êxito» do empreendimento agrícola, a modernização tecnológica, a rentabilidade da exploração agrícola, a sucessão baseada na vocação e no «gosto» pela agricultura, um certo risco económico, o trabalho assíduo acompanhado de algum tempo livre, o entendimento mútuo e o saber ouvir os outros em vez do autoritarismo, o acesso (prudente) aos bens de consumo que não constituam um investimento no plano da exploração agrícola.
17Segundo estes valores, pode dizer-se que a família já se tornou outra em termos sociológicos, uma vez que ela se finaliza de modo diferente. No entanto, as novas finalidades também mobilizam alguns valores antigos quando estes são úteis à nova lógica familiar. Por exemplo, o esforço colectivo a curto prazo para fazer funcionar a exploração está relacionado com a ideia antiga de economia familiar; a noção de continuidade através do «sucessor vocacionado» retoma, modificando agora o seu significado, a ideia do sucessor privilegiado. Esta proximidade simbólica permite criar pontes entre as gerações mas também pode provocar conflitos, sobretudo quando as interpretações actuais são acompanhadas de práticas muito diferentes das do passado.
18A estas finalidades internas correspondem finalidades externas: é preconizada uma reciprocidade que permita tecer relações privilegiadas com outras casas de lavoura («aqueles que são como nós, que têm terras»), e, novidade, vão sendo encaradas a pouco e pouco alianças com famílias e com redes externas que possuem outros recursos culturais e/ou económicos. Aliás, estas novas alianças são um dos elementos susceptíveis de permitir uma certa reconversão do estatuto e do prestígio de que os lavradores gozavam antigamente a nível local. Assim, a lógica familiar empreendedora faz intervir uma heterossuficiência mais acentuada. Os recursos próprios (património, disciplina interna, mão-de-obra familiar) permanecem importantes mas outros recursos (compra de produtos a montante, formação e informação, mobilidade social dos filhos não-sucessores, ajuda especializada fornecida por agrónomos ou veterinários, apoio político ou financeiro proveniente de instituições exteriores à aldeia) parecem tornar-se essenciais a uma melhor gestão dos recursos próprios.
19O facto de insistir mais na heterossuficiência, a qual pressupõe que se reconheça uma grande variedade de alternativas e de escolhas possíveis na sociedade, vai introduzir uma finalização hierarquizada mas mais flexível do que no passado. Em termos ideais, no plano das instâncias, a «casa» já não deve impor de modo autoritário os seus interesses ao casal e ao indivíduo, tal como os pais não devem forçar os filhos. No que respeita à continuidade da exploração, esta continua a ser valorizada, mas admite-se como possível uma eventual descontinuidade (por falta de «gosto» pela agricultura, por exemplo) e não só como consequência de um desastre económico ou familiar. Em termos de finalidades, a produção de bens raros destinados a assegurar a rentabilidade agrícola vem antes da produção de bens de consumo, mas os bens raros não são a prioridade absoluta. Doravante, já não se desprezam os critérios urbanos de um nível de vida «confortável» porque ninguém se sente à margem dessa sociedade, e todos se comparam a ela. Além disso, o bem-estar moral do indivíduo torna-se uma preocupação tão importante como a sua saúde ou a sua alimentação, e o bom entendimento familiar é actualmente um valor capaz de ser defendido com o mesmo cuidado que os interesses da exploração. Neste sentido, a relação entre família e exploração agrícola mudou. Antigamente, a primeira submetia-se mais aos interesses a longo prazo da segunda. Hoje em dia, esta submissão tem limites, porque só se considera legítimo fazer exigências ao indivíduo, ao casal e à família, quando isso não prejudica a existência «harmoniosa» da família (é importante notar que os lavradores não falam neste contexto de uma existência «feliz»).
20Em resumo, a hierarquia das esferas da vida familiar continua a ser a mesma — é preciso assegurar o bom funcionamento da exploração e pagar as dívidas do tractor antes de comprar um automóvel para passear — mas admite-se uma subordinação menos rigorosa à sobrevivência económica da «casa» a longo prazo. A norma continua a exigir que os indivíduos se prendam à exploração agrícola mas sem se tornarem «escravos» das suas exigências, a ponto de descurar custe o que custar a produção de um certo bem-estar familiar. Isto vai introduzir um novo modo de inclusão bem como processos diferentes de produção de laços com a agricultura e entre os membros da família.
O modo de inclusão
21Quando analisámos o modo de inclusão no passado, procurámos determinar quem era incluído ou excluído em termos de residência, de trabalho agrícola e de sucessão.
22No que respeita à residência, a análise do Rol de Confessados mostrou que a família de lavradores de outrora era numerosa, muitas vezes «complexa», com tendência a ser patrivirilocal e alargada por criados residentes. Em contrapartida, a análise dos grupos domésticos dos lavradores dos anos 80 revela-nos uma família menos numerosa, muitas vezes complexa, menos alargada por irmãos e irmãs solteiros co-residentes, e em caso algum aumentada por criados residentes. A tendência para a patrivirilocalidade continua a manifestar-se.
23Quer se trate do passado ou do presente, esta análise da composição dos grupos de parentesco diz-nos pouco acerca dos processos que estão na origem do modo de inclusão. É por esta razão que vamos agora considerar a história diacrónica de algumas famílias de lavradores durante as últimas décadas, nos planos da residência, do trabalho agrícola e da sucessão. Partindo de alguns casos analisados a título de exemplo, tentaremos fazer sobressair os factores em que assenta o tipo de inclusão familiar que encontramos hoje em dia.
Grupo doméstico no1 — Casa F (Gondifelos)
241963 — Miguel (50 anos) e a mulher Angelina (51 anos) vivem com três dos seus cinco filhos. Tiveram sete, mas dois deles morreram menos de um ano depois do seu nascimento. Miguel foi escolhido como herdeiro privilegiado da casa (é o filho mais novo). Assumiu a responsabilidade da casa em 1930, quando o pai morreu. Em 1963, a casa explora oito hectares de lavradio.
25O filho mais velho de Miguel e de Angelina (José, 30 anos), a sua mulher Carolina (32 anos) e os três filhos (respectivamente com 4, 3 e 2 anos) vivem na casa, onde dispõem de uma cozinha à parte. Quando este filho (designado sucessor) se casou, Miguel e Angelina cederam-lhe a quota-parte disponível («o terço») do património (apesar do descontamento dos outros filhos). Em 1963, José e Carolina exploram uma parte da terra (cerca de três hectares) e Miguel e Angelina outra.
26Miguel e Angelina têm duas filhas solteiras, de 18 e 17 anos, que trabalham com os pais a parte da propriedade que não é explorada por José. Os outros dois filhos de Miguel e de Angelina — um rapaz e uma rapariga — já saíram de casa. O segundo filho homem emigrou para o Brasil. Tirou um curso técnico e quando regressou a Portugal foi trabalhar como técnico na Grundig, na cidade de Braga. A terceira filha do casal casou-se com um lavrador e tornou-se ela própria lavradeira.
271970 — A família permanece complexa, mas alterou-se. As duas filhas mais novas de Miguel e de Angelina casaram-se, a primeira com um lavrador e a segunda com um comerciante (dono de um café) que explora um pequeno terreno. José e Carolina têm agora cinco filhos.
28Com a partida das duas filhas, Miguel e Angelina decidiram proceder à partilha definitiva das terras. Estipularam que nenhum campo podia ser vendido enquanto Miguel fosse vivo. Como os outros filhos vivem longe e não quiseram encarregar-se das terras, alugaram-nas a José. Miguel a Angelina ficaram com dois campos e recebem uma renda de José e de Carolina.
291986 — A família continua complexa, mas os membros dela mudaram. José e Carolina decidiram, no princípio dos anos oitenta, mandar construir uma casa nas suas terras (num campo vizinho) e mudaram-se para lá. Queriam «uma casa ao gosto deles». Durante os anos setenta, transformaram a exploração agrícola e consagraram-se à produção do leite. O filho mais velho, Avelino, tirou um curso técnico e abriu um estabelecimento comercial em Nine. A filha tornou-se professora primária e casou-se. O terceiro filho viaja pelo país como representante dos produtos da Bayer e também ele se casou. O filho mais novo, mecânico, trabalha na fábrica de pneus Mabor desde os 15 anos. Quanto ao penúltimo filho (Manuel), os pais exerceram alguma pressão sobre ele para que ficasse na agricultura. Sobre isto, José conta a seguinte história: «Ele não queria ficar, queria até ir estudar. Mas nós tentámos amarrálo. Entretanto, ele tentou tirar um curso à noite, mas não conseguiu. Então, ficou. Foi difícil, mas conseguimos amarrá-lo.» Manuel (25 anos) acabou de se casar. Vive na casa dos avós, nos mesmos aposentos (dois quartos e uma cozinha separada) onde viviam os pais antigamente. A terra foi novamente distribuída. José e Carolina exploram actualmente a sua própria terra (quase quatro hectares) e mais um hectare que Carolina herdou quando os pais morreram. Manuel explora os campos dos avós e os das tias e dos tios, que lhe alugam as terras deles. Miguel e Angelina tratam apenas de uma pequena horta situada num terreno ao lado da casa. Angelina e Isabel, a mulher de Manuel, têm cada uma o seu galinheiro. Quanto ao gado de José e de Manuel, partilham o estábulo que José mandou construir nos anos setenta ao lado da casa. Mas cada um deles sabe qual é o seu próprio gado, e cada um deles tem o seu silo e o seu tractor.
30Um bebé (bisneto de Miguel e de Angelina) vai nascer em 1987. Manuel casou «fora do seu meio», contra a vontade da família. Como diz o pai, «a família da Isabel tem alguma terra, mas muito pouca» e ela é pouco virada para o trabalho agrícola. Operária têxtil até ao casamento, Isabel acaba de se empregar como aprendiza de cabeleireira. O estatuto dela é ambíguo para os membros da família do seu marido. Isabel diz-se cabeleireira e o marido diz que ela é «as duas coisas» (trabalhadora familiar agrícola e cabeleireira). Mas os pais e os avós de Manuel acham inacreditável que ela trabalhe fora de casa; segundo eles, os casais de lavradores devem dividir entre si o trabalho agrícola.
Grupo doméstico no 2 — Casa R., Gondifelos
311963 — Nesta altura, trata-se de um grupo doméstico alargado. Maria das Dores (71 anos), viúva, vive com Maria (47 anos) — sua filha única e herdeira da casa (os outros dois rapazes que Maria das Dores teve morreram afogados no poço quando eram pequenos) —, o genro José Joaquim (52 anos) e seis dos oito filhos deles. A filha mais velha deste casal já se casou com um lavrador de Gondifelos, e a segunda com um moleiro/pequeno proprietário da aldeia. Os seis filhos que vivem ainda na casa são Maria Teresa (22 anos), Avelino (19 anos), João (17 anos), Ermelinda (15 anos), Laura (13 anos) e Joaquim (7 anos). A única criada que lá vivia acabou de casar e deixou a casa. Os filhos, à excepção de Joaquim, deixaram todos a escola para trabalhar na exploração familiar. João, que era muito bom aluno, quis ir para o ensino secundário. O professor primário intercedeu a seu favor junto dos pais. Mas o pai não aceitou os pedidos porque, segundo ele, ele tinha «emprego para o filho».
321975 — É uma família simples (casal com filhos) que vive na casa desde que Maria das Dores faleceu. José Joaquim (64 anos) e Maria (59) vivem com três filhos. Maria Teresa casou e emigrou para Angola com o marido. Ermelinda casou com o filho de um padeiro de uma freguesia próxima. Quanto a Avelino, o filho que José Joaquim queria ver suceder-lhe na casa, casou com uma herdeira rica/filha única de uma freguesia vizinha. Segundo o pai, Avelino quis, ao fazer esse bom casamento, que o pai lhe segurasse «o terço» da casa dele para poder juntar as duas casas. Mas o pai recusou porque, na opinião dele, a casa da noiva era demasiado longe da sua para que pudesse haver verdadeira junção. Preferiu combinar com o filho a entrega de alguns campos.
33Depois da partida do filho mais velho em 1972, José Joaquim sentiu que não estava bem de saúde e decidiu ceder a João, em aluguer, a maior parte das terras da casa. Em 1975, este é ajudado pela mãe, pela irmã Laura (25 anos) e por jornaleiros. A casa possui já um tractor mas continua a produzir as mesmas coisas. João quis voltar-se para a produção leiteira mas não conseguiu o apoio do pai. Ficou desanimado.
34Há outro filho que continua a viver na casa. É Joaquim, o mais novo. Joaquim anda a estudar (contra a vontade do pai, mas incentivado pelos irmãos e vizinhos amigos do pai). Acabou o liceu e vai para a cidade para a Faculdade de Engenharia. Participa menos do que os outros no trabalho agrícola da casa.
351985 — A família voltou a ser complexa. José Joaquim (74 anos) e Maria (69) vivem com a filha Laura (35 anos), o marido desta, António (36) e duas netas (de 9 e 4 anos). Não tem duas cozinhas, mas as duas mulheres cozinham separadamente, cada uma em seu fogão: a mãe no fogão de lenha, a filha no fogão a gás (se bem que se sirva com frequência do lume da mãe para aquecer água).
36Em 1976, diversas decisões foram tomadas. João e Laura queriam casar, e José Joaquim decidiu fazer a divisão das terras. João não tinha vontade de ficar em casa do pai, e ficou contente com o acordo que fizeram: o pai deu a João uma outra casa com eido que tinha na aldeia. João tornar-se-á lavrador a tempo parcial (será simultaneamente vendedor de máquinas agrícolas), sendo a mulher professora primária. Quanto a Laura — a única filha de José Joaquim e de Maria que vive ainda na casa dos pais e que, ao contrário do irmão João, tem «gosto» pelo trabalho agrícola — também ela vai «fazer um arranjo» com os pais. Será ela a ficar com a casa e com os pais a seu cargo. Os outros filhos (apenas três deles conseguiram «arranjos») receberam a parte legítima sob forma de alguma terra e de dinheiro. José Joaquim e Maria permaneceram proprietários de um campo e têm uma «reserva» na casa.
37Laura e o marido introduziram a produção de leite e mandaram construir o silo graças a um subsídio e a empréstimos contraídos com o Estado. Em 1985 exploram dois campos que lhes pertencem (um hectare), o campo dos pais de Laura (pelo qual pagam uma renda considerada elevada: 10 arrobas de batatas, 20 de milho, uma pipa de vinho e 5 arrobas de feijão), e dois campos arrendados a um pequeno empresário industrial e pelos quais pagam respectivamente 50 000 e 30 000 escudos por ano bem como metade do vinho produzido num dos campos.
38Interrogado sobre o futuro das filhas, Laura responde: «Vou pô-las as duas a estudar. Se uma delas não quiser depois continuar a estudar, poderá dedicarse à lavoura e manter tudo em ordem. Mas nós, neste momento, fazemos tudo o que podemos para que elas estudem. É claro que o meu marido se queixa de vez em quando e diz que não há ninguém para nos ajudar nos campos, e que não era mau se uma delas pelo menos ficasse cá.»
Grupo doméstico no 3 — Casa V., Lemenhe
391963 — É um casal sem filhos que vive nesta casa de tamanho médio (três hectares). José (48 anos), descendente de uma família de lavradores grandes que tiveram 11 filhos, não foi escolhido como sucessor da casa paterna, mas os pais favoreceram-no um pouco e José herdou uma casa com dois campos. José e a mulher Maria (47 anos) só lá vivem há dez anos, porque José casouse muito tarde, com 38 anos. (Até ao casamento trabalhou para a casa paterna.) José e Maria trabalharam duramente para aumentarem a exploração, e compraram um campo a uma das irmãs de José. Esta tinha-o recebido nas partilhas mas, perante a insistência do irmão, aceitou vender-lho. Maria acabou também de herdar um campo na sua aldeia natal, que o casal vendeu para poder comprar outro em Lemenhe.
401975 — José e Maria, que não podem ter filhos, vivem com uma sobrinha solteira de Maria (23 anos, filha de uma irmã desta) que foi para lá viver como «filha» da casa. A intenção de José era casá-la com um sobrinho dele — seu afilhado — para que a terra ficasse «nas mãos da família». Mas como o sobrinho não se mostrasse interessado, José e Maria não disseram nada quando João, filho de lavradores de uma freguesia vizinha, começou a namorar a Conceição.
411985 — A família tornou-se múltipla. Conceição casou-se em 1976, e o seu marido João veio viver para a casa de José e de Maria. Durante o primeiro ano, os dois casais trabalharam a terra «juntos». Era o casal mais velho que «fazia a despesa» e que «punha na mesa». Depois, José aceitou que o jovem casal tomasse conta da exploração, e João e Conceição ficaram então a trabalhar como «caseiros» (com um contrato informal) do casal mais velho. No entanto, José e Maria já redigiram um testamento a favor de Conceição.
42A partir do momento em que o casal mais novo ficou com a exploração a seu cargo, os dois casais separaram as cozinhas, as mesas e os galinheiros. Mas concordaram em resolver determinados assuntos em comum: por exemplo, compram juntos um porco para engordar e depois partilham a carne. Além disso, os filhos do jovem casal podem passar de uma mesa para a outra se assim o desejarem, ou se os pais tardarem a regressar do campo.
43Dois filhos nasceram do casamento do João e da Conceição: Francisco (8 anos em 1985) e Carlos (3 anos em 1985). Com essa idade, o pequeno Francisco já ajuda os adultos no trabalho do campo e diz orgulhosamente que quer ser lavrador como o pai. Interrogados em 1985 sobre o futuro dos filhos, os pais dizem em primeiro lugar que «isso vai depender do que eles quiserem». Mas, depois de uma breve pausa, acrescentam: «Gostávamos que um deles ficasse connosco. Mas para isso é preciso que tenha paixão por este trabalho. É preciso gostar da agricultura...»
44Três anos depois, quando a escolaridade obrigatória do pequeno Francisco está a chegar ao fim, o rapaz, bom aluno segundo o professor, já não tem tantas certezas sobre o que quer fazer. Eis a conversa que tivemos na altura com o Francisco e o pai:
(K.W.): Então, Francisco, como é que vai a escola? Vais passar?
(O pai que responde em vez de Francisco): Claro que sim, está tudo bem. Parece que ele é um bocado lento, que leva tempo a fazer as coisas, mas vai passar.
(K. W.) Que vais fazer agora, Francisco? Ainda queres ser lavrador?
(Francisco, com ar hesitante): Não sei.
(O pai rapidamente): Ah, não vejo mais nada, não vejo que mais é que ele pode fazer! Sabe, quando eles estudam até aos 16 ou 18, depois nunca mais ligam à terra. Habituam-se a passear com os livros debaixo do braço, já não dão nada, só querem ir para os escritórios e para os bancos. Até aos 12, vá que não vá, mas até aos 16, Deus nos livre! E depois, os empregos que há agora, não são lá grande coisa. Olhe o Augusto (filho de um lavrador vizinho), acabou a escola secundária, e está a ganhar o salário mínimo, são empregos muito mal pagos. Então, mais vale... bem, o irmão, não digo que não, como tem uma saúde mais fraca, vai ter que se desenrascar de outra maneira.
45Com base nestes exemplos, voltemos agora à questão do modo de inclusão. Já vimos que, em termos sincrónicos, as coisas não parecem ter mudado muito no que respeita à residência: o casal de lavradores, a sua descendência directa, o sucessor e a sua família vivem juntos. Já quase não existem colaterais solteiros de uma certa idade mas admitem-se, tal como antigamente, sobrinhas e sobrinhos que se consideram como filhos.
46A análise em termos diacrónicos da inclusão na residência, no trabalho agrícola e na sucessão mostra-nos contudo que determinados aspectos se alteraram. Se bem que haja, tanto no passado como no presente, filhos que deixem a casa paterna para casar ou encontrar um modo de vida alternativo, os percursos alternativos de hoje em dia já não são os mesmos. E não é apenas o número e a escolha das alternativas que mudou mas também a maneira como as partidas se efectuam. Por um lado, a saída de casa faz-se mais cedo. Nenhum jovem adulto vai ficar solteiro, trabalhador familiar sem retribuição, até aos 40 anos (a menos que seja deficiente). Por outro lado, os filhos escolhem vias profissionais ou empregos alternativos que os afastam mais cedo do trabalho agrícola. Por consequência, são também menos numerosos a ficar colocados no sector agrícola e a rivalizar uns com os outros por causa da sucessão.
47Estas modificações têm consequências importantes para os factores que estão na base da inclusão a longo prazo na residência das famílias de lavradores. Antigamente, «segurava-se» o herdeiro privilegiado, ao mesmo tempo que se insistia na necessidade de adiar a exclusão dos outros descendentes directos. Como podemos ver a partir da história da casa R. (Grupo doméstico no 2), era isso que ainda se fazia no final dos anos 1950: o filho João foi retido pela casa, apesar da existência de um irmão mais velho designado pelos pais como futuro sucessor. O «reservatório» de sucessores potenciais era pois bastante alargado. Hoje em dia, insiste-se ao contrário na exclusão precoce dos descendentes directos não-sucessores: no fim da escola obrigatória, é preciso decidir se os filhos vão permanecer na agricultura ou se irão para fora de casa (estudar ou empregar-se). Isto significa que «o segurar» e a designação «daquele que irá ficar» se deve fazer depressa e cedo. Deste modo, toda a gente poderá gerir correctamente a sua carreira profissional ou o seu emprego.
48Nos anos oitenta, encontramos o caso de um pai que quer reter o filho — é o caso do pequeno Francisco da casa V. (Grupo doméstico no 3) —, e o significado desta decisão é específico. Trata-se da inclusão precoce de um sucessor mais do que de uma exclusão adiada. Efectivamente, dado que o segundo filho tem uma saúde fraca, os adultos decidiram excluí-lo do trabalho agrícola e da sucessão, e incluir nesta o filho mais velho. Por outras palavras, num contexto em que o número de filhos é restrito, e no qual pesa a obrigatoriedade de uma educação escolar que valoriza fortemente as actividades terciárias, acaba-se por insistir no factor «segurar precocemente» e por abandonar em parte outro factor — o da vocação ou da «paixão» — que é, também ele, considerado importante pelas famílias analisadas. Na realidade, o factor «vocação» pela agricultura não pode ser levado em conta de forma rigorosa a não ser quando vários filhos da mesma família renunciam aos estudos. Neste caso, trata-se de ver, entre os rapazes que deixaram de estudar, qual deles tem mais vontade de ser agricultor e de permanecer em casa, e qual é aquele que, pelo contrário, deseja trabalhar no exterior. Na «Casa C.», uma outra casa agrícola onde havia quatro filhos em 1984, nenhum dos dois filhos mais velhos quis continuar a estudar depois dos 12 anos. Queriam arranjar emprego e foram os dois trabalhar para uma fábrica. O filho mais velho ficou na fábrica durante dois anos mas não se adaptou, declarando preferir o trabalho agrícola. Em consequência disto, deixou-se o segundo a trabalhar no exterior e o primeiro regressou a casa e à agricultura. A partir desse momento, foi abertamente declarado que o mais velho tinha gosto pela agricultura e que queria um dia tomar conta da propriedade.
49Em resumo, os grupos domésticos de lavradores preconizam, como outrora, a insistência simultânea na assimilação e na exclusão, na residência patrilocal de um dos filhos e na residência neolocal dos outros. Contudo, devido aos constrangimentos actuais, o equilíbrio entre estes factores alterou-se. No passado, havia tendência para favorecer a assimilação. Era uma inclusão mais absorvente. Presentemente, a balança pende mais para o lado da exclusão, levando a família a decidir mais cedo sobre o futuro dos filhos (assimilação/exclusão precoces) e a designar o sucessor. Trata-se neste caso de uma inclusão que podemos considerar como restrita. A própria norma mudou, passando do «é preciso que um filho fique» para o «é conforme a vontade deles, mas gostávamos que um deles ficasse». De facto, é nas excepções à regra que se nota mais claramente o novo equilíbrio entre os factores. No passado, seria a Casa do Monte, na qual todos os filhos ficaram solteiros a viver em casa, que teria constituído a excepção. Estamos perante um caso de absorção total que levou à não-sucessão por filiação directa. Actualmente, a excepção à regra é representada pela Casa E., na qual nenhum filho está a ser retido pelos pais. Trata-se aqui de um caso de não-sucessão produzida pela exclusão total. Os dois filhos — um rapaz e uma rapariga — andam no secundário e querem ir para a universidade. Os pais não pensam impedi-los, e acham que a exploração poderá um dia vir a ser administrada «de longe» por um dos filhos. Tal como no passado, os lavradores não aprovam esta excepção à norma. Consideram que: «um dia, eles não vão ter ninguém para tratar da terra, e ela vai ficar ao abandono». Aprovam a solução intermédia: os estudos ou o emprego para um dos filhos, a agricultura para o outro (para o que tem mais «vocação», de preferência um rapaz). Mas já não se trata, em todo o caso, de impedir os «outros» de escolher uma profissão ou um emprego alternativo, nem mesmo de proibir aqueles que mostram «gosto» pela agricultura de continuar a estudar, se assim o desejarem1
50O critério de inclusão a longo prazo é portanto triplo: genealógico, funcional e estatutário. Irá residir a longo prazo na casa aquele que é descendente directo, que trata da agricultura e que é do sexo masculino de preferência. No entanto, o conteúdo ideal do critério «funcional» mudou: o morador final já não é aquele que trabalhou mais do que os outros filhos «para a casa». É aquele que, no fim de contas, se tornou agricultor (sem detestar a profissão) e se ocupou da terra. A noção de «trabalho para a casa» (muitas vezes ligada à ideia de competência acumulada ao longo dos anos) foi substituída pela noção de ocupação agrícola propriamente dita.
51Neste contexto, onde situar a fronteira da família de lavradores hoje em dia? No passado, os actores situavam-na em relação ao «nós, as pessoas da casa», incluindo aí todos quantos, tendo ou tendo tido uma relação de filiação directa com o chefe de família, moravam e trabalhavam na e para a casa agrícola. Hoje em dia, os que trabalham a tempo inteiro na agricultura representam por vezes uma minoria (ao contrário de antigamente) de todos quantos vivem juntos. O trabalho agrícola feito por todos num património familiar deixou de servir para marcar a fronteira pois, desde muito novos, os filhos da família diversificam as estratégias de ocupação.
52Todavia, as famílias analisadas não abandonam tão depressa um critério (a comunidade de trabalho e de esforços) que lhes é caro e que constitui o próprio estandarte da sua definição de família solidária. Mas em função dos novos constrangimentos, os actores vão dar uma nova interpretação a este critério de definição da unidade familiar. Assim, já não será o trabalho agrícola que irá contar para decidir da dedicação à família, mas sim os «contributos» diversos — quer sejam em dinheiro ou em diferentes tipos de trabalho — que os membros irão pôr à disposição do colectivo família. Atribui-se pois um novo conteúdo subjectivo e objectivo à noção de «trabalho para a família»: os que têm emprego dão uma parte do seu salário; os que não trabalham nem no exterior nem nas tarefas agrícolas, encarregam-se do trabalho doméstico; os que estudam dão uma ajuda aqui e ali quando podem, etc.
53Em resumo, o fazer parte da família ainda se define quer pelo genealógico quer pelo funcional: os filhos ajudam e contribuem para o esforço colectivo, e isso apesar das ocupações individuais às quais, se não tiverem sido incluídos precocemente na sucessão, podem igualmente consagrar uma parte do seu tempo.
O modo de produção
— A produção económica: auto-suficiência ou rentabilidade
54No plano da economia, a finalidade da auto-suficiência alimentar, centrada na produção do «pão» caseiro, é substituída por uma produção agrícola rentável voltada para o mercado. No entanto, nas casas de lavoura de Lemenhe e de Gondifelos, a pressão exercida por estes dois factores (auto-suficiência e rentabilidade) continua a fazer-se sentir. As casas foram-se voltando a pouco e pouco para a produção do leite, mas sem negligenciar totalmente a produção destinada ao consumo doméstico: porcos e frangos no que respeita a carne, batatas, legumes, vinho e, mais raramente, milho para o fabrico do pão.
55A pouco e pouco, a confecção do pão foi sendo posta de lado. As pessoas queixam-se do tempo que leva a fazer e apregoam as qualidades do pão branco e fresco, outrora um privilégio dos ricos e das pessoas da cidade, e que neste momento se pode comprar todos os dias. Na realidade, o facto de se preconizar a compra do pão e de cada um deixar de produzi-lo constitui um indicador do peso adquirido pela especialização das explorações na produção de leite. Na maior parte das explorações observadas, cultiva-se ainda um pouco de milho «para grão», destinado à alimentação humana ou das galinhas, mas na maior parte da terra arável o que se planta é milho híbrido que será moído e ensilado para alimentar as vacas leiteiras durante o Inverno. A parte onde se planta milho destinado à alimentação humana tornou-se uma espécie de prolongamento da horta, um elemento periférico em relação à produção de leite que dá dinheiro. Nesta nova forma, o milho adapta-se melhor à alimentação das galinhas ou, excepcionalmente, à produção de uma fornada de pão.
56Segundo as próprias mulheres, há ainda outro factor que justifica esta escolha: a confecção do pão leva tempo e isso não é rentável quando se trata de alimentar apenas três ou quatro pessoas. Como já não há jornaleiras para ajudar dentro de casa ou no exterior, as mulheres acham-se, mais frequentemente do que as suas mães no passado, a ter que se ocupar das tarefas domésticas ao mesmo tempo que trabalham intensamente na exploração com os maridos. Dia após dia, a sua força de trabalho é solicitada durante todo o dia pelo trabalho agrícola e pela produção de leite. Em suma, o mais importante é tratar das vacas, e prefere-se mandar o filho de seis anos à venda buscar o pão em vez de passar a manhã de sábado a fazê-lo. Além disso, a família queixa-se muitas vezes do pão caseiro, dizendo que a broa se torna muito dura lá para o fim da semana, enquanto o pão branco é fresco todos os dias.
57É interessante verificar que, nas casas onde ainda se coze o pão para a semana toda, isto se deve quer à pressão exercida por uma geração que sempre fez pão em casa, quer à ausência de reconversão da exploração agrícola. Assim, nem Amélia (nascida em 1922, ainda à frente da casa com o marido) nem Margarida (nascida em 1933, e que também se encontra à frente da exploração com o marido) querem abandonar uma prática que associam ao seu estatuto de mulheres de lavradores, e ambas são apoiadas pelos respectivos maridos, cuja opinião é que é preferível «colher de tudo» na propriedade. Margarida pôs termo às queixas dos filhos, que reclamavam pão fresco, metendo algumas broas na arca congeladora. Nestas casas de lavoura onde ainda se faz pão, consagra-se uma superfície um pouco maior à cultura do milho tradicional.
58Por outro lado, encontram-se algumas casas, mais modestas em terras de lavradio, que mantiveram uma agricultura virada para a auto-suficiência. Foi introduzida a produção de leite sem que se construísse um novo estábulo e sem que fossem compradas máquinas para moer o milho nem o silo para o guardar. Continua-se a privilegiar o milho destinado à alimentação humana, que serve para alimentar simultaneamente animais e pessoas. Fazem-se ainda medas para conservar o feno. Um exemplo típico: Olinda, uma lavradeira de 50 anos, explora uma propriedade de tamanho médio e possui um moinho de água que já só trabalha esporadicamente; tem três vacas e dois novilhos que alimenta com palha de erva e de milho, bem como com farinha de milho, que é moída no próprio local e misturada com água. Uma parte das espigas de milho é guardada; o milho será malhado mais tarde, em Março, quando estiver seco. Duas das vacas servem para trabalhar e, para lavrar o campo maior, aluga-se um tractor uma vez por ano. Nesta casa coze-se pão todos os sábados e a broa ocupa um lugar central na alimentação. Olinda, quando nos mostra o forno e nos dá a provar da sua broa, pede desculpa por ter broa, e explica-nos que ainda faz muito pão para aproveitar o milho que produzem e as maquias (dois quilos de farinha em quinze) que aparecem.
59O exemplo do pão permite ver que, na maior parte das casas de lavradores voltadas hoje para a produção «moderna» de leite, o significado do factor «auto-suficiência» mudou. Idealmente, toda a gente continua a querer «ter de tudo em casa»:
60«É bom ter de tudo em casa. Há gente que tem terra e que não se importa», diz-nos Rosa, lavradeira nascida em 1947 em Lemenhe. Rosa tem uma horta grande, cria galinhas e mata dois porcos e um touro anualmente para ter carne em casa.
61Outro testemunho do mesmo tipo:
«Gosto de ter tudo de casa. Detesto comprar carne de fora e nunca compro. Tenho sempre frangos. Como vê, mato 20 de uma vez e ponho no congelador. E de vez em quando compro um porco e meto aqui também no congelador. Mas é claro que o peixe, tenho de comprar, e o pão também. Não tenho tempo para o fazer.» (Conceição, nascida em 1953, lavradeira que cultiva com o marido sete hectares de lavradio e tem 18 vacas leiteiras.)
62Na prática, todas as casas produzem um pouco «para casa», mas o número e a diversidade dos produtos foram reduzidos. Os casais acima dos 40 anos foram os primeiros a abandonar, a partir dos anos 50, a produção de cânhamo e de lã, e a comprar no mercado tecidos a baixo preço provenientes das fábricas têxteis da região. Entre os casais jovens, põem-se de lado também outros produtos que eram tradicionais para a auto-suficiência. Por exemplo, na casa dos B., fizeram-se «as contas» e chegou-se à conclusão que mais valia comprar a carne e o pão; na dos Silvas, cultiva-se milho para dar de comer às galinhas mas deixou-se o feijão, porque a família prefere comer arroz e massas. No entanto, todas as casas têm batatas e vinho (destinados quer ao consumo doméstico e à venda esporádica quer apenas ao consumo doméstico).
63Muitas vezes, o facto de continuar a cultivar certos produtos é encorajado pelas rendas que se é obrigado a pagar à geração que detém o usufruto da propriedade. Na família Silva, por exemplo, os pais pediram ao sucessor que lhes desse metade da produção do vinho (cerca de dez pipas) e uma determinada verba em dinheiro todos os anos. O jovem casal tem pois a liberdade de decidir se cultiva feijão e batatas, e abandonou o cultivo do primeiro. Em contrapartida, na família R., os pais usufrutuários fixaram a renda em 50 arrobas de batata e cinco de feijão, vinte de milho e uma pipa de vinho. Segundo o jovem casal, esta renda em géneros é demasiado elevada, e preferiam pagar uma renda em dinheiro, como acontece com um campo que arrendam a alguém de fora. «O que nos interessa é cultivar milho de forragem, mas o meu pai quer isto tudo para a despesa dele.» (Laura R., nascida em 1951, Gondifelos.)
64Em resumo, apesar do ideal em termos de cultivo não se ter afastado da norma que estabelece que se tenha «um pouco de tudo em casa», verifica-se que a interpretação deste princípio modificou-se. Hoje em dia, o respeito da norma do autoconsumo elabora-se num contexto em que a produção agrícola já deixou de fazer parte integrante de um ciclo produtivo centrado na autarcia alimentar. A realização da norma tornou-se portanto mais incerta, visto que depende mais das pressões exercidas pelo mercado, dos gostos alimentares da família e também das pressões exercidas pela geração mais velha, que continua a querer «comer da terra». Na maioria das casas analisadas, esta produção para o consumo doméstico é pois um factor valorizado mas periférico. As casas que constituem excepção a esta regra são casas médias, como a casa de Olinda, acima evocada, onde uma pequeníssima produção de leite se veio juntar a um ciclo de produção quase inteiramente auto-suficiente.
65Se lançarmos agora um olhar diacrónico à passagem de uma agricultura familiar «auto-suficiente» para uma agricultura que privilegia a produção do leite sem abandonar completamente o autoconsumo, não só se verifica que a reconversão das explorações se realizou de modo parcial (ver as casas médias anteriormente mencionadas), mas também que ocorreu de maneira muito irregular no tempo. É possível analisar, de forma resumida, como é que isso se passou. Em primeiro lugar, a passagem para uma agricultura centrada no leite foi estimulada por uma procura externa de leite. Por exemplo, em Lemenhe, foi uma cooperativa (a Suil) que, no princípio dos anos 60, contactou dois lavradores abastados, que possuíam uma ou duas vacas leiteiras, procurando convencê-los a cederem um pouco de leite. Os postos de ordenha e de recolha de leite só foram instalados alguns anos depois, a fim de permitir a outros lavradores que, encorajados pelo rendimento dos pioneiros, procedessem de igual modo. Foi o início de um processo lento e errático, dado que a adesão à produção do leite dependia de diversas condições intermédias. A proximidade do posto de leite contava muito, e a presença ou a ausência de jovens adultos desejosos de inovar também era determinante. Assim, na família Correia, pioneira na produção do leite em Lemenhe, a presença de um filho adolescente, que apoiou e encorajou o pai a mecanizar e a especializar a exploração, foi fundamental2. Foi ele quem aprendeu a guiar o tractor e que passou a tratar das vacas. Em contrapartida, houve famílias que não quiseram modificar logo o tipo de produção. Os Gomes, lavradores ricos de Gondifelos (oito hectares de terra arável e quatro hectares de bouças), começaram, no final dos anos 60, a levar algum leite a um posto que tinha aberto numa freguesia vizinha mas acharam que dava muito trabalho. Pararam pois de fazê-lo e preferiram continuar a criar vitelos destinados à venda e a cultivar batata e milho. Entretanto, os dois filhos da casa tinham crescido (19 e 17 anos em 1980) e, quando abriu um posto de recolha de leite num lugar vizinho, pediram ao pai autorização para levarem lá duas vacas. O pai autorizou e sugeriu até que o dinheiro do leite fosse para os dois irmãos. O número de vacas leiteiras foi aumentando lentamente, sob pressão dos filhos, mas a produção principal da casa continuou a ser a batata. O silo só foi construído em 1987, quando o filho mais novo tomou a exploração a seu cargo. E foi só um ano depois, quando se tornou legalmente rendeiro do pai, que esse filho pediu um empréstimo ao Estado para comprar máquinas, lavrar uma parte do terreno de bouça e construir uma vacaria nova a fim de albergar 34 vacas.
66Família e reconversão agrícola articulam-se assim de modo complexo. O aparecimento de uma nova geração pode ser um motor poderoso de abertura às pressões exteriores mas os períodos do ciclo familiar que são propícios a esta dinâmica (associada à presença de adolescentes ou de jovens adultos) nem sempre coincidem com os períodos de mais intensa pressão exterior a favor da mudança. Em virtude dos efeitos desta variável intermédia e de outras (já mencionadas), as transformações ocorreram de modo gradual e desigual — e não, como se poderia crer, de uma forma rápida e generalizada.
67Uma vez iniciado, todavia, o processo de transformação da agricultura acarretou um certo número de consequências económicas, das quais três nos parecem particularmente significativas. Em primeiro lugar, a aferição do valor da terra através do «pão» deixou de prevalecer nos anos 80. As terras passaram a ter um valor monetário que é em parte independente do seu valor agrícola, e que é tanto mais elevado quanto elas se situam próximas de uma estrada principal ou do centro da freguesia. Quanto ao valor agrícola das explorações, os lavradores destas freguesias já não o avaliam em termos de «carros de pão» mas segundo o número de «atrelados» de milho para silagem que foram produzidos.
68Em segundo lugar, dada a reconversão agrícola em curso, a família «empreendedora» possui doravante uma organização menos complexa em termos agrícolas do que a casa «auto-suficiente» de outrora. As grandes casas de lavoura, nas quais foi efectuada a sucessão sem dividir muito a terra, continuam a dispor, em partes mais ou menos iguais, de bouças e de terras de lavradio. Em todas as casas, porém, a necessidade de ter bouças faz-se sentir menos. Já não se fazem as camas do gado com mato, pois os estábulos modernos têm uma fossa onde se acumula o estrume líquido. Só os lavradores mais velhos é que ainda fazem algum estrume com mato. Na opinião deles, «a terra também precisa de comer, não apenas de beber». Consideram assim que as bouças continuam a ser úteis, mas também reconhecem que hoje, ao contrário do passado, se pode passar sem elas.
69Não é portanto surpreendente ver aparecer famílias empreendedoras que nem sequer possuem bouças. Nas 22 casas de lavradores observadas em Lemenhe e Gondifelos, existem três casais (descendentes de lavradores abastados) cujas explorações agrícolas não têm qualquer bouça. Nestas explorações, a prioridade vai para a obtenção de terras de lavradio que sejam boas para a produção de milho híbrido e de erva, isto é, adaptadas a uma produção mais especializada. Examinemos estes três casos um pouco mais de perto:
a) Mário vem de uma casa de lavoura onde o irmão mais velho tomou a seu cargo a casa dos pais. Mário emigrou para o Brasil e para França. Quando regressa a Portugal, no final dos anos 70, vende uma terra que recebeu em partilhas na sua freguesia e compra três hectares de terras aráveis em Lemenhe a fim de se consagrar à produção do leite.
b) Manuel é o filho mais velho agricultor da casa S. e tinha-lhe sido prometida a quota-parte disponível. Mas o pai morreu de acidente sem ter feito partilhas e sem deixar testamento. Para poder ficar na agricultura, Manuel decidiu sair de casa dos pais, pedir aos irmãos e irmãs que o deixassem ficar com as máquinas e uma boa parte das terras de lavradio e construiu uma casa pequena de habitação ao lado das terras que herdou.
c) Joaquim é o filho mais velho da casa C., família de oito filhos. Agricultor experimentado, sabendo que o pai não tem terras suficientes (quatro hectares) para poder ceder-lhe terras ou «ajudá-lo» na altura do seu casamento, Joaquim tenta comprar um campo de lavradio pertencente a um dos seus tios, estabelecido em Lisboa. Para tal, pede um empréstimo a um familiar emigrado no Canadá e à família da mulher. Joaquim tem já duas vacas, que conseguiu criar graças a uma novilha que o pai lhe oferecera quando ele ainda era adolescente. O jovem casal (1977) vai morar durante sete anos em casa do pai de Joaquim e trabalhar duramente a fim de pagar a dívida; cultivam o campo que compraram e mais dois que arrendam. Constroem inicialmente um pequeno estábulo no campo comprado, mais tarde uma casa para habitação e, em 1983, pedem um empréstimo ao Estado para construírem um estábulo moderno e um silo. Em 1986, têm 18 vacas leiteiras, máquinas de ordenha, e cultivam sete hectares de lavradio, dos quais apenas dois lhes pertencem. No início de estarem casados, Joaquim e a mulher cultivavam muita batata e milho, para pagarem as rendas dos campos e para venda. A pouco e pouco, à medida que a venda do vinho e da batata se tornou menos rentável do que a do leite, diminuíram a quantidade de terra consagrada a esses produtos. Actualmente, produzem apenas o necessário ao pagamento das rendas em géneros e para terem «para a casa»3
70Interrogado sobre a ausência de bouças, Joaquim responde: «Por um lado, faz falta uma, ou até faz falta muitas. Eu não tenho, porque não herdei nenhuma. E não é das coisas que eu ia comprar primeiro, porque o que precisávamos era de lavradio. Mas já tenho dito muitas vezes à minha mulher, assim que acabarmos de pagar o campo (Joaquim meteu-se na compra de outro campo de dois hectares em 1987), e assim que aparecer uma bouça à venda, que eu possa, compro. Comprar os paus para casa, às vezes quando preciso de paus, tenho que andar a pedir, para fazer as cercas. Portanto, a bouça faz falta, até porque quem tiver muitas bouças, tem um rendimento sem despesas e sem trabalho. Os pinheiros dão muito dinheiro.» (Joaquim, lavrador de Lemenhe, nascido em 1948.)
71As bouças tornaram-se um bom investimento mas já não fazem parte, obrigatoriamente, da exploração agrícola. Tornaram-se um elemento entre outros, o que demonstra que os factores em que assenta o modo de produção agrícola se alteraram. Hoje em dia, os lavradores consideram que é preciso «muito lavradio e muitas máquinas» para se ter «poucas despesas de mão-de-obra e rendimentos suficientes».
72Em terceiro lugar, verifica-se actualmente que o facto de ter terra própria já não é uma exigência absoluta e que, apesar da propriedade da terra ser altamente valorizada, já não é considerado «baixo» arrendar terras. Durante os anos 70 e 80, a fuga dos assalariados agrícolas e dos «caseiros», para as fábricas e para o estrangeiro, contribuiu para que fossem colocadas no mercado terras a baixo preço e até terras gratuitas. Por outro lado, o pagamento das rendas em dinheiro foi substituindo progressivamente o pagamento em géneros. Como dizem certos lavradores, isso permitiu-lhes «deitar a mão» a uma quantidade considerável de terras produtivas de que tinham necessidade. Esta estratégia tornou-se mais fácil com a valorização, recentemente ocorrida, do trabalho assalariado e das trocas monetárias. Em virtude da expansão do emprego no secundário e no terciário, o trabalho por conta de outrem viu-se liberto da sua associação à indigência do jornaleiro. A pouco e pouco, deixou de ser indigno para um lavrador, ou para um membro da sua família, tornar-se «empregado» (e não o criado) de outrem, ou arrendar meios de produção.
73Entre as casas observadas em 1985, mais de metade tem formas de exploração mista. Agrupam-se da seguinte forma:
- três explorações mistas em que menos de metade da terra arável é arrendada;
- sete explorações onde o casal é proprietário da totalidade da terra que explora;
- quatro explorações onde o casal sucessor, já nomeado, é rendeiro dos pais proprietários. Em dois dos casos, os casais arrendam também terra fora de casa.
74Os casais de proprietários são todos casais cujos membros têm mais de 40 anos, e que ou herdaram a propriedade ou aumentaram uma herança familiar inicial. É o caso de Henrique E., sucessor privilegiado e rendeiro do pai até aos 38 anos, que explora 15 hectares de lavradio. E o caso de António R., que foi rendeiro do tio da mulher. Quando o tio e a tia morreram, a mulher de António recebeu três hectares de lavradio em testamento. É também o caso (se bem que um pouco diferente) de outro lavrador, o Mário, filho não-sucessor que apenas recebeu um campo nas partilhas, mas que aumentou a sua exploração depois de ter emigrado. As razões que levam estes proprietários a não arrendarem terra não são sempre as mesmas. Uns consideram que possuem lavradio suficiente para que a produção de leite seja rentável (dez ou mais vacas). Os outros, centrados numa agricultura «auto-suficiente» ou pouco mecanizada, não se podem empenhar numa produção agrícola de maior dimensão.
75Em contrapartida, entre os casais que possuem explorações mistas, os casos examinados confirmam que o arrendamento é uma forma de aumentar a superfície das terras aráveis exploradas; esta estratégia tornou-se aceitável não só para os jovens que se vão a pouco e pouco estabelecendo mas também para os lavradores abastados estabelecidos. É o caso de Jorge, proprietário de sete hectares de lavradio, que arrendou mais dois hectares a fim de poder aumentar a produção de leite. Encontramos neste caso quer jovens casais «empresários» que já herdaram ou adquiriram alguma terra mas querem explorar mais, quer lavradores grandes mais velhos que, para poderem aumentar o número de vacas leiteiras, têm que alargar a área de terras de lavradio. A pressão exterior também desempenha aqui um certo papel: por exemplo, para se obter um subsídio do Estado para a construção de uma vacaria, é preciso preencher o critério de três vacas por hectare.
76Em resumo, a agricultura dos lavradores dos anos 80 caracteriza-se pelos seguintes traços: uma produção especializada que predomina a par de uma produção periférica destinada ao autoconsumo; uma forma de exploração variada, centrada ao mesmo tempo na posse e no arrendamento do principal meio de produção (a terra); uma estrutura interna que insiste mais na exploração de terras de lavradio do que na combinação de lavradios e de bouças, de terras secas e de terras húmidas.
77Este tipo de agricultura vai conduzir a uma reorganização dos outros factores de produção. Em primeiro lugar, o factor trabalho, que outrora fazia apelo às energias humanas e animais, vai ser em parte substituído pelo factor capital. Idealmente, é preciso investir em máquinas e em infra-estruturas para evitar recorrer à força de trabalho humana. Esta estratégia reflecte uma necessidade urgente: a de dispensar a mão-de-obra assalariada, já que esta evita o trabalho na agricultura. Das casas examinadas, apenas uma (a mais rica, a que tem 15 hectares de lavradio) tem um empregado a tempo inteiro todos os dias; as outras empregam regularmente, ou esporadicamente, quer jornaleiras agrícolas algumas horas por dia, quer crianças, estudantes ou empregados do sector secundário, que vêm fazer algumas horas durante as férias ou depois do trabalho.
78Em contrapartida, aconselha-se, tanto como no passado ou mesmo mais, o desenvolvimento e o aproveitamento da força de trabalho do casal lavrador. Joaquim, antigo lavrador, comenta esta evolução da seguinte maneira: «antigamente, tínhamos que saber dirigir e acompanhar o pessoal, e hoje somos nós que fazemos tudo, que estamos ali sozinhos em cima do tractor, no meio do campo». Esta imagem do lavrador solitário e «proletarizado» que conduz o seu tractor opõe-se, aos olhos dos lavradores abastados já de idade, à imagem de um colectivo de trabalho (composto por membros da família, por criados e por assalariados) sob as ordens do dito lavrador e da sua mulher. Na ausência deste colectivo, a norma ideal define que seja o casal proprietário a «amarrar-se» ao trabalho agrícola.
79Para os casais que dirigem hoje uma exploração agrícola, é o esforço conjunto dos cônjuges que permite realizar o trabalho agrícola. O investimento em equipamentos visa não só preencher o vazio deixado pelos assalariados agrícolas mas também tornar mais leve um trabalho que incumbe por inteiro à família e que, dada a exclusão precoce da maioria dos filhos, compete cada vez mais ao casal dirigente. O significado do «trabalho mais leve» também mudou. Outrora, procurava-se aligeirar tarefas duras e penosas trabalhando em grupo e fazendo apelo a jornaleiros. Hoje, o trabalho é tornado mais leve com a mecanização da agricultura mas também se deseja melhorar os horários de trabalho. A representação ideal actual do «trabalho» preconiza um trabalho fisicamente mais leve e, de preferência, menos constrangedor do ponto de vista quotidiano (horário, férias, etc.). No entanto, a mecanização pouco alterou os horários intensivos de trabalho ou, como dizem os casais novos, «esta escravatura que obriga a estar aqui de manhã até à noite para tratarmos de tudo». De um certo ponto de vista, a produção do leite até intensificou o carácter ininterrupto do trabalho. Antigamente, depois das colheitas de Setembro, respirava-se um pouco, aproveitava-se para fazer outras coisas; por exemplo, ir até à Póvoa comprar sardinhas, para depois as salgar. Considera-se, então, que a produção do leite é uma «escravidão», e é este aspecto da agricultura que define o «verdadeiro trabalho» para os lavradores actuais. E um trabalho que está associado a um esforço e a uma responsabilidade constante. É «escravidão» no sentido em que «não se pode dizer nunca, como os empregados, “está na hora da gente se ir embora, hoje não faço mais nada, vou-me embora”». Para os lavradores, os empregados são «preguiçosos», enquanto eles próprios são «trabalhadores».
80Assim, as palavras utilizadas para descrever a ética do trabalho agrícola são as mesmas de antes mas, devido à evolução do trabalho do campo e dos grupos de referência com que os lavradores estabelecem comparações, a sua interpretação alterou-se. A escravidão já não reside nas tarefas penosas que fazem apelo aos músculos das pessoas e dos animais, mas sim no trabalho ininterrupto. Verifica-se, porém, que estes valores — a escravidão ou o trabalho incessante — continuam a ser utilizados para definir uma identidade própria, para diferenciar os lavradores dos outros grupos socioprofissionais. No contexto socioeconómico actual, onde a grande massa dos empregados ganha o salário mínimo, a comparação não é negativa para os lavradores «modernos» que têm uma produção de leite rentável. O raciocínio é o seguinte: os lavradores são «escravos» e «trabalhadores», andam sempre «sujos» e não têm horários, mas ganham três ou quatro vezes mais do que os empregados. Em contrapartida, no que se refere aos lavradores «à antiga», que têm menos de três hectares de lavradio, algumas vacas e poucas máquinas, a comparação não lhes é favorável. Neste caso, a «boa vida» está do lado dos empregados: «ganham o deles» e saem às cinco, enquanto os lavradores «à antiga» têm um rendimento em dinheiro irregular e pouco elevado apesar de trabalharem sem parar. Em suma, o novo tipo de «escravidão» é compensador, mas o antigo já não.
81A substituição do factor trabalho humano e animal pelo factor máquinas/equipamentos é, pois, essencial para se assegurar a rentabilidade e o «sucesso», relativamente ao exterior, da exploração agrícola. Duas explorações da mesma dimensão podem dar à família um modo e um nível de vida diferente consoante o tipo de factores que tiver sido privilegiado. Os dois casos que se seguem representam, deste ponto de vista, duas situações opostas:
1) Manuel S., considerado um lavrador com um bom nível de vida, ocupa-se de uma exploração mista de três hectares de lavradio inteiramente voltada para a produção de leite. Para aumentar a superfície consagrada à cultura do milho de forragem, abandonou completamente o milho «para grão» e o feijão. Cultiva apenas um pouco de batata. Para ter milho para as galinhas da casa, a mulher de Manuel colhe algumas espigas no campo de milho híbrido antes deste ser ensilado. Ajudados pelos subsídios do Estado no que respeita à produção de leite, Manuel e a mulher têm uma vacaria moderna e equiparam-se bem de máquinas agrícolas; tinham dez vacas em 1987. Em 1988, tendo ouvido falar de uma futura baixa do preço do leite, Manuel construiu uma estufa pequena a fim de começar a preparar-se para a produção de produtos hortícolas serôdios. A família tem pouco tempo livre, mas tem um carro que utiliza para visitar a família ao domingo ou ir ao mercado.
2) Abílio M., 55 anos, lavrador que explora 2,7 hectares de terra com a mulher e o filho, cultiva milho «para comer», feijão, batata, um pouco de cevada, num campo mais seco, e tem vinhas. A mulher continua a cozer o pão em casa. Têm três vacas leiteiras, mas não tiveram coragem de investir em máquinas por causa das dívidas que isso implicava. Duas das vacas trabalham nos campos e é apenas na época da lavra que se paga o aluguer de um tractor. Os filhos, ao chegarem à adolescência, não quiseram continuar a trabalhar na lavoura. Os mais velhos, um filho e uma filha, entraram para uma fábrica têxtil e os salários deles tornaram-se indispensáveis. Segundo Cândida, a mulher de Abílio, «antigamente, não havia muitas despesas. Para a semana, eu só comprava meia garrafa de azeite, um quilo de arroz, algum bacalhau, e cobria as despesas da semana com a venda de uma dúzia de ovos ou do feijão. O porco matava-se em casa. Hoje, come-se os ovos e o dinheiro do leite, depende dos meses, mas em geral não chega. Há mais despesas do que antes. Preciso do ordenado da minha filha. Dantes, era o do meu filho mais velho, agora é o da minha filha. Hoje, é preciso mais dinheiro». Abílio e Cândida estão à espera da reforma para terem algum dinheiro a mais e pensam que a exploração, tal como está, nada tem «para oferecer» aos filhos. O nível de vida desta família é considerado «remediado baixo».
82A substituição do factor trabalho pelo factor capital tornou-se pois essencial para erigir o novo «bem-estar», ou desafogo económico, do lavrador. Quem não efectuar esta substituição perde, por assim dizer, o estatuto de lavrador abastado, e transforma-se «no que faz a agricultura à antiga», «naquele que nunca mais há-de andar para a frente», e alguém que tem pouco a oferecer aos filhos em termos de futuro ligado à agricultura. Deste ponto de vista, a definição que adoptámos do «casal de lavradores abastados» — os que não têm emprego no exterior e exploram pelo menos três hectares de lavradio, sendo proprietários de uma parte destes — inclui lavradores que deixaram de ser considerados como «abastados» no contexto actual de produção agrícola «rentável» e já dependem, em termos económicos, do trabalho assalariado de um ou vários filhos.
83Para os lavradores abastados «modernos», a ambição de aumentarem a rentabilidade da exploração agrícola exerce uma pressão intensa. Mais do que o factor «não-despesa», que dominava o contexto económico antigo, é o factor «inovação» (em produtos, em técnicas, em instrumentos, tudo com vista a uma maior produção e a um preço mais baixo) que se torna o factor fulcral que condiciona os progressos ou o retrocesso da exploração familiar. Como pudemos verificar, este factor foi-se impondo lentamente. O processo não parece ter sido regido pela mecanização, mas sim pela introdução de um tipo de produção (o leite) concebido como uma produção intensiva em capital e mais extensiva em lavradios, e estimulada pela disponibilização de subsídios e de conselhos técnicos.
84Do ponto de vista da «inovação» nas casas rurais, a poupança permanece importante mas a interpretação deste valor já não é a mesma. Não se trata já de poupar evitando toda e qualquer despesa com o fito de criar «uma reserva», espécie de seguro de vida da família e do património. Aliás, os jovens lavradores consideram esta ideia ridícula e contam muitas anedotas sobre o assunto4. Hoje em dia, quando se poupa, é para fazer entrar mais dinheiro a fim de poder investi-lo logo de seguida — em novos meios de trabalho primeiro e em conforto moderno depois. Os jovens lavradores abastados consideram-se diferentes dos pais a este respeito:
«O meu pai sempre me ensinou que era preciso poupar o dinheiro, não o gastar mal gasto, poupá-lo. E eu estou de acordo que a gente deve sempre olhar ao futuro. Mas o meu pai é excessivamente poupado. Eu tenho uma visão um pouco mais larga. Uma pessoa não se deve sacrificar. Para o meu pai, o dinheiro governa. Eu acho que ele é necessário, mas que foi feito para nos ajudar e não para nos governar.» (Augusto, filho de lavradores, trabalhador familiar, nascido em 1965.)
«Tenho que admitir que isto de saber prever e orientar o serviço, vem do meu pai, aprendi com ele. Mas na administração em si, sou diferente. O meu pai não investia, ou muito pouco. Eu gosto de ir fazendo sempre as coisas, sou mais atirado. É verdade que pode sempre correr mal, mas até agora não correu nada mal.» (António V., lavrador de Gondifelos, nascido em 1945.) A mulher de António, que ouvia o marido falar, fez o seguinte comentário: «É verdade, que ele tem muito atirado, eu sou um bocado mais reservada, prefiro fazer as coisas aos poucos. (Dirigindo-se ao marido:) Tu, por exemplo, ainda agora mandaste fazer a sala. Ainda não sabes de onde vem o dinheiro e já estás a mandar fazer. Eu sou mais mansa nesse aspecto. Ele é sempre assim, o meu homem é sempre a investir. Quando eu me lembrei de pôr alfaces, mandou logo construir uma estufa pequena.» (Lucinda, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1945; observação em casa dos V., 1987.)
— O espaço de habitação: casa de lavoura ou casa limpa
85Também se investe, pois, na reconversão material e no arranjo do lar, embora estes investimentos continuem subordinados a certas exigências do modo de vida e de trabalho agrícolas. A nova norma relativa ao arranjo do lar preconiza uma certa limpeza e uma certa arrumação do espaço interior. No entanto, as condições de trabalho da mulher deixam-lhe pouco tempo durante o dia para se ocupar das tarefas de arrumação e de limpeza. As soluções práticas adoptadas para responder a estas exigências contraditórias são variáveis. Como ponto de partida da análise, vejamos o que se passa na cozinha, a divisão que outrora estava no centro da vida familiar rural.
86Algumas das famílias que fizeram obras numa casa antiga, ou que construíram uma casa nova, decidiram fazer o que se chama uma cozinha de lavoura. Esta já não é no primeiro andar como antigamente mas no rés-do-chão, e dá directamente para o pátio. É a divisão onde se desenrola a vida quotidiana. Está associada ao trabalho agrícola (nomeadamente por causa da sujidade que as pessoas trazem do exterior) e quase sempre ligada ao resto da casa por uma escada interior. Por vezes encontra-se separada do edifício principal de habitação, o que obriga os membros da família a percorrer alguns metros no pátio para lá chegar.
87Através da cozinha de lavoura as famílias procuraram conciliar duas exigências contraditórias: por um lado, o facto de a família ter de estar próxima do trabalho agrícola; por outro, o facto de ela querer afastar-se dele e de ter uma casa limpa e mais urbana, menos associada a uma profissão específica. A cozinha de Conceição e de Joaquim, jovens lavradores abastados de 34 e 39 anos, que têm um filho de nove anos e outro de seis meses, tem funções múltiplas durante o dia. Construída no início dos anos 80 com material moderno (azulejos), sem forno de pão, tem uma lareira à antiga e é aí que Conceição cozinha sempre, aproveitando a lenha das podas para acender o lume. Quando construíram a cozinha no princípio da sua vida conjugal, o casal tinha grandes dívidas por causa da compra de um campo, e Conceição não quis gastar dinheiro na compra de um fogão de lenha. Contudo, em 1987, também existem na cozinha um pequeno fogão a gás, para fazer o pequeno almoço ou aquecer um pouco de água durante o dia, e uma arca congeladora (primeira e única despesa grande efectuada ao nível da cozinha, com o objectivo de assegurar a conservação dos produtos da exploração). Na cozinha encontramos além disso uma televisão e o parque do bebé, que serve de berço durante o dia. A cozinha fica ao lado da vacaria. A porta está sempre aberta e o bebé passa lá o dia enquanto o resto da família trabalha. Preocupam-se pouco com o aspecto da cozinha: entra-se de botas, deixa-se as migalhas em cima da mesa depois das refeições e varre-se uma vez por dia. Em contrapartida, quando se sobe a escada exterior que conduz ao resto da casa, encontra-se uma sala e quartos de dormir muito bem arrumados, onde a família recolhe no fim do dia de trabalho, depois de ter jantado na cozinha e visto um pouco de televisão.
88Quer se encontre no rés-do-chão, um pouco afastada da casa, quer no primeiro andar como antigamente, a cozinha é o lugar da casa por onde toda a gente circula, a divisão onde os amigos ou os parentes se reúnem para conversarem um bocado. Em contrapartida, quando uma pessoa de estatuto elevado chega e tem de ser recebida com cerimónia, fá-la-ão entrar directamente para a sala. E se essa pessoa não corresponder a qualquer um destes critérios, será recebida provavelmente ao portão ou na entrada do pátio. Por exemplo, se nós chegássemos sem nenhuma apresentação prévia, ficávamos junto do portão. Se viéssemos da parte do presidente da junta, em geral mandavam-nos entrar para a sala. E se, com ou sem apresentação, não fosse a primeira vez que lá íamos e tivéssemos já ajudado nos campos e partilhado o trabalho quotidiano da família, os membros desta achariam natural que entrássemos no pátio e na cozinha para os ajudar, para nos sentarmos ou falar com alguém da casa.
89Também encontrámos algumas cozinhas que quase não sofreram alterações. Na casa da Olinda, já referida, ou noutras casas «auto-suficientes», a lareira e o forno do pão são no primeiro andar, numa cozinha cujas paredes se encontram enegrecidas pelo fumo. Em geral, as principais novidades são um pequeno fogão a gás, a água corrente, a luz eléctrica e a televisão. Existem também algumas casas de lavradores «empreendedores» onde ainda se faz o pão no forno e se cozinha na lareira: é assim em casa de Amélia, lavradeira de 63 anos que continua à frente da casa, bem como em muitas outras casas de lavradores reformados cuja cozinha está separada da do casal sucessor.
90Seja como for, a tendência predominante nos casais que, em 1985, estão à frente das casas agrícolas das duas freguesias, consiste em ter uma cozinha nova ou renovada, sem forno de pão e sem lareira, com um fogão de lenha e/ou de gás e azulejos laváveis a cobrir as paredes e o chão. É o caso de quinze das vinte e duas casas observadas. Das outras, duas têm cozinhas novas mas conservaram alguns elementos mais tradicionais: a de Conceição (acima descrita), que tem uma pequena lareira para cozinhar, e a de Rosa, que tem um forno e uma lareira. Esta última cozinha de lavoura data de 1975 — do início do casamento de Rosa —, do tempo em que a tia do marido (usufrutuária) ainda não estava doente e se encarregava de cozer o pão e de preparar as refeições. As cinco cozinhas restantes são, por um lado, as das três casas mais auto-suficientes, e, por outro, as de dois casais mais velhos (Margarida e Júlio, de 55 e de 70 anos; Amélia e Jorge, de 63 e 68 anos).
91Actualmente, o lugar da cozinha no espaço global da casa também mudou. O facto de a destacar do resto da casa, abrindo mais espaço no primeiro andar onde a família dorme, retirou a esta divisão da casa alguma da importância que era a sua em termos dos tempos de vida e do simbólico familiares. Isto pode parecer contradizer a análise precedente, que nos mostrava algumas famílias que passavam os seus dias na cozinha. Mas o facto de nela se passar muito tempo não significa necessariamente que a posição subjectiva e objectiva da cozinha não tenha mudado. Nas considerações que se seguem, feitas por Rosa, uma lavradeira que remodelou a sua casa em meados dos anos 70, pode constatar-se que a noção de cozinha de lavoura é acompanhada por novas representações, mais privatizadas e urbanas, do espaço ideal da família, dos espaços individuais e colectivos atribuídos aos membros da família, e da circulação entre estes espaços:
«Fui eu que fui — como é que hei-de dizer — a arquitecta, fui eu que desenhei os planos. Deixámos apenas as paredes de fora e cave lá em baixo. Antigamente, o gado era ali que ficava, lá em baixo, e a primeira coisa que fizemos foi construir a vacaria do outro lado do pátio. Aqui, em cima, havia uma sala, uma cozinha com um forno de pão e uma lareira, e tudo isso dava para uma varanda. E havia também três quartos pequeninos. Os quartos eram tão pequeninos que só lá cabia uma cama e mais nada. Nesse tempo, um dos quartos era para a tia, o outro para nós e o terceiro para os meus filhos. Antigamente, a casa tinha um quarto para os filhos, às vezes dois — um para os rapazes, outro para as raparigas. No quarto dos meus filhos, eles dormiam os dois, e o terceiro, eu tinha que pôr o berço em equilíbrio em cima da cama. Também havia a retrete ao lado da varanda. Quando fizemos as obras, aumentámos a casa de um dos lados com uma construção de cimento. Construímos uma sala, uma cozinha pequena e um quarto de banho. Há um corredor no meio da casa, a separar, e também fizemos quartos maiores. Os dois maiores são para nós e para os gémeos, e os dois mais pequenos são para a tia e c nosso filho mais pequeno. E também tenho um quarto pequeno para a roupa e para a costura. É muito melhor. Assim, quando tenho tempo, passo a ferro e coso, e quando não tenho tempo, deixo tudo lá dentro e assim não há coisas desarrumadas. Dantes, estava tudo na cozinha, ou então na varanda. Depois, como não dava jeito nenhum estar sempre a subir, e sujava-se tudo lá em cima, fizemos a cozinha de lavoura no rés-do-chão, na parte nova da casa, e foi aí que pusemos a escada interior. A outra cozinha, a de lá de cima, ainda não está pronta, mas fizemo-la a pensar que — bom, quando se faz obras, nãc se pensa só no presente, mas também no futuro. Um dia talvez venha a servir.» (Rosa, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1947.)
92A cozinha é considerada como um espaço essencial à vida familiar mas como está muitas vezes suja por causa das entradas e saídas, incomoda quando se situa no centro da casa. No entanto, é ainda reconhecida como o elemento fundador de um casal de lavradores visto que, ao planear a eventualidade de uma coabitação entre dois casais, é sempre em fazer duas cozinhas que st pensa e nunca, em nenhuma das casas observadas, em fazer, por exemplo, dois quartos de banho. Procura-se, no entanto, separar um pouco a cozinha do reste da casa, definir melhor as funções atribuídas a cada espaço e, também, criai espaço a fim de atribuir mais importância aos quartos dos filhos.
93Idealmente, então, a família rural abastada dispõe de dois lugares: de um lugar ligado ao trabalho agrícola, meio de subsistência colectivo e rentável mas considerado como sujo, e de um lugar doméstico arranjado e privado onde a individualidade é hoje mais reconhecida — um espaço limpo e arrumado, mais próximo do mundo pequeno-burguês urbano. A vida quotidiana da família desenrola-se de preferência no primeiro mas os dois espaços exis tem, separados mas próximos um do outro.
— Os tempos da vida familiar: trabalho incessante ou trabalho e lazer
94Na vida de todos os dias, os imperativos da exploração agrícola fazem com que seja difícil para os lavradores viver num mundo próximo do mundo pequeno-burguês urbano. Esta dificuldade transparece em diferentes domínios. O primeiro diz respeito, como acabámos de ver, aos espaços nos quais: se desenrola a vida familiar. O segundo refere-se à conciliação dos tempos de trabalho e dos tempos de lazer. Idealmente, a produção e a reprodução das energias humanas assentam nos seguintes factores: a actividade constante; algum tempo para comer e para descansar; algumas distracções (ver um pouco de televisão, passear de vez em quando, ir até à praia e à feira). Existem além disso certos valores urbanos que exercem hoje em dia pressões cada vez mais fortes. Por exemplo, a medicina insiste em determinadas práticas, como a obrigação de «fazer praia» para proteger a saúde das crianças. As mulheres das freguesias estudadas conversam muitas vezes sobre o problema — umas, mais reticentes, argumentando que na juventude delas as crianças gozavam de boa saúde mesmo não indo à praia, outras insistindo no facto de os médicos afirmarem que o «ar do campo» é diferente do «ar do mar».
95As condições de trabalho das famílias observadas não lhes permitem dedicar-se facilmente a outras actividades de lazer ou a ter férias. Mesmo a televisão é pouco vista (à excepção dos filhos). O serão é normalmente ocupado ou entrecortado pela ordenha e o jantar. Em certas famílias, como na de Luís e Rosa, onde é preciso levar nove vacas ao posto do leite de manhã e à noite, janta-se mais cedo com os filhos e trata-se do gado depois, por vezes até às dez da noite. Nas famílias em que a ordenha mecânica é feita em casa, faz-se o trabalho em primeiro lugar e janta-se depois, por volta das nove horas. Nestas famílias, vê-se um pouco de televisão durante a refeição da noite.
96O ritmo de trabalho imposto pela produção do leite adapta-se mal aos horários de descanso da cidade, onde se vê o telejornal na televisão e os programas da noite depois das oito e meia. Adapta-se melhor aos hábitos rurais, onde as pessoas se levantam e se deitam cedo e onde, no Verão, se faz a sesta ao princípio da tarde, depois do almoço e antes dos trabalhos da segunda parte do dia. As crianças pequenas e os adultos mantêm este hábito. Mas os adolescentes têm quase sempre um horário um pouco diferente do dos pais: vêem televisão até mais tarde, deitam-se depois deles apesar dos protestos que isto suscita, e são os últimos a levantar-se de manhã.
97Quando fazem a sesta, as pessoas evitam subir para os quartos, para não desarrumar. Luís deita-se em cima de uma saca na adega. Em casa de Fátima e de Mário, outro casal de lavradores de Lemenhe, foi instalada uma cama grande numa arrecadação ao lado da cozinha de lavoura.
98O horário de trabalho e de repouso diários dos lavradores adultos mudou portanto pouco. Quanto ao domingo, é preciso, tal como outrora, que as pessoas se afadiguem um pouco para alimentarem e ordenharem as vacas. Vai-se à missa, trata-se do gado, prepara-se o almoço de domingo, dorme-se a sesta e, de vez em quando, sai-se para dar uma volta de automóvel, para visitar a família ou um lugar da região (por ocasião de uma romaria, ou porque existe um local de peregrinação tradicional, etc.). As mulheres aproveitam por vezes para lavar roupa, limpar ou coser, pois têm o domingo «para elas, se for preciso». Verifica-se, contudo, que os casais mais novos fazem um esforço considerável para conseguirem produzir um tempo de lazer um pouco diferente. No Verão, por exemplo, há casais novos que vão frequentemente à praia. Dizem gostar de ir à Póvoa, à praia, e esforçam-se por lá passar uma grande parte do dia.
99As soluções dependem em grande medida do tipo de grupo doméstico no qual o jovem casal está inserido. Nas famílias múltiplas, pode estabelecer-se um protocolo de rotatividade. Por exemplo, na família Rodrigues (onde três casais de gerações diferentes se entreajudam), no dia em que os pais vão à praia, o casal mais novo trata de tudo e vice-versa. Em 1987, quando já tinha um filho de um ano, o casal mais novo sugeriu que se fizesse uma rotatividade do tipo «férias». Assim, durante quinze dias seguidos, o casal mais novo foi todos os dias à praia enquanto o casal mais velho tratava do gado de manhã e de lhe dar de comer durante o dia, e nos quinze dias seguintes, coube ao casal mais velho ir à praia. O avô e a avó, que ainda são vivos e nunca tiveram férias, encolhiam os ombros com ar resignado. Como já não dirigem a casa, já não lhes compete decidir como é que a família organiza o seu tempo de trabalho e de lazer. Não aprovam a nova prática mas dizem ter optado poi não dizer nada.
100As soluções observadas nem sempre são homogéneas mas mostram que, na prática, as famílias tentam hoje defender alguns «tempos livres» fora de casa para o casal ou para a família nuclear. Em casa dos Correias, dado que o casal mais velho não se sente suficientemente em forma para tomar conta do gado mas tendo o médico insistido para que um dos filhos (4 anos, de saúde frágil) fosse à praia, João (lavrador de Lemenhe) decidiu mandar a mulher e os filhos dez dias para a praia e tratar ele sozinho do gado durante esse tempo. Em contrapartida, em casa de Joaquim e de Ermelinda, um outro casal jovem, o problema foi resolvido de outra maneira: Joaquim colocou arame electrificado à volta do campo junto ao estábulo e, depois da ordenha, as vacas são aí deixadas à solta; a comida fica na vacaria, e no exterior há um bebedouro. Ao domingo organizando-se desta forma, vão todos à praia — o pai, a mãe e os três filhos.
101A maior parte dos casais cujos membros têm mais de 40 anos não pensam sequer neste tipo de estratégia familiar a fim de aumentarem os tempos livres em família dentro ou fora da aldeia. Muitos não têm carta de condução Fátima e Mário (nascidos em 1938 e 1934), por exemplo, nunca saíam nem tinham férias. Ao domingo, depois da missa, trabalhavam. Fátima aproveitava para arrumar a casa e Mário para tratar do gado. Depois de almoço, Fátima cosia ou dormia um pouco; Mário também dormia, consertava algumas coisas em casa ou ia sozinho a pé ver um amigo ou até ao café. De vez em quando nos feriados, ou no dia da primeira comunhão de uma das crianças da família ou de um vizinho, iam juntos a casa de familiares ou a casa dos ditos vizinhos De vez em quando, saíam sozinhos ou juntos para irem a Famalicão à feira oi fazer compras, mas mesmo estas saídas eram pouco frequentes porque havia um merceeiro ambulante que passava regularmente pela porta deles. Foram os filhos adolescentes, a Vanessa (aluna do liceu) e o Augusto (trabalhado: familiar agrícola), que, à força de insistirem, conseguiram convencê-los a fazer uma viagem com a qual a mãe sonhava desde sempre: visitar o santuário de Fátima. Os pais não gostavam nada da ideia de deixarem a exploração «sozinha», «sem direcção». Porém, em 1986, aceitaram finalmente ir (a Fátima, de camioneta) enquanto os dois filhos ficavam e tratavam de tudo. No ano seguinte, repetiram a experiência, e voltaram a ir de férias durante três ou quatro dias.
102Ao tentarem promover este tempo de «lazer» junto dos pais, os filhos de Fátima e de Mário contribuíram para a produção de uma nova concepção global dos tempos de trabalho e de lazer em casa. Em 1985, Manuel exigia que o filho Augusto trabalhasse ao domingo de manhã depois da missa. Do ponto de vista de Augusto, um «bom filho» deve sempre ajudar, é uma obrigação até, e sentia-se pouco à vontade para ficar sentado sem fazer nada ou a descansar enquanto o pai trabalhava. Muitas vezes, sentia-se obrigado a fazer tarefas agrícolas durante uma boa parte do domingo, o que o aborrecia; apetecia-lhe ter mais liberdade e fazer com que o pai percebesse o seu ponto de vista e fosse menos severo. Apoiado pela irmã e pela mãe, começou pois a dizer ao pai que trabalhava ao sábado mas não ao domingo.
103Em 1987, o assunto já estava resolvido, e Augusto contava a propósito disto: «O meu pai obrigava-me a ir à missa e a trabalhar ao domingo. Agora já não é assim, é raro que me mande fazer qualquer coisa hoje em dia... Vou à missa porque me apetece, e depois vou-me embora. Ele, às vezes, ainda diz que é preciso fazer isto ou aquilo. Mas eu, não faço. Ao domingo, uma pessoa trata das vacas, vai à missa e depois fica livre. Raramente saio de Lemenhe, mas é o meu tempo livre. Ele agora já percebe.»
104Insiste-se portanto mais, em termos ideais e na prática, no lazer individual (dos solteiros) e da família nuclear (casal/casal com filhos), e não apenas nos tempos livres da família alargada (festas da família). Simultaneamente, o factor «actividade permanente» é visto com outros olhos: por muito que o facto de se trabalhar com afinco permaneça um elemento ideal da ética da vida camponesa, já ninguém deseja que o trabalho constitua a própria definição da vida. A pessoa afadiga-se em função de um objectivo específico (a rentabilidade da exploração), tendo o trabalho deixado de ser um objectivo em si mesmo que prevalece em todas as ocasiões, um princípio geral e rígido de orientação da vida familiar. As exigências da exploração agrícola não permitem grande margem de liberdade mas deseja-se que pelo menos uma parte do tempo, mesmo ínfima, seja pensada como um tempo livre em que as pessoas podem «passear» um pouco e «ficar livres».
— Os laços com a agricultura: amarrar ou motivar
105Se o facto de se trabalhar muito é proposto como um meio e não como um fim em si da dinâmica familiar, significa isso que já se não deve produzir «a ligação» à agricultura, à casa? Tal como o acesso à sobrevivência e a herança a longo prazo, o trabalho incessante era, na casa de lavoura auto-suficiente, um dos principais factores da produção de laços, de «amarras», que permitiam assegurar o futuro da casa. Além disso, a autoridade paternal podia ser aplicada com violência quando esses factores não chegavam para produzir amarras fortes à casa e à lavoura.
106Actualmente, o conceito de «amarrar» é muitas vezes utilizado pelos casais de lavradores mais velhos, mas é-o mais raramente pelos mais novos. Todavia, vimos que João, lavrador de Lemenhe acima referido, estava desejoso de ver o filho Joaquim abandonar a escola, receando que de outro modo já não fosse possível «amarrá-lo ao trabalho agrícola». Significa isto que os laços com a agricultura se produzem mal ou menos facilmente do que antigamente?
107De facto, as características da agricultura e da sociedade semi-industrial contemporâneas já não promovem uma ligação fácil à casa agrícola. A garantia de trabalho na casa ou de uma subsistência a longo termo contribuem menos do que outrora para a produção dessa ligação, dado que a sobrevivência económica se associa actualmente a uma pluralidade de oportunidades profissionais e de emprego. Mesmo aquele que «fica na casa» pode sempre tornar-se independente um dia se quiser, e fá-lo-á sem ir até ao outro lado do mundo, «levado para longe de casa», como se dizia antigamente dos emigrantes.
108Em contrapartida, o direito à herança é ainda considerado como tendo uma certa importância, em virtude da valorização económica das terras na região. Mas a herança privilegiada, tal como o estatuto de sucessor privilegiado, entram em choque, no universo sociocultural actual, com a norma hoje em dia admitida da igualdade absoluta dos filhos. Os lavradores continuam a defender, em termos ideais, a sucessão destinada a garantir a continuidade da exploração familiar, e a lei permite-lhes dispor livremente de um terço da herança. No entanto, já não se está no contexto dos anos 40, onde se defendia a autoridade e os direitos dos mais velhos. Hoje, os lavradores evitam exprimir-se em termos de cedência da quota-parte, mesmo quando a estratégia deles consiste em privilegiar, ao nível dos meios de produção, o filho ou a filha «que fica em casa». É preciso agir com cuidado para não suscitar um sentimento de injustiça nos outros filhos. Para tal, procede-se à partida como se ninguém viesse a ser privilegiado e depois, graças a uma negociação progressiva, tenta-se produzir apesar de tudo uma sucessão que assegure a continuidade da exploração agrícola.
109Neste contexto de produção da sucessão, o estatuto do filho que permanece é mais incerto. No passado, a herança privilegiada podia tardar mas estava prometida e era devolvida em dado momento, quer na altura do casamento do sucessor escolhido, quer na altura da reforma ou da morte dos pais. Hoje em dia, as pessoas hesitam em privilegiar abertamente um dos filhos, mesmo quando ele é reconhecido como o futuro agricultor da família. Ora, o facto de o herdeiro reconhecido não ter a certeza de ser ajudado contribui pouco para «segurá-lo», isto é, para produzir uma certa ligação da parte dele.
110Resta a dedicação ou a paixão pelo trabalho agrícola como possível factor de produção de laços. Apesar do peso de novos valores como a educação e o tempo livre, os lavradores podem insistir bastante no trabalho agrícola dos filhos sem provocar reacções críticas por parte da comunidade. A este nível, só correm o risco de ir contra as expectativas locais quando tiram da escola uma criança considerada como «muito inteligente» nos estudos. É o caso de Daniel, lavrador de Lemenhe, cuja filha única era muito boa aluna, e que decidiu que ela ia «ficar em casa» assim que acabou a escolaridade obrigatória (que era de seis anos em 1985). As outras famílias da freguesia não aprovaram a atitude dele, pois essa filha podia, segundo elas, «ter seguido uma carreira» (e portanto, no contexto social actual, adquirir um estatuto superior ao de lavrador). Daniel responde a estas críticas dizendo que ela irá ganhar mais dinheiro com a exploração agrícola do que numa «profissão».
111Tendo em consideração o novo valor da «vocação», isto é, a vontade individual em ter uma profissão ou um modo de vida específicos, os lavradores advogam, em termos ideais, a produção de laços com a exploração agrícola familiar através de dois factores principais: a «dedicação ao trabalho» e o «gosto» pela agricultura: «O futuro dos meus filhos, é conforme eles quiserem. A gente, gostava que um deles ficasse aqui connosco, que ele se dedicasse ao trabalho e que não fosse muito “senhor”. Mas é preciso que ele queira. É preciso ter gosto por isto, paixão por isto...» (Conceição, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1952, dois filhos.)
«Devemos deixá-los seguir a vontade deles. Se não quiserem ficar em casa, também não os podemos obrigar. Mas se não forem muito espertos na escola, então também não vale a pena andarem a estudar. Claro, a gente quer que um deles fique em casa, se tiver gosto por isto.» (Conceição, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1955, dois filhos.)
112Os pais lavradores insistem bastante na dedicação ao trabalho, com o fito de tentar impedir a fuga dos filhos para outros modos de vida, para horários tardios devidos ao desejo de ver televisão, para os tempos livres, para os valores da pequena burguesia urbana. Em casa e nos campos, o filho que se gostaria de ligar à exploração agrícola é constantemente solicitado e mantido activo: «Francisco, arruma isso», diz-lhe João, o pai (ele corre a arrumar; «Vamos embora, Xico» (ele salta imediatamente para o atrelado). De Tomás, o filho de nove anos, Conceição diz que lhe estão sempre a dar coisas para fazer e que ele faz já um pouco de tudo; dá de comer ao gado, ajuda a mãe a cortar erva, vai fazer recados, etc. No campo, pudemos observar o que fazem as crianças dessa idade. Uma tarde, quando a família de Francisco (a tia-avó, a mãe e o pai, o Francisco e o irmão), ajudada por uma jornaleira e eu mesma, estava a desfolhar no campo o milho «para grão», a criança de nove anos já colaborava no trabalho colectivo ou encarregava-se sozinho de certas tarefas. Desfolhava as espigas que os adultos deixavam esquecidas ou trabalhava ao lado deles; o pai chamava-o amiúde para que ele fosse buscar os cestos vazios. Quanto ao irmão de cinco anos, tentava de vez em quando desfolhar uma maçaroca ou brincava por perto. Ao fim da tarde, quando tirei uma fotografia do grupo que estava a trabalhar — incluindo o Francisco —, João, o pai, disse com ar de troça: «É para o jornal? Olhe que agora diz-se que as crianças não podem trabalhar!» E a mulher retorquiu: «Ó, não podem trabalhar? É a trabalhar que eles aprendem, vão fazendo as coisas a pouco e pouco, e a gente já não os obriga como antigamente.»
113Na ausência de uma carreira que leve à profissão de agricultor passando por uma escola, a formação e os laços com a agricultura são produzidos pela prática do trabalho agrícola. Se se deseja evitar «obrigar» os filhos, impondo-lhes a autoridade paternal de modo violento, convém insistir na prática do trabalho e na sua colaboração o mais cedo possível. Assim produzem-se competências específicas mas também um certo «gosto» pela profissão. Com efeito, os filhos de lavradores que frequentam a escola primária, mas que ao mesmo tempo trabalham e têm responsabilidades agrícolas em casa, consideram o mundo do campo bem mais interessante que o mundo da escola. Descobrem máquinas, maneiras de fazer, são encorajados a serem autónomos na execução de determinados trabalhos. Com nove anos, Tomás constrói as suas gaiolas de pombos sozinho e é capaz de dar de comer ao gado se for preciso. De facto, a atracção por outros valores e pelo mundo urbano só se acentua no final da escola obrigatória, quando as crianças saem da freguesia para frequentarem o ciclo preparatório ou as escolas secundárias de Famalicão. É pois mais fácil produzir uma vocação para a agricultura quando se começa cedo. Com nove anos, Tomás e Francisco afirmavam já com firmeza que queriam ser lavradores e ficar em casa. Os dois completaram o ensino secundário nos anos noventa. Depois, Tomás manteve a sua vocação e optou pela profissão de lavrador; Francisco continuou a estudar.
114Paralelamente ao trabalho, que mergulha rapidamente a criança na aprendizagem das tarefas e das responsabilidades ligadas ao trabalho agrícola, o «gosto» é estimulado pela participação nos benefícios da exploração. Outrora, isso começava mais tarde: por exemplo, deixava-se o futuro herdeiro jovem adulto semear um «campo» e vender a colheita do seu campo. Hoje em dia, determinadas práticas destinam-se a transmitir mais cedo esse «gosto» pela agricultura. Assim, os pais de Francisco decidiram dar a cada um dos filhos um mealheiro que é alimentado com o dinheiro proveniente da venda dos coelhos; as crianças têm o dinheiro debaixo de olho, e Francisco já decretou que ele há-de servir um dia para comprar um carro. A mãe considera que isto dá aos filhos o gosto pelo dinheiro e pelos coelhos. Noutras alturas, oferecem-se bens aos filhos — uma bicicleta, por exemplo — quando eles pedem. Geralmente, os filhos das famílias «empreendedoras» têm um acesso fácil a este tipo de bens.
115Em resumo, se bem que a dedicação ao trabalho não possa constituir a própria definição da vida, permanece apesar de tudo um factor fundamental de uma estratégia que procura suscitar o gosto pela agricultura por parte de um sucessor. À primeira vista, o discurso dos lavradores (que preconiza o respeito pela vocação e pelos estudos) parece contradizer a utilização deste factor. Verifica-se, no entanto, que a produção de laços com a agricultura é difícil de realizar e que os lavradores não podem desprezar este factor no contexto socioeconómico e cultural actual. Associado a uma certa autonomia e a recompensas pecuniárias ou estatutárias (por exemplo, não ir à escola no dia de ensilar o milho), a dedicação ao trabalho agrícola produz um estatuto de filho de lavrador que goza de um certo prestígio no contexto local. Em resumo, trata-se de uma estratégia de estímulo da motivação, ou de um despertar da vocação, que visa a constituição do gosto pela agricultura e vem substituir a estratégia do «segurar», mais assente em certas «amarras» patrimoniais (receber doações de património, cumprir as obrigações inscritas nas escrituras de doação, arranjar o casamento).
— Sucessão privilegiada ou sucessão assistida?
116Como acabámos de ver, a sucessão é desejada e os lavradores fazem o possível por produzi-la. No entanto, esta já não tem o carácter obrigatório de outros tempos. «Gostava-se» que um filho ficasse, mas admite-se a possibilidade de uma descontinuidade:
«Se os meus filhos quiserem estudar, então vão à vida deles, empregam-se. Se eu vir que eles gostam deste ambiente daqui, que se chegam mais a este destino, então eu faço por eles, por aumentar o que tenho. Mas se eu vir que eles são mais fidalgos do que eu, que se encostam à sombra, eu abandono e mais tarde, hei-de fazer só o que precisar para mim e para a minha mulher.» (João, lavrador de Lemenhe, nascido em 1947.)
117Uma vez produzido um certo gosto pelo trabalho na exploração agrícola, a produção da sucessão exige a transmissão ao sucessor de uma parte ou da totalidade dos meios de produção. Antigamente, tentava-se equilibrar diversos factores: a transmissão em vida dos pais, a precaução, o «segurar» do herdeiro privilegiado. O facto da exclusão dos filhos não-sucessores intervir tardiamente permitia ter em conta o factor da precaução sem muito esforço: podia adiar-se um pouco o momento da transmissão sem receio de ver os herdeiros irem-se embora. Caso fosse necessário, «segurava-se» o herdeiro com uma doação, mas não era preciso ceder-lhe todo o poder da casa.
118Hoje, existem novas contingências: por um lado, aceita-se cada vez menos a exclusão adiada de um filho, isto é, que ele seja obrigado a trabalhar na exploração agrícola até uma idade avançada. Por outro, o meio por excelência para «segurar» o sucessor antigamente — a doação com atribuição da quota-parte disponível, o que permitia ligar o herdeiro à casa — arrisca-se mais do que outrora a provocar conflitos familiares, conflitos que a autoridade paterna, sendo mais negociada, pode ter dificuldade em controlar. Por consequência, em vez de se «segurar» o sucessor, prefere-se pensar em «ajudá-lo» a fim de encorajá-lo a fixar-se na casa.
119Os factores e as contingências que mencionámos são tidas em consideração em todas as famílias, bem como o número, o sexo, a «vocação» e os conhecimentos dos filhos, o que faz com que as práticas adoptadas variem consideravelmente. Podemos analisar alguns casos para compreender as práticas que se constroem em função das variáveis ideais (precaução, partilha do capital socioeconómico em vida dos pais mas de preferência mais para o fim da vida) e de outras que se prendem com o contexto familiar (características dos filhos, interacções familiares mais ou menos conflituais).
120Vejamos em primeiro lugar as práticas de transmissão levadas a cabo pelos casais compostos actualmente por lavradores de idade mais avançada, e que se formaram no final dos anos 50 ou no decurso dos anos 60. Todos esses lavradores são oriundos de casas de lavoura abastadas onde a herança preciputária foi praticada, por vezes através de uma doação parcial aquando do casamento de um herdeiro masculino, por vezes mais para o fim da vida activa dos pais, privilegiando um ou dois herdeiros masculinos por ocasião das partilhas. Na Casa F., foi privilegiado o filho mais velho (28 anos na altura) por doação da quota-parte disponível no momento do seu casamento em 1957 (com a filha de um lavrador que exigia a quota-parte disponível para o genro). O pai tinha então 50 anos, e só fez as partilhas dez anos mais tarde. Durante esses anos todos, o filho fazia uma parte das terras da casa, o pai outra parte. Os dois casais tiveram desde o início uma economia e cozinhas separadas no interior da mesma casa, exactamente como a geração anterior.
121Na casa dos Monteiros, foi cedida a quota-parte disponível ao filho mais velho (30 anos na época) na altura do casamento dele, em 1963, com a filha de um lavrador vizinho muito rico. O pai do noivo tinha então 56 anos, mas recusou-se a partilhar a gestão da casa. Até à morte do pai alguns anos mais tarde, o filho e a mulher viveram «em conjunto» com os pais, que os alimentavam, os vestiam e lhes davam algum dinheiro. Quando o pai morreu, o filho herdeiro comprou à irmã, já casada, a parte legítima que tinha recebido em terras. O outro filho da família, considerado como menos competente que o seu irmão mais velho, foi deserdado quando «se juntou» com uma operária pobre.
122Na «Casa Pinheiros», onde havia onze filhos, a sucessão foi difícil de organizar. O pai, Francisco, quis privilegiar os três filhos mais novos que tinham ficado em casa até muito tarde e escolheu o momento das partilhas para o fazer. Nessa altura, só havia três filhos e duas filhas em casa, tendo o mais velho desses filhos 35 anos e o próprio Francisco 72 anos já. Júlio, o filho mais novo, foi o que acabou por ficar na casa e teve a sorte de ser nomeado herdeiro da casa e das terras mais próximas desta quando se quis casar, em 1962. A estratégia deste pai difere da do seu próprio pai que, tendo tido quatro filhos, arranjou um casamento excelente para Francisco, favoreceu o segundo filho quando este se casou e, segundo os descendentes, «empurrou» os outros para longe de casa (emigraram para o Brasil).
123Os processos através dos quais três lavradores obtiveram a gestão e a propriedade da exploração em cada uma destas casas pouco contrasta com as tendências que observámos nos anos trinta e quarenta. Os pais privilegiam a transmissão do património em vida e de preferência mais para o fim da vida, procuram «segurar» o herdeiro na altura do casamento deste ou na altura das partilhas, e tendem ainda a criar um estatuto privilegiado para os filhos mais velhos. A estrutura do grupo doméstico, o seu ciclo de vida, influi também consideravelmente nas estratégias de transmissão. Se se tiver um ou dois filhos, é mais fácil privilegiar e «segurar» o sucessor quando este se casa. Se se tem muitos, o problema é mais delicado: casas há que, impondo a autoridade paternal, optam pela estratégia do «sucessor escolhido» apesar dos ressentimentos que isso levanta e sem ter em consideração a situação dos outros herdeiros. Outras há, como a «Casa Pinheiros», que já adoptam uma estratégia mais lenta: adia-se o problema, obrigando assim os mais velhos a encontrarem uma solução (casamento com uma mulher rica, o estabelecimento no exterior com uma pequena ajuda da família) para tornar menos dolorosa a escolha «daquele que fica» e que, no contexto desta estratégia, tem tendência para ser um dos filhos mais novos.
124Por outras palavras, a precaução, o «segurar» do herdeiro e a transmissão em vida dos pais continuam a ser os principais factores de produção de uma sucessão privilegiada, num contexto (anos 50, princípio dos anos 60) em que a exclusão tardia dos filhos e a ligação a uma casa auto-suficiente não são ainda postas em causa.
125Se analisarmos agora os processos através dos quais os casais mais novos adquiriram ou estão em vias de adquirir a gestão e a propriedade de uma exploração, verificamos que se insiste muito no factor precaução e na prática da transmissão em vida dos pais e que se insiste menos, quer em termos ideais quer na prática, na necessidade de «segurar» o sucessor através da estratégia de doação da quota-parte disponível. Hoje em dia, liga-se o sucessor à agricultura desde a infância, estabelecendo estímulos diversos e inculcando-lhe o gosto pelo trabalho agrícola, mas dá-se uma «ajuda» quando ele começa a ter a seu cargo a exploração. Os casos que se seguem revelam-nos esta tendência:
126a) Joaquim, nascido em 1957, é o filho mais velho de Emídio, lavrador que tem um filho e duas filhas. Joaquim gosta muito da agricultura e nunca quis estudar. Estava combinado entre todos que Joaquim devia suceder a seu pai e ficar à frente da exploração. Em 1980, quando Joaquim tinha 22 anos, o pai adoece e morre. Não dá ao filho a quota-parte disponível mas deixa-lhe algum dinheiro para que ele possa pagar às duas irmãs as partes legítimas delas na casa de habitação e no eido. Quanto às terras, estas serão divididas e José só conseguirá ficar, pagando-a em dinheiro, com a parte legítima de uma das irmãs no campo maior da casa. Em terras de lavradio, a sua exploração já só tem metade do tamanho da do pai e, para aumentá-la, José aluga dois hectares de terra de lavradio.
127b) Manuel é o quarto de cinco filhos (uma rapariga e quatro rapazes) de José e Carolina, lavradores grandes. Já examinámos a sua história: Manuel é o único filho que os pais conseguiram, um pouco contra sua vontade aliás, «prender» à casa no fim da escolaridade obrigatória. Em 1984 (aos 23 anos), Manuel quis casar-se e combinou com o pai ficar com uma parte da exploração a seu cargo. Sendo esta muito grande, e tendo a mãe herdado recentemente outras terras, os pais não levantaram qualquer obstáculo a um acordo. Manuel tornou-se pois rendeiro da família, com uma economia e uma cozinha à parte, ao mesmo tempo que continuava a utilizar as máquinas agrícolas da exploração. Quanto à possibilidade de lhe dar a quota-parte disponível um dia, o pai pensa que «hoje em dia isso já não se faz», mas conta «ajudá-lo de outra maneira». Segundo ele, há muitas maneiras de ajudar o filho que permanece na casa. Decidiu, por exemplo, dar-lhe máquinas novas e dinheiro. (O pai de Manuel, que era o filho mais velho da família, foi o herdeiro privilegiado dos pais dele, que lhe deram a quota-parte disponível quando se casou, tendo o outro rapaz da família emigrado para o Brasil nos anos 50).
128c) Manuel é o filho mais velho de uma família de oito filhos e foi sempre considerado o «lavrador» da família. Dois dos seus irmãos emigraram para França nos anos 60, e um terceiro, carpinteiro de profissão, ficou solteiro e vive em casa. O pai tinha prometido dar a Manuel a quota-parte disponível, mas nunca deu seguimento a esta promessa. Os outros filhos não concordavam com a ideia e o pai, herdeiro privilegiado que suportou durante toda a vida o ódio de um irmão mais novo (que veio a ser pequeno lavrador e que morava em frente) não conseguia decidir-se a fazer as partilhas. Morreu sem as ter feito, se bem que o filho Manuel se tivesse encarregado sempre com ele do funcionamento da totalidade da exploração. Mas o pai tinha apesar de tudo «ajudado» Manuel durante os últimos anos, dando-lhe campos para semear e dinheiro. Depois da morte do pai, Manuel foi o rendeiro da mãe durante alguns anos, depois casou-se e levou a mulher para casa da mãe. Começou-se então a discutir as partilhas. Como ele achava que, se herdasse a casa/edifício, ficava com poucas terras de lavradio, e que ia ser mais difícil (e mais caro) comprar terras do que construir uma pequena casa de habitação, Manuel negociou com os irmãos e irmãs uma herança em terras de lavradio e em máquinas agrícolas (o pai tinha «dito» que as máquinas seriam para Manuel). Ficou também com o irmão solteiro a seu cargo e explora o campo que este herdou. Os filhos partilharam entre todos o encargo com a mãe.
129d) José Alberto, nascido em 1974, é filho de Alberto e de Margarida, lavradores grandes. Tem uma irmã dois anos mais velha do que ele. Nenhum deles quis estudar, e José Alberto afirma que quer vir a ser agricultor e ficar em casa. Diz à irmã que é ele quem vai ficar na casa e ela, que declara preferir o trabalho doméstico ao trabalho no campo e não querer ser lavradeira, não o contradiz. Quanto ao futuro, os pais pensam também eles que vai ser José Alberto a ficar em casa como sucessor e contam dar-lhe dinheiro para ele pagar as tornas à irmã. Mas acrescentam que há também lugar para a filha em casa, no caso desta querer aí viver ou mandar construir uma casa.
130e) Paulo, nascido em 1963, é o filho mais novo de Manuel e de Joaquina, lavradores grandes que têm um filho mais velho deficiente, uma rapariga e dois rapazes. Em meados dos anos 70, Manuel quis que um dos dois filhos mais novos fosse estudar e que o outro se dedicasse ao trabalho agrícola. Como os filhos não se decidiam, tomou ele a decisão de «pôr os dois na lavoura». Jovens adultos (18 e 20 anos), os dois filhos quiseram que o pai lhes cedesse a gestão das terras, mas este recusou. O mais velho dos dois irmãos decidiu emigrar (para o Canadá), o mais novo (Paulo) hesitou e acabou por ficar. Preocupado com a ideia de que Paulo pudesse querer ir embora, Manuel dá-lhe então mais responsabilidades na gestão da exploração. Seis anos depois (1987), entrega a exploração a Paulo para que este seja seu rendeiro. O contrato de rendeiro define a renda dos pais, mas não estipula mais nenhuma obrigação no que a eles se refere. Quanto às partilhas, Manuel diz que ainda está à espera de ver o que é que o filho emigrado quer fazer. Se este quiser regressar a casa, Manuel pensa que os dois rapazes mais novos poderiam formar uma «sociedade» agrícola entre ambos e ficar ambos com a propriedade da casa e da terra. Quanto à filha (professora primária), Manuel mandou construir uma casa, e esta e a terra à volta constituirão a herança dela.
131Uma ideia nova — a da «sociedade» criada por dois irmãos herdeiros — começa a surgir no meio dos lavradores. O primeiro exemplo de sociedade deste género surgiu numa freguesia vizinha de Gondifelos. Hoje em dia, já existem mais famílias que optaram por esta solução. Em Gondifelos, na Casa dos Sequeiras, grandes lavradores com cinco filhos — dois rapazes e três raparigas —, o pai efectuou as partilhas no fim da vida. As raparigas «deram um empurrãozito» para que os dois rapazes pudessem ficar com a maior parte da exploração, e os dois irmãos constituíram uma sociedade. Este exemplo, que data do princípio dos anos 80, tornou-se uma referência suplementar para os lavradores: no caso de se entrever mais do que um sucessor potencial, encara-se como estratégia possível, para não se «dividir a exploração», a constituição de sociedades entre irmãos.
132O ideal do lavrador em termos de sucessão mudou pois um pouco. Define-se ainda, em termos ideais, uma sucessão de herdeiros masculinos que não divida muito a exploração agrícola. Advoga-se o acautelamento na transmissão da gestão e da propriedade, e uma transmissão pensada pelos gestores actuais. Todavia, a ideia da continuidade da casa enquanto conjunto de recursos simbólicos e económicos começa a atenuar-se. E a continuidade da rentabilidade económica da exploração que surge em primeiro lugar, enquanto a casa-habitação, principal símbolo no passado do poder económico e social da família, passa um pouco para segundo plano. Acontece, hoje, os filhos proporem partilhas nas quais a casa é considerada como separada da exploração agrícola. Assim, na casa da Fonte, de grandes lavradores com oito filhos, o pai (80 anos) acha que o único filho (33 anos) que ficou na agricultura, e que é hoje o rendeiro da família, devia ficar na casa-habitação para que esta «não perca o nome que tem». Os seus filhos pensam, pelo contrário, que o filho rendeiro podia ficar na agricultura mas abdicar da casa-habitação, e um deles — um economista que vive na cidade — gostaria de herdá-la.
133Não é somente por causa dos valores urbanos, como os deste filho, que se efectua uma distinção entre o valor simbólico da casa familiar e o valor económico da exploração agrícola. Como vimos no caso de Manuel S. (lavrador de Gondifelos que falhou uma herança privilegiada através da quota-parte disponível), pode ser mais importante, para assegurar a rentabilidade da exploração, abandonar a casa paterna do que ficar com ela, pois uma casa com poucas terras já não garante o estatuto de lavrador «empreendedor».
134Esta alteração ao nível do valor da «casa» é acompanhada por novas interpretações dos factores de produção da sucessão. Dado que a sucessão é um processo que se deve basear na concordância e na negociação entre membros da família e não na autoridade e na vontade dos pais, aconselha-se a produção da sucessão através de meios outros que o «segurar» do sucessor por doação. Em particular, é preciso reduzir mais cedo a dependência social e económica do sucessor agrícola, fazendo-o participar dos lucros e dos benefícios da exploração; é necessário adoptar um procedimento menos formal para transmitir os meios de produção ao herdeiro — pode ser-lhe dado dinheiro, por exemplo; é mais importante do que outrora obter o acordo de todos os herdeiros, mesmo que isso acarrete períodos de confrontação e de negociação. Em resumo, é preferível assistir materialmente e moralmente o sucessor do que privilegiá-lo.
135Os resultados finais desta nova produção da sucessão nem sempre são muito diferentes dos que se obtinham no passado mas são mais diversificados: encontram-se herdeiros que vão receber a exploração agrícola quase intacta, e outros que serão parcialmente privilegiados com a concordância dos outros filhos. Mas também temos sucessores que apenas receberam uma pequena «ajuda», ou irmãos que foram privilegiados em conjunto a fim de formarem uma sociedade. Por outro lado, nota-se, em geral, uma maior tendência para adiar todo o problema da transmissão da propriedade e para tomar as decisões finais apenas no momento das partilhas no fim da vida dos pais, ou até — dado que é mais difícil conciliar os interesses de todos — uma tendência no sentido de partilhas póstumas, negociadas pelos próprios sucessores.
136Esta diversidade tem a ver em nossa opinião não com a ambiguidade dos valores mas com uma regulação menos normativa da vida familiar dos lavradores. A sucessão enquanto finalidade continua presente mas as relações familiares actuais não encorajam a imposição de soluções autoritárias, definidas à partida em função dos interesses do grupo no tempo. Nas famílias de lavradores, é pois cada vez mais aceite que haja uma variedade de modelos de sucessão aos quais se pode aderir.
— O lugar da criança
137Neste contexto, como é que são encaradas as normas de procriação na família e qual é o significado social da criança? Nos anos 40, a questão de ter ou não ter filhos nem sequer se colocava. Como diz Amélia, casada em 1945: «Eu não sabia quantos filhos é que ia ter. Tive nove. Antigamente, a moda era assim; agora, as modas parece que são outras. As mulheres não têm filhos, mas não sei o que é que vale mais. É verdade que a gente, a gente às vezes estava cansada. Mas não sei, depois também não se tem os filhos para trabalhar, não sei como fazem hoje.»
138Os filhos eram importantes para trabalhar na agricultura, ajudar os pais e reproduzir o poder económico e social da «casa». Já vimos que o significado social da criança assentava não só no seu estatuto de «trabalhador familiar», mas também no seu estatuto de sucessor e na sua qualidade de reprodutor de um estatuto elevado dentro e fora de casa. No passado, advogava-se um número médio ou elevado de filhos:
«É importante ter filhos. Um não é nada, tem de ser pelo menos três ou quatro. Porque, para ficar um, para dar continuidade... Um não gosta, faz outra coisa, outro já gosta, a filha casa... Depois, chega-se a uma certa altura, quer-se entregar, já estamos cansados, e não queremos ver isto abandonado, quer-se uma continuidade. Quem tem filhos, tem facilidade, vai fazendo sempre.» (Manuel, lavrador de Gondifelos, nascido em 1920.)
139As pressões antigamente eram diferentes. Por um lado, a mortalidade infantil era elevada. Por outro, a Igreja exercia uma pressão constante contra «o evitar» da gravidez, e o acesso das famílias às informações sobre métodos contraceptivos era irregular e difícil. Deolinda, casada em 1927, conta-nos que o seu primeiro parto durou três dias e três noites, que tinha muito medo de morrer ao dar à luz e, por isso, não queria ter muitos filhos. Por sorte, o marido, filho de lavradores e com um irmão formado em medicina, «sabia dessas coisas». Teve apenas três filhos.
140Todas as mulheres mais velhas entrevistadas dizem que não se tinha coragem de falar destas coisas, nem mesmo com as parteiras que vinham ajudar na altura do parto. As mulheres tentavam aumentar o espaço de tempo entre os partos através do aleitamento. Fora isso, dizem, sabiam muito pouco. Maria das Dores, nascida em 1916, uma lavradeira rica que teve oito filhos, conta que amamentava o maior tempo possível e que às vezes estava «saturada» de estar sempre grávida: «Se eu soubesse tudo o que a minha filha sabe hoje, não tinha tido tantos filhos.» Vitória, uma lavradeira um pouco mais nova, considera que, na época, poucas mulheres (mas mais homens) sabiam fosse o que fosse e/ou ousavam ir contra a ideologia da Igreja católica em matéria de procriação.
141Voltemos à análise do presente. Se considerarmos, à luz dos dados relativos às mulheres que têm actualmente menos de 55 anos, as normas, as interpretações e as práticas de procriação mais recentes, podemos estabelecer dois estilos de reprodução, diferentes sob vários aspectos. Por um lado, encontramos o que se pode designar por um estilo baseado na precaução e, por outro, um estilo assente na premeditação.
142No que se refere ao primeiro, insiste-se numa norma em que é preciso ter «vários filhos» (referem-se em geral dois ou três, quatro ou cinco filhos no máximo), e reconhece-se «a precaução» como um factor importante, que permite reduzir o número de filhos e aumentar o intervalo entre os nascimentos. São casais que não querem «ter muitos filhos e partos como os antigos», mas aceitariam sempre «mais um, se isso acontecesse, porque se pode sempre criar mais um filho».
143As lavradeiras que praticam este estilo de reprodução baseado na precaução têm entre 35 e 50 anos e casaram nos anos 60 e no início da década de 70, numa época em que ainda se dava à luz em casa. Foi durante esses anos que a Igreja começou a mudar de atitude relativamente à contracepção. A abstinência e o coito interrompido visando o planeamento familiar são aceites e até abertamente preconizados, a partir do início dos anos 70, nos «cursos de noivos» organizados em Portugal pela igreja católica. Estes cursos levaram um certo tempo a arrancar: Margarida, lavradeira nascida em 1948 e casada em 1971, inscrevera-se com o marido num curso que devia começar numa freguesia vizinha e teve uma grande desilusão quando soube que fora anulado por falta de inscrições. No final dos anos 70, em contrapartida, os cursos passaram a ser frequentados por quase todos os jovens casais à espera de casar.
144Também é importante ter em conta, durante esta época, que a mobilidade geográfica aumenta e se refere a distâncias mais curtas. Já não se trata apenas de idas para a tropa mas também da inserção progressiva dos trabalhadores e das trabalhadoras nas freguesias mais industrializadas do concelho, bem como da emigração para os países mais próximos da Europa.
145O impacto da emigração nas práticas reprodutivas foi importante para dois casais de lavradores que estudámos. O primeiro caso é o de Daniel, filho de lavradores que privilegiaram o irmão mais velho da fratria. Daniel emigrou para França em 1965. Regressou à sua aldeia natal cinco anos depois, escolheu (com ajuda de uma alcoviteira) uma namorada numa família de lavradores de uma freguesia vizinha, casou e voltou para França dois meses depois acompanhado pela mulher (Júlia, de 24 anos). No ano seguinte, Júlia perdeu o primeiro filho que nasceu sem vida; um ano depois teve uma filha. A seguir ao nascimento desta criança, Júlia decidiu, sob vigilância médica, tomar a pílula porque não queria ter outro filho logo a seguir: «Eu pensava que havia de vir outro logo a seguir e não queria. Foi o médico que me aconselhou.» Ela trabalhava muito a fim de realizar o projecto do marido — regressar a Portugal para se estabelecer como lavrador. Continuou a tomar a pílula durante sete anos e, quando quis ter um segundo filho, não conseguiu engravidar. Realizado o projecto económico do casal, a família regressou a Portugal no princípio dos anos 80. Compra quatro hectares de lavradio e uma bouça em Lemenhe, e monta uma exploração rentável de produção de leite. O casal tem pena de ter apenas uma filha. Como diz Júlia (39 anos em 1985): «Eu nunca quis ter só um filho, queria dois ou três. Um filho só, não é nada. Por um lado, pode morrer. E por outro, quando formos velhos, só teremos um para nos ajudar. Quando se tem dois filhos, quando a gente se zanga com um deles, há sempre o outro.»
146O segundo caso é o de António, filho de lavradores que privilegiaram um dos outros filhos. António casou-se, em 1965, com Lucinda, costureira, filha única de um casal de pequenos proprietários. Nasceram dois filhos logo a seguir ao casamento, enquanto António cumpria o serviço militar. Quando António regressou a casa, o casal decidiu emigrar a fim de aumentar o capital fundiário e deixou os dois filhos com a mãe de Lucinda. Não queriam mais filhos porque, segundo Lucinda, as condições de vida na Alemanha eram difíceis e a mãe dela já tomava conta dos dois filhos. A conselho de outra emigrante portuguesa, Lucinda decidiu então tomar a pílula. Regressaram a Gondifelos em 1980 e refizeram, aumentaram e modernizaram a pequena exploração que pertencia à família de Lucinda. Estão hoje satisfeitos com o «casal» de filhos que tiveram.
147Em contrapartida, as lavradeiras que se casaram na mesma época mas continuaram a viver nas aldeias estudadas, defendem um estilo de procriação baseado na «precaução», são contra aquilo a que elas chamam «drogas» e não recorreram à pílula. Em geral, tiveram filhos logo a seguir ao casamento, «tiveram cuidado» entre os partos e sobretudo depois do nascimento do terceiro ou do quarto filho. Eis o exemplo típico de Maria Albertina, lavradeira nascida em 1944, que se casou com 24 anos, em 1968:
«Nós pensávamos que queríamos ter poucos filhos. Alguns queríamos ter mas não queríamos ter muitos. Naquela maré a gente pensava que tinha de trabalhar, e também não podia ter muitos, senão, ou havia de trabalhar ou havia de tomar conta deles. Antigamente, no tempo da minha mãe, não sabiam, não é? Dantes a gente era criada sabe lá como. Andávamos aí pelos campos. A criadita da minha mãe e a minha irmã mais velha mal nos punham a vista em cima, éramos tantos. A minha mãe teve onze filhos e teve um aborto também. Eu, os meus, ainda os criei assim um bocado escravos porque não tinha assim ninguém para me ajudar, a minha mãe tinha falecido, já não havia criadas. Às vezes eles tinham marés que berravam, mas assim se foram criando, a berrar, assim foram criados. O Carlos, o mais velho, alcancei-o logo, e a ele dei-lhe o peito durante três meses. Depois parei porque, sei lá, arranjei a Inês, foi logo a seguir, porque a Inês do Carlos faz diferença de um ano e seis dias. Foi assim muito rasteirinho, foi por isso que eu me vi à rasca para os criar, porque eram todos muito pequeninos. Quando a Inês nasceu, o Carlos ainda não tinha andado. E depois, quando nasceu o Pedro, a Inês já andava porque ela começou a andar muito cedo, tinha dez meses. É muito ruim de criar os filhos rasteirinhos. Aos outros também dei de mamar. À Inês dei quatro meses, parei porque comecei a não ter leite, depois criava-os com farinhas. Farinhas, mas não é destas que há agora. Farinha de milho passada pela peneira de seda, ficava fininha, ou farinha de arroz, era isso e o leite de vaca. Depois o Pedro esse mamou mais tempo, a esse dei-lhe até aos oito ou nove meses. Tive mais leite, eu penso que seria por não ter alcançado mais nenhum entretanto, quando alcançava os filhos, o leite parava. Depois o último, esse não foi tão rastinho, faz quatro anos de diferença. Nós, depois, já tínhamos mais cuidado. Nunca tomei nada, mas a gente tinha sempre cuidado para ver se não arranjava assim tão rastinhos. Na maré, a gente ouvia dizer das pílulas mas que fazia mal. E eu estava em não querer tomar porque a gente ouvia dizer que fazia mal. E eu sempre evitei tomar e é por isso que nunca tomei pílulas. Mas a gente tinha sempre cuidado para não virem tantos filhos e tão perto. O meu marido estava informado, os homens falavam sobre isso, eles e os amigos dele. E então eles diziam que era preciso ter cuidado. Mas sabe como é, às vezes a gente aventurava-se, e pronto. Foi o que aconteceu nos primeiros anos.»
148Nota-se que o significado social da criança se modifica pouco ao longo destes anos. Nos anos 30 e 40, a criança era um sucessor e um trabalhador, um trunfo importante para a família. A criança devia — pelo menos era o que se pretendia — reproduzir um estatuto socioeconómico elevado e assegurar o futuro da família. Era preferível não ter onze filhos e conseguir espaçar os partos, mas pior seria não ter filhos ou vê-los todos morrer. Os casais que se casaram nos anos 60 insistem ainda nas mesmas finalidades da reprodução: a continuidade, o trabalho e o tomar conta dos pais na velhice. Quando se quer ter alguns filhos, é a pensar que, entre vários filhos, há-de haver um que se revele melhor sucessor ou melhor filho (no sentido de ajudar os pais) do que os outros. Por outras palavras, ainda se valoriza o significado instrumental da criança e a sua relação com a dinâmica familiar colectiva no tempo.
149O filho é pois encarado pelos pais como um sucessor e uma ajuda familiar, tanto no presente como no futuro. É preciso poder escolher, entre vários filhos, aquele que melhor se adapta ao papel de sucessor. Todavia, nos anos 60, também se fazem sentir novas pressões que vão influenciar os projectos de procriação. O testemunho de Maria Albertina é um bom exemplo: dadas as condições de trabalho do jovem casal e a ausência de criadas, a criança representa uma sobrecarga de trabalho para a mulher. Dantes, eram sobretudo as mulheres dos caseiros que, não tendo mão-de-obra assalariada, levavam os bebés num cesto para o campo ou deixavam as crianças em casa, fechadas num quarto, para poderem ir trabalhar para o campo. Em contrapartida, as histórias familiares das lavradeiras ou das «patroas», como se diz, mostram que elas tinham mais ajuda em casa e conseguiam gerir os cuidados dos filhos e o trabalho agrícola com alguma flexibilidade.
150A mulher lavradeira dos anos 60 encontra uma nova situação. Quer assegurar a sucessão e a velhice, mas tem menos recursos do que a mãe dela por um lado (menos criadas) e mais recursos por outro (acesso a outras informações). A pressão do trabalho «de fora» é maior, porque a mecanização da exploração é apenas parcial mas os criados e os jornaleiros são cada vez mais raros. Nota-se, por outro lado, que a aproximação entre marido e mulher ao nível das tarefas agrícolas parece favorecer uma colaboração conjugal que encoraja uma estratégia comum de limitação dos nascimentos. Como diz Maria Albertina, «Nós pensávamos que queríamos poucos/a gente pensava que tinha de trabalhar.» Do mesmo modo, Margarida, casada em 1964 e que teve três filhos, conta: «Eu ia e vinha sempre entre a casa e os campos, e quando o nosso terceiro filho nasceu, nós decidimos fazer todos os possíveis para não termos mais filhos.»
151A limitação dos nascimentos através de um estilo baseado na «precaução», que permite «ter alguns filhos mas não muitos», não é um facto novo entre os lavradores. No passado, nos anos 30, 40, 50, encontrámos alguns casos isolados deste estilo de procriação. Nos anos 70 e 80, em contrapartida, defende-se abertamente «as precauções» e «o cuidado», e diversas condições objectivas, subjectivas e interaccionais parecem contribuir para criar um clima favorável à adopção, pelos dois membros do casal, desta nova norma de planeamento familiar.
152Podemos analisar agora os casais mais novos com filhos pequenos, e que se casaram nos finais dos anos 70 ou no início dos anos 80.
153Em primeiro lugar, nos anos 80, o significado social da criança encontra-se mais próximo da ideia de uma infância protegida e da melhoria do nível de vida da própria criança. No entanto, não se abandona a ideia de que os filhos são importantes para a sucessão e enquanto ajuda no trabalho ou na velhice, mas atribui-se menos importância a estes valores.
154Nos casais mais novos, que se casaram no final dos anos 70 ou nos anos 80, considera-se que é preciso ter muito poucos filhos para se poder «privilegiá-los» (em sentido lato) de maneira conveniente: «Um filho é de menos, mas dois chegam. E três é o máximo. Se for mais, não se pode dar-lhes regalias. Antigamente, era uma escravidão: não se dava regalias aos filhos. Hoje, para dar isso, é preciso ter menos.» (Vítor, lavrador de Lemenhe, 29 anos, casado em 1989.)
155À medida que o «privilégio» de quem é «abastado» passa do acesso à casa auto-suficiente ao acesso à rentabilidade e ao bem-estar material, os «benefícios» que os pais procuram garantir aos filhos são diferentes. Actualmente, é preciso garantir uma infância mais «retribuída», os estudos obrigatórios ou até mais «se tiverem capacidades», e um modo de vida satisfatório para o próprio indivíduo. O lugar da criança na vida familiar deslocou-se: a família deve procurar dar saúde e uma boa alimentação à criança, assegurar uma infância em maior contacto com os adultos (é preciso não deixar as crianças sozinhas, é preciso pegar-lhes ao colo, etc.), menos instrumental em relação à exploração agrícola (no que diz respeito ao trabalho, nomeadamente) e mais de acordo com os gostos de cada um. Por outras palavras, o «privilégio» não decorre automaticamente do facto de se pertencer a uma determinada casa auto-suficiente e de assumir aí o mais depressa possível um papel de trabalhador. Deve ser preparado e construído ao longo da infância, tendo em conta a personalidade e as necessidades de cada criança.
156Eis o que diz a mãe de Vítor (o lavrador que acabámos de citar), comparando a infância dos seus oito filhos, nos anos 50, com a dos seus dois primeiros netos, recentemente nascidos: «Na altura não pude dar-lhes muitas regalias. Hoje frango já não é petisco, mas antigamente era só umas vezes por ano. Havia sempre carinho mas era diferente... Não podíamos passar o tempo com eles ao colo ou estar sempre à beira deles. Quando eram pequenos, tinham de ficar com o mais velho aqui e a gente ia trabalhar. Hoje, é diferente, ou ficam por casa mais uns tempos ou, como em casa do meu filho José, ela vai à erva mais deixa sempre o menino com a senhora Isabel ou chama uma irmã. Nessa altura não se podia estar a olhar ou a pedir para olhar. Agora pedem ou vão para o infantário, criam-nos à beira deles. Noutros tempos, qualquer coisa que se vendesse, não dava para se pagar para isso, nem para comprar essas coisas novas que há.»
157Para os casais jovens, não se pode construir uma infância protegida e privilegiada para os filhos se estes forem muitos. A norma aconselha dois («um casal de filhos»), no máximo três filhos. Defende-se igualmente a procriação precoce («Cedo, no início do casamento, a não ser que eles não tenham a vida ainda organizada») e um espaço de tempo razoável (de cerca de dois ou três anos) entre cada um dos filhos. Desde o final dos anos 70, os partos têm todos lugar no hospital de Famalicão — e isto não é visto como uma escolha, mas como uma obrigação.
158Para se concretizar a norma ideal do casal de filhos, é proposta uma contracepção com fim premeditado, assente no «evitar». Em termos subjectivos e objectivos, a diferença entre a «precaução» e o «evitar» é importante. Valorizar o primeiro factor significa que se recusa um cálculo absoluto do número de filhos e que não se encara o casamento sem reprodução. Em contrapartida, o centramento no «evitar» introduz pela primeira vez a noção de um projecto procriativo pensado e decidido pelo casal. São aceites diferentes métodos contraceptivos e, entre as mulheres jovens que «evitam» os filhos, encontram-se muitas que tomam a pílula — como, por exemplo, a Helena, que se casou em 1976, com 20 anos:
«Tive logo a minha filha. Depois, tomei a pílula durante um certo tempo, depois parei e tive o meu segundo filho (passados quatro anos). Depois voltei a tomar a pílula. Na realidade, às vezes paro durante algum tempo e temos cuidado, e a seguir volto a tomá-la. A gente sempre pensou ter dois ou três filhos, mas acabámos por abandonar a ideia do terceiro. Entre mim e o meu marido, há uma grande diferença de idades, e já nos sentimos felizes com um casal de filhos.»
159Contudo, o ideal dos «dois ou três filhos» introduz por vezes um problema que a família tem que resolver. Com efeito, se tiverem dois filhos do mesmo sexo, pode acontecer que um dos cônjuges, ou os dois, queira tentar ter uma criança de outro sexo. Gostariam que esse aspecto da reprodução pudesse ser previsto. É o caso de Conceição, que tem dois filhos de nove e cinco anos e gostaria de ter um terceiro filho, mas só tendo a certeza de ser uma rapariga. Uma amiga disse-lhe que se a mulher ficar grávida logo a seguir ao período, o sexo da criança será feminino. Conceição, que duvida de que isso seja verdade, pediu-nos confirmação, e acrescentou: «Talvez até gostássemos de ter mais um, se fosse uma menina. Mas mesmo assim, ia ser difícil: se nós pensássemos ter outro filho, tinha de ser pensado, porque nós, com as sementeiras e as colheitas, há meses muito ruins. Este, o mais novito, tive-o em Março, foi bom. Antigamente as patroas tinham criadas, mas nós agora é diferente, temos de fazer tudo.»
160A pressão exercida pelo trabalho é grande e, no que se refere aos casais que ainda têm que «organizar a vida», conduz quase sempre a um intervalo maior entre o primeiro e o segundo filho, um pouco como nos casais de emigrantes que têm um projecto económico exigente. Conceição, 34 anos, casada em 1977, teve o primeiro filho logo a seguir ao casamento e o segundo oito anos depois:
«A gente não queria esperar tanto tempo para ter o segundo mas tínhamos muito trabalho, e eu não tinha ninguém para me ajudar. Então, deixei passar o tempo. Mas nunca pensei ter só um filho, sempre quisemos ter dois.»
161Este estilo de reprodução «premeditada» faz com que a maior parte dos casais tenham apenas dois filhos. Nas oito famílias de lavradores onde a mulher tem entre 30 e 45 anos, onde se afirma que o casal queria «dois, ou mesmo três filhos» e evitou os nascimentos, sete têm dois filhos. A oitava tem apenas um, mas o casal teria gostado de ter mais um ou dois (caso de Júlia, que teve a filha em França). Pelo contrário, nos onze casais que seguiram um estilo de reprodução baseado nas «precauções», cinco têm três filhos, dois têm dois, dois têm quatro e outros dois têm cinco filhos.
162Neste contexto, onde predomina um certo tipo de família — do casal que tem um casal de filhos —, é interessante voltar a olhar para o problema da produção da sucessão nas famílias agrícolas «empreendedoras».
163Idealmente, a norma dos dois filhos permite, segundo os lavradores, promover simultaneamente três tipos de privilégios: uma infância mais «retribuída» e protegida; a sucessão na agricultura familiar, o que significa que os filhos adquiram, cedo na vida, competências e uma grande autonomia na execução de certas tarefas; uma promoção social mais urbana, ligada aos «estudos» e a uma mobilidade social em direcção à pequena burguesia de enquadramento ou à burguesia profissional.
164Nos comportamentos observados, encontramos famílias de lavradores que têm muita dificuldade em realizar este ideal «misto». Algumas conseguem realizá-lo. Por exemplo, em casa de Júlio e de Margarida, o filho mais velho é trabalhador agrícola familiar e futuro sucessor (era mau aluno na escola e não terá querido continuar a estudar), o mais novo anda no secundário e a filha vive com uma tia solteira que também lhe «dá» os estudos.
165É muitas vezes difícil decidir qual dos filhos vai estudar e qual deles vai ficar na agricultura. Numa família com dois ou três filhos, quando os pais querem efectuar uma inclusão a fim de assegurarem a sucessão, a manifestação de uma paixão ou de um gosto pelos estudos ou por uma profissão tornase complicada. Geralmente, mesmo quando o filho mais velho é razoavelmente dotado para a escola, os pais preferem incluí-lo imediatamente do que arriscar-se a que o segundo filho não queira «ficar em casa». Por razões diferentes das do passado, encontramos aqui a criação de um estatuto especial para o primeiro filho rapaz.
166Existem também certo tipo de interacções, no interior das famílias de lavradores com dois filhos, que podem perturbar o cumprimento do ideal misto. Por exemplo, a cumplicidade entre dois filhos de idade próxima e do mesmo sexo pode ser grande. Na família E., Paulo e José, dois irmãos com um ano de diferença, recusaram separar-se. Um devia ter ido estudar e o outro devia ter ficado em casa, mas quiseram ir juntos para a escola. O ideal misto é muito mais fácil de realizar nas famílias que têm mais filhos. Com efeito, no interior de cinco ou seis filhos, podem desenvolver-se diversas alianças, cumplicidades ou conflitos, permitindo evitar que a escolha se centre nos destinos de dois filhos e que a inclusão de um venha sublinhar a exclusão do outro.
167A situação que mais facilita a produção simultânea de uma infância privilegiada e de uma sucessão assistida é a que encontramos em casa de Alberto e de Margarida: uma filha mais velha que não gosta da agricultura e um filho que não tem qualquer espécie de inclinação para os estudos e «se autoincluiu» na exploração agrícola desde os doze anos. A distinção por sexos facilitou uma triagem inicial e a inclusão precoce do rapaz que exprime «gosto» pela agricultura. Em contrapartida, quando a família tem dois rapazes e o mais velho quer estudar, as opções são mais delicadas: se se deixa o mais velho fazer o que ele quer, os pais arriscam-se a ver o segundo, por influência do mais velho, decidir também ele estudar. Se, pelo contrário, decidirem incluir o mais velho e «pôr» o segundo a estudar, correm o risco de produzir pouco gosto pelos estudos no filho que os efectua e de o destinarem provavelmente a uma mobilidade descendente em vez de ascendente. Enfim — e observámos um único caso —, pode-se efectivamente aceitar a «vontade» do filho mais velho relativamente aos estudos e aceitar que o outro filho siga o mesmo caminho se assim o desejar. Na família de Henrique E., grandes lavradores de Gondifelos, foi essa a opção tomada.
168O equilíbrio defendido entre os diferentes factores (sucessão na agricultura, promoção social através dos estudos, livre escolha da criança) não é pois fácil de realizar na prática. Nos anos 70 e 80, os lavradores tentam aliar a sucessão assistida à motivação individual pela agricultura. Contudo, quando surgem dificuldades ou conflitos, é ainda raro ver prevalecer a vontade individual. Nestes casos, os pais tendem a valorizar o projecto familiar e a inclusão de um sucessor.
— A escolha do cônjuge: casamento arranjado ou casamento aliança
169Antigamente, na escolha do cônjuge, valorizava-se a homogamia patrimonial e o consentimento paternal. A atracção mútua não era desprezada mas vinha de certo modo criar laços mais sólidos entre aqueles que já satisfaziam os outros dois factores.
170Nos anos 80, a norma ideal modifica a ordem de importância dos factores: segundo os pais lavradores, «os filhos devem escolher ao gosto deles», «o casamento deve ser à vontade». Em matéria de casamento, não se deve obrigar os filhos, apenas dar-lhes conselhos. No que se refere aos conselhos, insiste-se na importância da homogamia social e, no caso do sucessor, na homogamia profissional mais do que na social. Segundo os pais lavradores actuais, «é preciso que o casal se dedique em conjunto à exploração», e é preferível descer um pouco na escala social a fim de encontrar o parceiro que se ocupe dos campos do que fazer um casamento rico mas desigual do ponto de vista do trabalho agrícola.
171A norma ideal dos adolescentes e adultos que têm entre 15 e 25 anos em 1985 valoriza mais do que no passado a importância da atracção mútua. Eis o que Paulo, sucessor da Casa E. e rendeiro dos pais há pouco tempo, diz aos 25 anos sobre os seus projectos de casamento: «Penso casar-me, mas primeiro quero organizar a minha vida. Quando me decidir, quero estar preparado, ter uma boa situação económica e — evidentemente — ter aproveitado um bocado mais a juventude. Então, só penso casar dentro de alguns anos. Quanto à minha mulher, bem, eu sou agricultor e vou continuar a ser agricultor, mas a minha mulher, não sei se irá trabalhar na agricultura. Penso que não. Isto é um trabalho que tem mais a ver com o homem. Não quer dizer que as mulheres não o façam. Mas eu, pessoalmente, não gostava que a minha mulher trabalhasse na agricultura. Há pessoas que me dizem que um agricultor deve casar com uma rapariga que trabalhe na agricultura. Mas eu nunca pensei isso. Isso não me atrai. Acho que o casamento deve ser baseado no amor e não no que a mulher há-de ter ou há-de ser. Se se puder ter ambas as coisas, melhor. Não tenho nada contra.»
172Paulo tinha outras aspirações. Queria estudar mas o pai obrigou-o a ficar em casa. Aceita a vida que tem porque não gostaria de ver a propriedade do pai ao abandono, mas sente que a sociedade já não dá valor aos agricultores. Tem amigos que não são do mesmo meio (filhos de comerciantes ou de patrões da indústria) e sente-se em desvantagem em relação a eles. Na opinião dele, quando diz que é agricultor a pessoas que não são da aldeia, sente imediatamente que o desprezam.
173Entre os jovens agricultores que entrevistámos, há no entanto alguns que se aproximam muito mais das normas valorizadas pelos pais. São todos jovens que quiseram, por vontade própria, ficar na agricultura. Examinemos alguns casos. Carlos, nascido em 1970, trabalhou numa fábrica durante alguns anos mas optou, no final dos anos 80, pela profissão do pai. Gostaria um dia de ter dinheiro suficiente para poder comprar aos dois irmãos a parte deles na exploração e ficar com esta só para si. José Alberto, nascido em 1974, não precisa de pôr em prática uma estratégia de sucessão: tem uma irmã que afirma não querer nada da agricultura. Diz que nunca se interessou pela escola e fala da exploração como se já fosse dele. Miguel, nascido em 1965, foi designado há alguns anos para suceder ao pai na agricultura, estando o irmão mais novo no liceu e a pensar exercer outra profissão. Estes três jovens, José Alberto, Carlos e Miguel, pensam casar «com alguém como nós, que tenha campos, com uma pessoa do nosso meio» e valorizam o facto da futura mulher saber fazer e dedicar-se ao trabalho agrícola. Segundo Miguel, é preciso que a mulher saiba tratar um pouco da casa e que «não tenha medo de tratar das vacas». Para estes jovens, o mais importante no casamento é, «ajudarem-se um ao outro, estarem de acordo um com o outro, entenderem-se». Para isso, é preciso que os dois cônjuges trabalhem mas também é «fundamental» que gostem um do outro. Senão, «começam a zangar-se um com o outro e, um dia, ela diz que vai para casa dos pais durante oito dias, que está farta. Já não se entendem, passam a vida a discutir e a coisa não dá.» (Miguel, trabalhador familiar de Lemenhe, nascido em 1965.)
174Todos estes futuros sucessores sofrem uma certa pressão, da parte dos pais, no que respeita à escolha da futura mulher. Muitas vezes, é a primeira coisa que lhes vem à ideia quando se fala de casamento. Miguel, por exemplo, quando interrogado sobre a «esposa ideal», expôs em primeiro lugar a opinião da mãe: «A minha mãe de vez em quando fala-me nisso, e fala-me muitas vezes de um primo dela que se casou com uma rapariga muito rica, dizem que é, não é, e que não é do nosso meio, e que passa os dias sentada no jardim. Pronto, ele escolheu-a assim. A minha mãe diz que ele tinha feito melhor em casar com a filha de um lavrador — nem que fosse menos do que ele, não é? Menos em questão de terras e isso. Nem que fosse menos mas ao menos que não tivesse medo de ir para a beira das vacas, só tem uma senhora para andar na rua. Eu cá, concordo com isso até certo ponto. Principalmente, acho que a mulher tem de fazer mais o serviço da casa e tratar das vacas, sobretudo nesta época, não é? Quando é assim na época de lavrar e isso, a gente está todo o dia no campo, se for a mulher a tirar o leite, é chegar a casa e pronto; se o homem tem de chegar a casa e tirar o leite, está até às onze da noite a tirar leite. Mas também não é preciso criticar muito. Como eles são ricos, esse primo da minha mãe foi comprando mais máquinas e tal, e desenrasca-se com um empregado. Foi aquela a mulher que ele escolheu e eles lá se arranjam. Na minha opinião, o que é preciso é que a mulher trate do serviço da casa, e que ela ajude um bocadinho com as vacas.»
175A homogamia profissional dos cônjuges transformou-se pois num problema central, debatido enquanto tal, quando no passado o problema mais discutido era a questão do património (fazer um casamento mais ou menos igual em terras e bens) e o momento do ciclo de vida familiar (o facto de os pais estarem ou não dispostos a ceder alguns campos, a aceitar a entrada da nora ou a saída de uma filha). O centramento actual no problema da homogamia profissional tem a ver com a necessidade da partilha conjugal das tarefas agrícolas mas também se prende com o facto, hoje em dia muito frequente, de as filhas dos lavradores estudarem e se afastarem do trabalho agrícola. Antigamente, as filhas dos lavradores tinham menos oportunidades de estudar que os seus irmãos sucessores, e eram unicamente formadas no trabalho da casa auto-suficiente. Por consequência, conheciam infalivelmente as tarefas, agrícolas e domésticas, que as esperavam quando se casassem. Hoje, pelo contrário, muitas conhecem mal essas tarefas. Para os jovens que querem escolher uma esposa/ajudante-agricultora no «seu» meio, a escolha tornou-se por vezes mais problemática e mais difícil.
176Em resumo, ao nível das representações da escolha do cônjuge, é possível dizer que se valoriza dois factores principais nas famílias de lavradores: a atracção mútua dos jovens esposos (uma escolha a seu gosto; uma pessoa de quem «gostam»), por um lado; a homogamia profissional e social, por outro. O terceiro factor que contava antigamente — a autorização e a intervenção dos mais velhos — foi substituído pela noção de «persuasão», isto é, de um constrangimento exercido sob a forma de conselhos. Em geral, este constrangimento pesa fortemente, sendo inculcada no sucessor a ideia da importância da homogamia profissional.
177Mais raramente, pode acontecer que os pais não se sintam autorizados a dar conselhos. Trata-se de casos em que a pressão foi exercida num momento anterior, a fim de obrigar um filho ou uma filha a ficar na agricultura. A inclusão precoce e forçada coloca os pais numa posição de dívida para com o sucessor, e torna mais difícil o exercício de uma persuasão no que respeita à escolha conjugal. Se o filho sucessor ficou «amarrado» à exploração contra a sua vontade, os pais sentem-se na obrigação de não o forçarem no momento da escolha do cônjuge. É o caso dos pais de Marta, filha única que queria continuar a estudar e que os pais decidiram que ficasse em casa: «Decidimos que ela devia ficar, porque era a nossa única filha e o meu marido não estava bem de saúde. A gente precisava dela. Mas, quanto ao casamento, a gente diz sempre que aí, ela é que tem que escolher, ao gosto dela. Não nos metemos nisso.»
178Assim, a norma ideal recomenda que se insista em três factores (atracção, homogamia, persuasão) mas podem existir outros constrangimentos (a inclusão forçada do sucessor, uma menor valorização do estatuto de agricultor, a pressão de novos valores como a beleza e o amor conjugal) que conduzem a uma valorização acrescida da atracção mútua e a um certo desprezo pelo cimento conjugal assente na partilha da profissão. Mais uma vez, são as excepções que constituem bons indicadores das tendências actuais e nos ajudam a perceber se a tónica é posta mais sobre este ou aquele factor. No passado, os casos excepcionais eram os que correspondiam a casamentos de puro interesse, arranjados pelos pais sem consultar os filhos. É o caso do casamento arranjado, sem namoro prévio, do Jorge e da Amélia, analisado no capítulo sobre as famílias no passado. Nos anos 80, os casos excepcionais são aqueles em que a atracção mútua predominou sem qualquer consideração pela vida profissional comum dos cônjuges. As outras famílias de lavradores criticam estes casos e analisam as consequências: em relação a um primeiro casal heterogâmico, critica-se a esposa porque é preguiçosa e não ajuda o suficiente; relativamente a um segundo, critica-se o desentendimento constante que decorre do facto do marido obrigar a mulher, que não é agricultora, a ajudá-lo. Citam-se estes exemplos para mostrar que este género de casamento não funciona e que os jovens devem valorizar os dois factores.
179Se se examinar agora a prática, fazendo incidir a análise nos 42 lavradores residentes em 1985 nas duas freguesias (Lemenhe e Gondifelos), pode distinguir-se dois estilos de casamento (ver Quadro 12, Estilos de Casamento). Os que se casaram antes de 1965 — uma data que se revelou significativa na distinção dos estilos de procriação — escolheram três tipos de homogamia: uma homogamia social e profissional que consiste em escolher um parceiro entre os lavradores grandes da freguesia; uma homogamia social e profissional que consiste em escolher um parceiro fora da freguesia; uma homogamia profissional acompanhada de uma heterogamia social (um dos cônjuges pertencia ao campesinato pobre).
Quadro 12. Estilos de casamento
Casados antes de 1965 | Casados depois de 1965 | ||
Homogamia Social e Prof./ | 10 | Homogamia Social e Prof./ | 4 |
Homogamia Social e Prof. | 8 | Homogamia Social e Prof./ | 9 |
Homogamia Prof./ | 2 | Homogamia Prof./ | 4 |
Heterogamia Social e Prof./ | 2 | ||
Heterogamia Social e Prof./ | 1 | ||
Homogamia Social/ | 2 | ||
Total | 20 | 22 |
180Os casamentos posteriores a 1965 exibem estilos de casamento mais variados. Evidentemente, encontramos as duas principais homogamias identificadas na análise do passado, uma entre os lavradores ricos da freguesia, a outra entre os lavradores ricos dos arredores. E observa-se nestes últimos uma procura do cônjuge que consiste mais do que dantes em evitar os casamentos «arranjados» entre pais, vizinhos ou amigos. O exemplo mais típico do final dos anos 60 e do princípio dos anos 70, é o dos filhos sucessores que se dirigem às freguesias vizinhas em busca de uma filha de lavradores que seja do seu agrado. O controlo dos pais torna-se mais suave, na medida em que a iniciativa da procura é deixada ao filho. Eis a história do encontro entre José e a esposa, ambos oriundos de famílias de grandes agricultores, e que se casaram em 1967. É a esposa quem fala:
«Quando me casei, tinha 23 anos e o meu marido 26. As nossas famílias não se conheciam. Só um dos irmãos dele é que era colega de um dos meus. Um dia, uma das criadas da minha mãe — que ainda tinha duas nessa época — chamou-me e disse-me: ‘Ó menina, está ali um rapaz que a quer ver’. Fui ao portão, e ele disse-me: ‘Queria falar consigo. Estava ali com uns rapazes meus amigos e perguntei-lhes se não sabiam de uma moça engraçada que não tinha namoro e falaram-me em si’. E eu disse: ‘Olha que disparate! Por acaso até tenho namoro, e ele deve estar por aí a chegar’. E ele chegou, e perguntou-me quem era o outro, e eu respondi que era um amigo do meu irmão. Passados uns dias, fui a Famalicão, e encontrámo-nos. Enfim, nada de falarmos, só nos vimos. Depois, o rapaz com quem eu andava foi para a tropa. Isso foi em Outubro, e em Abril, comecei a namorar com o outro, comecei a namorar a dois de Abril. Ainda me lembro, havia uma mulher que vendia ovos e galinhas, e ela veio ver se a minha mãe não queria vender alguma coisa ou assim. E eu disse, ‘Olá, senhora Aninhas’, e entretanto ele chegou, eu estava à porta, e pronto, a partir daí,... namorámos seis anos e meio.»
181As situações de homogamia parcial, em que um dos cônjuges é de origem camponesa abastada e o outro de origem camponesa pobre, diziam respeito quase sempre a casamentos em que a aliança de uma família abastada com outra família abastada é mais difícil. Isto é devido quer a razões «pessoais», quer à existência de uma escolha limitada de esposas potenciais — duas situações que justificam que se faça um casamento menos «bom». Assim, pelo facto de ser deficiente, Joaquim, filho único de um lavrador, casou-se outrora com uma filha de caseiros. A mulher, considerada «boa trabalhadeira», pôde encarregar-se da casa. Mais recentemente, nos anos 60, Mário casou com Fátima, filha de uma família de caseiros de outra região, numa altura em que ambos tinham emigrado para o Brasil. (A emigração tornou a construção de uma homogamia social mais difícil.) Por último, Joaquim, filho de um lavrador médio que herdou uma pequena exploração que queria aumentar, casou em 1979 com Ermelinda, filha de caseiros, porque ele queria uma mulher que se dedicasse à agricultura com ele, mas não podia aspirar a casar-se com uma mulher muito rica. Na aldeia, considera-se que a esposa dele lhe é socialmente inferior, mas considera-se igualmente que o casal constitui uma excelente equipa, muito «agarrada» ao trabalho.
182O primeiro tipo de heterogamia actual, caracterizada por uma diferença ao nível das situações sociais e profissionais de origem dos cônjuges (acompanhada, no entanto, de um projecto agrícola comum), surge por seu turno como um elemento de distinção em relação ao passado. Nas freguesias estudadas, encontrámos dois casos. No primeiro, o marido, António, tem uma situação de classe de origem de «lavrador grande» e a esposa uma situação de classe «pequeno-burguesa independente» (a mãe vivia do aluguer de uma pequena propriedade agrícola e de uma determinada quantia que o marido, emigrado para a Venezuela, lhe deixara). No início da vida conjugal, António era um profissional da agricultura, e a esposa era costureira. O projecto do casal era comum: alargar o capital inicial emigrando, estabelecerem-se por conta própria no regresso. Os conhecimentos profissionais da mulher foram úteis durante a estadia no estrangeiro, pois permitiram à mulher arranjar um bom emprego numa fábrica de confecção. No regresso, contudo, António e Lucinda hesitaram entre a agricultura e a confecção de vestuário. Decidiram estabelecer-se na agricultura porque António tinha mais experiência nesta do que na confecção. O projecto do casal é comum, os dois trabalham na exploração, mas a esposa declara-se insatisfeita no plano profissional. Ela empreendeu, por si própria, nova produções rentáveis (produção de alfaces em estufa; criação de porcos), mas confessa não gostar muito do trabalho agrícola e ter umas certas saudades quando pensa nos seus «trapos». Esta tensão traduz-se na família por finalidades educativas divergentes ao nível do casal. António gostava que o filho viesse a ser agricultor, Lucinda gostava que ele tivesse uma profissão fora da agricultura e diz isso abertamente. O filho (com 18 anos em 1985) quis deixar de estudar mas continua indeciso relativamente à profissão de agricultor, o que irrita o pai e cria más relações de trabalho entre os dois homens. Finalmente, o filho decidiu emigrar para Inglaterra.
183O segundo caso é o de Manuel, filho de lavradores, casado com Helena, costureira, filha de um alfaiate que cultiva a terra a tempo parcial. A diferença de idade entre os dois cônjuges é bastante grande (15 anos) e o projecto deles é ficar na agricultura, tendo Fátima aceitado «ajudar» o marido. À partida, ela não contava trabalhar intensamente na agricultura. Segundo ela, sabia que Manuel era um agricultor experimentado e não receava ter que participar muito no trabalho agrícola se casasse com ele, pois ele tinha «organizado muito bem a vida dele». Ajuda essencialmente na ordenha e nos campos no Verão (nas vindimas, por exemplo). Manuel gostaria de ter um pouco mais de ajuda, mas tenta arranjar-se o melhor possível. Não se queixa mas reconhece que seria mais fácil se a mulher o ajudasse um bocado mais. Por exemplo, uma tarde, quando andava sozinho a trabalhar numa estufa a plantar alfaces, disse-nos: «Este trabalho leva imenso tempo, ia mais depressa se a minha mulher me ajudasse, mas enfim, eu cá me vou arranjando como posso.»
184Por fim, temos casamentos que não só contrariam a norma da homogamia social e profissional mas nos quais se estabelece um projecto familiar onde a divergência dos projectos profissionais dos cônjuges é aceite. É o que acontece com Fernando, lavrador que tomou a seu cargo a propriedade do pai e se casou com Emília, professora primária. É também o caso de João, agricultor contra vontade, filho de um grande lavrador de Gondifelos. João herdou uma das duas casas dos pais e casou com Lucília, professora primária filha de lavradores. É o caso de Manuel, futuro sucessor e actual rendeiro da casa, que casou com Isabel, filha de camponeses a tempo parcial, operária têxtil aquando do seu casamento e posteriormente aprendiza de cabeleireiro.
185Nos dois exemplos acima citados de lavradores que se casaram com professoras primárias, os casamentos efectuaram-se apesar de tudo dentro «do mesmo meio social»: o dos lavradores (aqui, os lavradores têm filhas que estudaram). João quis, ao casar-se com uma professora, separar-se um pouco do mundo dos campos, estratégia que o pai lhe proibira enquanto indivíduo quando ele era criança. Quanto a Manuel, apaixonou-se por uma pessoa de outro nível social e casou-se com ela, o que antigamente teria sido proibido. Isabel, a esposa, impôs como condição para se casar poder aprender a profissão de cabeleireira. Ao mesmo tempo, aceitou «ajudar» o marido nos tempos livres. No primeiro ano de casados, Isabel integrou-se na casa como «se esperava»: instalou o galinheiro ao lado do dos mais velhos, deixou de trabalhar na fábrica a seguir ao nascimento do primeiro filho, aceitou durante alguns meses de Verão pôr a criança numa ama a fim de ajudar o marido na época das colheitas. Mas depois, arranjou um estágio de cabeleireira e o marido apoiou-a, como lhe havia prometido. Isto criou uma tensão permanente entre os pais de Manuel e o jovem casal. Os mais velhos tentam convencer Manuel a dizer à mulher que ela devia ficar em casa. Por seu lado, a mulher aceita que Manuel seja agricultor, mas começa a achar que preferia que ele deixasse a agricultura e arranjasse um emprego. Deste modo, Manuel sente a pressão dos dois lados. Segundo ele, torna-se cada vez mais difícil para Isabel «fazer as duas coisas ao mesmo tempo como eles tinham pensado que seria possível». Quanto aos pais de Manuel, é um dos principais problemas que eles evocam quando se fala de sucessão: «(...) foi difícil, mas conseguimos segurá-lo e ele ficou, foi o nosso único filho a ficar na agricultura. Ela é da freguesia de M., e os pais dela trabalham no campo, mas é pouco, e portanto ela, ela sempre trabalhou na fábrica. E agora, está a tirar um curso de cabeleireira e isso complica muito as coisas. Ele sozinho, não pode fazer tudo, têm que se dedicar os dois ao trabalho do campo. Há tanto que fazer. Mas ela quer assim, e ele, ele apoia-a. Não sei como é que ele vai fazer.» (José, nascido em 1933, pai de Manuel.)
186Um caso destes constitui uma excepção, mas permite perceber o contexto familiar no qual emerge este tipo de escolha matrimonial, bem como o tipo de conflitos intrafamiliares que dela decorrem. Deste ponto de vista, constata-se que este género de escolha matrimonial é uma das consequências (inesperadas) do processo de inclusão precoce e forçada do sucessor. Os jovens sucessores que aceitaram ser incluídos na agricultura familiar e que não queriam estudar são os que melhor aceitam os «conselhos» homogâmicos e as pressões sociais que emanam do meio camponês. Em contrapartida, os que teriam gostado de estudar, parecem procurar, aproveitando um contexto onde as estratégias matrimoniais são reconhecidas como mais livres, aliar-se a outros grupos socioprofissionais. A primeira situação tem tendência a criar menos conflitos entre gerações; a segunda arrisca-se a provocar conflitos no interior das famílias, isto é, no interior do grupo doméstico de lavradores que «fica» na agricultura.
187Em resumo, podemos dizer que factores ideais (equilíbrio entre atracção mútua, homogamia profissional, persuasão dos pais) e práticas nem sempre coincidem no âmbito da escolha do cônjuge. O processo de inclusão restrita, a legitimidade recentemente adquirida de grupos sociais que preconizam um casamento de amor, a menor legitimidade da intervenção familiar no caso de «má escolha», todas estas contingências conduzem a um fechamento sociológico por vezes pouco marcado em torno do casamento ideal dos lavradores actuais (um casamento «aliança» assente no entendimento e na cooperação profissional, para toda a vida, em que dois parceiros com experiência do trabalho agrícola gostam um do outro e estão de acordo em gerir juntos uma propriedade rentável).
188Uma última questão, a da duração do casamento e das atitudes perante a ruptura conjugal, ser-nos-á útil para completar a análise do casamento e dos factores que intervêm na construção da vida conjugal. A definição ideal da escolha do cônjuge e o equilíbrio que esta pressupõe entre determinados factores deixa entrever que se procure criar a estabilidade conjugal e não a ruptura. Mas esta ocorre apesar de tudo: nos anos 40 e 50, só excepcionalmente é que se dá a ruptura definitiva de um casal (é o caso da emigração/desaparecimento de um herdeiro privilegiado, casado por conveniência com uma filha de lavradores vizinhos que lhe foi infiel e que ele deixou «por vergonha»). Menos excepcionalmente, mas de qualquer modo raramente, a ruptura pode também assumir a forma de «pequenas separações». Estas consistem numa interrupção da vida conjugal e no retomar, não de um novo papel conjugal, mas de outro papel familiar anterior (regressa-se a casa dos pais como filho/filha; vai-se viver com uma filha casada, etc.). Quanto ao «divórcio» como ruptura voluntária que permite voltar a casar, não era aceite no passado.
189Hoje, os casais de lavradores mais velhos dizem que estão contra o divórcio, mas concordam com a separação dos cônjuges em certos casos extremos. De facto, aceitam sobretudo o divórcio-separação dos cônjuges mais do que o divórcio-recomposição conjugal. Eis o que diz uma mulher da geração dos lavradores mais velhos:
«Não sou a favor do divórcio. O casamento é para toda a vida. Antes de a gente se casar, é preciso saber o que se faz, não é verdade? E depois, é preciso aguentar. Claro, se a cruz for muito pesada, se não se consegue aguentar, então... Por exemplo, quando o marido é mau. Se o marido não dá conforto à mulher e lhe bate por dá cá aquela palha. Há para aí muitos, e até há mulheres que aguentam isso, eu conheço umas poucas. Há homens, até parece, que não conseguem deixar de ser maus com as mulheres, com as filhas, que as tratam como escravas. Nesse caso, que Deus nos ajude! É muito difícil de aguentar, e mais vale uma pessoa separar-se.» (Joaquina, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1923.)
190A negação da ruptura conjugal e a aceitação da «separação» em caso de violência ou de «maus tratos» é acompanhada de uma insistência em certos factores produtores de estabilidade conjugal: um ofício comum, a entreajuda e o entendimento. Para tal, já vimos, é preconizada a homogamia socioprofissional e os laços criados por uma simpatia inicial (o facto de as pessoas gostarem uma da outra), depois desenvolvidos à medida que as pessoas se vão conhecendo. O bom marido/mulher é um «amigo do trabalho» (alguém que gosta de trabalhar), com quem nos entendemos e que pode acompanhar-nos no nosso projecto de vida futura. A paixão do trabalho e o projecto familiar futuro são mais importantes do que os outros factores. Por outro lado, como mostra o discurso de Mário, nascido em 1934 e casado em 1962, o amor paixão é considerado como um factor episódico, extraconjugal:
«A minha mulher e eu, antes de nos casarmos, conversámos muito um com o outro. Eu sabia que ela sabia da lavoura porque ela foi criada na lavoura e a gente falava, "nós fazemos isto, fazemos aquilo, temos gado, temos aquilo", conversávamos muito da vida. Eu via nela que era uma pessoa que... que servia para minha companheira, que me acompanhava naquilo que dizia, porque há coisas.... Toda a gente sabe, pode-se fazer as coisas de uma maneira ou de outra, mas ela concordava comigo e concordava em andar para a frente e não para trás. É por isso que eu entendia para mim, que ela me servia para esse fim, embora ela fosse filha de gente mais pobre que eu, mas para mim isso não foi que contou. O que contava era ter uma mulher que me ajudasse a ir para a frente como eu tinha vontade, não é, que pegasse da mesma maneira, agora se eu puxar para a frente e ela puxar para trás, não servia. E sempre nos compreendemos bem, sempre. As vezes a gente zanga-se por causa do trabalho, por causa disto, por causa daquilo. Mas daí a cinco minutos, já está tudo bem outra vez. O importante num casal, é dar-se ao respeito, compreender-se, não puxar cada um para o seu lado. Acho que se deve gostar um do outro. Hoje fala-se da paixão. Mas a paixão, a paixão acaba em dois dias, entra e sai pela porta. É preciso é gostar, quer dizer, respeitar-se e compreender-se no dia a dia e viver uma vida feliz, isso é que é muito importante num lar. Quanto às relações (sexuais), não, não acho que seja o aspecto mais importante. Para mim, o importante é, como lhe disse, compreenderem-se e viverem uma vida feliz. Se houver qualquer coisa, ignora-se... Um quebra-cabeças toda a gente o tem e são coisas que é melhor ser secreto da família. Às vezes a mulher pode não compreender e por essa razão pode querer vingar-se, e começa a fazer tudo às avessas dele, para se vingar. E então, começa tudo a andar para trás em vez de andar para a frente. (Pergunta: É motivo de separação o homem ter uma aventura?) Ai, não, não é causa para separação. (Pergunta: E se for a mulher a ter uma aventura?) Se for a mulher... Bom, os direitos são iguais, ambos podem errar. Mas já se sabe, a um homem nada se lhe apega, a uma mulher tudo se lhe apega. Bem sei que hoje há meios mas há sempre essa ideia... a mulher é sempre a parte mais fraca.»
191Entre os casais mais novos, valorizam-se também os factores do entendimento, de entreajuda e o projecto familiar. Mas já se hesita um pouco mais em pôr de lado o factor sexualidade. Pelo menos fala-se dele. Por exemplo, as mulheres discutem entre si o caso de um casamento recente em que o casal se separou ao fim de alguns meses porque, segundo elas, «ela não o queria». Os jovens reconhecem, pois, que o entendimento a este nível pode ser importante para a vida conjugal. É uma opinião que se opõe à da geração mais velha, segundo a qual toda a gente é «igual» sob esse ponto de vista, e que se aproxima do discurso das jornaleiras que dividem as mulheres em «quentes» e «frias» e afirmam que elas se casam mais cedo ou mais tarde em função dessas qualidades. No entanto, os jovens do meio rural abastado evocam duas limitações que condicionam fortemente a relevância dada efectivamente aos diferentes factores da conjugalidade e ao das relações sexuais em particular A primeira diz respeito ao controlo social exercido pela comunidade. Come diz Marta, jovem lavradeira ainda solteira, os jovens namoram sempre eu público. Ela considera que é difícil ter relações sexuais antes do casamento «porque a gente vive num meio muito fechado, onde tudo se sabe e onde toda a gente começa logo a falar». Surgem intromissões e pressões suplementares sobre as respectivas pessoas e sobre as suas famílias.
192A segunda limitação referida é o receio de se atribuir demasiada importância ao factor entendimento sexual, correndo o risco de pôr em causa um casamento que, do ponto de vista entendimento-homogamia-projecto, parece construir-se sem sobressaltos. Maria do Céu, casada em 1985 com 24 anos não quis ter relações sexuais antes do casamento — com medo, entre outras coisas, que isso destruísse o projecto matrimonial:
«Para mim, o meu marido era a pessoa ideal. Tinha assim um porte de homem. Conversámos muito. Disse-lhe que gostava de lavoura, e ele disse-me que os pais dele lhe arrendavam a terra. E eu vi que ele era uma pessoa boa. Acho que para casar é preciso sentir amizade, sentir que ele vai fazer uma pessoa feliz no dia a dia. O que é preciso é a personalidade e ver que com c dia a dia se vai ganhando amor. O amor vem com o futuro da vida, o futuro que se tem na frente. Por exemplo, eu namorei para um moço durante três anos. Tinha-lhe mais amor do que ao meu marido mas vi que ele não tinha futuro para mim. E não me arrependi. Quanto a relações sexuais antes do casamento, a gente não teve. Ele queria que a gente tivesse; dizia que queria conhecer a mulher que levava para casa. Mas toda a gente diz que as mulheres são diferentes umas das outras quando têm relações... E podia dar-se o caso de ele pensar que eu não era aquilo que ele queria que eu fosse e depois.. Então, achei que era melhor não ter. Mas há muita gente que tem relações antes do casamento. AS., por exemplo, casou-se e teve a filha ao fim de cinco meses. E essa ainda se casou, mas há outras que ficam solteiras. Foi o que aconteceu com o meu irmão, por exemplo. Namorou uma rapariga durante muitos anos, ela deixou-se ir, e no fim não se casaram. Ele dizia que ela não era a mulher ideal para ele. E eu acho que quando é assim, é preferível não se casarem. Mas também acho que se ela não lhe servia para casar, então também não lhe servia para o resto. Mas os homens podem ter ideias diferentes, não sei.»
193Estes jovens lavradores e lavradeiras, futuros sucessores, condenam, com maior ou menor veemência, o divórcio:
«Eu não concordo muito com o divórcio porque sou católica. Só concordo no caso em que um homem bata na mulher. Só nesse caso é que concordo. Noutros casos não concordo.» (Marta, 16 anos.)
«Eu acho que se uma pessoa se casa para depois fazer o que lhe apetece e não se entender com a pessoa com quem casou, isso não está certo. Mas afinal de contas, eu sei lá... se eu me casasse com uma mulher que bebesse demais, e ela passasse o tempo a aborrecer-me e não sei que mais, — a envergonhar-me —, se ela bebesse e passasse a vida sem fazer nada, não sei o que é que eu fazia. Mas se calhar a gente separa-se e ainda é pior. O melhor é ver bem o que se faz antes de casar.» (Miguel, 20 anos, sucessor da Casa V.)
«Eu, o divórcio, acho que não sou a favor. Não, não sou lá muito a favor. Penso que quando as pessoas se casam é para toda a vida.» (Carlos, 19 anos, sucessor da Casa C.)
194Em contrapartida, para o jovem casal da família Rodrigues, que fizeram um casamento de amor, heterogâmico tanto no plano profissional como no social, e sem qualquer projecto agrícola comum, e para Paulo, filho rendeiro da Casa E. — o mesmo que pretende casar com uma mulher por amor —, a insistência no casamento enquanto instituição perene é menos nítida. Nestes dois casos, advoga-se um casamento baseado no «amor e não no que a mulher terá ou virá a ser». E, facto talvez mais importante ainda, o casamento é encarado menos como instituição dominada por um projecto de empreendimento conjugal que enquadra o indivíduo durante toda a vida do que como um quadro interactivo no qual o entendimento conjugal deve predominar. Além disso, as exigências relativas ao que deve ser o entendimento conjugal tornam-se mais numerosas: exige-se não apenas o cumprimento dos deveres profissionais respectivos e o respeito mútuo, mas também a fidelidade e uma interacção pouco conflituosa:
«Eu acho que o divórcio deve existir, para os casais que não se entendem, que se zangam e que passam a vida a aborrecer-se um com o outro. E também, quando um deles é infiel o outro deve poder divorciar-se. Acho que o divórcio é uma boa coisa sob esse ponto de vista. Uma pessoa não deve ser obrigada a viver ao lado de outra durante toda a vida quando não se entendem.» (Paulo, 26 anos, rendeiro e sucessor da casa E.)
«Eu não sou contra o divórcio, porque acho que não vale a pena uma pessoa ser infeliz toda a vida. Portanto, o divórcio é de aceitar. Por exemplo, eu tenho uma prima, que fez um casamento de interesse, de puro interesse, e aquilo não deu certo. Ela não dormia com ele, ela não gostava dele, não o queria ver, até lhe tinha nojo. Então, passados três meses separaram-se e, mais tarde, assinaram os papéis do divórcio. Depois, ela começou a viver com outro rapaz, e primeiro tiveram uma filha, e há pouco tempo outra. Há um ano e meio que tiveram a segunda filha. Essa minha tia, era uma grande interesseira, fazia tudo por interesse, e obrigou a pobre da filha a casar.» (Isabel, nascida em 1964, mulher do rendeiro/sucessor da casa, cabeleireira e agricultora a meio-tempo.)
195Destas últimas opiniões, menos frequentes nas famílias estudadas, emerge um novo ideal: o de um casamento que seja fusionai ao nível afectivo e sexual e, se possível mas não obrigatoriamente, fusionai a nível profissional e social. Este significado mais centrado na «relação conjugal» não predomina neste meio mas podemos dizer, apesar disso, que todos os casais e jovens adultos insistem hoje na importância do entendimento conjugal, e não no entendimento familiar alargado, com vista ao casamento. No meio dos lavradores em geral, o ideal seria preservar os dois mundos: rejeita-se o casamento «arranjado» sem entendimento conjugal prévio, mas também se rejeita o casamento «por amor» sem uma colaboração profissional que sustente um projecto agrícola familiar. Em resumo, é o «casamento-aliança» que é defendido, sendo este interpretado como um projecto económico conjugal no qual os cônjuges se respeitam mutuamente, gostam um do outro e se auxiliam no trabalho e, se possível, se adaptam um ao outro em todos os domínios da vida conjugal. Trata-se de um projecto de vida onde, idealmente, a atracção mútua, o entendimento e a homogamia profissional protegem a vida conjugal das desavenças graves (maus tratos, humilhações, falta de cumprimento dos deveres e de participação conjunta no projecto, infelicidade) e portanto de qualquer desgaste dos laços susceptível de conduzir à ruptura.
— Conclusão
196Acabámos de examinar as principais produções da família rural abastada nos anos 80, procurando relacioná-las com as lógicas de produção que vigoravam num passado recente e com a sua evolução durante as últimas décadas. Em traços muito gerais, constatámos que estas famílias passaram de uma dinâmica familiar ideal onde se valorizavam «arranjos» e «amarras» para uma dinâmica onde se procura construir «entendimento» e motivações baseadas no «gosto». No primeiro caso, a tónica é posta nos factores de produção constrangedores da vida social: o trabalho físico e a actividade constante, a submissão do individual e do conjugal ao colectivo a longo prazo, o facto de se segurar e prender os sucessores, de se impor a vontade dos pais e de se comandar sem hesitações, de se poupar dinheiro em todas as circunstâncias. No segundo caso, a tónica é posta nos factores reguladores da vida familiar: a conciliação entre o trabalho intensivo e o tempo livre, a adaptação do empreendimento familiar e do auxílio mútuo aos gostos individuais, a poupança sem sacrifício, uma gestão das relações familiares baseada na persuasão e no entendimento.
197Mais precisamente, ao nível dos domínios familiares examinados neste capítulo, passou-se de uma produção económica baseada na auto-suficiência para uma produção centrada na especialização e na rentabilidade (sem descurar uma produção agrícola periférica destinada ao consumo interno).
198No âmbito do espaço de habitação, observam-se hoje relações menos estreitas com o mundo dos animais e do trabalho agrícola, e uma reorganização interna que reconhece sem hesitar o direito dos indivíduos e do casal a disporem de espaços mais autónomos e privados
199Quanto aos laços entre o indivíduo e a agricultura, abandona-se doravante o processo de ligação à terra baseado no hábito do trabalho agrícola incessante e nas amarras materiais do património, e propõe-se um processo de estímulo do gosto e da motivação, baseado numa aprendizagem precoce do trabalho agrícola e de retribuições sob forma de privilégios estatutários ou pecuniários. É também a partir deste tipo de estratégia que as famílias tentam efectuar a inclusão restrita, isto é, designar o sucessor que ficará com a exploração a seu cargo. Seguidamente, procuram sobretudo «ajudar» esse sucessor em vez de «privilegiá-lo» através da doação de uma quota-parte disponível, como se fazia no passado. Foi a isso que chamámos «sucessão assistida».
200No âmbito da reprodução, observa-se a passagem de um estilo procriativo baseado nas «precauções» e em estratégias isoladas de contracepção, para um estilo em que «se evita» os nascimentos através de meios modernos de contracepção e de estratégias conjugais mais concertadas. Neste contexto, preconiza-se dois ou três filhos como sendo o número ideal e favorece-se a ideia de uma infância mais «privilegiada» do que a de antigamente. Com efeito, o privilégio não decorre já automaticamente do facto de se pertencer a uma família abastada: deve ser construído graças à presença dos pais, aos cuidados que estes têm para com os filhos e a uma educação de base ou até prolongada.
201Por último, as relações conjugais, baseadas outrora na homogamia social, na vontade paternal e um pouco na atracção mútua, devem agora procurar responder, simultaneamente, aos princípios do «gostar» mútuo e da cooperação profissional, cedendo apenas um pouco à influência paternal na escolha do cônjuge. É pois aquilo que pode ser designado como «casamento-aliança», centrado no entendimento e na cooperação profissional, que predomina presentemente e que veio substituir o «casamento-arranjado» de outrora.
202A análise das transformações mostra que se desenvolveram novas pressões e influências sobre as famílias: são outros valores relativos ao poder, à igualdade e ao bem-estar na família, são novos constrangimentos e oportunidades socioeconómicas, são mudanças fundamentais nas instituições existentes (Igreja, Hospital, Escola, Estado-providência, organizações agrícolas, etc.) e na sua relação com a família. Estas transformações conduzem a uma redefinição progressiva da finalização, da inclusão e da produção familiares. Neste processo, a família não surge como um bloco, como uma instituição núcleo duro que não muda ou que decide não mudar. Pelo contrário, o carácter compósito (em membros e em valores) da família permite, por isso mesmo, múltiplos processos de fraccionamento e de recomposição possíveis, que condicionam a maior ou menor continuidade ou descontinuidade da fabricação familiar. Por exemplo, são as relações, simultaneamente de aliança e de confronto, entre várias gerações, que permitem ao grupo doméstico trabalhar ao mesmo tempo ao ritmo da geração mais velha e ao ritmo variável da geração mais nova. São também as estratégias individuais diferenciadas dos membros de uma mesma geração que introduzem linhas de clivagem sobre as quais assentará posteriormente a mudança familiar. Por exemplo, na família R., que teve oito filhos (dos quais três rapazes), o pai recusou-se a deixar o segundo filho rapaz estudar. No entanto, quando o terceiro filho pediu por seu turno para ir estudar, os irmãos apoiaram-no e os pais cederam à pressão dos filhos. O mais novo formou-se em engenharia. Deste modo, a cultura desta família integrou, a partir desse momento, o êxito de uma mobilidade social outra que não a da emigração ou da carreira eclesiástica, uma mobilidade mais centrada na «vocação» do indivíduo.
203Apesar do ideal de uma dinâmica familiar centrada no «entendimento», menos «escrava» do projecto a empreender, os condicionalismos decorrentes da inclusão precoce e do trabalho agrícola, que além disso se torna cada vez mais «conjugal», tornam por vezes difícil a aplicação prática do ideal. Por vezes, inventam-se soluções novas (ver, por exemplo, a «cozinha de lavoura», ou as «sociedades» entre irmãos). Noutras situações, recorre-se a soluções utilizadas ou defendidas pelas geração precedente: impõe-se a vontade dos mais velhos, obriga-se os jovens a trabalhar muito ou a efectuar um casamento homogâmico do ponto de vista profissional. Em resumo, o cruzamento permanente dos valores antigos e novos, de novas gerações e de gerações mais velhas, revela-nos um processo de mudança onde passado e presente ora se fundem ora se confrontam.
204Acrescente-se também que os novos factores de produção familiar — livre escolha do cônjuge, férias, atracção e ruptura conjugal, igualdade absoluta entre os herdeiros, horários menos intensivos, etc. — se coadunam mal com a lógica, que permanece institucional e instrumental, de uma empresa agrícola familiar transmitida de geração em geração e, no contexto socioeconómico estudado, baseada no trabalho intensivo de casais que procuram modernizar e «rentabilizar» a exploração.
Elementos de troca e de integração
205Na análise das trocas na família auto-suficiente do passado, mostrámos que a reciprocidade era difusa e diferida mas que os contributos e as retribuições eram constantemente postos na balança, tendo como referência a amplitude da dívida e o tempo intergeracional. Na família de lavradores, a partilha aparentemente incondicional e voluntária, sem retribuição imediata, não excluía as contabilidades a longo prazo e, por isso, o tema da justiça na família rural abastada. Os ódios e as lutas internas acompanhavam contabilidades complexas que, para os intervenientes, eram cruciais do ponto de vista da sua sobrevivência.
206Trata-se agora de analisar o que acontece quando o volume das trocas diminui, quer pelo facto da duração do projecto familiar ser sentida como potencialmente mais limitada, quer pelo facto da maior autonomia dos membros da família os levar para destinos quotidianos diferentes.
— Principais condições das trocas actuais
207Examinemos em primeiro lugar as representações ideais do volume das trocas familiares, para vermos em que casos são elas consideradas como mais limitadas.
208A análise que efectuámos nos capítulos precedentes permitiu-nos observar que a finalização da família empreendedora dá mais importância à rentabilidade imediata da exploração agrícola no presente do que à continuidade da «casa» a longo prazo. Contudo, os actores recusam pôr em causa as trocas intergeracionais a longo prazo. Por um lado, de facto, admitem como pouco provável que possa haver uma falha na sucessão à frente da exploração familiar; por outro, não admitem que os pais fiquem na velhice sem um dos filhos ao seu lado. Deste modo, mesmo que a sobrevivência do grupo e da exploração já não se confundam no objectivo de reprodução da «casa», postula-se uma nova relação funcional entre família e exploração agrícola: a que consiste em perpetuar, através das relações conjugais e intergeracionais, os laços com o trabalho profissional agrícola e com as terras da família. Esta relação funcional justifica-se na medida em que o património fundiário pertence à família, e isso é constantemente evocado pelos sucessores. Mesmo os menos motivados o referem, como o Paulo, que teria querido estudar: «Era preciso que alguém tomasse conta das terras. Eu também não gostaria de ver as nossas terras a monte, e o meu pai já não podia tratar delas. Desde pequenos que o meu pai nos ia mentalizando para isto, que tínhamos de trabalhar, que isto era nosso e se não trabalhássemos, isto ia ficar a monte, e que no fundo isto era uma profissão como qualquer outra.»
209Além disso, a influência exercida pela comunidade é considerável: nas aldeias onde a pressão sobre a terra é grande, condena-se severamente o grupo doméstico que deixa as terras ao abandono e que, não sendo capaz de cultivá-las em família, não as «dá» (alugando-as ou gratuitamente) a outro grupo doméstico. A ideologia da sucessão, por um lado, e a pressão comunitária sobre o usufruto da terra, por outro, contribuem para activar os laços entre as gerações no que respeita à exploração do património fundiário.
210Hoje em dia, a definição ideal das trocas familiares não oferece pois qualquer resistência à ideia de que os membros de cada família devem contar em primeiro lugar com a sua própria família, e desenvolver trocas intensas entre a geração mais velha (os pais actuais) e a mais nova (os filhos, jovens adultos actuais). As normas de bom comportamento familiar recolhidas nas famílias observadas revelam até que ponto os membros das famílias, seja qual for a geração a que pertençam, são sensíveis a esta questão:
«Os pais devem dar sempre ao filho aquilo de que necessita e ajudá-los sempre. Os filhos, não é como os passarinhos, que voam. Os pais são para toda a vida, e um filho também, também é para a toda a vida.» (Augusto, nascido em 1965, trabalhador familiar.)
«A gente tem de olhar pela vida dos filhos. Cuidar deles, dar-lhes bons conselhos toda a vida... Não é ver-se livre dos filhos e eles que tratem da vida deles, isso acho que não. A gente trabalha pelos filhos, e estes têm obrigação de ajudar.» (António R., lavrador de Gondifelos, nascido em 1931.)
211Quando, numa das nossas primeiras conversas, pedimos a uma lavradeira de 37 anos que nos dissesse com que idade é que ela achava que os filhos deviam ser independentes, eis o que nos respondeu a propósito do tipo de reciprocidade intergeracional considerada correcta entre pais e filhos adultos na família dela: «Pois, se um dos filhos ficar aqui, na agricultura, é preciso dar-lhe alguma coisa. Mas se eles quiserem ir todos estudar e empregar-se, nesse caso são eles que têm de dar alguma coisa para a casa.» Por outras palavras, considera-se que uma certa independência económica dos filhos é necessária, mas que esta se deve situar no âmbito geral de interdependência familiar. Como explica Augusto, «Quando os pais trabalharam sempre pelos filhos, os filhos têm obrigação de dar uma parte do dinheiro quando começam a ganhar, mas podem guardar uma parte.»
212A dependência e a entreajuda entre gerações são pois consideradas elementos indispensáveis da vida familiar. Justificam viver com outros parentes em famílias complexas, apesar de uma preferência pela família nuclear:
«O casal e os filhos sozinhos, é talvez melhor do que haver terceiros a viver em casa, os pais ou a tia, como aqui em minha casa. Mas é preciso uma pessoa poder encostar a alguém, para ter também quem tome conta de nós. Até se torna simpático. Claro, às vezes metem-se na nossa vida.» (Rosa, lavradeira nascida em 1947, família complexa.)
«Eu cá acho bem que os filhos continuem a viver com os pais. Pelo menos um dos filhos. O que eu não acho bem, é que uma pessoa chegue a velha sem ter ninguém para tratar dela. Por isso, enquanto os pais fazem as coisas, os filhos ajudam-nos. E quando os pais já não podem mais, são os filhos que os substituem e que tratam das pessoas de idade. Geralmente, os mais velhos continuam apesar de tudo a ajudar, por gosto.» (Conceição, nascida em 1953, lavradeira de Lemenhe, família simples.)
«Mais do que uma mulher numa casa, dizem que dá mau resultado se não for mãe e filha. Mas claro, as pessoas de idade, é preciso olhar por elas, os velhos chegam-se aos novos e os novos aos velhos, embora hoje os novos não se cheguem tanto aos velhos.» (António, lavrador de Lemenhe, família simples.)
213Encontramos aqui uma condição estrutural importante da troca: o assumir do tempo intergeracional, que leva a centrar as trocas familiares numa longa duração de reciprocidade potencial. Isto poderia em princípio favorecer uma reciprocidade difusa e diferida. Contudo, existem outras condições de troca que não parecem ser tão favoráveis à construção de uma reciprocidade ampla e diferida. Para o compreendermos, é conveniente examinar outro dos aspectos fundamentais que condicionam as trocas familiares: a interpretação social da dívida, do seu volume e das suas direcções, interpretação que recentemente se modificou.
214Em primeiro lugar, o facto de se estar menos dependente, quer do ponto de vista económico quer social, da sobrevivência oferecida pela «casa», vem reduzir a dívida dos jovens e dos solteiros para com os pais e para com irmãos casados/sucessores. O facto de se alimentar os filhos e de se assegurar a sobrevivência já não cria obrigações suplementares a esses filhos, pois todas as famílias da aldeia o fazem actualmente. Nenhuma criança de sete anos vai hoje em dia trabalhar para casa de um lavrador rico da aldeia ou para a cidade porque os pais não o podem alimentar. Educar e alimentar os filhos até aos dez ou doze anos foi-se tornando a pouco e pouco uma obrigação familiar cumprida por todos. Neste sentido, as famílias dos lavradores já não constituem excepção relativamente às famílias em geral.
215Por outro lado, a partir do momento em que se valoriza a educação como via privilegiada de aquisição de um estatuto social elevado, o facto de se «ficar» na agricultura familiar pode criar um endividamento dos pais em relação aos jovens sucessores. E se a inclusão precoce é decidida pelos pais contra os desejos do filho, o que outrora era visto como um privilégio é visto actualmente como um dever que é aceite com alguns custos.
216Nota-se também que a dívida dos pais para com os filhos intervém mais cedo no ciclo de vida familiar. Antigamente, o filho era duplamente devedor (tinha sido gerado e tinha recebido os meios de sobrevivência), e saldava essa dívida original para com os progenitores trabalhando. Os mais velhos só se tornavam seus devedores quando o filho continuava a trabalhar sem retribuição e já tinha ultrapassado a idade normal de se casar. Hoje em dia, dado o novo significado social da criança, os pais «devem-lhe privilégios» desde o nascimento. A ideia da dívida do filho continua presente, mas a dívida parental (cuidar da criança e dar-lhe até certas «regalias») e a dívida do filho (ajudar os pais e cuidar deles) estão mais equilibradas. Mais do que antigamente, pois, esta interpretação da dívida exige uma reciprocidade menos diferida, mais imediata. Exige, segundo Augusto (lavrador nascido em 1944), «que os filhos deixem de ser escravos, que sejam respeitados».
217As normas relativas às relações ideais entre pais e filhos, e mesmo as referentes à educação dos filhos, põem em evidência esta nova interpretação da dívida. Toda a gente subscreve, por exemplo, a ideia de que os pais não devem «abusar» da autoridade para com os filhos, obrigando-os a trabalhar sem ter em consideração o seu bem-estar e o facto de serem «crianças». No entanto, as opiniões das diferentes gerações por vezes divergem. Para os avós actuais, as crianças não podem saber o que é o amor ao trabalho e às coisas senão «no duro» ou «amargando» (José, lavrador reformado, nascido em 1915.) Em contrapartida, os pais actuais consideram que a criança deve ser «dominada pelos pais», mas que também é preciso «que os pais respeitem os filhos». Vejamos dois exemplos típicos:
«Os filhos devem ajudar os pais, mas quando querem alguma coisa, podem pedir. Agente, nem sequer se podia abeirar dos nossos pais. Eu sei que os meus filhos não vão gastar à toa o dinheiro que eu lhes dou. Se passa um filme no cinema, não os vou proibir de o verem. Eu, quando era miúdo, era sempre não. Mas a gente tem que ver as coisas de outra maneira, porque os pais não são nenhuns bichos e as crianças também não. Os tempos mudam e não se pode andar sempre a ralhar com os filhos.» (Mário, lavrador, nascido em 1933, com dois filhos.)
«Eu cá eduquei os meus filhos nesse sistema — como se diz agora — menos severo. Ou seja, educá-los não espancá-los, mas quando for preciso também dar umas chicotadas, para também não deixar que eles queiram dominar o pai. O pai é que os tem de dominar a eles. Não tem havido problemas, lá nos vamos entendendo. Não é preciso terem aquele grande medo como nós antigamente. Mas eles obedecem-me a mim como pai e eu a eles também os respeito como filhos.» (Augusto, lavrador, nascido em 1944, quatro filhos.)
218A geração mais nova idealiza não só o respeito «mútuo», mas também outra qualidade de relações. Para os jovens, «ajudar é uma obrigação, só um filho que não tenha consciência é que pode pensar de outra maneira.» (Carlos, nascido em 1970.) Todavia, pensa-se que os pais são demasiado severos, e que têm tendência para abusar. Segundo Augusto (nascido em 1965), do mesmo modo que ele age em consequência quando sente que precisam de ajuda ou de dinheiro lá em casa, gostaria que os pais lhe «dessem um pouco mais de liberdade, não abusassem da sua autoridade e tentassem compreender melhor os filhos quando estes querem uma coisa qualquer. Os bons pais são os que se mostram compreensivos; se não passa a vida a haver discussões.» Na opinião de Marta, «é preciso respeitar e ajudar os pais e, se possível, poder falar com eles sobre os problemas grandes.» Lamenta que isso não seja possível na família dela porque, como ela diz, «não tenho essa confiança com eles. Eles não iam compreender e tenho medo da reacção deles. Não digo que reagissem violentamente, mas, por exemplo, de certeza que não me davam razão.»
219Apesar de uma norma que propõe um regime «menos severo» e o respeito mútuo, a interpretação da geração dos pais está ainda fortemente marcada pela ideia de que os jovens e os recursos que estes representam se encontram à sua disposição. No discurso habitual, encontramos frequentemente expressões que sublinham esta ideia. Por exemplo, diz-se da filha de um casal de lavradores que foi entregue aos avós aos 17 meses para ser criada por eles, que «foi dada às tias» solteiras. Igualmente, quando um pai ou uma mãe fala do futuro dos filhos, em geral diz: «hei-de pôr um na escola e o outro há-de ficar em casa». A propósito da sucessão, Maria dos Anjos, lavradeira, diz-nos: «pensámos sempre em pôr um ou dois dos nossos filhos na lavoura. É preciso, porque hoje em dia há falta de mão-de-obra. Já não há criadas, e portanto é preciso que seja a família e os filhos a tratar disso. Temos dois na lavoura.» Dito de outra maneira, a instância «nós-família» apropria-se simbolicamente não apenas dos campos e das vinhas, mas também, em parte, do destino dos filhos.
220A geração mais nova não põe em causa as obrigações (de trabalho, de ajuda mútua, de responsabilidade) implicitamente contidos nas relações a longo prazo entre pais e filhos mas, em contrapartida, sente-se no direito de protestar ou de fazer reivindicações em caso de conflito ou de abuso por parte dos mais velhos. Assiste-se assim muitas vezes a cenas em que os pais dão ordens, mas os filhos protestam quando acham que a ordem dada é inoportuna ou desadequada. Por consequência, os pais queixam-se, dizendo que os filhos já não são «humildes» como antigamente, que «os filhos querem dizer aos pais o que estes devem fazer», que «é difícil segurar os filhos». A geração mais nova, por sua vez, considera que «a autoridade dos pais não se deve manifestar em todas as situações nem a todos os níveis». (Miguel, nascido em 1965.) Eis o género de tensões que se criam na vida quotidiana:
221(Oito horas da manhã. O pai, a mãe e o filho/trabalhador familiar acabam de tomar o pequeno-almoço na «cozinha de lavoura». A mãe e o filho (18 anos) levaram as vacas ao posto do leite antes do pequeno-almoço. O pai distribui agora o trabalho da manhã):
O pai: Augusto, vais fazer palhada para o gado e depois vens semear erva.
O filho: O gado ainda está a comer troços de milho. Se...
O pai: Não interessa, vais fazer.
A mãe (em tom conciliador): Augusto, vais preparando.
O filho resmunga, não diz nada e, com ar resignado, dirige-se ao estábulo. (Observação directa, Setembro de 1986.)
222Muitas das entrevistas referem episódios conflituosos bastante violentos entre pai e filho, ocorridos nos últimos anos:
«Entre pais e filhos, a coisa está difícil. Claro, quando é como na casa J. (casa onde os sucessores são sobrinhos), como eles não são filhos, esses são mais mansos, mais humildes; senão, eram postos na rua. Mas actualmente, os filhos, são eles quem manda nos pais. Ah, se eu lhe dissesse as coisas que tenho visto... Em casa dos vizinhos, há três anos, o filho enfrentou o pai com a forquilha na mão. Verdade se diga que ele tinha mau génio, o pai. Mas, agora, os filhos não se deixam rebaixar... Por isso é difícil quando se vive na mesma casa. Em casa dos J., eles estão melhor do que se fossem os filhos.» (Daniel, lavrador de Lemenhe, nascido em 1944.)
223Finalmente, falta ainda sublinhar uma última condição das trocas actuais: a que se refere aos novos símbolos de um nível de vida abastado. Outrora, a longo prazo, era em termos de património que os membros da família concebiam a retribuição. O longo prazo evocava uma compensação em terras, em bens móveis, ou então a constituição de uma «reserva» na casa. E o curto prazo estava ele próprio subordinado ao longo prazo: se se retribuía um filho adulto dando-lhe uma vaca ou um pedaço de terra para semear, era para que ele pudesse preparar o «futuro», juntando gado ou dinheiro para pagar tornas ou comprar mais terra. Mas actualmente os sinais de riqueza são outros. O rendimento pecuniário da exploração agrícola tem de ser exibido, e as retribuições são pensadas em termos tanto do presente como do futuro. Aliás, a inclusão precoce do sucessor prevê já uma forma de retribuição menos diferida. Com efeito, quando um filho pensa trabalhar a tempo inteiro na agricultura familiar, diz-se sempre que ele vai poder «ganhar um ordenado equivalente ou superior ao que ganharia se tivesse um emprego». E, para além da alimentação (melhor e mais abundante) e a roupa, o modo de retribuição actual passa sobretudo pelo dinheiro ou por outros bens raros, como uma moto ou um automóvel.
224Estas novas exigências têm consequências em termos das trocas familiares assim que os filhos atingem a adolescência. Como não se pode retribuir vários filhos com dinheiro e um automóvel, é preciso encarar que uma parte dos jovens adultos da família se venha a empregar no exterior. Os pais têm pois que reconhecer, mais cedo do que antigamente no ciclo de vida do filho, uma certa autonomia por parte do jovem adulto e o direito dele a negociar o seu contributo efectivo (em trabalho e/ou em dinheiro) na sociedade familiar.
225Em resumo, a duração das trocas familiares é ainda sentida como potencialmente longa, mas o volume das trocas é apesar de tudo um pouco mais limitado. Por um lado, os novos termos de endividamento acarretam uma redução das obrigações (uma dedicação quase incondicional da parte dos filhos, por exemplo, é menos frequente) e exigem uma reciprocidade menos diferida. Por outro, o reconhecimento da autonomia parcial do jovem adulto reduz a quantidade potencial de trocas entre adultos e jovens adultos que residam numa mesma casa/exploração agrícola. Finalmente, o desaparecimento dos criados e dos colaterais reduz a rede de pessoas que participam nas trocas actuais do grupo doméstico.
226Esta tripla tensão — entre a reciprocidade difusa e diferida a longo prazo e a reciprocidade imediata, entre as exigências de uma solidariedade ainda bastante ampla e a redução da rede de pessoas susceptíveis de satisfazê-la, entre a fusão dos destinos e a autonomia parcial das partes — vai influir na construção familiar das trocas nos vários domínios da vida quotidiana. A fim de se compreender a maneira como as famílias gerem as novas condições de troca, vamos examinar em primeiro lugar os modos de apropriação e de repartição de alguns bens trocados quotidianamente no interior das famílias: a alimentação e o espaço de habitação, o trabalho doméstico e agrícola, e por último, o dinheiro.
— Apropriação e repartição das cozinhas e da comida
227Ao nível da comida, é conveniente lembrar que, no passado, se preconizava uma apropriação comunitária da comida (todas as pessoas que faziam parte da casa tinham direito a partilhar o pão). Contudo, em termos de repartição, existia uma tensão entre uma repartição segundo o princípio das necessidades (ponderado pelo estatuto, o sexo e a idade) e uma repartição que tivesse em conta em primeiro lugar os estatutos diferenciados. Sobretudo nas casas mais ricas, havia tendência para se efectuar uma repartição estatutária, o que favorecia a existência de mesas e de refeições diferentes, fazendo-se a separação em função do estatuto dos diferentes membros da família. Assim, os patrões (incluindo, por vezes, o filho futuro sucessor) comiam de um lado, e os outros filhos e os criados de outro.
228Ao evocar estas separações, por vezes ligeiras, por vezes mais acentuadas, Altino, lavrador de Gondifelos, observa: «Hoje, os reizinhos acabaram, como o Salazar! Hoje em dia, toda a gente ganha o seu, são todos iguais». Será que a família de lavradores mudou deste ponto de vista, privilegiando menos o estatuto no seu modo de repartição dos bens? Ou será que ainda existe uma tensão entre o estatuto e as necessidades?
229Actualmente, a comunidade doméstica é mais pequena: já não há criadas, os jornaleiros são raros. Em família, está-se entre pais e filhos, muitas vezes com um ou dois avós, muito raramente com uma tia ou um tio solteiros. No contexto desta rede familiar mais restrita, a convivência (à volta de uma só lareira e uma só mesa) é preconizada e praticada em todas as famílias simples e nas que são alargadas por um pai ou uma mãe viúvo/viúva. A lareira é gerida pelo «casal dirigente», e é este que está encarregado de «pôr a comida na mesa». Por outro lado, a tensão em torno da repartição da alimentação diminuiu. Outrora, quando se punha na mesa um bem raro (carne de porco, por exemplo), era o pai quem distribuía as rações, e um estatuto elevado (patrão, homem, trabalhador do campo) valia uma ração melhorada ou à parte. Hoje, é posta na mesa carne suficiente para todos os membros da família e cada um serve-se. O estatuto intervém sobretudo para determinar a ordem pela qual os membros da família se servem: o pai (depois a mãe se for uma das filhas a cozinhar e a servir à mesa), depois as crianças; a mãe em último lugar se for ela a cozinhar. Como faz notar Maria Albertina, lavradeira nascida em 1944: «Dantes, comia-se muito mal. Em casa dos meus pais, éramos muitos, e os meus pais compraram muitas terras, porque queriam ver se deixavam os filhos mais ou menos. E andavam assim sempre sem dinheiro. Ou havia de ir para as terras ou havia de ser para a gente comer. A bem dizer, era assim em todas as casas. Comia-se sempre muito mal. Agora, come-se melhor e comese de tudo. E ninguém liga às rações; a gente serve-se, e pronto.»
230Em contrapartida, nas famílias múltiplas, em vez de se pensar na convivência (uma lareira e uma mesa), propõe-se uma norma ideal de separação (duas lareiras e duas mesas), pondo-se assim em relevo o estatuto e a autonomia de cada um dos casais. Esta norma conduz a uma apropriação segregativa dos meios de produção e de reprodução.
231No passado recente, a troca ideal tinha em conta simultaneamente os interesses da casa e os do casal, produzindo uma tensão normativa que se traduzia em práticas variadas. Algumas dessas práticas tendiam a equilibrar os dois factores (a existência de duas cozinhas ou, mais raramente, de duas casas). Outras conferiam mais peso aos interesses da casa e não privilegiavam o estatuto do casal (convivência dos dois casais e uma única lareira).
232Hoje, pelo contrário, preconiza-se claramente uma apropriação do espaço, dos meios de produção e das mesas, que tenha em conta as necessidades e as possibilidades de autonomia de cada casal. Nas famílias estudadas, a norma de «casamento-apartamento» é interpretada no seguinte sentido: cada casal tem necessidade de formar um «lar», mesmo que isso se passe no interior de um edifício comum que abriga a família múltipla. Vejamos um discurso típico a propósito disto: «E preciso que o casal seja unido. É mais importante do que a casa. A sociedade está lá em baixo, o lar é aqui, ao cimo das escadas. Trabalhamos todos juntos se for preciso, mas à mesa ficamos separados, mesmo que os produtos venham todos do mesmo. Aqui a gente forma uma sociedade. Uns trabalham fora, os outros dentro, o que produzimos é para todos e divide-se. Mas ao fim do dia, cada um vai para o seu canto da casa, a sua mesa, do mesmo modo que para dormir, cada um tem a sua cama. É o lar que governa e dois casais, não é um lar. Cada casal é que é um lar.» (A., lavrador, nascido em 1938.)
233A diminuição da pressão exercida pelos interesses a longo prazo da «casa auto-suficiente» favoreceu a expressão mais clara de uma ideologia familiar conjugalista, de uma ideologia do «lar». A interpretação deste ideal varia contudo consoante as gerações. Na geração das pessoas mais velhas — a dos avós e a dos pais — verifica-se a influência da ideologia da «casa», que leva a «sacrificar», se necessário, as necessidades do casal. Em geral, no entanto, toda a gente está de acordo em dizer que «se se puder, é melhor o casal ter uma cozinha separada»:
«Eu acho que eles (o casal novo que vai ficar em casa) deviam ter uma cozinha à parte, para poderem estar à vontade deles, e para nós também estarmos à nossa vontade. Penso que são as cozinhas que devem ser separadas. Isso é o mais importante.» (Maria Albertina, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1944.)
«A cozinha separada, é o melhor. Dantes, havia raparigas que viviam com os sogros e tinham que fazer tudo à vontade deles. Tinha que se comer sardinhas mesmo que não apetecesse sardinhas; se não lá vinham logo os comentários. As pessoas ficavam de mal a maior parte das vezes por causa de coisas destas, por causa da mesa. Fulano era muito guloso, era isto ou aquilo. No caso da comida, é difícil fazer as coisas em conjunto. As pessoas mais velhas estão sempre a controlar tudo.» (Olinda, lavradeira, nascida em 1935.)
234Esta geração mais velha defende que se separem as despesas, admite uma certa autonomia ao nível das sociabilidades (de que a cozinha é o principal eixo), mas subscreve, no que se refere à vida familiar, uma lógica de coesão e de similitude social que vem agregar os subgrupos.
235A vida conjugal tal como é encarada pela maior parte dos jovens adolescentes segue de perto este ideal de integração de uma vida conjugal parcialmente autónoma num espaço mais amplo de vida familiar:
«Não sei se é melhor ter uma casa independente quando uma pessoa se casa. Acho que sim que deve ser preferível ter uma casa independente. Mas eu, eu vou ficar aqui, porque se não os meus pais iam ficar sozinhos. Mas eu acho que se irá fazer outra cozinha. A minha mãe já falou nisso. Talvez a arrecadação ali, um dia que eu me case, talvez sirva para fazer a cozinha. Eu acho que numa casa tudo é importante, mas principalmente a cozinha. Porque geralmente, as pessoas a comerem juntas e tudo, têm tendência a zangarem-se mais depressa umas com as outras. Casamento, apartamento, é o que se costuma dizer. Eles já falaram disso, mas ainda não é assim a sério, porque eu ainda não namoro.» (Marta, 16 anos.)
236Observa-se todavia em certos jovens sucessores, uma insistência mais marcada, a nível subjectivo, no factor «independência do lar». Na casa dos Rodrigues, família múltipla em que os avós vivem na mesma casa que o neto casado, com cozinhas e quartos separados mas uma varanda, uma sala e um quarto de banho comuns, a geração mais velha descreve esta repartição do espaço nos seguintes termos: «É tudo em conjunto, só a cozinha é separada.» Por seu lado, Manuel, o neto, descreve a mesma divisão do espaço dizendo: «É tudo independente; é a mesma casa, mas é tudo independente.»
237Encontramos assim, nalguns jovens sucessores, uma norma ideal em que o imperativo da independência conjugal é mais forte. Em vez de pôr a tónica simultaneamente na autonomia conjugal parcial e na fusão do conjunto, insiste-se numa maior autonomia do casal e num laço mais contratual com a sociedade familiar agrícola. Se bem que tal seja expresso confusamente, as pessoas gostariam de alargar os domínios de liberdade do lar, e de vê-lo adquirir uma autonomia não só quanto à mesa mas também quanto ao modo de vida, às suas decisões internas e aos seus gostos. É assim que Isabel, a mulher de Manuel, pensa que gostaria muito de «construir uma casa ao nosso gosto, era mesmo o meu sonho». Aliás, para esta rapariga e o marido, o que conta é a aliança que formaram entre si. Não consideram estar — muito pelo contrário — sempre de acordo com a geração mais velha e não se importam que os ascendentes estejam em desacordo com a sua maneira de agir e de pensar.
238Voltemos entretanto à questão mais precisa da repartição das cozinhas, nomeadamente no plano dos comportamentos objectivos.
239Em que medida é que as práticas nas famílias múltiplas seguem a norma ideal da autonomia conjugal das mesas e dos lares, ou sofrem a pressão de outros factores contingentes? Nas famílias múltiplas analisadas, pudemos observar três práticas distintas: a de duas lareiras e duas mesas (a mais frequente), a de duas lareiras e uma só mesa, e a de uma só lareira e uma só mesa.
240No que respeita às duas primeiras práticas, o significado social da repartição das lareiras é a mesma: uma das lareiras pertence a um casal mais velho reformado, a outra a um casal sucessor que dirige a propriedade. Cada um dos casais tem os seus próprios rendimentos, o seu galinheiro, etc., e cozinha na sua própria lareira com «os seus produtos». Porém, há sempre uma ligeira imbricação das mesas e das lareiras, pois esta é considerada justificada no quadro da ajuda intergeracional. Por esta razão, em casa dos Correias, os filhos do casal mais novo podem comer na cozinha dos avós, o que fazem regularmente em tempo de aulas, sobretudo quando a mãe regressa do campo à hora a que eles têm de ir para a escola. Em casa dos Sousas, a filha e a mãe têm cada uma o seu fogão na cozinha, mas a grande horta da mãe alimenta as duas panelas. O facto de se tratar de mãe e filha permite, do ponto de vista dos intervenientes, uma maior proximidade e uma certa mistura, pois ambas estão habituadas a circular pela cozinha sem qualquer problema. Finalmente, em todas as famílias múltiplas com duas cozinhas, come-se em conjunto nos dias de festa e nos dias dos grandes trabalhos que mobilizam as energias de todos os membros da família múltipla. Aquando desses trabalhos, é a mulher do casal mais velho que trata das refeições, o que liberta o casal mais novo de qualquer preocupação caseira.
241Vemos pois surgir pelo menos dois factores, um de ordem instrumental (ao nível das tarefas), o outro de ordem interaccional (relações de parentesco por consanguinidade entre as mulheres dos dois casais), que podem conferir contornos especiais à aplicação prática da norma separatista dos espaços, das mesas, dos produtos. Ambos vão no sentido de uma atenuação da separação e tornam mais flexível a aplicação da norma ideal. Também é preciso não esquecer que, num contexto em que faz falta a mão-de-obra assalariada, esta flexibilidade que permite juntar os esforços e as mesas é uma ajuda importante para o casal lavrador. Deste modo, reconhecendo a cada um dos casais uma certa margem de autonomia, produzem-se apesar de tudo condições favoráveis a uma cooperação do conjunto familiar.
242A terceira prática evocada no âmbito da família múltipla — a convivência (uma lareira e uma mesa única) — possui um significado diferente. Neste caso, o facto de se aceitar partilhar a lareira e a mesa deve-se ao carácter «temporário» da família múltipla e das trocas entre os dois casais. Assim, em casa dos Gomes, a filha destes, uma professora primária casada com um empregado bancário, está a construir, não muito longe de casa dos pais, uma moradia nova. Enquanto esperam que a casa fique pronta, os dois casais partilham a mesma cozinha (o que se torna também mais fácil pelo facto das duas mulheres serem mãe e filha).
243Em resumo, no plano das práticas, temos famílias múltiplas que seguem a norma das cozinhas separadas com uma certa flexibilidade. Isto introduz, em determinadas épocas do ano ou do ciclo de vida familiar, uma alteração parcial da separação das lareiras e das mesas, aproximando mais, durante algum tempo, os dois lares ou algumas pessoas (por exemplo, os avós e os netos pequenos). Neste sentido, as práticas estão mais próximas da representação «fusão/autonomia parcial do casal» própria da geração dos pais do que da representação ideal, que emerge em determinados sucessores, de uma «independência conjugal/laços negociados com a instância familiar».
244Verifica-se igualmente que os condicionalismos familiares, sobretudo económicos, que se observavam outrora em torno das trocas de alimentos diminuíram consideravelmente. O facto de haver uma maior abundância e de se exigirem menos sacrifícios em termos de acumulação de património, permite, sem criar demasiadas tensões, uma repartição baseada nas necessidades de cada um dos indivíduos e na vontade de autonomia de cada um dos casais.
— Apropriação e repartição do trabalho agrícola
245O trabalho (e a terra) representavam, segundo a lógica da casa auto-suficiente, os pilares principais daquilo a que se pode chamar a comunidade familiar. O trabalho definia, a par da consanguinidade, a pertença à casa auto-suficiente e também constituía o principal contributo em termos de trocas familiares. Para se ser considerado «amigo da família», era preciso ser-se considerado «amigo do trabalho». Trabalho e família implicavam-se pois mutuamente, sendo o sucesso da «casa» atribuído em primeiro lugar a essa dedicação absoluta dos membros da casa ao trabalho.
246Esta ética do trabalho perdeu, como vimos, a sua importância central na produção do sucesso económico da exploração agrícola. No entanto, também se constatou que ela constitui um dos factores importantes de socialização à profissão agrícola e que, em virtude da penúria de mão-de-obra, o trabalho intensivo dos membros da família permanece tão indispensável como antigamente. Esta situação cria uma exigência de mobilização das energias de trabalho que pode ser interpretada subjectivamente de diversas maneiras. Por um lado, a geração dos mais velhos (pais e avós) opta por uma aproximação aos valores antigos. Defende-se uma apropriação comunitária em que toda a gente se deve «amarrar» ao trabalho agrícola e nele participar — sobretudo o casal dirigente, mas também as crianças na medida das suas possibilidades (são tidas em conta as suas necessidades escolares, por exemplo). Ao nível das famílias observadas, é esta norma ideal de apropriação do trabalho agrícola que predomina.
247Por outro lado, encontramos, nalguns jovens sucessores, uma hesitação entre o ideal da apropriação comunitária tal como a descrevemos e o ideal da apropriação centrada num subgrupo — no marido, por exemplo, enquanto principal profissional agrícola. Se os pais dos sucessores recusam à partida a ideia de uma diferenciação profissional no interior do casal, os novos discutem mais abertamente o problema de uma escolha conjugal baseada em percursos profissionais diferenciados. Porém, se bem que não rejeitem liminarmente a possibilidade dessa escolha, evocam os factores que a tornam difícil. Evidentemente, dizem, se tivermos dinheiro suficiente, podemos sempre recorrer ao trabalho assalariado permanente para compensar a falta de mão-de-obra familiar. Mas vêem mal como é que um lavrador médio (que explora três ou quatro hectares de lavradio) poderia dar-se ao luxo de pagar um salário a fim de compensar o facto da esposa não trabalhar. Na opinião deles, mais vale partir do princípio de que é necessário distribuir o trabalho no interior do casal e da família. Se não, corre-se o risco de criar conflitos, pois será necessário «obrigar» a mulher a participar no trabalho agrícola contra a vontade dela.
248As práticas de apropriação nas famílias observadas evidenciam o peso real dos condicionalismos evocados pelos jovens. A única família de lavradores em que os filhos estão inteiramente «dispensados» do trabalho agrícola a fim de poderem estudar é uma família muito abastada, que explora quinze hectares de lavradio. No final da escola primária, os dois filhos foram enviados para um colégio interno privado situado longe da freguesia. Durante as férias, as crianças não são obrigadas a trabalhar, apesar de instadas a participar nas tarefas em curso. Como já referimos, esta família emprega um trabalhador assalariado permanente e várias jornaleiras durante a semana.
249Nas outras famílias observadas, os casais que dirigem a exploração advogam e praticam uma apropriação mais comunitária do trabalho agrícola. Aliás, isso coloca-os muitas vezes em confronto directo com outras famílias da aldeia que, sem estarem em desacordo com uma ética do trabalho agrícola partilhado por todos, têm por vezes uma estratégia de promoção social que confere prioridade à escolaridade dos filhos e, consequentemente, a uma maior autonomia da criança. Assim, no lugar do Celeiro (Lemenhe), encontramos duas famílias com lógicas opostas que vivem em frente uma da outra. Uma delas vive exclusivamente dos seus rendimentos agrícolas e tem três filhos que ajudam regularmente os pais depois da escola e durante as férias. A outra é pluriactiva (o pai, um merceeiro descendente de lavradores, também cultiva alguns campos) e os dois filhos adolescentes, que frequentam o secundário, pouco ajudam os pais.
250A grande ambição desta última família é ver o filho licenciar-se e dão-lhe liberdade suficiente para gerir o seu tempo como entender. Foi ensinado a fazer as tarefas agrícolas mas só ajuda os pais quando já não tem de estudar. Nesta família, onde a obrigação de ajudar os pais é bastante reduzida, é difícil para o pai, agricultor a tempo parcial, prever a quantidade de mão-de-obra de que dispõe. Por isso, num sábado à tarde em que era preciso malhar o feijão e separá-lo, António conseguiu, apenas durante uma hora, juntar um número elevado de trabalhadores: a mulher, o filho, a filha, o afilhado de 12 anos (filho de uma jornaleira que trabalha para ele de vez em quando), e eu mesma. Depois, quando foi necessário afastarmo-nos da casa para efectuar o mesmo trabalho noutro local, a mulher e a filha de António voltaram para casa. Um pouco mais tarde, o filho foi ter com um primo que ia passear para a Póvoa do Varzim, e o afilhado voltou para casa. As cinco da tarde, o grupo de trabalho estava bastante reduzido; só restávamos nós e António para acabarmos o trabalho. E ninguém nos veio trazer de comer ou de beber a meio da tarde.
251Na casa dos lavradores em frente, a atitude de António relativamente ao trabalho do filhos é criticada, dizendo-se que estes não percebem quase nada da lavoura e que um dia as terras hão-de acabar por ficar ao abandono. Rosa, a mãe desta segunda família, diz em tom de reprovação: «Eu cá, ensino os meus filhos a fazerem tudo nos campos. Não é como o António e a mulher dele, que ensinam pouco ou nada aos filhos. Já ouvi o António pedir para o filho o ajudar, e o filho responder-lhe: “não, agora vou tomar banho”. Os meus filhos, mesmo que não fiquem todos na agricultura, podem vir a precisar, nunca se sabe, e pode ser que um deles case com uma filha única e junte terras, também nunca se sabe. Então, é melhor ensinar de tudo no campo.»
252A situação acima descrita relativa à família pluriactiva de António contrasta com as práticas de trabalho características da maior parte das famílias de lavradores. Nestas, as normas de troca no trabalho elaboram-se e aprendem-se segundo o princípio de um empenhamento mais regular e mais comunitário5. Assim, numa outra tarde de Setembro, em casa dos Correias (família múltipla), o grupo de trabalho que parte para os campos inclui o lavrador João, a mulher, a tia desta (que vive na mesma casa), uma jornaleira, Augusto (filho de um lavrador vizinho, que veio retribuir os serviços do tractor de João por ocasião da silagem do milho), os dois filhos de João e da mulher, e eu mesma. Toda a gente vai ficar nos campos até ao fim da tarde, incluindo as crianças. A meio da tarde, pára-se para merendar — pão, peixe frito, maçãs, vinho — que Conceição, a mulher de João, foi preparar, e que se come à sombra da vinha. Existe um único copo, que João enche até à borda e passa de mão em mão, e uma única navalha para cortar o pão. A seguir, recomeça a colheita do milho — uma linha de trabalhadores que avançam em simultâneo e com uma rapidez implacável — apanhando cada pessoa as espigas que se encontram à direita e à esquerda do seu percurso. As crianças vêm atrás e colhem o milho que ficou esquecido. Toda a gente trabalha com afinco, ninguém se deixa ficar para trás à medida que a fila avança. Fala-se pouco; apenas alguns comentários de vez em quando, que a maior parte das vezes partem da boca de João, para divertir os outros ou para dar uma ordem ao filho mais velho.
253O dever de participar no trabalho agrícola de forma sistemática e de se familiarizar com as relações de trabalho colectivas abrange todos os membros da família e contribui para incentivar uma prática e uma simbólica comunitárias de partilha e cooperação no trabalho agrícola. A participação de determinados membros da família noutros domínios de trabalho (escolar, profissional, doméstico) é aceite mas não implica o abandono do trabalho agrícola.
254Se analisarmos agora o modo de repartição do trabalho, isto é, a forma de distribuição das tarefas agrícolas, é possível identificar uma norma ideal de repartição, que os intervenientes qualificam como sendo «mista». Esta repartição alia, em todos os trabalhos, os esforços dos dois cônjuges com a ajuda dos filhos e/ou dos membros mais velhos da família. Quando perguntamos quem deve efectuar certos trabalhos, é-nos respondido que devem ser feitos «em conjunto», e que o trabalho é «o mesmo» ou «igual» para todos.
255A execução do trabalho deve ser «mista», mas o controlo dos diversos sectores de produção assenta sempre na ideia de um modelo diferenciado consoante o sexo. Deste modo, o controlo e a responsabilidade do «lá fora» (os campos) pertence sempre ao homem, enquanto a responsabilidade do «cá dentro» — filhos, cozinha, horta e galinheiro — pertence à mulher.
256Se bem que o «exterior» seja da responsabilidade e da «competência» do homem, os entrevistados defendem hoje em dia uma participação feminina em todas as tarefas do «exterior». Dantes, o sexo definia sectores de trabalho mistos e sectores de trabalho proibidos a um ou a outro dos sexos. Mas actualmente, o estatuto e o sexo já não constituem obstáculos no que se refere ao trabalho agrícola.
257Pode então dizer-se que hoje, nestas famílias, se aceita a ideia de que toda a gente pode fazer de tudo se for preciso (as mulheres podem podar as vinhas e guiar o tractor, os homens podem tratar das vacas ou escolher batatas). Existe, contudo, uma hierarquia implícita e subjacente que permite atribuir as tarefas, conforme o sexo e as idades em presença, mais a uns do que a outros. Estas atribuições recuperam as demarcações tradicionais, mas são espontaneamente postas em causa quando há falta de mão-de-obra. Assim, quando se vai cortar erva e um homem está presente, será ele a pegar na segadeira e a mulher e os filhos a empilhar a erva cortada. Pelo contrário, se nenhum homem estiver presente, será uma mulher a pegar na segadeira e os filhos a apanhar a erva cortada. Estas substituições são rápidas e efectuadas sem hesitações. É a necessidade frequente de substituição leva, no que respeita ao trabalho agrícola, a pôr em causa sem entraves as demarcações de sexo, idade e de estatuto.
258É um pouco diferente o que se passa com as regras ideais relativas a outro domínio do trabalho: o das vacas leiteiras. Neste caso, o discurso dos entrevistados revela maiores hesitações e menos homogeneidade por sexo e por idade. É uma área onde os critérios da troca, e nomeadamente os de uma apropriação masculina ou feminina, não são claros.
259A evolução da agricultura local teve como efeito colocar em primeiro lugar, enquanto produção rentável, a produção do leite. As competências neste domínio e os cuidados a ter com o gado passaram a ter, neste contexto, uma importância acrescida. Antigamente, essas competências eram atribuídas aos homens. Eram eles que compravam e vendiam os animais de trabalho, que levavam os animais aos concursos agrícolas, que tratavam de mudar ou de melhorar as camas do gado, etc. As mulheres participavam neste sector apanhando erva para dar de comer ao gado, fazendo a ordenha e ocupando-se mais de perto, caso fosse necessário, dos vitelos recém-nascidos. Actualmente, os enunciados no que respeita à repartição ideal das tarefas e das responsabilidades para com o gado retomam nalguns casos essa demarcação tradicional: «Ao homem compete tratar do gado e das terras, a mulher ajuda e cuida da casa», diz um jovem agricultor de 18 anos (Carlos, nascido em 1970). Em contrapartida, Miguel, de 22 anos, considera que a sua mulher deverá tratar da casa e das vacas, e depois ajudar nos campos se for preciso. Na geração dos pais, vários lavradores, homens e mulheres, acham que são as mulheres que «devem tratar das vacas» com a ajuda do marido, mas também há alguns homens que consideram que é a eles que compete tratar do gado, e que as mulheres se devem limitar a ajudá-los.
260Analisemos agora as repartições objectivas do trabalho agrícola quotidiano, o que nos irá permitir entender melhor as observações precedentes. A primeira questão colocada foi a de saber em que medida as repartições correspondem à descrição do «misto» e da «igualdade» do trabalho agrícola proposta pelos entrevistados. É preciso, no entanto, ser prudente a este respeito. Com efeito, as repartições podem variar consideravelmente em função do momento do ciclo de vida familiar durante o qual ocorrem. Vai ser necessário ter isso em linha de conta na nossa análise.
261As primeiras observações efectuadas junto das famílias e nos campos das freguesias estudadas ofereciam em geral um quadro confuso e muito variado sob o ponto de vista da atribuição do trabalho. No posto do leite, por exemplo, tanto se vêem homens e mulheres como adolescentes, rapazes e raparigas, a ordenhar as vacas. Nos campos, vêem-se famílias inteiras, casais, um pai e um filho aqui, uma mãe e um filho acolá. Só as famílias pluriactivas, em que os homens trabalham quase sempre na fábrica e as mulheres na agricultura, parecem atribuir mais sistematicamente às mulheres as tarefas agrícolas quotidianas. Em contrapartida, são quase sempre mulheres, ou crianças, que se vêem a comprar pão, a lavar roupa nos tanques ou a tratar das galinhas e dos coelhos, perto de casa.
262Ao nível do pormenor, as formas de desempenho do trabalho agrícola são pois muito variadas e evidenciam uma participação indiferenciada das pessoas dos dois sexos e de qualquer idade. É possível, no entanto, esboçar as linhas gerais de repartição do trabalho bem como os principais factores de variação desta repartição.
263No que respeita ao casal de lavradores, pode dizer-se que os dois cônjuges se ocupam tanto um como outro da ordenha das vacas e da apanha da erva; que ambos os cônjuges (mas mais o homem do que a mulher) lavram, espalham estrume, regam, podam as vinhas, semeiam erva, ajeitam beiras; que ambos (mas mais o homem do que a mulher) conduzem as máquinas; que ambos (mas mais a mulher do que o homem) tratam da horta, de escolher as batatas ou o feijão, de dar de comer ao gado e aos outros animais.
264A introdução da produção do leite criou uma nova zona potencial de colaboração no interior do casal. Contudo, a tecnologia utilizada nem sempre é a mesma. No final dos anos 80, há explorações onde se leva as vacas ao posto do leite e outras onde já se investiu na ordenha mecânica no próprio local. A ordenha é uma tarefa que uma pessoa pode efectuar sozinha mas que a duas se faz mais rapidamente e exige menos idas e vindas (por exemplo, se a pessoa que munge não tem que estar continuamente a ir e vir com cada uma das vacas).
265A ordenha constitui pois uma importante área de trabalho. Mas dada a falta relativa de definição no que respeita à atribuição das responsabilidades e a execução do trabalho, ela parece particularmente sensível a certos factores contingentes, nomeadamente a disponibilidade de mão-de-obra, que varia com o tipo de grupo doméstico e a fase do ciclo de vida familiar no qual as pessoas se encontram, os recursos profissionais comparados dos cônjuges, e as estratégias profissionais e de poder de cada um dos cônjuges.
266No âmbito dos factores contingentes, a fase particular do ciclo de vida no qual se encontra a família (casal sem filhos ou com filhos pequenos; casal com filhos adolescentes; casal com um jovem adulto sucessor que trabalha profissionalmente na agricultura) faz variar consideravelmente a forma de participação nos cuidados dispensados ao gado e nas outras tarefas agrícolas. Examinemos agora quatro exemplos típicos de dias de trabalho — dois em casais com filhos pequenos e dois em casais com filhos adultos jovens — para vermos como se elabora, nos primeiros, uma repartição bastante indiferenciada entre cônjuges e, nos segundos, uma apropriação mais triangular (casal mais filhos) acompanhada de uma repartição um pouco mais especializada.
2671. João (lavrador, 38 anos) e Conceição (lavradeira, 33 anos) têm dois filhos de nove e cinco anos. Têm nove vacas leiteiras que é preciso levar ao posto de leite. Levantam-se às seis e meia da manhã e procedem imediatamente à ordenha. A casa deles é a cerca de vinte metros do posto. João ordenha as vacas no posto enquanto Conceição vai levando e trazendo as vacas e, entre as idas e vindas, dá de comer ao gado (segundo Conceição, João não gosta lá muito de “cuidar” do gado, e portanto é ela que o faz). Depois, Conceição acorda os filhos e tomam todos o pequeno-almoço. O mais velho vai para a escola e o mais pequeno fica com a tia-avó que vive na mesma casa (cozinhas separadas). Conceição dá de comer às galinhas, ao porco e aos coelhos, e a seguir o casal vai para o campo. Os trabalhos variam conforme a estação do ano. Cortam erva (João guia a segadeira, Conceição faz medas com a erva); podam a vinha, cada um empoleirado em cima de uma escada; sulfatam as vinhas (Conceição guia o tractor/João empoleira-se nele com o pulverizador); espalham o estrume (João divide o estrume com a forquilha do tractor, os dois estendem-no depois no campo). Conceição em geral encarrega-se de dar de comer ao gado durante o dia, João fá-lo excepcionalmente quando ela não pode, e ajuda-a à noite depois da ordenha para acabarem o trabalho mais depressa e voltarem para casa jantar (por volta das nove horas). Nos dias de trabalho em grupo, os seus papéis são mais especializados: João organiza o trabalho e os trabalhadores, Conceição tem a seu cargo organizar as refeições, participando sempre no trabalho antes e depois. Quanto ao filho de nove anos, participa no trabalho depois da escola; ajuda a mãe a dar de comer ao gado, junta a erva, transporta cestos, apanha a lenha na altura da poda. Com nove anos, ajudou pela primeira vez os pais a semear batatas destinadas ao consumo doméstico (com um semeador manual, ele a puxar e a mãe atrás).
2682. Joaquim e Conceição têm dois filhos com dez e dois anos e vivem sozinhos. Têm dezoito vacas leiteiras e o sistema de ordenha mecânica em casa há dois anos. Dantes, tinham menos vacas, e era Conceição que as levava ao posto às seis da manhã e as mungia. Tratavam depois os dois de dar de comer ao gado, tomavam o pequeno-almoço e iam para os campos. Com a ordenha mecânica em casa, já só se levantam às sete horas. Joaquim levanta-se, vai logo ver o gado e transportar mais rações para a vacaria, enquanto Conceição trata do bebé. Depois tomam o pequeno-almoço, ocupando-se Conceição da ordenha logo a seguir. Lava o tanque do leite e começa a ordenhar. Se não houver nada de urgente a fazer nos campos (isto é, sobretudo no Inverno), Joaquim ajuda-a levando e trazendo as vacas e dando-lhes de comer. Outras vezes, vai para o campo imediatamente a seguir ao pequeno-almoço. Quando Conceição teve o segundo filho, em 1986, Joaquim encarregou-se da ordenha durante algumas semanas, com o filho mais velho a ajudá-lo a trazer e a levar as vacas. Depois, Conceição voltou ela própria à ordenha, mas restringiu o seu horário de trabalho nos campos. Ocupa-se às vezes de ir à erva da parte da tarde (deixando o bebé com o filho mais velho), ou então, vai trabalhar para o campo quando a cunhada (que anda a estudar) pode tomar conta do bebé (geralmente à tarde). Joaquim e Conceição especializaram pois o trabalho um pouco mais do que o casal anterior. Conceição trata — muitas vezes sozinha, às vezes ajudada pelo marido e cada vez mais pelo filho — da ordenha e da alimentação do gado. Joaquim trabalha mais nos campos e a Conceição junta-se a ele de tarde para certas tarefas que têm que ser feitas a dois (por exemplo, sulfatar as vinhas). Conceição sabe podar e guia o tractor (fá-lo até sem ter carta). Considera que nenhum trabalho compete mais a um do que ao outro. O trabalho, na opinião dela, faz-se em conjunto. Só que acha que ela é mais «eficaz» na vacaria. Diz: «O meu marido ajuda-me com as vacas. Claro que isso depende dos dias e do trabalho que há para fazer. Ele sabe fazer tudo. A única coisa que ele não sabe fazer, é a lida da casa. Ele, está mais nos campos, quando é preciso lavrar é ele que o faz. Mas eu vou sempre ajudá-lo, eu também sei fazer tudo.» Interrogado sobre o trabalho das mulheres e dos homens, Joaquim responde: «As mulheres que hoje trabalham na lavoura sabem fazer tudo. Pegam no tractor, fazem tudo o que um homem faz. A minha mulher sabe fazer tudo o que eu faço. Acho bem assim, porque hoje somos nós que fazemos o trabalho. Há as ajudas, mas é só no tempo da silagem ou da poda. Em casa, é que é mais trabalho de mulher mas também acho que é preciso saber. Eu é que nunca tive jeito para isso, nem paciência nem jeito.» Quanto ao filho de dez anos, começa agora a participar mais no trabalho agrícola: ajuda a mãe de manhã com o gado, e ajuda-a também, em 1988, a apanhar erva em caso de necessidade.
2693. Quando o filho sucessor, e por vezes outros filhos, deixam de estudar e começam a trabalhar a tempo inteiro na exploração agrícola, vê-se esboçar com maior nitidez a possibilidade de criação de novos subgrupos de trabalho agrícola. Se for preciso, toda a gente faz de tudo, mas o filho agricultor assume um estatuto e um papel importante no trabalho.
270Em casa de Mário (lavrador, 50 anos) e Fátima (lavradeira, 46 anos), o filho-trabalhador familiar (19 anos) forma normalmente equipa com a mãe no que se refere à ordenha e à alimentação do gado, o que permite ao pai tratar de certos assuntos fora da exploração. Assim, um dia em Setembro de 1985, o casal levanta-se às seis. A mãe chama o filho, que se levanta à pressa às seis e meia. Às seis e quarenta e cinco, a mãe e o filho levam seis vacas ao posto, onde têm que esperar a vez deles. Quando chega a sua vez, mãe e filho ocupam-se de mungir as vacas (quando se tem quatro ou mais vacas, tem-se direito a ocupar dois lugares ao mesmo tempo). Entretanto, Mário também aparece no posto: queria encontrar-se com o lavrador João para lhe falar de um assunto. A época da colheita e ensilagem do milho está próxima e Mário, que não tem máquina, tem de alugar uma nas melhores condições possíveis. Nessa manhã, quer saber se o pai de J. lhe pode emprestar a máquina e por que preço. Depois, vai a casa de outro lavrador, e só vem ter com a mulher e o filho a casa às oito da manhã. Entretanto, tendo voltado para casa às sete e meia da manhã, o filho foi tratar das vacas e Fátima dar de comer às galinhas, aos porcos e aos coelhos. Às oito tomam todos juntos o pequeno-almoço (a filha, aluna da escola de enfermagem de Braga, tinha tomado o dela sozinha e já se tinha ido embora). A seguir, Mário foi para casa de D. apanhar feijão em troca de um serviço que D. lhe tinha prestado, e a mulher e o filho foram apanhar coroas de milho para dar ao gado. Às onze, o filho foi buscar uns medicamentos para uma das vacas e Fátima foi cortar um pouco de erva com uma foice para um vitelo, antes de começar a fazer o almoço. À tarde, os três vão apanhar feijão e, ao fim da tarde, o filho trata sozinho de levar as vacas ao posto. No que respeita aos outros trabalhos de campo (semear erva, apanhar batatas, etc.), trabalham muitas vezes os três juntos; noutros casos, é só o filho que vai ajudar o pai, e a mãe não vai, ou então vai menos. É o caso da rega, da sulfatagem, da poda.
2714. Este modo de formação de subgrupos para o trabalho agrícola tem outras variações. Por exemplo, se o pai adoece ou tem problemas de saúde, é a mãe e o filho (família do lavrador Abílio), ou a mãe e a filha (família do lavrador Daniel) que asseguram a execução de quase todas as tarefas, e cria-se assim um único subgrupo principal. Em contrapartida, se o número potencial de trabalhadores aumenta — é o caso das famílias com mais de um filho que não estuda — cria-se de novo subgrupos mais variados. É assim que em casa dos Silvas (dois filhos, um rapaz de 16 e uma rapariga de 14, ambos «em casa»), onde se gere um posto de leite no interior da exploração agrícola, é o casal que abre o posto e que leva as vacas da exploração para o posto antes da chegada das outras vacas. Os dois cônjuges efectuam a ordenha. Entretanto, o filho que se levantou às sete e meia da manhã, vem ajudar a mãe a dar de comer às vacas enquanto o pai fica no posto. À noite, em contrapartida, é o pai e o filho que tratam da ordenha e de cuidar das vacas, enquanto a mãe e a filha preparam o jantar. Ao domingo, são subgrupos diferenciados conforme o sexo que operam: pai e filho vão à primeira missa e tratam da ordenha e de dar de comer ao gado; mãe e filha vão à missa das nove e meia e preparam o almoço de domingo. No que se refere ao trabalho do campo, é o filho que ajuda o pai a lavrar e a regar a terra; a mãe ajuda-os quando precisam de uma terceira pessoa. Durante o dia, são quer a mãe ou a filha, quer os dois filhos, que se encarregam da alimentação do gado. Em contrapartida, no Verão, para determinados trabalhos (apanha da batata, desfolhada, vindimas, etc.), é a totalidade da família múltipla, à excepção do avô (pois nunca trabalhará sob as ordens do filho), que vai para os campos.
272Em resumo, as repartições podem variar consideravelmente em função do momento do ciclo de vida familiar e do número de pessoas que trabalham na agricultura a tempo inteiro. Por exemplo, o filho sucessor começa por contribuir com uma ajuda indefinida nas diversas tarefas agrícolas. Depois, a pouco e pouco, substitui a mãe nos trabalhos regulares dos campos, enquanto esta assume um papel mais periférico nos campos mantendo todavia um papel regular no plano dos cuidados com o gado. A filha adolescente, se não anda no liceu, substitui parcialmente a mãe nos trabalhos domésticos e não tem uma tarefa agrícola definida; ajuda, se for preciso, e aprende a fazer um pouco de tudo. Do mesmo modo, os filhos que andam a estudar no secundário ou que têm um emprego não têm tarefas definidas. É o caso de Pedro (16 anos, operário têxtil) que nos diz: «Eu não tenho trabalhos fixos. Quando chego às duas, como e depois, vou trabalhar para os campos onde precisarem de mim. Dou de comer ao gado — à tarde sou quase sempre eu — ou então, se houver muito trabalho, ajudo os meus pais no campo e é a minha irmã que dá de comer ao gado.» (Pedro, dois irmãos e uma irmã; família simples.)
273Desenha-se assim um «fora de casa» onde as sobreposições das gerações e dos sexos em termos de trabalho são múltiplas e variadas. Com efeito, exceptuando o caso do avô, que recusa trabalhar sob as ordens de um filho ou de um genro, a necessidade de fazer muito trabalho «em família», e com pouca ajuda exterior, faz com que toda a gente participe em todos os trabalhos. A participação é ponderada pela identidade social (sexo, idade, qualidade de sucessor ou de estudante, etc.) e pela avaliação (o gosto e a competência em determinadas tarefas). No entanto, a identidade de género pesa muito menos do que no passado, enquanto que o investimento, mais ou menos intenso, em actividades escolares ou profissionais fora de casa é determinante. As transições e as fases da vida familiar também influenciam a distribuição do trabalho agrícola. O nascimento de um filho afasta a mulher um pouco mais dos campos (sobretudo nas famílias simples, onde não existe a ajuda de uma mulher mais velha) e aproxima-a mais da casa e da vacaria. Pelo contrário, a presença de filhos adolescentes pode permitir um regresso aos campos, se houver uma filha que trate mais das lides domésticas, ou induzir uma participação variada, tanto dentro como fora de casa. Finalmente, convém analisar dois factores que, para além da necessidade urgente de força de trabalho, da identidade social, dos gostos pessoais dos membros da família e da rede de trabalhadores e ajudantes potenciais, podem condicionar parcialmente as práticas de repartição do trabalho. Trata-se da trajectória profissional da mulher, por um lado, e das estratégias de poder no interior do casal, por outro.
A formação profissional da lavradeira: um desafio para o futuro
274A trajectória profissional da lavradeira é importante para se compreender a sua gestão do tempo e das tarefas. Até aqui traçámos um retrato feminino predominante: o da lavradeira que aprendeu, na sua família de orientação, a fazer tudo em casa e na agricultura, e que atribui a prioridade ao trabalho agrícola. Ela é oriunda de famílias que, sem dispensar a mulher das suas responsabilidades de dona de casa, dão mais valor ao trabalho efectuado «fora». Nos anos 70, um grande número dessas famílias levaram mesmo mais longe do que o habitual a formação agrícola das suas filhas adolescentes. Por exemplo, Laura R. (nascida em 1951, lavradeira de Gondifelos) diz-nos: «Como as dificuldades de mão-de-obra começaram, e só havia eu e o meu irmão para trabalhar, eles ensinaram-me a podar a vinha. Os trabalhos do campo não são difíceis. Aliás, foi também quando ainda era solteira que tirei a carta de condução de tractores.»
275O empenhamento profissional e a competência de certas lavradeiras devem ser entendidos à luz dessa mobilização mais acentuada no interior de um sistema agrícola que via fugir a sua mão-de-obra tradicional e que efectuava uma lenta transição para a mecanização de certas tarefas. Estas mulheres são mulheres que não gostariam de «ficar em casa»: «Ah não, ficar em casa, Deus me livre! Eu gostava sempre de trabalhar mas podia ser noutra coisa. O meu pai tinha negócio e lavoura, e eu também gostava muito desse lado dos negócios. Mas gostava sempre de trabalhar.» (Rosa, nascida em 1947, lavradeira de Lemenhe.) A experiência profissional que adquiriram quando eram solteiras viu-se prolongada, para estas mulheres, por um projecto conjugal de «lançamento» de uma agricultura familiar rentável baseada nos esforços conjuntos do casal. No passado, o esforço conjugal desenvolvido no começo do casamento tinha por objectivo a consolidação do património (compra de terras e pagamento das partes legítimas dos outros herdeiros). Mas, nos anos 70 e 80, os objectivos podem ser mais variados. Trata-se de consolidar um património ou de construí-lo, mas trata-se também de investir num projecto agrícola de modernização, financiando novas instalações (ordenha mecânica em casa, vacaria, silo, sistema novo de irrigação, etc.). Nas famílias observadas, são os casais novos que procedem a estas alterações e, muitas vezes, nas histórias familiares, o projecto conjugal e o projecto de empreendimento coincidem.
276Actualmente, são as mulheres com este género de experiência profissional intensa na agricultura familiar, que levam a cabo as estratégias mais agressivas no que se refere à manutenção do seu papel preponderante nas actividades agrícolas da empresa familiar. Quando têm a oportunidade de pôr uma das filhas a participar nos trabalhos caseiros a fim de poderem gerir melhor as actividades agrícolas, fazem-no. Quando isso não é possível, tomam inteiramente a seu cargo a ordenha e a alimentação do gado (ver acima o caso de Conceição) e participam menos nos trabalhos de campo.
277Em contrapartida, no caso das mulheres que não possuem competência profissional agrícola ou que a têm em menor grau do que os maridos, a zona de colaboração conjugal na agricultura parece ser quer mais restrita, quer uma fonte permanente de conflitos entre o casal. Na família de Manuel R. (dois filhos de dez e seis anos), a esposa, antiga costureira, cuida prioritariamente do trabalho doméstico. De manhã, é o marido, Manuel, que procede à ordenha. Helena, a mulher, ajuda-o a dar de comer às vacas. A noite, é o marido que faz o trabalho todo sozinho. Quanto aos outros trabalhos, como o cortar da erva, Fátima ajuda-o em caso de necessidade mas, quando pode, o marido pede antes ajuda ao irmão mais velho solteiro, um marceneiro que tem a sua oficina na cave da casa de Manuel, mas que já não trabalha muito. Existe pois um elemento de negociação permanente no que respeita à identidade daquele que vai «ajudar» Manuel nas múltiplas tarefas agrícolas.
278Segundo exemplo: o da Lucinda, também ela antiga costureira. Ao contrário do que se passa no exemplo anterior, Lucinda procurou participar intensamente no projecto de empreendimento agrícola familiar, dando início, por iniciativa própria, a uma criação rentável de porcos e a uma plantação de alfaces em estufa. Todavia, apesar de ter estabelecido esta área específica de participação no trabalho agrícola, ela afirma não ser competente nos trabalhos do campo e não gostar desse trabalho. Diz que fica «enervada» quando tem que ajudar o marido no campo e que nessas alturas tem «tendência para fazer tudo às avessas».
279As competências desiguais dos cônjuges parecem assim influir no modo de repartição das tarefas na família, aumentando a tendência para a separação das esferas femininas e masculinas.
Poder conjugal e divisão das tarefas
280Um último factor deve ser referido no contexto do modo de repartição das tarefas agrícolas: o da repartição do poder. Hoje em dia, nas casas de lavoura, considera-se que «mandam os dois». Contudo, quase sempre, acrescenta-se que o homem manda mais «fora» e a mulher mais «dentro» mas que, em todas as áreas, as coisas devem ser decididas «de comum acordo», «em conjunto». Não se admite, como dantes, que o homem tome unilateralmente, sem a concordância da mulher, uma decisão crucial do ponto de vista das finalidades familiares. Definem-se portanto zonas de responsabilidade exclusivas para cada um deles mas em que o direito de controlo do outro é importante e constantemente reivindicado. Simultaneamente, considera-se que o homem é «o cabeça de casal». O que significa que as trocas devem ser centradas em consensos elaborados em conjunto mas que a mulher não deve nunca tomar o poder. Como nos diz Augusto (trabalhador familiar, 19 anos): «Acho que é sempre preciso uma cabeça para orientar os assuntos da família. Na minha casa, é quase sempre do meu pai que partem as ideias. Depois, discutem-se as ideias. Eu acho que a opinião da mulher é fundamental. Se há qualquer coisa que não está bem, ela não vai concordar e não se põe a ideia em prática. Não é como antigamente, em que o homem não vergava nunca. Mas de qualquer maneira é preciso um pouco de submissão da mulher em relação ao marido. Uma mulher que quer mandar, isso acaba por causar problemas, enquanto que se for um homem a mandar, isso não se passa. Não fui eu que inventei isto.»
281Nos casais novos, as práticas seguem mais ou menos de perto esta construção ideal da repartição do poder. Sendo o poder da mulher enquanto especialista agrícola considerável na maior parte das famílias, ela tem muitas vezes um importante direito de «vistoria» e de iniciativa não apenas relativamente às alterações de objectivos (por exemplo, as alterações tecnológicas na exploração agrícola) mas também no que se refere às tomadas de decisão quotidianas. Eis um exemplo típico: em 1985, o lavrador J. consulta a mulher sobre a melhor data para a colheita do feijão. A mulher insistiu que se fizesse a colheita nessa semana pois, na opinião dela, como já não chovia há um mês e o tempo estava a mudar, corriam o risco de perder tudo se esperassem demasiado. João não ficou muito convencido mas seguiu o conselho da mulher e colheram o feijão uns dias depois. Foram dos raros lavradores a não perder a colheita de feijão nesse ano.
282Noutros casais todavia, a igualdade de recursos profissionais é acompanhada por uma colaboração alargada na execução das tarefas mas não por uma simetria na gestão do poder. Na casa R., Laura e António partilham todas as tarefas agrícolas mas é ele quem dirige o trabalho e que executa os trabalhos considerados de maior responsabilidade. Por exemplo, é ele que procede à ordenha, e Laura não quer ter a seu cargo essa tarefa. Ela explica a sua atitude dado o comportamento autoritário do marido: «Há aqui muitas mulheres que ordenham e que são responsáveis. Mas eu, eu não, prefiro limitar-me a dar de comer às vacas, apesar de ser pesado trazer a comida do silo até aqui. Prefiro fazer isso porque, mesmo sabendo fazer tudo, se acontecesse alguma coisa — uma vaca que adoece ou uma teta que infecta — como é ele que trata da ordenha, não me vai acusar. É também por causa disso que em nossa casa, é ele quem dá ordens. Apesar das coisas não se fazerem lá muito bem. Eu às vezes vejo que as coisas vão dar para o torto, mas ele põe-se a dizer 'quero que isto seja feito assim', e a gente faz o que ele diz. Assim, ao menos, se o resultado for mau, como foi ele que decidiu, não me vai aborrecer. É por isso que eu prefiro que seja ele a mandar. Já cheguei à conclusão de que não vale a pena contrariá-lo. Ele tem lá as ideias dele e ao menos, assim, não passa a vida a aborrecer-me.»
283Este modo de repartição da autoridade, em que o homem se arroga o direito de mandar sem ter em conta a opinião dos outros membros da família, não é criticado pelos vizinhos. Apesar de uma norma que tende para uma maior igualdade nas trocas conjugais, considera-se legítimo que o homem se defina como sendo a única ou principal autoridade. Em contrapartida, critica-se severamente as famílias de lavradores em que a mulher se arroga o direito de dirigir o trabalho agrícola. Neste caso, o marido é considerado «um mole» e a mulher «uma bicha».
— Apropriação e repartição do trabalho doméstico
284Na esfera do trabalho doméstico, os discursos são eles também, tal como no caso do trabalho associado ao gado produtor de leite, menos homogéneos. Todos estão de acordo em atribuir à mulher a responsabilidade desse sector, e a hesitação só aparece ao nível das prescrições relativas à participação masculina no trabalho doméstico. As mulheres muito activas na agricultura defendem, idealmente, uma participação masculina regular que seja equivalente à ajuda que elas próprias fornecem ao trabalho do campo. E quando essa norma colide com a incompetência do homem no domínio doméstico, elas preconizam uma ajuda pontual e uma atitude de colaboração (por exemplo, o marido deve ajudar a mulher a acabar uma tarefa agrícola em curso para que ela possa regressar mais depressa a casa). Os homens formulam as suas obrigações em termos um pouco diferentes: dizem «não ser contra uma colaboração nessa área.» Mas encaram a sua participação nas tarefas domésticas mais como uma necessidade ocasional que não é do domínio do desejável. Homens e mulheres evocam o facto de antigamente eles, e elas, ajuizarem desfavoravelmente sobre os homens que se abeiravam demasiado das panelas e que é difícil mudar os comportamentos:
«O meu marido não faz nada em casa, nem os meus filhos. Agora, há uns que ajudam. Eu, dantes, tinha fraca impressão daqueles que ficavam na cozinha. Mas agora vejo que eles exigem que a gente os acompanhe na lavoura, agora eles também podiam fazer alguma coisa e saber fazer. Antigamente, nós, as lavradeiras, tínhamos mais ajuda, podíamos até ficar em casa se fosse preciso, enquanto hoje, a gente tem de estar em todo o lado. Mas o problema é que os homens na minha família habituaram-se a ver em mim o “pronto”. Acho que os eduquei mal, acho. Embora eu já não faça como dantes, agora já faço doutra forma, por exemplo está o comer ao lume e eles vão tirar.» (Maria dos Anjos, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1935.)
285Apesar de ter sido levantada a proibição de colaboração masculina nos trabalhos domésticos, a representação que vê fraqueza no homem mais «caseiro» continua presente. Com efeito, para as pessoas destas freguesias, dadas as responsabilidade respectivas (a mulher é que controla o sector doméstico), participar no trabalho doméstico significa que o homem se submete à autoridade que a mulher detém nesse âmbito de trabalho. As práticas seguem pois de perto a ideia de que a colaboração masculina na esfera do doméstico deve ser pontual. Assim, faz-se apelo muitas vezes, na ausência da mulher da casa, a uma mulher da família que viva perto para que venha cozinhar. Contudo, o homem já substitui a mulher em certas tarefas em caso de urgência. Quando Helena (família simples) teve o bebé, a cunhada trouxe de comer durante alguns dias mas foi o marido quem lavou a louça, arrumou e limpou a cozinha, comprou as provisões necessárias. Helena diz que a cozinha «estava sempre impecável». Em casa de Joaquim e Conceição (família simples), aconteceu o mesmo. Quando o segundo filho nasceu, em 1988, a cunhada trouxe comida durante alguns dias, mas Joaquim acendia o lume, tratava das vacas ajudado pelo filho de nove anos, varria a cozinha e lavava a louça.
286Nas famílias múltiplas, encontramos mais situações em que duas mulheres se revezam a fim de cuidarem das tarefas domésticas, particularmente se uma delas estiver incapacitada de o fazer. Todas as mulheres que vivem em família múltipla e tiveram filhos no final dos anos 70 ou nos anos 80, puderam assim contar com a ajuda de uma mulher mais velha. Mas o volume das trocas pode variar. Na família Silva, a mulher mais velha cuidou durante anos a fio dos netos enquanto a mãe destes trabalhava no campo. Em casa de Rosa e de Luís, quando o terceiro filho nasceu, como a mulher mais velha adoeceu, foi Luís que se ocupou sem dificuldade das refeições (tinha aprendido um pouco a cozinhar quando estivera na tropa, na década de 60). Na família múltipla de João e Conceição, o tomar conta das crianças por parte dos mais velhos continuou mesmo quando estas entraram para a escola: continua a ser a tia-avó a preparar-lhes o almoço e a tomar conta do mais pequeno, que está muitas vezes doente. Em contrapartida, na casa dos Sousa (família múltipla) a avó levantava mais objecções a tomar conta regularmente dos bebés. Tratava da primeira neta durante uma ou duas horas caso fosse necessário, para que a filha e o genro pudessem levar as vacas ao posto do leite, mas não queria «estar presa em casa». Sempre trabalhou «fora» e, aos 73 anos, trata quase sozinha de uma grande horta a que chama «a minha agricultura». Por consequência, a neta tinha muitas vezes que ir para o campo com os pais. E também lhe acontecia ficar sozinha em casa, ou então com o avô a tomar conta dela (como perdeu um braço, o avô passava muito tempo em casa).
287A actividade agrícola das lavradeiras é, ontem como hoje, considerada tão importante como o trabalho doméstico, tanto por elas próprias como pelos maridos. Porém, as condições de exercício desta actividade profissional sofreram algumas alterações. Outrora, considerava-se pouco importante os cuidados prestados às crianças de tenra idade, e havia criadas para ajudar a lavradeira nas suas múltiplas tarefas. Hoje em dia, considera-se importante cuidar bem das crianças e para tal é necessário encorajar as ajudas no interior da família e do casal. Mas nem sempre é fácil produzir essa participação nas tarefas domésticas, sobretudo numa família simples. Conceição, uma lavradeira (já citada) que teve o segundo filho em 1988, adoptou diversas estratégias para conseguir manter a actividade agrícola. Em particular, trata mais das vacas desde o nascimento do segundo filho, o que lhe permite estar próxima de casa. O bebé fica num parque na cozinha de lavoura, situada no rés-do-chão. A porta da cozinha fica aberta. Depois, quando a cunhada adolescente (madrinha do bebé) está de férias da escola, Conceição leva a criança para casa dela todas as tardes. Mas também acontece deixar o bebé sozinho na cama durante uma hora para ir apanhar erva ou, à tarde, entregá-lo ao filho de nove anos que só tem aulas de manhã. Para ir à missa, Conceição deixa o bebé a dormir na cama.
288Diversas vizinhas cujo nível de vida é inferior ao deste casal de agricultores, mas que ficaram em casa a tomar conta dos filhos pequenos, fazem notar com ar crítico que «a Conceição deixa muito o filho sozinho». Uma delas acrescenta: «É por isso que ele levou tanto tempo para aprender a andar, coitadinho. O meu, com 12 meses já andava. É evidente, as crianças desenvolvem-se menos assim». A pressão que vizinhas destas exercem sobre as lavradeiras mostra a que ponto a modernização dos valores introduziu pressões contraditórias: por um lado, há quem defenda a actividade profissional da mulher; por outro, o novo valor da infância protegida exerce uma pressão forte para que a mulher se ocupe prioritariamente dos filhos. Para as lavradeiras é particularmente difícil responder ao mesmo tempo ao trabalho agrícola e ao princípio de uma infância «protegida».
289Por outro lado, para se compreender as trocas que se operam actualmente em torno do trabalho doméstico, é importante voltar um pouco atrás e examinar como se efectuou a passagem de uma forma de desempenho das tarefas domésticas centrada numa comunidade doméstica alargada por criadas para uma forma de desempenho baseada na família simples ou múltipla, onde a mulher mais nova tenta responder a duas exigências importantes — o doméstico e o trabalho agrícola — e isso quer seja ou não ajudada por uma parente mais velha, pelo marido ou pelos filhos.
290A diminuição e o desaparecimento do pessoal doméstico foi-se fazendo sentir ao longo da década de 60, mas nem todos os grupos domésticos estudados sentiram essa passagem como um problema. Em casa dos Silva, por exemplo, a última criada foi-se embora em meados dos anos 60 para casar, quando o filho mais novo tinha cerca de dez anos. Havia pois vários filhos adolescentes (raparigas e rapazes) em casa, que participavam todos a tempo inteiro no trabalho agrícola e doméstico. Neste contexto, tentou-se aumentar as energias de trabalho de toda a gente (ensinando às raparigas a podar a vinha, por exemplo).
291Existem outros casais que, tendo casado na década de 50 ou no início dos anos 60, tinham várias crianças pequenas quando «se começou a ficar sem criadas». Examinemos dois casos a título de exemplo. O primeiro é o de Amélia, uma lavradeira que casou no final dos anos 40 e que teve nove filhos (dos quais dois nados-mortos). O primeiro filho, um rapaz, nasceu em 1948. Amélia viveu os primeiros anos de vida de casada numa família múltipla, em casa dos pais. Uma velha criada dos pais, que criara Amélia e o irmão, ajudou-a a criar os primeiros filhos. Em meados dos anos 50, o casal mudou-se para uma casa situada ao lado da casa paterna. Durante vários anos, Amélia teve duas criadas a ajudá-la. Eis como ela fala da sua vida quotidiana: «O meu dia de trabalho foi sempre o mesmo. Estive sempre fora e dentro ao mesmo tempo, e ainda hoje é assim. Quando os filhos eram pequenos, tinha duas criaditas. Eu ia para o campo com as jornaleiras, e uma das criaditas ficava com as crianças. Às vezes, no Verão, íamos todos para os campos e as crianças iam connosco. Púnhamos os mais pequenos debaixo de uma parreira e o mais velho tomava conta deles. As criadas eram muito novinhas. Cuidavam dos mais pequenos, adiantavam o comer, e eu voltava para casa à hora das refeições para as ajudar. Mais tarde, deixou de haver criadas. Eu não tinha as minhas filhas para me ajudarem, eram ainda muito pequenas. Era o meu filho que me ajudava mais. Ele tinha 13 ou 14 anos, e começava a adiantar o comer antes de eu chegar. Ele ao menos, aprendeu a tratar da lida da casa, e sabe o que é a vida.» Hoje, o filho é casado e tem dois filhos. É agricultor e, segundo a mulher, é muito «compreensivo»: quando chegam tarde dos campos, ele ajuda-a na cozinha.
292O segundo caso é o de Margarida, que se casou em 1963 (com 28 anos) com um lavrador de 38, sucessor de uma casa média para onde Margarida foi viver. A sogra já tinha morrido e o sogro estava acamado. Havia também uma das netas do sogro que tratava do trabalho doméstico. Segundo Margarida, «Durante o primeiro ano, a minha vida não foi muito difícil. Ela fazia a lida da casa e eu ia com o meu homem para os campos, vinha almoçar e voltava a ir. Mas ao fim de um certo tempo ela passou a não gostar que eu tivesse vindo viver cá para casa. Acho que ela não se sentia tão à vontade como dantes. A gente dava-se bem, mas ela via muito bem que não tinha nenhum futuro na casa, e por isso quis arranjar marido. Casou-se, e foi nesse momento que fiquei com tudo a meu cargo. Tinha que fazer tudo dentro e fora. Passava a vida a correr. Então, arranjei um rapazito para me ajudar e, durante uns tempos, tive, assim, uns moços que me ajudavam. Mas geralmente, eles andavam na escola, e já era difícil arranjar quem pudesse ficar em casa. E, no fundo, eles não me ajudavam por aí além. Às vezes, ia para os campos e deixava os filhos aqui com eles, outras vezes levava os filhos comigo. Depois havia o meu sogro. Lembro-me que quando os meus filhos ainda eram bebés, os punha no berço na cozinha e deixava-os lá com o biberão. Deixava-os encostados a uma almofada e ia dar de comer ao meu sogro. Quando passava por eles, inclinava mais o biberão, e quando passava outra vez já tinha acabado. Às vezes adormeciam. Como estavam sempre no berço, porque eu nunca tinha tempo de lhes pegar ao colo, adormeciam depois de terem bebido o leite. Nunca andei com os meus filhos ao colo... Às vezes, via uma pessoa com uma criança ao colo a dar-lhe o biberão, e ficava triste. Os meus não tiveram disso, mas cresceram como os outros, e não fez diferença. Mais tarde, quando começaram a andar, às vezes, levava-os comigo, dependia do trabalho. Eu não gostava nada daquilo. No Verão, por exemplo, quando íamos pôr o sulfato, a gente levava-os num carrinho. Não era um carrinho de bebé como os de agora, era um carrinho feito às três pancadas, com umas tábuas e eles lá dentro. Quando íamos roçar mato, e que era preciso ir para as bouças, que ficavam mais longe, eu metia-os na parte de trás do carro, dentro de um cesto. Eu não gostava nada daquela moda! Quando chegávamos lá, punha o cesto no chão, ou então sentava-os no chão, enquanto a gente carregava o mato. Mas depois, na volta, o cesto voltava-se e então é que era o diabo. O mais velho então, fartou-se de comer terra. E até é mais alto do que o irmão hoje! Ah, sim, muita terra comeu ele! Noutras alturas, por exemplo quando eu tinha que lavar roupa, aqui no tanque, mas que eles ainda não andavam muito bem, e que estavam sempre a cair, metia-os no espigueiro. Eles berravam, não gostavam, mas tinha que ser. Caíam, e eu não os podia agarrar, e não havia carrinhos como agora. E mesmo que houvesse, a gente não havia de gastar dinheiro em coisas dessas. Eu então enfiava com eles no espigueiro. Outras vezes, sobretudo no Inverno, era preciso ir buscar cestas de erva. Ia-se com uma foice pequena (agora a gente tem uma segadeira, enche-se um carro de erva num instante). Mas naquela época, era à mão, e eu então deixava-os em casa. Nem parece bem o que lhe vou dizer. Eu tinha aqui ao lado um quarto velho. Está a ver, acolá, a casa é mais velha daquele lado, e quando cheguei cá, havia naquele quarto uma cama mais velha. No tempo do meu sogro, era o quarto das criadas. Vai daí, eu punha uma tábua de um dos lados da cama, empurrava a cama contra a parede, e depois tapava a saída com a tábua, e eles ficavam ali. Assim, eu sabia que não apanhavam frio. Mas o mais velho era de má raça, e batia no outro. Uma vez, cheguei a casa e fui dar com ele a bater no irmão, e ele escondeu-se debaixo da cama. Tinha um martelo pequeno, e tinha-lhe batido com o martelo! Outras vezes, quando eu ia à feira, normalmente o meu marido já sabia que eu ia de manhãzinha cedo e não se afastava muito. Mas no dia a dia, eu tinha que fazer o trabalho todo.»
293Margarida não conseguiu que o marido participasse nas tarefas domésticas. Segundo ela, ele ainda é «do tempo» em que as pessoas se indignavam por ver um homem na cozinha. Queixa-se da falta de compreensão e das acusações dele quando as coisas, as refeições por exemplo, não estão prontas a horas. Contudo, conseguiu que um dos dois filhos participasse em certos trabalhos domésticos (o segundo, o não-sucessor que anda a estudar). Ela diz que, ao contrário do pai e do irmão, este filho «mais sossegado» a ajudava muitas vezes quando tinha apenas nove anos ou dez. Quando ela ia à feira (deixou de lá ir há alguns anos) vender alguma coisa, ele acendia o lume e aquecia a água antes de ela chegar. Hoje, ela considera que «num casal novo, é muito bom que o marido chegue a casa e ajude a mulher se for preciso». Em contrapartida, o filho mais velho, que fez 19 anos em 1985 e que é o futuro responsável pela exploração, considera, ao falar das qualidades da futura esposa, que esta deve saber cozinha muito bem, «porque se eu tivesse que ir para a cozinha, de certeza que partia os tachos todos. Acho que a mulher deve tratar da casa e das vacas, e deve ajudar nos campos se for preciso». Segundo a mãe, o filho mais velho sempre teve mau feitio como o pai, e ela não pode fazer nada.
294Estes exemplos sugerem que, entre os lavradores, as relações familiares por ocasião de determinadas mudanças (como o desaparecimento do pessoal doméstico e um evoluir para definições mais igualitárias das relações entre sexos, durante a década de 70), constituem um terreno potencial de reelaboração das normas e dos comportamentos. Nota-se também que esta reelaboração não é linear: depende fortemente das características dos membros do grupo doméstico, bem como do campo de interacções particulares que se tecem entre os filhos e os pais. Certos lavradores, como o filho de Amélia, aprenderam não só «a lida dos campos» mas também «a lida da casa». Ajudava a mãe porque as irmãs eram demasiado novas para o fazerem. Estas situações familiares de aprendizagem são mais raras do que outras, em que são os «excluídos» da sucessão e da agricultura (que são também aqueles e aquelas que estudam ou que têm um emprego, e que estão pois mais em contacto com outros valores) que estabelecem alianças preferenciais com a mãe e penetram mais no domínio doméstico do que no domínio agrícola. Por outras palavras, a produção de novos modos de troca do trabalho doméstico na família de lavradores inscreve-se na dinâmica das relações familiares. A família pode de repente inovar, abolindo diferenças tradicionais entre sexos e ensinando o trabalho doméstico a um futuro agricultor. Mas pode igualmente inovar apenas parcialmente, escolhendo novas linhas de fraccionamento (filho estudante/filho agricultor). A mesma família pode assim ser ao mesmo tempo inovadora e tradicional.
295Em conclusão, do estudo das famílias de lavradores constata-se que:
296a) São as mulheres que se ocupam das tarefas domésticas: acender o lume, cozinhar, lavar a louça, lavar a roupa, limpar a casa e passar a ferro, cuidar das crianças pequenas, comprar roupa; têm também a seu cargo as galinhas e os coelhos, a horta, matar os coelhos e as galinhas e congelar produtos destinados ao consumo doméstico. São ajudadas nestas tarefas por outras mulheres do grupo doméstico ou por familiares (mãe, sogra, irmãs, cunhadas) que vivam nas imediações, pelos filhos e, ocasionalmente, pelos maridos.
297Só encontrámos uma casa de lavoura onde o marido se ocupa regularmente de preparar a refeição da noite enquanto a mulher leva as vacas ao posto do leite. Sabe cozinhar e declara não gostar de ir ao posto do leite. Este caso dá azo a comentários da vizinhança pois, se é verdade que se aceita que o marido de uma operária ajude mais regularmente a mulher porque ambos trabalham no exterior, considera-se que, no caso dos lavradores, a mulher «pode» passar mais tempo em casa. Dito de outra maneira, a colaboração do marido lavrador é aprovada se for pontual, ou quando se trata de fazer face a situações mais difíceis.
298b) As características do grupo doméstico fazem variar consideravelmente a rede de assistência de que dispõe a lavradeira nas suas tarefas domésticas. A densidade interna desta rede é bem menor do que outrora e pode restringir a margem de manobra da mulher em matéria de trabalho agrícola, ao mesmo tempo que aumenta a sua dependência em relação aos pais, aos sogros ou aos filhos.
299Nas famílias múltiplas, a lavradeira faz apelo à mulher mais idosa para que se encarregue de determinadas tarefas domésticas ou da guarda das crianças. Esta situação permite-lhe participar mais intensamente, com o marido, no trabalho agrícola. Mas também restringe as próprias actividades da mulher de idade. Por consequência, acontece, embora raramente, que esta se mostre reticente a desempenhar essa tarefa. Nesse caso, a lavradeira negoceia apenas uma pequena ajuda da parte dela e conta muitas vezes com o facto de «a casa nunca estar vazia» quando tem que deixar os filhos sozinhos durante algum tempo.
300Quando há em casa crianças em idade escolar ou adolescentes, a mulher lavradeira faz apelo a estes para a ajudarem ou para a substituírem em certas tarefas. Acontece pois que uma criança — um rapaz ou uma rapariga de nove ou dez anos — ajude a mãe a tomar conta de um irmão ou de uma irmã mais nova, a plantar couves ou a dar de comer ao gado. Por vezes, faz até várias coisas ao mesmo tempo: em casa de Joaquim e Conceição (família simples com um filho de dez anos e um bebé de dois), às sete e meia da manhã, a mãe munge as vacas que Tomás, o filho mais velho, lhe vai trazendo uma a uma ao mesmo tempo que toma conta do irmãozito que anda a brincar no pátio. A seguir, Tomás vai para a escola de bicicleta.
301Quando, numa família simples ou múltipla, há uma filha adolescente, é ela quem se encarrega dos trabalhos domésticos, o que deixa a mãe mais livre para trabalhar nos campos ou tratar do gado. Em casa dos Silva (família múltipla com duas cozinhas), a avó trata da sua cozinha e, na outra família, é a filha com 14 anos que se encarrega parcialmente das tarefas domésticas. Vai buscar o pão, faz o pequeno-almoço, faz o almoço, arruma e limpa a casa. A mãe prepara a refeição da noite e lava a roupa. Os dois filhos ajudam-na a tratar da horta, e também do galinheiro. Mas trata-se de um caso em que a filha adolescente deixou a escola aos 12 anos. Em contrapartida, quando uma filha adolescente estuda ou tem um emprego fora, ela irá negociar com a mãe uma participação mais precisa no âmbito doméstico: em geral, arrumar a casa ao sábado ou lavar a roupa e passar a ferro uma vez por semana. Os «estudos» (secundários) e o emprego permitem pois uma negociação do contributo de cada um no trabalho agrícola e doméstico. Neste caso, o filho deve ajudar os pais, mas é preciso determinar onde e quando. Com efeito, as raparigas participam então mais no trabalho doméstico e os rapazes no trabalho agrícola.
302Nas famílias simples que têm filhos pequenos, a mulher tem um duplo dia de trabalho extremamente sobrecarregado, e procura restringir as horas consagradas ao trabalho doméstico (confecção do pão, limpeza da casa, preparação do jantar) e à guarda das crianças. Mas tem apesar de tudo que redefinir a sua participação no trabalho agrícola, o que significa que irá menos vezes trabalhar no campo com o marido.
303c) No entanto, as estratégias femininas não são sempre as mesmas. Algumas — predominantes nas famílias observadas no nosso estudo — procuram conciliar uma actividade agrícola intensa e o trabalho doméstico. Outras, menos conciliadoras, são típicas das mulheres que pertencem a casais «heterogâmicos do ponto de vista profissional com um projecto comum ligado à agricultura». São mulheres que exerciam uma profissão fora da agricultura mas que, ao casarem, decidiram «ajudar os maridos». Elas definem-se a si próprias como as «ajudantes» do marido e têm tendência para limitar as suas actividades à esfera doméstica. Em vez de se encarregarem, por iniciativa própria, de certas tarefas agrícolas, esperam que os maridos lhes digam onde e quando é que precisam de ajuda. Menos competentes do que os maridos no domínio agrícola, tendem a afastar-se das tarefas mais difíceis e dos processos de decisão relativos à exploração agrícola.
***
304No seguimento desta abordagem mais pormenorizada da repartição do trabalho agrícola e doméstico nas famílias estudadas, vê-se que a ideia de «igualdade» proposta pelos actores para descrever o trabalho familiar abarca vários princípios de repartição. Por um lado, fica claro que é a igualdade dos esforços e dos saberes (toda a gente deve fazer de tudo e saber fazer) que constitui hoje em dia o principal critério de repartição, pois este permite, contrariamente ao que se passava outrora, aumentar a força familiar de trabalho com poucas contemplações, sobretudo no sector agrícola, para com o estatuto, o sexo e a idade. Este princípio é ponderado, sobretudo em caso de disponibilidade acrescida de mão-de-obra, em função do sexo, da idade, da ocupação (trabalhador familiar a tempo inteiro ou a meio-tempo), da competência profissional e das preferências (dos «gostos») dos trabalhadores. Assim, apesar da legitimidade velada da diferenciação entre os sexos, a negociabilidade das repartições efectivas tornou-se mais ampla, permitindo não apenas uma grande variedade de repartições mas também uma tensão menor entre a identidade social dos intervenientes e a sua mobilização potencial com vista ao desempenho do trabalho. Subsiste contudo uma certa tensão em torno da questão do estatuto do homem/chefe de família, sendo este menos facilmente mobilizado qualquer que seja a tarefa e seja quem for que dê as ordens. É por esta razão que, no domínio do doméstico em particular, se vê a identidade social, e não a igualdade dos esforços, tornar-se de tal modo importante que é sobretudo em função dela que se estabelece a repartição.
305A tensão normativa existe, além disso, à volta de dois outros termos: por um lado, os novos valores (o lazer, a prioridade da criança na estratégia de promoção familiar, o direito a uma maior autonomia profissional e vocacional do indivíduo); e, por outro, a necessidade de maximizar as energias familiares de trabalho. As exigências muitas vezes contraditórias que representam estes dois termos colocam as famílias rurais numa relação de oposição relativamente às famílias que procuram melhor pôr em prática os novos valores. O peso conferido pelas famílias agrícolas empreendedoras à troca comunitária, ao trabalho agrícola, à inclusão precoce da criança, afasta-as por vezes das famílias que visam, antes de mais, a promoção social dos filhos.
306Nota-se por último que as pressões exercidas por certos factores «modernos» nem sempre vão todas no mesmo sentido (por exemplo, no sentido de uma diferenciação ou de uma não-diferenciação do trabalho masculino e feminino), mas têm antes tendência para criar novas linhas de tensão. Assim, a necessidade de maximizar a força de trabalho com vista ao sucesso da empresa agrícola e o deslizar para definições mais igualitárias das relações entre os sexos exercem uma pressão no sentido de uma menor diferenciação das tarefas femininas e masculinas. Em contrapartida, o deslizar para uma nova concepção do casamento (que preconiza o amor, a beleza da mulher, a autonomia profissional dos cônjuges) pode acentuar (ver o caso da família de Manuel e Helena) a diferenciação entre os cônjuges e a confinação da mulher ao trabalho doméstico.
O dinheiro
307Em função dos contributos em trabalho e em serviços dos membros da família, de que modo é que se constroem e se equilibram as diversas retribuições — as retribuições em dinheiro, em objectos valorizados ou em património fundiário?
308No que se refere à retribuição imediata do trabalho, centrada no passado na alimentação e no vestuário, advoga-se hoje, para os adolescentes e jovens adultos, uma retribuição em dinheiro que responda às necessidades do indivíduo. Aos que estudam e têm de ir e vir da cidade, é preciso dar todas as semanas dinheiro para os transportes e outras pequenas despesas. Aos que trabalham em casa, considera-se igualmente que eles têm necessidade de algum dinheiro. Dito de outro modo, a «despesa» hoje não diz respeito apenas à casa e à agricultura, mas também às «despesas» de cada um dos indivíduos. Todavia, os modos de retribuição escolhidos nem sempre são os mesmos.
309Nalgumas famílias, opta-se ainda pela solução que consiste na doação de uma vaca. É assim que na família Almeida, a partir dos 14 ou 15 anos, todos os filhos (excepto um deles que preferiu uma bicicleta e uma das duas raparigas, que trabalha menos na agricultura e pede dinheiro quando precisa) recebem uma vaca. O animal é posto em nome deles no posto do leite, e o dinheiro da ordenha reverte directamente para o filho.
310Nos anos 60 e 70, a doação de uma vaca foi a pouco e pouco substituindo a atribuição de um pedaço de terra para cultivo, e a justificação desta atribuição é a seguinte: trata-se de retribuir a criança «para lhe dar o gosto pelo trabalho agrícola. Assim, quando se lhe pede para fazer isto ou aquilo, ele faz com vontade».
311Actualmente, a doação de uma vaca é ainda encarada e praticada por alguns pais, mas está a ser muitas vezes abandonada a favor de uma simples retribuição pecuniária e em objectos. A independência do porta-moedas da criança é reconhecida desde bastante cedo pelas famílias de lavradores. Assim, na família Correia, os pais decidiram, quando os filhos tinham respectivamente oito e quatro anos, que o dinheiro obtido com a venda dos coelhos iria servir para alimentar dois pequenos mealheiros, um para cada criança. Além disso, a partir dos 14 ou 15 anos, os filhos pedem uma moto aos pais, e o facto de se oferecer uma bicicleta tornou-se praticamente uma obrigação dos pais para com as crianças de dez ou onze anos. Mais tarde, será o carro a ser oferecido. Miguel, com 22 anos, tem um carro há dois. Disse aos pais que preferia não ter nenhuma vaca. Na opinião dele, o rendimento de uma ou duas vacas é bastante irregular, e prefere pedir regularmente dinheiro aos pais. Não foi fixado o montante desse dinheiro, e Miguel pede-o conforme precisa.
312Quando não existe um contrato fixo com os pais sobre o montante pecuniário que cabe aos filhos, estes dizem-nos que isto não tem importância porque, «cedo ou tarde, hão-de receber» e que «trabalham todos para a "mesma coisa"». (José, filho futuro sucessor, 27 anos). A ideia de uma retribuição patrimonial diferida está pois presente nos filhos e permite de certo modo colocar entre parênteses retribuições imediatas elevadas ou fixas. Os pais procuram contudo satisfazer os pedidos dos filhos, oferecendo-lhes a moto, o automóvel ou dando-lhes dinheiro para as despesas do dia a dia. A pertinência de tais pedidos deixou de ser posta em causa.
313Por último, identificámos uma terceira forma de retribuição, na qual uma parte específica do rendimento pecuniário familiar é distribuído entre os filhos segundo um esquema combinado entre todos. Por exemplo, na casa de Augusto e Maria Albertina (família simples, com três rapazes e uma filha), os salários auferidos por dois dos rapazes, que são operários no sector têxtil, têm o seguinte destino: um dos ordenados (27.000$ em 1988) vai para o cofre familiar e serve para as despesas da casa; o outro é repartido pelos quatro filhos para que todos disponham de uma pequena soma de dinheiro. Os três mais velhos — e isso inclui a filha que trabalha em casa — recebem o mesmo (6.000$00); o mais pequeno, de onze anos, recebe 500$00. O pai diz: «Esse dinheiro, é para eles, para as motos, para as extravagâncias deles, é um salário que é repartido pelos filhos todos.» Foi a mãe quem teve a ideia e que a propôs aos filhos, negociando com eles o montante a distribuir.
314À ideia de uma economia familiar comum, em que os rendimentos pecuniários são postos em comum e redistribuídos segundo as necessidades ponderadas de cada um dos filhos, vem juntar-se a norma de uma gestão conjugal comum: «A bolsa é toda a mesma. O dinheiro vai todo para o mesmo sítio. Os meus filhos que trabalham na fábrica dão o ordenado e é o dinheiro do leite. Eu e a minha mulher sabemos onde está e vamos gastando. É preciso para isto ou para aquilo, a gente gasta. Agora peguei em tanto, é preciso tanto para ir ao pão, para o gasóleo, para as farinhas... Neste momento, o dinheiro não fica parado. Vou buscar o cheque do leite, vou recebê-lo ao banco, trago o dinheiro para casa e gasta-se. É por isso que eu não trabalho com cheques, como lá no banco me disseram. O dinheiro está sempre em movimento e por isso não vale a pena deixá-lo no banco.» (Augusto, lavrador, nascido em 1944, dois filhos a trabalhar na fábrica, uma filha em casa e um filho a estudar.)
315A evolução da agricultura contribuiu para criar uma economia conjugal diferente. Antigamente, havia uma grande variedade de produtos para vender. A carteira da mulher — alimentada pela venda de ovos, de animais de capoeira, de produtos hortícolas, de enchidos, etc. — cobria as despesas da casa. Quase sempre, era também destinada a essa carteira uma parte do dinheiro proveniente da produção agrícola — o feijão ou o milho. Mas hoje em dia, as famílias que se consagram à produção do leite têm um rendimento principal, o do leite, e esse rendimento deve suprir as necessidades da casa, da agricultura, do gado (segundo os lavradores interrogados, as rações absorvem quase metade dos recursos provenientes da venda de leite). Os outros produtos — um pouco de milho, batatas, feijão, os produtos do galinheiro, etc. — são agora destinados ao consumo familiar. Os circuitos de venda e de distribuição também mudaram. Actualmente, os negociantes vêm directamente aos produtores buscar os vitelos ou as batatas. As feiras, essas, vão sendo cada vez mais abandonadas pelos pequenos produtores.
316Presentemente, defende-se a ideia de uma bolsa comum, insistindo-se no facto de os dois cônjuges deverem estar a par de tudo. Deste ponto de vista, considera-se que o sistema das bolsas separadas criava muita desconfiança, jogos de escondidas entre os cônjuges, e não estimulava a concertação conjugal relativamente ao progresso da exploração. O que se defende, pois, é a existência de uma caixa comum que serve para alimentar dois porta-moedas — com a condição de se vigiar e de se ter cuidado com o estado dessa caixa. Passou-se, em suma, da ideia de uma apropriação separatista dos produtos e das despesas para a ideia de uma apropriação conjugal comunitária.
317As situações concretas de gestão do dinheiro revelam uma interpretação bastante flexível da ideia de bolsa comum. Certos pormenores podem com efeito influir consideravelmente nas práticas efectivas de repartição do dinheiro entre os cônjuges. Por exemplo, nas famílias que trazem o dinheiro todo para casa, os dois cônjuges têm acesso à totalidade da caixa. No posto do leite, as vacas são sempre registadas em nome do marido (excepto no caso de uma viúva ou de um filho solteiro), embora o dinheiro possa ser recebido indiferentemente pelo marido ou pela mulher. Mas também acontece o dinheiro do leite ser creditado directamente numa conta bancária, e que só se leve para casa pequenas quantias, em função das necessidades. Neste caso, é o homem quem controla o estado da caixa (no banco), e é ele muitas vezes o único a ter livro de cheques. A mulher será então obrigada a pedir dinheiro ao marido se o que houver em casa não for suficiente.
318Para certas mulheres mais velhas, esta situação representa uma perda de autonomia considerável. Assim, para Margarida (55 anos) que viveu a transição entre as duas situações, o mais desagradável é o ter que pedir dinheiro ao marido quando esteve sempre habituada a ter o seu dinheiro. Margarida ia quase todas as semanas à feira, vender milho, batatas e produtos hortícolas (sobretudo alfaces). Hoje como já «não faz» dinheiro (o pouco milho e feijão produzidos destinam-se ao autoconsumo), está satisfeita ao ver aproximar-se o dia em que vai poder receber directamente o dinheiro da pensão.
319Será que a prática da conta bancária significa que a mulher se encontra na mesma situação de dependência de outrora, em que um marido demasiado dominador podia não confiar na mulher e proibir-lhe a compra ou a venda autónoma de determinados produtos? Esta comparação não se faz no discurso dos actores. Efectivamente, supõe-se que a ideia de bolsa comum assenta num novo estilo de relações conjugais, orientadas no sentido do entendimento, da compreensão e da confiança, bem como na definição de objectivos financeiros comuns que tornam supérflua uma gestão diferencial. A norma ideal põe pois a tónica na fusão.
320As práticas, essas, permitindo embora uma gestão comum e uma repartição conforme as necessidades de cada um dos cônjuges, apoiam-se também na ideia de uma certa autonomia individual. Deste modo, as mulheres podem sempre ganhar pequenas quantias, se o desejarem, graças à venda de alguns produtos. Não se trata já de uma prática regular, mas de uma prática acessória, equivalente talvez à da produção agrícola para o autoconsumo. Vendem-se os coelhos à vizinhança, de vez em quando vende-se uns produtos na feira. Na família Silva (família múltipla), Margarida, a mulher mais nova, não vai ela mesma à feira, mas a sogra vai de vez em quando vender os produtos de ambas. Todas estas iniciativas são aprovadas desde que sejam levadas ao conhecimento do marido. Lucinda, lavradeira de 42 anos, é uma das mulheres que assume estas actividades de venda com mais regularidade. Interrogada sobre a organização das bolsas na sua família, o marido de Lucinda responde que existe apenas uma bolsa em casa deles, mas acrescenta em seguida: «Bem, ainda hoje de manhã, cada um de nós comprou um par de sapatos na feira com o seu porta-moedas. Mas evidentemente, só há uma bolsa, no sentido em que nós fazemos tudo em conjunto e de comum acordo. Eu não vendo nunca um animal sem trocar impressões, sabemos sempre os dois... O dinheiro está numa conta bancária, e depois vai-se buscando para os dois.» A estas informações, Lucinda acrescenta o seguinte comentário: «Em casa dos pais do António, o pai não tinha confiança na mãe e ela tinha de vender às escondidas, tinha o dinheiro que conseguia roubar ao pai. Por isso, o meu marido disse-me logo que não queria que eu andasse a roubar à casa. Eu vendo mas não é às escondidas. Vendo coelhos, leitões e também faço alfaces e tomates. Este Verão, tirei bastante, três ou quatro mil por semana, e agora na estufa no Inverno. Dá para alguma despesa para a casa e para eu ter do meu. Ainda antes de ir, o meu filho pediu-me roupa e eu “vai e compra”, foram oito contos, não pedi a ninguém. Claro que também vou tirando do dinheiro do leite. O dinheiro da quinzena do leite vai para o banco, ele é que paga as rações com cheque, também paga as rações dos coelhos e assim. É ele que controla tudo, umas coisas paga, outras dá-me para eu pagar. Eu não gosto de pagar o pão assim todos os dias, pago todos os quinze dias na venda. Então digo-lhe, 'Preciso de dez para a venda' e ele dá-me.» (Lucinda, lavradeira que cuida da ordenha e da alimentação de todos os animais; a mãe, viúva, é quem cozinha.)
321É interessante constatar que os termos simbólicos da troca estão de certo modo invertidos relativamente ao passado. Outrora, defendia-se uma apropriação separatista dos sectores de produção do dinheiro mas esse princípio era ponderado, ou até mesmo por vezes posto em causa, pelo princípio de subordinação do feminino ao masculino e pelos interesses da casa. Agora, advoga-se, face ao problema de uma grande conta (do dinheiro do leite) e de despesas elevadas, uma apropriação comunitária conjugal e uma repartição efectuada consoante as necessidades pecuniárias de cada um dos cônjuges. Contudo, não se recusa o desenvolvimento de alguns espaços de autonomia. De facto, o que se procura construir simbolicamente a partir da ideia da bolsa única, é uma estreita interdependência entre os cônjuges com vista à realização das finalidades da empresa familiar. No entanto, qualquer que seja o cenário — presente ou passado —, é pouco provável que seja a mulher a controlar a caixa. Se a caixa estiver em casa, o controlo é mútuo; se o dinheiro for posto no banco, é geralmente o homem quem controla o estado da caixa familiar. Porém, contrariamente ao que se passava dantes, a mulher tem hoje um direito de influência e de vigilância extensivos, sobretudo se colaborar profissionalmente no trabalho agrícola.
A partilha do património fundiário
322Foi possível verificar, no capítulo sobre o passado, que as trocas a longo prazo operavam num universo normativo em que as categorias (estatuto de filho primogénito, sexo) e os contributos (número de anos consagrados à casa, competência, etc.) ponderavam os direitos, inicialmente iguais, dos filhos. O significado social que as famílias davam à sucessão, associada à ideia de que era preciso privilegiar um sucessor único, tornava necessária uma certa igualdade de oportunidades para as crianças mas não excluía — antes pelo contrário — a escolha autoritária de um sucessor privilegiado, imposta pelos patrões da casa.
323No capítulo sobre os factores de produção da sucessão, vimos que actualmente já não se aprova as soluções de imposição autoritária mas que ainda se defende a ideia de uma sucessão «assistida» que não divida demasiado a exploração agrícola. Tendo em vista este objectivo, em vez de se «segurar» o sucessor, a proposta é «ajudá-lo». É a forma de tornar menos visível, no campo das interacções familiares, as eventuais desigualdades da repartição do património. É também proposto que se consulte todos os interessados para que a repartição seja o fruto de um esforço concertado.
324A tendência para a rejeição de soluções autoritárias, aliada à necessidade de praticar uma reciprocidade menos diferida relativamente à retribuição pecuniária do sucessor, vem reforçar uma situação em que a transmissão das rédeas da exploração se processa sem que haja, ao mesmo tempo, transmissão de propriedade: o sucessor torna-se o rendeiro de seus pais e legaliza-se a situação fixando os montantes em dinheiro ou em géneros que esse filho lhes deverá pagar. Mas deixa-se para mais tarde (para o momento das partilhas definitivas do património) a definição dos encargos com os pais e das outras responsabilidades que aquele que «fica na agricultura» deverá assumir.
325De um ponto de vista sociológico, esta solução apresenta novos contornos. Em primeiro lugar, trata-se de um contrato económico, onde os aspectos de entreajuda intergeracional no tempo (olhar pelos pais na velhice) serão formalizados mais tarde, e não na ocasião do casamento do sucessor e da «doação». Nada obriga hoje em dia o filho sucessor — contrariamente ao que acontecia outrora, em consequência do contrato familiar estabelecido aquando da doação da quota-parte disponível — a assumir, cedo na sua vida de homem casado, responsabilidades relativas aos cuidados a ter com pais. Este problema é adiado, e só será formalizado, ou não, no momento em que todos os membros da família forem consultados e concordarem quanto à repartição final do património.
326A maior parte dos jovens sucessores acham que o facto de ficar com os pais a seu cargo lhes devia dar o direito a uma compensação patrimonial mais elevada em bens móveis e imóveis. Encontrámos apenas um jovem lavrador que, face à questão de saber se aqueles que ficavam com os pais a cargo tinham direito a uma retribuição mais elevada, respondeu — depois de ter reflectido longamente — que os filhos tinham a obrigação de cuidar dos pais, e que portanto uma retribuição mais elevada não era necessária.
327A norma predominante continua a ser a que preconiza que retribuições económicas mais elevadas devem acompanhar o assumir destes encargos familiares. No entanto, perante a sociedade e a família, o reconhecimento da articulação entre estes contributos e estas retribuições é ao mesmo tempo menos formal e menos precoce.
328Além disso, no plano das trocas de património, vemos emergir princípios de justiça que se apoiam sobretudo em procedimentos (a consulta, a concertação, etc.) que podem evitar a fragmentação excessiva da terra. Para a geração dos casais que têm entre 30 e 50 anos, o facto de se privilegiar um sucessor sem o acordo dos outros filhos é verdadeiramente um acto «criminoso» para com os outros membros da família. Defende-se pois uma partilha desigual (mas não em demasia) que tenha em conta, sem utilizar procedimentos autoritários e dissimulados, a igualdade das satisfações e das oportunidades; ou, em alternativa, uma partilha do «valor» da exploração agrícola, ficando a terra para um e os outros recebendo outro tipo de bens. No entanto, num contexto macro-social onde a «verdadeira justiça» é definida cada vez mais em termos de uma igualdade material absoluta, verifica-se uma preocupação crescente com as repartições concretas de todos os tipos de bens e um mal-estar quanto à utilização, mesmo explícita, da quota-parte disponível para se privilegiar o agricultor da família. É preciso dizer que a pressão dos filhos «excluídos», que invocam o princípio da igualdade de direitos para todos os filhos, encontra actualmente uma legitimidade que não possuía na sociedade de outrora. Isto torna ainda mais difícil um acordo, ao nível da partilha, que não seja igualitário em termos dos resultados da divisão do «valor» do próprio património.
329Como é que estes novos desafios simbólicos influenciam a construção de destinos diferenciados na família e as práticas de repartição do património? Um primeiro dado a examinar neste contexto refere-se ao estatuto e ao sexo dos «filhos que ficam na agricultura» hoje em dia. Analisam-se depois as genealogias horizontais (fratrias) do presente, comparando-as com as do passado. As 20 genealogias apresentadas no final deste subcapítulo representam duas situações diferentes no que respeita à relação com a sucessão. As dez primeiras descrevem as situações socioprofissionais dos irmãos e das irmãs de dez lavradores que, em 1985, se encontravam de facto à frente de explorações agrícolas. Os outros dez representam as situações socioprofissionais e de sucessão prováveis de dez fratrias, e correspondem a dados recolhidos em 1987 e em 1988 nas famílias de lavradores com filhos adolescentes ou adultos jovens.
330Vejamos pois qual o sexo e a posição na ordem dos nascimentos dos lavradores actuais. Em Gondifelos, nos 24 grupos domésticos considerados como famílias de lavradores ricos em 1985, há 15 homens que são os herdeiros principais (e largamente privilegiados) do património fundiário da exploração. Encontramos depois os seguintes casos: seis casas em que alguns herdeiros ligeiramente favorecidos (três homens e três mulheres) receberam apenas a quota-parte disponível sobre a casa e o eido; uma casa herdada por um grupo de irmãos e irmãs solteiros; duas casas onde o património fundiário foi herdado pelos dois cônjuges (que não foram beneficiados), e depois aumentado ao longo dos anos.
331Entre os herdeiros largamente privilegiados, quase todos são ou primogénitos (seis casos) ou os únicos filhos de sexo masculino da família (quatro casos). Mas há também cinco casos onde os herdeiros são os filhos mais novos.
332Em Lemenhe, nos oito grupos domésticos de lavradores considerados abastados, encontramos a situação seguinte: um homem e uma mulher largamente privilegiados (ela é a herdeira principal de uns tios sem filhos); três casais (filhos que não foram favorecidos) que acumularam um património graças ao próprio trabalho e às ajudas (empréstimos etc. por parte das famílias de ambos); três homens parcialmente privilegiados.
333Se analisarmos agora as primeiras genealogias horizontais, isto é, as dos lavradores que se encontram já à frente de uma exploração agrícola em 1985, podemos notar uma certa igualdade de oportunidades nas fratrias. A emigração, ainda para o Brasil, mas também, aqui e acolá, para França ou para as colónias portuguesas, constitui uma via alternativa bastante frequente (ver as casas no 1, 2, 3, 4, 6, 8) nessas genealogias. Simultaneamente, a via dos negócios e do comércio ocupa um lugar importante. No entanto, mais do que se estabelecerem como merceeiros, como no passado, os filhos não-agricultores estabelecem-se muitas vezes por conta própria (táxi, oficina de serralheiro). Acontece também criarem um negócio de família que comercializa um produto de origem agrícola (ver, por exemplo, a genealogia da casa no 7, onde vários irmãos trabalham no comércio do vinho) ou que assegura a distribuição de um produto novo para a agricultura (rações animais, máquinas agrícolas). Encontra-se ainda um caso de um investimento de capital na indústria têxtil e um outro investimento em negócios imobiliários. Assim, na genealogia no 7, o pai emprestou uma avultada soma de dinheiro a um dos filhos para que este pudesse comprar um terreno destinado a ser posteriormente dividido em lotes e revendido para a construção de casas. Por outras palavras, este pai lançou o filho nos negócios. Finalmente, a via dos estudos é, também ela, importante. A via dos estudos no seminário foi abandonada a favor dos estudos secundários e superiores (houve apesar de tudo uma tentativa — mas fracassada — para se enviar um filho para o seminário no final dos anos 1960; ver genealogia no 4). Um certo número de rapazes foram assim para o Porto nos anos 70 para se formarem em economia ou em engenharia (ver as casas no 7 e no 8). Em contrapartida, as irmãs desses rapazes não são ainda verdadeiramente incitadas a estudarem. Tornam-se lavradeiras, como antigamente, mas também donas de casa, emigrantes e camponesas casadas com camponeses a tempo parcial.
334Eis pois os casos (masculinos) mais conseguidos de uma certa reconversão do capital fundiário. Observa-se todavia, sobretudo nas famílias em que os filhos são muitos, um abaixamento ocasional da posição socioprofissional e económica de certos irmãos dos herdeiros privilegiados. Dantes, esta descida na escala social efectuava-se para o campesinato pobre ou a tempo parcial; acontecia também o filho em questão ficar solteiro e continuar a viver na casa paterna. Mas, nas genealogias de 1985, esta descida na escala social fazse, no que se refere aos emigrantes, para a condição de operário. E naqueles que ficam na freguesia faz-se, sobretudo, para a condição de empregado da cooperativa leiteira (condutor, funcionário do posto), de operário não-qualificado ou ainda de camponês parcial (Ver casas no 3, 6, 9).
335Nas genealogias horizontais que indicam quais aqueles que vão provavelmente tornar-se herdeiros no decurso dos anos 90, nota-se, na situação dos rapazes, um restringimento mais marcado em torno do destino «agricultor» e, naqueles que não permanecem na agricultura, uma dificuldade em serem algo mais do que comerciantes, empregados pouco qualificados, ou trabalhadores não-qualificados (quer seja na freguesia quer seja emigrando). É verdade que este corte horizontal mostra apenas o início das trajectórias socioprofissionais destes jovens adultos. Mas é certo que a escolaridade problemática (ver as genealogias no 3, 6 ou 10) da maior parte destes jovens irá marcar as suas trajectórias futuras. De facto, essas dificuldades escolares devem-se nomeadamente a dois factores que adquiriram importância ao longo dos anos 80. Por um lado, há o facto de o acesso ao ensino superior ser cada vez mais difícil. Com efeito, já não se trata de querer que um filho estude; é preciso que o aluno obtenha notas altas no final do secundário. Ora as crianças do meio rural têm dificuldade em rivalizar com as da cidade. Por outro lado, as possibilidades de formação e de emprego na região, onde predominam as indústrias intensivas em trabalho humano, são pouco variadas. Hoje em dia, o filho de um lavrador que tenha completado o ensino secundário encontrar-se-á provavelmente em pior situação face ao mercado de emprego do que o filho de um operário qualificado que teve acesso, desde os 15 ou 16 anos, a uma formação numa fábrica.
336Verifica-se todavia, sobretudo no segundo grupo de genealogias, mas também já no primeiro, uma passagem temporária pela condição de operário não-qualificado de alguns filhos que posteriormente virão a ser agricultores. É um facto novo, e está ligado a duas situações-tipo: aquela em que um filho não-sucessor de lavradores, que não recebeu ou recebeu poucas terras, quer juntar dinheiro para construir ou modernizar uma exploração, por um lado; aquela em que um filho sucessor, enquanto espera o momento da transmissão das rédeas da exploração, decide, por causa de um conflito latente com o pai ou para ganhar algum dinheiro, emigrar ou tornar-se operário. Foi assim que, na genealogia no 3 (segunda série), os dois filhos propuseram ao pai, em 1981, ficarem ambos com a exploração agrícola a seu cargo. Perante a recusa do pai, o mais velho emigrou. Durante um certo tempo (1985/86), dizia-se que ele talvez voltasse e acabasse por trabalhar juntamente com o irmão. Depois, em 1988, tornou-se evidente que só o mais novo viria a ser rendeiro dos pais e que o irmão, que estava para casar no Canadá, não regressaria à freguesia para ser agricultor. Em contrapartida, na genealogia no 1 (segunda série), o irmão mais velho regressou ao fim de um certo tempo. Como o pai era muito autoritário e que ele e o filho não se entendiam, o filho foi forçado a emigrar de novo — mas sempre por períodos curtos —, até ao dia em que pôde constituir uma sociedade com o irmão.
337Todos aqueles que têm uma experiência de operários ou de empregado não-qualificado fora da agricultura familiar descrevem essa experiência em termos negativos. Joaquim (genealogia no 5, primeira série) precisava, no início de ficar com a pequena exploração dos pais a seu cargo, de um capital inicial para construir uma vacaria, e não queria contrair um empréstimo. Um amigo arranjou-lhe trabalho num concessionário de automóveis. Mas Joaquim aborrecia-se. Segundo ele, «não só não tinha praticamente que fazer, como também não tinha ninguém para me obrigar a fazer fosse o que fosse». Deixou o emprego ao fim de dois meses, e pediu um empréstimo ao banco. Por seu turno, Augusto (genealogia no 3, primeira série), quinto filho de uma família de lavradores, conseguiu trabalhar durante oito anos na indústria têxtil (num armazém) antes de se dedicar inteiramente à agricultura, aos 35 anos.
338Na medida em que é difícil atingir posições socioprofissionais equivalentes ou superiores à de lavrador no âmbito das freguesias actuais e que, por outro lado, se tende mais do que no passado a evitar soluções autoritárias, compreende-se que as trocas entre pais e filhos, e entre os próprios filhos ao nível da partilha do património, se confrontem com novos problemas. Apesar de uma lei que admite a quota-parte disponível, deve-se ter em conta uma certa justiça material e uma certa igualdade dos resultados na repartição do património. Muitas vezes, o número mais reduzido de filhos, e o sexo desses filhos, permite resolver o problema: se a família tiver um filho único ou um único filho do sexo masculino (ver as genealogias n° 2, 5, 8, 9, segunda série), por exemplo. Noutros casos, quando um acordo entre vários filhos é difícil de pôr em prática, há tendência para se efectuarem trocas mais equitativas, em que quer cada um dos filhos recebe efectivamente uma parte legítima quase idêntica em valor e em tipo de bens (genealogia n° 6, primeira série), quer — outra solução possível — os herdeiros (masculinos) formam uma sociedade. É igualmente possível privilegiar ligeiramente o filho agricultor que fica com os pais a cargo, na medida em que as normas de justiça neste meio social consideram como legítima uma certa retribuição por este serviço. De facto, a norma preferida de uma certa justiça processual, em que os filhos abdicam voluntariamente de uma parte dos seus direitos iniciais, pode ser difícil de pôr em prática num contexto onde as vias profissionais alternativas são difíceis de seguir, onde o valor da terra aumenta e onde a sobrevivência do grupo já não depende da perpetuação da «casa».
339Podemos agora interrogar-nos se os resultados das trocas em 1985 são diferentes dos que identificámos para os anos 40 e 50 e, em caso afirmativo, em que diferem. Vejamos, em primeiro lugar, por que razão encontramos, em 1985, filhos que ficaram com uma grande parte do património fundiário. Para dar resposta a esta questão, é preciso ter em conta o facto de os lavradores que têm hoje 45 ou 50 anos terem herdado o património num contexto em que a quota-parte e o facto de se «segurar» o herdeiro eram ainda considerados como procedimentos correctos. É assim que o primeiro filho (um rapaz) da genealogia n° 1 (primeira série) ou o da genealogia n° 4 (primeira série), foram «seguros» com a quota-parte disponível por ocasião do seu casamento, tendo as partilhas definitivas sido efectuadas alguns anos mais tarde tendo em conta essa doação inicial. Notemos igualmente que o intervalo de tempo que separa o tomar a seu cargo a exploração das partilhas definitivas permite ao sucessor acumular capital com vista à compra das partes legítimas em terra dos irmãos ou irmãs.
340Encontram-se também, nas fratrias muito numerosas — e tal como no passado —, soluções que privilegiam ligeiramente diversos filhos a fim de lhes permitir estabelecerem-se por conta própria. O procedimento não é, porém, o mesmo de antigamente. Nos anos 40 e 50, eram acima de tudo os pais que repartiam o património e que decidiam atribuir a um determinado filho terra para que ele se estabelecesse fora de casa e a outro a quota-parte disponível sobre a casa. Em contrapartida, nos anos 70 e 80, as partilhas são negociadas entre irmãos e irmãs, se bem que sejam apesar de tudo efectuadas sob a influência dos pais e por vezes do filho que tem ideias mais precisas a esse respeito. E, se se torna difícil chegar a acordo porque vários filhos querem ficar com uma parte legítima em terras (ver a genealogia n° 6, primeira série), há então tendência para se voltar a uma comparação estatutária que pressupõe direitos iguais e idênticos para todos. Ao invés, no passado, insistia-se mais na necessidade de nomear um herdeiro e de privilegiá-lo amplamente a fim de se assegurar a continuidade da casa.
341Voltemos pois à nossa questão: por que razão encontramos, em 1985, filhos que mantiveram uma grande parte do património fundiário? Porque, mesmo na ausência de uma doação da quota-parte disponível, é possível favorecer uma certa acumulação de património fundiário por parte do filho/filha que permanece na exploração agrícola. Transmitem-se as rédeas da exploração ao sucessor, dando-lhe o estatuto de rendeiro sem lhe exigir uma renda muito elevada e permitindo-lhe acumular alguns recursos. Dá-se-lhe apoio financeiro através de dádivas em dinheiro ou em máquinas agrícolas. Foi no quadro de estratégias de transmissão semelhantes que Joaquim, o sexto filho rapaz (genealogia n° 3, primeira série), explorou a casa de seu pai durante quase dez anos antes de se proceder às partilhas definitivas, no início dos anos 80. Nessa altura, ele foi ligeiramente privilegiado porque ia ficar com o encargo do pai e, por outro lado, pôde «resgatar» as partes legítimas em terra de três dos irmãos e de uma das irmãs. Tornou-se pois o lavrador «mais forte», o que «fez mais» do que todos os irmãos.
342Observa-se, por outro lado, o aparecimento de novas maneiras de «lançar», ou estabelecer, os filhos que «não ficam em casa» mas que se tornam apesar de tudo agricultores. Antigamente, quando um filho de lavrador se queria estabelecer na agricultura, procurava negociar junto do pai a cedência de um parte legítima em terra e/ou fazer um bom casamento que pudesse compensar parcialmente ou totalmente a falta de património fundiário da sua parte. Mas, nas genealogias do presente, não é o facto de a esposa ser rica que serve de suporte ao estabelecimento independente do casal, mas sim a soma de dois capitais: um pequeno património familiar de partida (um campo herdado em partilhas, por exemplo, e algumas vacas), por um lado; um capital obtido através de uma proletarização temporária (na localidade ou emigrando) ou graças a empréstimos efectuados junto de familiares ou do Estado. Em geral, «para que isso vá para a frente», é também necessário que o marido e a mulher sejam ambos profissionais agrícolas. Como diz Joaquim (genealogia no 5, atrás mencionada): «Com uma “estudante”, nunca teria conseguido ir em frente. Para que teriam servido os estudos?»
343Nas trocas que emergem no final dos anos 80, vêem-se filhos de lavradores que se preparam para suceder aos pais. Têm muitas vezes poucos irmãos e irmãs a quem dar tornas mas, sendo alto o valor da terra e a exploração suficientemente grande, é possível que um dos irmãos deseje formar uma sociedade. As filhas, por seu lado, estão cada vez mais confinadas num mundo à parte, o do trabalho doméstico ou, no caso das mais ambiciosas, no dos estudos profissionais. Na segunda série de genealogias, esta tendência é muito nítida: as irmãs estudam mais do que os irmãos, e adquirem mais frequentemente do que eles uma formação profissional fora do campo da agricultura. Em geral, confinam-se a estudos que não as obrigam a emigrar para a cidade (Porto): frequentam a escola do Magistério para tirarem o curso de professora primária ou de educadora, ou a escola de enfermagem de Braga.
344Em resumo, a norma ideal preconiza hoje uma sucessão «assistida» que permita manter a exploração sem negligenciar os direitos iniciais de cada um e a necessidade de obter o acordo de todos os filhos no que respeita às partilhas. Dantes, quando havia conflitos, o estatuto dos pais, que controlavam o devir da casa, sobrepunha-se aos princípios de justiça processual e de igualdade das satisfações. Em contrapartida, hoje em dia, quando há conflitos e que o acordo não se efectua, são os princípios de estatuto e de igualdade que se sobrepõem aos princípios de continuidade da casa e da autoridade paterna. Num contexto socioeconómico onde as oportunidades de emprego e de promoção social são relativamente estreitas (e nem sempre «ascendentes»), a escolha dos destinos e o carácter justo das trocas entre filhos são desafios familiares delicados. Talvez haja menos filhos a promover, mas cada um dos filhos sente que tem tanto direito como os outros a ser ajudado a fim de poder começar a vida profissional e conjugal.
As famílias empreendedoras no interior da freguesia
345Ao longo das páginas anteriores foi possível entrever, ao falar das famílias de lavradores no presente, que o estatuto, o prestígio relativo e o poder dos grupos domésticos lavradores foi declinando no decurso das últimas décadas. Ouvimo-lo nas vozes críticas que acusam uma determinada lavradeira de não cuidar do filho, e voltamos a encontrá-lo nos olhares (invejosos, é verdade) que apenas vêem na fortuna de um determinado casal novo de lavradores dívidas e dependência para com o exterior. Claro que os lavradores são respeitados pelo seu trabalho intenso, pela sua relação com a terra e com os produtos da terra, pelo nível de vida assaz confortável que a agricultura empreendedora lhes permite. Mas já não detêm o controlo absoluto dos bens que permitem sobreviver, tal como já não dispõem de uma via de acesso privilegiado aos recursos que conduzem aos outros topos da escala do prestígio — a via da «carreira profissional» ou a da empresa industrial. Como toda a gente, também eles têm de lutar para nela conseguir um lugar.
346Por outro lado, no que se refere às estruturas do poder e da gestão ao nível da freguesia, a posição privilegiada dos lavradores foi abalada pela revolução de 1974. Associados por todos, devido aos lugares que ocupavam no interior das antigas instituições, aos interesses e às ideias do antigo regime (muitas vezes, encontravam-se há muitos anos na chefia das instituições locais), foram obrigados a retirar-se perante os novos eleitos. As suas relações com estes últimos variam contudo consoante as freguesias. Em Lemenhe, onde o Grupo de Trabalhadores Independentes de Lemenhe — sem filiação partidária, mas fortemente apoiado pela população operária —, ganhou as eleições autárquicas, os lavradores, muito minoritários em número e mais ligados ao partida da direita (CDS), têm poucas relações com os novos dirigentes. Mantêm uma oposição surda, atiçada por vezes pelo padre, contra o presidente da Junta de Freguesia. Este, um operário qualificado da metalurgia e dirigente sindical durante vários anos depois da revolução do 25 de Abril, é filho de um merceeiro/pequeno proprietário da freguesia.
347Em Gondifelos, em contrapartida, é o filho do antigo presidente da Junta de Freguesia (um lavrador grande) que foi eleito quando se tratou de substituir o pai. É um industrial dos têxteis cuja empresa se situa na freguesia e que também possui propriedade fundiária. As posições deste novo poder local estão próximas pois quer dos lavradores quer dos pequenos e médios empresários têxteis que surgiram no decurso da última década nesta freguesia.
348As redes de influência dos lavradores tornaram-se também menos importantes ao nível das localidades citadas. Outrora, como esses lavradores empregavam os adultos e as crianças de diversos grupos domésticos, criavam relações privilegiadas com muitos desses grupos. Hoje em dia, é sobretudo ao empresário têxtil que os assalariados têm de ir pedir trabalho para os filhos quando estes deixam a escola, ou ainda a alguns operários que trabalham em fábricas afastadas da freguesia. Mas os lavradores mantêm, no entanto, algumas relações com grupos domésticos proletários. Por exemplo, existem jornaleiras agrícolas de mais idade que trabalham para a mesma «casa» desde há muitos anos; ou então, os filhos adultos de antigos jornaleiros, eles próprios operários, que trabalham nos tempos livres em casa do lavrador para quem já trabalhavam os pais. Estabelecem-se assim relações de entreajuda que são transmitidas entre as gerações, mas já não se trata do patrocinato sistemático que existia antigamente. Aliás, a ajuda prestada aos grupos domésticos pobres foi alargada: Gondifelos tem um posto de saúde na própria freguesia e Lemenhe utiliza o da vizinha freguesia do Louro. A protecção social dá direito a pensões de velhice baixas, mas estende-se hoje a quase toda a população, permitindo a uma pessoa de idade reformada negociar a sua integração num grupo doméstico ou assegurar alguns serviços de uma vizinha a troco da sua pensão.
349Neste contexto, a caridade comunitária organizada não desapareceu, mas a dependência dos grupos domésticos mais desprovidos relativamente a essa caridade e aos «favores» dos grupos domésticos mais ricos diminuiu. No entanto, a ajuda mútua colectiva é ainda solicitada de vez em quando. Assim, os habitantes de Lemenhe de «baixo» organizaram um peditório para ajudar uma jovem viúva pobre — cujo marido operário morrera electrocutado na fábrica onde trabalhava — a pagar o enterro do marido e sobreviver nos primeiros tempos. Na localidade de Fiães, em Gondifelos, quando uma viúva (antiga jornaleira), cujos filhos haviam emigrado, adoeceu gravemente, os vizinhos dividiram entre si determinadas tarefas: Lucinda, lavradeira, ia todos os dias fazer a sopa a casa da viúva, uma outra vizinha passava durante o dia, etc.. Em geral, as ajudas competem em primeiro lugar aos parentes mais próximos. Mas quando estes não existem, são os vizinhos que delas se encarregam quando podem.
350A recomendação ideal relativa à ajuda mútua entre vizinhos e entre habitantes da freguesia continua viva nas freguesias estudadas. «Uma mão ajuda a outra, é preciso dividir as necessidades», diz Maria (camponesa pobre) a este respeito. E quando falam das «ajudas» que prestam uns aos outros, os lavradores utilizam também a imagem das mãos: é preciso «botar uma mão» a um vizinho que está aflito. Quando se presta um pequeno serviço a alguém, também se diz que «se dá um jeito».
351Porém, os grupos sociais contribuem de maneira diferenciada nesta «mãozinha». Em situações de emergência, como nos exemplos atrás mencionados, toda a gente colabora na medida das suas possibilidades. Ao nível do quotidiano, contudo, as necessidades e os estatutos diferenciados vêm ponderar o pôr em prática deste princípio. Examinemos o caso específico dos lavradores abastados. Estes tinham antigamente um estatuto de «auto-suficiência». Em termos de força de trabalho, isso significava que tinham à sua disposição não só a mão-de-obra da família, mas também a outra, quase gratuita ou pouco remunerada, dos criados, dos jornaleiros agrícolas ou daqueles que a casa protegia. Nos dias de grandes trabalhos (por exemplo, por ocasião da festa da desfolhada do milho), os vizinhos vinham por iniciativa própria para ajudarem, em troca da ceia e de um pouco de distracção durante o serão. Em contrapartida, quando um lavrador se encontrava num aperto (falta de dinheiro, por exemplo), era sobretudo para a família (irmãos, pais, etc.) ou para particulares «ricos» que ele se virava. Em resumo, as casas de lavradores tinham por hábito aliar-se entre si perante certos problemas mas, em relação à maior parte dos grupos domésticos do «lugar», elas consideravam-se mais como prestadoras do que recebedoras de serviços e favores.
352Se bem que os lavradores já não acumulem como outrora os mesmos créditos em serviços ou ajudas, procuram no entanto manter uma imagem de independência e de estatuto que os situe acima dos outros grupos domésticos. Isto explica talvez a sua atitude muitas vezes ambígua para com «as ajudas». Defendem como toda a gente a necessidade de responder com prontidão a um pedido qualquer de ajuda por parte de um vizinho, mas ou evitam criar laços demasiado fortes que possam levar a trocas constantes e múltiplas com toda a gente, ou então seleccionam prudentemente o vizinho com o qual criam esses laços.
353As recomendações ideais, tal como são interpretadas pelos lavradores, são reveladoras dos princípios que sustentam a escolha e o tipo de alianças que eles preferem criar para desenvolver as suas redes de ajuda mútua. Para eles, é preciso contar em primeiro lugar, hoje em dia, com os parente próximos (isto é, com quem vive na casa), e sobretudo com a troca entre cônjuges. Em seguida, é preciso criar laços com a família alargada (o que eles chamam «a família») — mas sem se ficar muito preso — e com alguns vizinhos «amigos», que é preciso escolher, porque «não se pode confiar nos vizinhos todos». Eis o discurso de Joaquim, nascido em 1948, e de Mário, nascido em 1934, a este propósito:
«Nós é que fazemos o trabalho, a minha mulher e eu. Há as ajudas, como por exemplo, no tempo da silagem e no tempo da poda. Também já temos tido ajudas. Temos quase sempre. Não são ajudas mesmo grátis, porque eu tenho que pagar doutra maneira qualquer, mas tenho ajudas. São homens daqui da freguesia, amigos, que vêm aí um dia ou dois, no tempo da poda. Eu também vou lá, lavrar um bocadinho ou fazer qualquer coisa. A silagem, são quase sempre ajudas da família, são dois dos meus cunhados, um irmão dela e o P. que é nosso vizinho. O P. também, desde que ele ensila, eu vou lá sempre ajudá-lo e ele vem ajudar-me a mim também quando é preciso. Portanto é a família praticamente e esse amigo. O resto do trabalho é a contar connosco, eu e a minha mulher, não é com as ajudas de ninguém. Dantes, era mais fácil pagar a jornaleiros, havia mais a quem pagar, parece que não se procurava tanto no tempo dos grandes trabalhos.»
«Nós devemos contar só com a família, devemos contar com nós mesmos. Porque a gente hoje precisa e pode até a família ter boa vontade de vir, mas por vezes moram longe, por vezes moram perto e não querem ou não podem. Porque cada um tem a sua vida, não é? Tem os seus filhos, o seu marido, os animais. E há coisas que a gente não pode pedir aos vizinhos, porque a gente não tem confiança nos vizinhos todos. Sabe como é que é, as pessoas não são todas iguais. Mas acontece os vizinhos em quem a gente confia não poderem vir ajudar, porque também têm que olhar lá pelas coisas deles. E então, a gente tem é de contar connosco em primeiro lugar. Ajudarmo-nos uns aos outros, é importante. Eu cá às vezes vou ajudar alguns vizinhos, e às vezes posso precisar que me ajudem, portanto ajudar os outros é bom. Mas é uma coisa que não se pode fazer com toda a gente.»
354Em certas explorações agrícolas — sobretudo nas mais abastadas —, chegaram mesmo a dizer-nos, a propósito das «ajudas», que «não se recorre a elas». No entanto, a observação das práticas mostra que estas explorações efectuam algumas trocas com outros grupos domésticos, mas que estes são seleccionados de acordo com os critérios acima mencionados: apela-se à «família», quer do lado do marido, quer do lado da mulher, mesmo quando ela vive noutra freguesia, por um lado, e aos vizinhos «amigos», por outro. Geralmente, as famílias tentam recorrer aos membros do grupo doméstico e, de vez em quando, em caso de necessidade ou de urgência, chamam «a família» ou «os amigos». Podem também ter «ajudas» de outros vizinhos mais pobres a quem prestaram um serviço (lavrar a terra, por exemplo) e que retribuem o favor dando uma ajuda nos trabalhos agrícolas que exigem mais mão-de-obra.
355Notemos igualmente que as relações de amizade estabelecidas entre dois vizinhos lavradores pressupõem a existência de boas relações tanto entre as mulheres como entre os maridos. Isso é importante ao nível das «ajudas» mais especializadas: por exemplo, quando há uma festa de família, as duas mulheres poderão encarregar-se as duas em conjunto das tarefas da cozinha. Assim, no dia da primeira comunhão do filho, Conceição preparou o almoço para a «família» toda (a família alargada: avós de ambos os lados, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas de ambos os lados, tia-avó e tio-avô em casa de quem o casal mora) com a ajuda de Fátima e da filha desta, vizinhas «amigas» com quem Conceição e o marido mantêm relações de troca regulares, tanto agrícolas como domésticas.
356Quanto à escolha da linhagem — a do marido ou a da mulher — para o pedido de ajuda mútua, diversos factores parecem entrar em linha de conta: a proximidade no espaço e as relações mais ou menos harmoniosas com os pais ou outros familiares, por um lado; os recursos agrícolas de que dispõe cada uma das linhagens, por outro. Acontece, como no caso de Conceição e do marido, que os dois cônjuges vivam longe da freguesia natal. Neste caso, Conceição e o marido desenvolveram uma relação de entreajuda com um vizinho «amigo» para certas trocas quotidianas, e só fazem apelo à família, mais distante em termos geográficos, excepcionalmente. Para a ensilagem, por exemplo, pedem sempre ajuda ao irmão do marido (que vive numa freguesia vizinha), pois esse irmão possui as máquinas necessárias. Não pedem ajuda à família de Conceição neste caso porque a família dela não trabalha a tempo inteiro na lavoura nem possui recursos importantes nesse domínio.
357Ao contrário, na família Silva, o marido não tem qualquer irmão ou irmã a tempo inteiro na agricultura. Por consequência, a irmã e o cunhado (camponeses a tempo parcial) vêm por vezes dar uma ajuda mas também se recorre frequentemente ao irmão da mulher (lavrador «empresário») que vive numa freguesia vizinha.
358O caso de Joaquim, acima citado, é um pouco mais complexo. Com efeito, ele vive na sua freguesia natal, muito perto da casa da mãe (viúva) e de um irmão lavrador. No que se refere à guarda das crianças, a mulher pede por vezes ajuda à irmã adolescente de Joaquim (que vive com a mãe e é madrinha de um dos filhos). Em contrapartida, quando se trata de pedir ajuda ao nível dos trabalhos agrícolas, pede-se antes ajuda a um vizinho amigo e aos cunhados de Joaquim do que ao irmão. Isto deve-se ao facto das relações entre os dois irmãos não serem boas devido a uma certa rivalidade: Joaquim conseguiu montar uma agricultura «empreendedora», o irmão levou mais tempo a desenvolver a sua exploração agrícola.
359O segundo caso — o dos «sócios» que se empenham a mais longo prazo numa relação de ajuda mútua, é mais raro. No meio dos lavradores, apenas encontrámos algumas «sociedades» estabelecidas entre dois irmãos (a viver em freguesias diferentes) e algumas outras entre dois vizinhos amigos que se haviam associado para comprarem máquinas agrícolas (em geral, trata-se da máquina de ensilagem do milho). Em contrapartida, segundo os dados das duas freguesias, dir-se-ia que isso só acontece excepcionalmente entre vários lavradores ao mesmo tempo. Um desses casos data do início dos anos 1980, quando o posto de leite do lugar vizinho foi fechado devido a uma epidemia que atingiu as vacas. Os quatro lavradores do lugar do Lobo juntaram-se então para comprar uma ordenha mecânica. De manhã e à tarde, a máquina ia de casa em casa.
360Ao nível do quotidiano, no entanto, existe entre as casas uma certa rivalidade. A título de exemplo, citemos o caso de dois casais novos de um lugar de Gondifelos que resolveram, nos anos oitenta, modernizar as suas explorações. Toda a gente os observa para ver quem é que se sai melhor. Eles também se observam para ver quem é que está a produzir mais milho, mais leite.
361Evitar estabelecer relações com quem se encontra em competição directa consigo, evitar os vizinhos que não têm a nossa confiança ou de quem se sabe que é melhor desconfiar, evitar as dependências demasiado estreitas com quem é mais pobre e se arrisca a «pedinchar» a torto e a direito — evitar tudo isto sem negar uma certa ajuda mútua e sem esquecer de activar certas relações com a família alargada e com um ou dois vizinhos. Eis as principais recomendações de troca seguidas pelos lavradores nas freguesias estudadas.
362Sem entrar em pormenores relativos aos modos de troca dos grupos domésticos pertencentes a outras situações de classe, digamos apenas que nas casas dos camponeses pobres a interpretação da obrigação em «botar uma mão» é mais ampla. Advoga-se a ajuda mútua não apenas em resposta a um pedido («quando pedem»), mas mais geralmente quando «se vê que há uma precisão» («vi-os num aperto e dei-lhes uma ajudinha»). A ajuda no plano agrícola, por exemplo, é considerada indispensável, tanto mais que a maior parte dos pequenos camponeses e dos camponeses a tempo parcial possuem poucos recursos técnicos (máquinas, herbicidas, tractor, etc.). Quando se tem filhos adolescentes, conta-se com a ajuda deles durante o fim-de-semana para certas tarefas. Mas como os filhos estão pouco disponíveis, são os adultos que devem reunir esforços. Assim, na localidade de Padroso, em Lemenhe, quatro mulheres (três mulheres de camponeses parciais e uma viúva pequena proprietária) unem-se a fim de executarem determinadas tarefas: apanhar erva, sulfatar as vinhas, mondar, colher, etc. Basta que uma delas informe que a apanha das batatas se faz em tal dia em casa dela para que as outras se sintam obrigadas a lá ir sem falta. Noutras ocasiões, não se trata de mulheres, mas de casais idosos (camponeses parciais reformados) que se juntam. É o caso, na aldeia de Fiães, de três casais que se juntam para as vindimas: um casal de antigos emigrantes/pequenos proprietários, um casal de antigos caseiros que exploram a terra de um filho emigrante, e um lavrador de idade (não-modernizado) com a filha e o filho solteiro. Dão a volta às vinhas todos juntos e oferecem uns aos outros, cada um por sua vez, a merenda a meio da tarde.
363Muitas vezes dependentes dos lavradores mais abastados para lavrarem as terras, os camponeses pobres ajudam aqui e acolá — na altura da desfolhada, da poda das vinhas ou das vindimas — nas terras das explorações «empreendedoras». Isto contribui para dar um ar de trabalho colectivo a tarefas que são cada vez mais executadas, nas explorações «modernas», em família ou com máquinas. Em casa de certos camponeses pobres, ouvem-se constantemente queixas contra os lavradores que lhes fazem favores. Eis um exemplo:
364«Há gente que aproveita um favor de que a gente precisa para logo a seguir nos explorar. Porque, está a compreender, às vezes, a gente precisa de um favorzinho...., e então a gente diz-lhes: ‘ouve lá, tu não podias ir com o tractor, aqui ou além, buscar isto ou aquilo?’ Às vezes, só lá vão uma meia hora, no máximo uma hora, mas depois, nunca mais nos largam. ‘Manuel, dizem eles, vem dar-me uma ajuda com o milho, vem fazer isto ou aquilo’. E a gente, a gente paga e volta a pagar, nunca mais deixa de pagar, está a compreender?» (Manuel, nascido em 1934, Lemenhe.)
365O sentimento de ter sempre uma dívida para com alguém um pouco mais rico leva muitos camponeses a tempo parcial a dispensar a ajuda dos lavradores. O raciocínio é o seguinte: já que temos dinheiro, já que ganhamos, é preferível recorrer ao tractorista, que ganha a vida a fazer esse trabalho — mesmo que ele tenha que vir de outra freguesia — e pagar-lhe.
366Em resumo, nota-se uma certo retraimento dos agentes de cada classe social, e a tendência para se evitar criar laços de troca e de dependência mútua entre famílias que vivem de forma diferente. Tudo isto em comparação com o passado, num tempo em que os recursos e as condições de vida eram mais precárias, em que existiam poucas alternativas em termos de troca, o que suscitava interacções mais intensas entre os grupos domésticos e entre as classes no interior da freguesia.
367No que se refere aos lavradores, também eles se centram um pouco mais sobre a família simples, sem que isso implique de algum modo um corte com a família alargada ou a vizinhança. Simplesmente, a vida doméstica tornou-se menos condicionada pelas entradas e as saídas dos criados, dos jornaleiros que trazem mexericos ou saberes latentes, ou ainda as dos vizinhos ou dos pobres que pedem trabalho, pão ou uma intervenção num problema doméstico. Por outras palavras, a família simples adquire mais importância no momento exacto em que, no plano externo, o grupo doméstico do lavrador perde o seu papel quase exclusivo de fabricante e de distribuidor de bens raros. No exterior, as trocas das famílias dos lavradores privilegiam os indivíduos que se encontram na mesma situação de classe (lavradores, quer se trate de parentes ou de vizinhos amigos); implicam menos os grupos domésticos ou os indivíduos situados fora desta rede social primária. No interior da família, e sobretudo naquela que «fica» na agricultura, a troca é ampla e mais igualitária, pois é preciso assegurar a realização de múltiplas tarefas associadas à exploração agrícola. No entanto, ela encontra-se ao mesmo tempo limitada, pelo menos em parte, por uma nova concepção da infância (mais privilegiada e menos escrava) e da vida familiar (mais tempo livre e maior limpeza), pela redução da rede de trabalhadores potenciais e pelas exigências da escolaridade obrigatória.
Notes de bas de page
1 É o caso do Francisco, do Grupo Doméstico n.o 3, que quis continuar a estudar.
2 A história da reconversão agrícola da família Correia é interessante para ilustrar a maneira como se efectuou a passagem para uma agricultura especializada nas freguesias estudadas. Ei-lo pois a título de exemplo:
No final dos anos 50, a casa de João Correia praticava, segundo os membros da família, uma agricultura «fraca» e «pequena», «como a de toda a gente na altura». A casa tinha geralmente seis cabeças de gado (de «gado barroso»), e havia também uma vaca que fornecia o leite destinado às crianças (em 1960, estas eram já cinco). As principais produções eram o milho, o vinho, a batata e o feijão; vendiam-se regularmente os novilhos e o excedente dos outros produtos, e criavam-se porcos, galinhas, coelhos. O trabalho era feito «à mão», sem máquinas. Até 1956, houve sempre um criado em casa; depois, «como se tornavam demasiado exigentes e difíceis de encontrar», só se recorria a jornaleiros agrícolas.
No princípio dos anos 60, uma cooperativa (a Suil) começou a abastecer-se de leite na aldeia. Tinha sido decidido que se depositavam os bidões na casa de um lavrador que morava no outro extremo da freguesia, e que tinha uma vaca. Mas João tinha tido uma ligeira desavença com esse lavrador. E, quando o responsável da Suil lhe pediu que facultasse algum leite, João respondeu-lhe que só vendia leite se a Suil o viesse buscar à porta dele porque, disse-lhes, não queria ter que carregar com ele todos os dias até à outra ponta da freguesia. A Suil aceitou a exigência, e vieram a partir daí trazer e buscar o bidão a casa de João. Satisfeito com os resultados daquela venda intermitente, João decidiu criar mais vacas e, durante os anos 60, teve sempre quatro e por vezes cinco vacas. Eram mungidas à mão, alimentadas a palha, erva e farinha de milho da exploração, levadas a pastar e tinham camas de mato.
O fim dos anos 60 trouxe uma nova mudança. O «grémio da lavoura» começou a organizar demonstrações sobre a utilização do tractor. Essas demonstrações tinham lugar na propriedade de um dos lavradores abastados da freguesia, e os outros eram convidados a assistir. João, encorajado pelo filho mais velho Joaquim, que já tinha 18 anos, foi o primeiro lavrador a comprar um tractor. Os nossos interlocutores lembram-se de que, durante os primeiros dias, toda a gente do lugar se dirigia ao campo do João para ver a nova máquina. Joaquim aprendeu a guiar o tractor (sem carta). No princípio, quando ainda não havia outros tractores na aldeia, ele recorda-se de trabalhar 14 horas ou mais na época da lavra. O dinheiro que ganhava revertia a favor da casa.
O tractor permitiu a João cultivar mais terras. Segundo o filho Joaquim, «em 1968-69, quando comprámos o primeiro tractor, ninguém queria fazer terras. Os jornaleiros começavam a fugir do campo. Os proprietários chegavam mesmo a vir pedir-nos que lavrássemos a terra deles. Quem quisesse tratar da terra era bem-vindo. Até ao final dos anos 60, toda a terra que cultivávamos, era toda sachada à mão. Não havia herbicidas. Era preciso sachar o milho, as batatas. As pessoas já não queriam fazer isso. Depois as máquinas começaram a aparecer, apareceram os técnicos agrícolas, e depois os herbicidas e o milho híbrido. E as pessoas começaram a achar que era mais fácil.»
No decurso dos anos 70, os animais de trabalho foram sendo eliminados a pouco e pouco c, em 1976, já só havia vacas. O sistema do bidão de leite continuou a funcionar até essa altura. Segundo Inês, mulher de João, quando as outras pessoas da freguesia começaram a ver passar o camião e as vasilhas de leite, quiseram fazer o mesmo. Começaram pois a entregar o leite na casa do João que, ao fim de um certo tempo, lhes disse que aquilo não podia continuar, porque a casa dele ainda não era um posto de recolha de leite. A pedido das pessoas do lugar, a Suil aceitou abrir um posto de ordenha na casa de João, e fez um contrato com ele: João construiria o posto, a Suil equipá-lo-ia e pagaria as despesas de manutenção bem como um salário para fazer funcionar o posto. O novo «posto do leite», equipado com máquinas de ordenha, foi aberto pouco tempo depois. Entretanto, João tinha mandado construir um novo estábulo um pouco mais afastado da casa, ao lado do posto do leite. Era um dos filhos que tratava do posto todos os dias, de manhã e à tarde: abria o posto, limpava-o, organizava a entrada e a saída das pessoas e das vacas, tomava nota das quantidades de leite de cada um dos produtores.
João faleceu em 1985. Nessa altura, a viúva e os filhos que ainda permaneciam na casa (4 filhos de 25, 23, 22 e 15 anos, e uma filha de 19) possuem 14 vacas leiteiras. Exploram quatro hectares e meio de terras que pertencem à casa e quatro hectares arrendados. Tinham acabado de comprar uma ensiladora (máquina para triturar o milho) em sociedade com os dois filhos mais velhos da casa, que já estavam fora de casa, estabelecidos como agricultores. O milho híbrido é a principal produção da exploração. No Verão, a família põe erva num hectare e meio de terreno e cultiva milho «para comer» numa extensão inferior a meio-hectare, batata num campo de 0,3 hectares e feijão num campo muito pequeno. A batata destina-se ao consumo doméstico (segundo Inês, a viúva de João, o preço no mercado não justifica que seja vendida), tal como o feijão e o milho. Criam vários porcos, frangos, coelhos e «matam animais para a casa», usando o congelador para conservar a carne. A produção semanal de pão foi abandonada há já alguns anos. Segundo Inês, havia muito menos milho em casa e, além disso, a cunhada de Inês, proprietária da venda que fica em frente, começou a ter pão fresco todos os dias. Já não se lembra muito bem quando é que foi a última vez que acendeu o forno para fazer pão.
Em 1986, o principal rendimento da casa provém da produção de leite — em média, 192 000 escudos por mês, dos quais um pouco mais de metade é gasto em rações animais. Há também alguns rendimentos complementares: uma pequena pensão atribuída a Inês pela Cooperativa do leite, dinheiro proveniente da venda de novilhos.
3 As aldeãos estão surpreendidos com este exemplo de «empresa familiar», e falam dela muitas vezes — uns em termos admirativos e outros, um pouco invejosos, em termos depreciativos (argumentando que o casal teve êxito à custa de empréstimos e que portanto deve estar cheio de dívidas): Em geral, esquecemse que este jovem casal tinha, apesar de tudo, recursos importantes: ambos tinham uma excelente formação agrícola, ambos tinham famílias que os procuraram ajudar, emprestando-lhes dinheiro e máquinas, dando-lhes alojamento temporário e um capital inicial em gado, e intervindo, no decurso da compra da terra que pertencia ao tio, a fim de facilitar as negociações.
4 Conta-se, por exemplo, a história do lavrador que escondia o dinheiro num soco e que, tendo-se esquecido do esconderijo, só conseguiu encontrar o seu rico dinheirinho no dia em que levou os socos ao sapateiro.
5 O carácter indispensável do trabalho colectivo é hoje menor do que antigamente mas faz-se sempre apelo a ele em determinados trabalhos. Assim, outrora, não se desfolhava o milho no campo. Levavam-se as espigas para casa e um grupo de vizinhos e de membros da família desfolhava-as à noite. Era a festa da «esfolhada», hoje mais ou menos desaparecida. Aliás, os campos que hoje «se desfolham de pé» representam apenas uma parte muito pequena da colheita de milho. Trata-se de um campo ou dois de milho «para grão», que se cultiva para a alimentação das galinhas e para pagar uma renda exigida em grão. Contudo, certas fases do trabalho agrícola continuam a exigir, apesar das máquinas, a participação de diversas pessoas. Os trabalhos colectivos mais importantes são actualmente os seguintes:
a) A ensilagem do milho. Para a realização deste trabalho, é preciso, numa exploração média, três tractores — um para ensilar, outro para transportar o milho até ao silo, o terceiro para comprimir o milho depois de metido no silo. É igualmente preferível dispor de vários trabalhadores. Com efeito, além das pessoas que têm que guiar os tractores, convém ter alguém para cortar o milho nas beiras dos campos onde a máquina não chega, e também alguém para espalhar o milho no silo e deitar-lhe sal.
b) As vindimas.
c) Diversos trabalhos que têm ainda de ser feitos «à mão» e que se fazem mais depressa em grupo: a desfolhada do milho, separar o feijão, semear e apanhar as batatas, sachar um campo pequeno de feijão. É verdade que, progressivamente, com as novas técnicas ou o abandono de certos processos agrícolas, se deixou de efectuar um certo número de outras tarefas manuais, como roçar mato, carregar estrume, ou mondar o milho (para este último trabalho, são agora utilizados herbicidas).
6 Em cada uma das genealogias, indicámos o estado civil e a situação socioprofissional de todos os irmãos e irmãs. Sublinhámos o irmão ou a irmã que é o/a agricultor/a da casa indicada e pusemos entre parênteses a herança que cada irmão/irmã recebeu.
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