Capítulo 3. As Famílias de Lavradores no Passado: uma Lógica de Casa Auto-Suficiente
p. 101-191
Texte intégral
1Um grande portão de madeira encimado por uma inscrição com a data das últimas obras na «casa»: 1949. À direita, um pequeno lanço de escadas, protegido por um corrimão gradeado, sobe discretamente em direcção a uma porta de entrada. Um terceiro acesso de terra batida, no qual a maior parte das pessoas, distraídas, não repara quase nunca, parte de um campo próximo da casa, atravessa o «eido» (campo contíguo à casa) e desemboca no pátio da casa sem passar pelo portão. Se batermos na porta de entrada, ninguém responde. E se enfiarmos pelo acesso que leva ao pátio — o coração da quinta — através dos campos, invadimos o espaço íntimo do grupo doméstico. Mas se dermos a volta ao puxador de ferro do portão, um cão desata a ladrar ferozmente e anuncia a nossa presença. Quando o portão se abre, encontramo-nos no pátio da casa, tendo de um dos lados os estábulos e do outro uma escada que sobe para a cozinha — o coração do lar. A saída que dá para o «eido» e para os outros campos situa-se ao fundo.
2A arquitectura formal das casas camponesas de outrora é impressionante; dir-se-iam células dobradas sobre si próprias, pequenas fortalezas. A casa de que acabámos de descrever o pátio não sofreu qualquer alteração desde 1949. Pertence a um lavrador nascido em 1919 e à sua mulher, nascida em 1922. Os edifícios, dispostos à volta do pátio, estão praticamente cercados por altos muros de pedra, e as únicas aberturas para a rua são o portão bem guardado, os pequenos buracos de ventilação da adega e, no primeiro andar, duas ou três grandes janelas de guilhotina situadas de um lado e de outro da porta de entrada. Estas janelas estão sempre fechadas, dado que pertencem à «sala», que não é utilizada no dia-a-dia.
3Na realidade, as relações sociais que unem este espaço, aparentemente fechado, ao mundo exterior, foram moldando entradas e saídas e tornaram-no acessível e inacessível de variadas maneiras. A porta de entrada permite à casa de lavoura de outrora cumprir a sua função social de casa rica que recebe visitas. É por ali que entram o «compasso» na Páscoa e os convidados por ocasião de uma comunhão ou de um casamento. O portão grande, via de acesso principal usada pelos moradores da casa, pelos trabalhadores e pelos carros de bois, simboliza o poder principal da casa de lavoura: a produção agrícola. Por último, o caminho que passa pelo «eido» fornece aos moradores uma saída privativa, menos exposta aos olhares exteriores ou interiores. É pois uma espécie de saída de socorro. Foi assim que, encontrando-me eu um dia ao entardecer em casa do moleiro, que é simultaneamente um agricultor médio, o padre da freguesia — que não é muito querido da população — bateu ao portão. «Deve ser o senhor padre», disse a moleira, «ele disse-me que ia passar para moer um pouco de milho». O moleiro lançou um olhar desdenhoso na direcção do portão, pegou nas botas e, desculpando-se para comigo, desapareceu rapidamente pelo «eido», enquanto a mulher dele e eu nos dirigíamos devagar até ao portão.
4As finalidades da família de lavradores estão inscritas não só no espaço da casa mas também nos tempos e nas relações sociais domésticas. A casafortaleza chama a atenção para a autarcia económica e o poder social do grupo doméstico lavrador, ao mesmo tempo que revela laços subtis de interdependência com a comunidade que o rodeia. As relações familiares que vão ser examinadas ao longo dos capítulos seguintes mostram que o problema da conservação e da acumulação do património fundiário, principal fonte de poder e de prestígio na freguesia, também marca as relações internas e as alianças tecidas por estas famílias. Falar aqui de finalidades «instrumentais» ou «institucionais»1, segundo as quais a família procura antes de mais garantir a sobrevivência quotidiana, seria ignorar o conteúdo específico das finalidades dos camponeses abastados. Se bem que estas sejam sem dúvida instrumentais, é importante salientar o conjunto de valores que dinamizam este carácter instrumental.
5No que respeita à família de lavradores, é necessário que nos detenhamos um pouco no significado atribuído ao valor de «auto-subsistência». Este termo refere-se de perto à reprodução física: trata-se em primeiro lugar de produzir alimentos. Nas famílias de lavradores abastados, esta conotação alimentar da sobrevivência do grupo está presente mas sob uma forma mais lata. A casa de lavoura rica considera-se na obrigação de se bastar a si própria não apenas do ponto de vista da sua subsistência imediata, mas também em termos de meios de produção (terras, gado, casa, instrumentos de trabalho) e da sua reprodução a longo prazo. Esta última implica que se exerça um controlo social sobre a força de trabalho e os herdeiros, e que se tomem decisões justas a fim de orientar essas pessoas e o seu futuro. Ou seja, o termo «reprodução» pode ser compreendido no seu sentido mais lato, dado que se refere ao processo de estabelecimento das condições materiais, biológicas e ideológicas necessárias à projecção no tempo da unidade social elementar2. Nesta perspectiva, o valor gerador do projecto familiar dos lavradores diz respeito à «auto-suficiência económica, social e biológica», e visa ancorar o grupo doméstico numa certa abundância e num certo poder sociais. Todavia, no contexto da sociedade rural do Baixo Minho, onde a terra é um bem raro, a condição essencial para a existência desta lógica acaba por ser a propriedade da terra. Podemos pois considerar que a autosuficiência patrimonial constitui a finalidade dominante da família de lavradores.
6A importância do valor «auto-suficiência» ressalta com evidência no discurso dos lavradores mais velhos que se encontravam à frente de casas abastadas nos anos 40 e 50 — na ideia, por exemplo, de que tudo emana da «casa» e nela está contido, guardado. A casa possuía terras e, por conseguinte, não era preciso arrendá-las. A casa tinha trabalho e pão, e, portanto, nunca havia necessidade de ir «ganhá-lo» algures. Aliás, seria mesmo considerado indigno que um membro da família o fizesse. A casa dispunha de uma força de trabalho proletária, inesgotável e serviçal, que vinha pelo seu pé em busca de trabalho a troco do «sustento». Tinha economias em dinheiro destinadas a alargar o património ou à gestão das reciprocidades familiares no momento da sucessão. A ordem, bem como um esforço disciplinado, reinavam na casa, porque a autoridade emanava naturalmente do casal dirigente e do chefe de família e porque os membros da família tinham um objectivo comum — aquilo a que os camponeses idosos chamam «o nosso ideal» — que promovia a solidariedade conjugal e familiar. Três elementos definiam «o nosso ideal»: a terra, principal capital, o trabalho, principal energia humana, e o facto de se ter (e «segurar») os herdeiros, principal elemento da regulação familiar.
7A lógica da auto-suficiência nas casas dos lavradores faz pois apelo a múltiplos objectivos internos: a acumulação e a transmissão do património da «casa»; a produção e a transformação dos produtos agrícolas e pecuários necessários à sobrevivência (alimentos, vestuário); a produção de alguns excedentes que permitam efectuar trocas ou acumular economias; a produção e a gestão de estatutos diferenciados que promovam a autoridade; o estabelecimento de reciprocidades difusas e diferidas que permitam tecer laços intergeracionais e fazer reinar um certo «acordo» entre os herdeiros; a produção e a educação de uma descendência por via de filiação directa. Estas finalidades põem em acção os seguintes valores: o trabalho e o esforço incessante, o facto de as pessoas ajudarem e de se entreajudarem no trabalho, a alimentação, a continuidade da casa, o poder autoritário baseado no estatuto dos mais velhos e na competência (no trabalho e nos negócios), a propriedade da terra e da casa, a poupança, a filiação, o futuro que é preciso «segurar».
8A estas finalidades internas correspondem finalidades externas, ou, se se preferir, uma encenação da auto-suficiência doméstica: uma reciprocidade que permita tecer relações privilegiadas com o parentesco alargado e outras casas auto-suficientes de lavradores ricos e, também, manter algumas relações de patrocínio, por vezes associadas ao apadrinhar, com famílias de camponeses pobres ou de proletários. O poder social e simbólico dos lavradores abastados adquire aqui uma certa visibilidade social.
9A finalização é hierárquica e pouco ambígua. É hierárquica em termos das instâncias (o indivíduo, o casal, a família, a casa) que se privilegiam: o indivíduo e o casal devem submeter-se sempre aos interesses da «casa», do colectivo, no tempo. É igualmente hierárquica do ponto de vista das finalidades que se privilegiam: a produção de bens raros (terras, dinheiro), destinados a assegurar a auto-suficiência doméstica presente e futura, é sempre mais importante do que a produção de bens de consumo (conforto do lar, por exemplo). A sobrevivência e a saúde dos membros «produtores» é mais importante do que a saúde dos mais frágeis e dos mais fracos em termos de trabalho produtivo. Quanto às alianças matrimoniais, estas visam estabelecer «arranjos de vida» que permitam a formação de um grupo doméstico capaz de «se bastar» a si próprio. Aqui, tal como no processo social de escolha do herdeiro, o interesse da casa é essencial. Contudo, como veremos no capítulo sobre as trocas familiares, procura-se apesar de tudo ter em conta os interesses de todos os actores, dado que a construção de um certo entendimento entre cônjuges ou entre os diferentes membros da família também é importante para «segurar» as pessoas.
10Isto não significa que a hierarquia não possa ser posta em causa. Surgem por vezes interferências, ou esforços por parte de alguns familiares, destinados a subverter a lógica da auto-suficiência e a prioridade de «sobrevivência do grupo e da casa» ao longo dos tempos. As prioridades da auto-suficiência servem para travar estes fenómenos mas a família pode igualmente utilizá-los a seu favor. Por exemplo, se um filho deseja casar-se muito cedo, a «casa» procurará incitá-lo a fazer um «bom casamento», como se este representasse a única justificação possível para uma transição precoce. Por outras palavras, trata-se de proceder de modo a que a «casa» possa beneficiar do acto individual extemporâneo — por exemplo, como neste caso, procurando aumentar o seu grau de auto-suficiência patrimonial.
11Em função destas finalidades, como se constrói a vida familiar dos lavradores? Para responder a esta pergunta, analisa-se em seguida o modo de inclusão, isto é, a forma como as famílias definem a pertença doméstica (quem faz parte da casa), o que por sua vez dá acesso aos bens raros distribuídos no interior da casa; a forma de produção, que olha para os factores que se combinam para que a casa consiga produzir certos recursos, materiais e sociais, que fazem parte do «ideal» de família dos lavradores (por exemplo, quais os ingredientes, ou factores, da produção de um «bom» casamento?); as trocas que se efectuam dentro da família e os princípios de justiça que as orientam; a integração dos grupos domésticos lavradores na freguesia e na sociedade local.
O modo de inclusão: ter e dar pertença
12O modo de inclusão permite ver quem, isto é, quais os actores que têm acesso à «casa», e o plano da vida doméstica em que se elabora essa inclusão ou participação: se na residência ou no trabalho, se na sucessão ou no poder. A maneira mais comum de definir a pertença doméstica, nas ciências sociais, utiliza a co-residência como principal critério: faz parte do grupo doméstico quem reside no mesmo alojamento. Define-se assim a estrutura do grupo doméstico representando-a sob uma forma estática, com fronteiras fixas centradas na coresidência (ver os conceitos de família alargada, nuclear, etc.). A análise do ciclo de vida familiar tem mostrado, no entanto, que estas fronteiras podem flutuar no tempo. E tudo leva igualmente a crer que as mesmas podem flutuar segundo os valores, ou as actividades familiares em jogo: por exemplo, quem participa no trabalho realizado pelo grupo doméstico não será forçosamente incluído no convívio, na comensalidade ou na herança da família.
13Partindo do princípio que o grupo doméstico dos lavradores ricos não tem fronteiras rígidas e fixas de inclusão, pode-se então procurar determinar quem nele se inclui, em que momento da vida familiar e em torno de que actividades ou recursos específicos. Dado que é muitas vezes o primeiro valor a ser examinado pelas ciências sociais, a ponto de ser considerado como um jugo analítico3, começa-se por analisar a inclusão na «residência» ou no alojamento; tenta-se depois perceber como é que a inclusão na residência se cruza com a inclusão noutros domínios da vida familiar.
14No que se refere à partilha de um mesmo tecto, a análise do Rol de Confessados mostrou que a família camponesa rica de outrora era numerosa, muitas vezes «complexa», de tendência patrilocal e aumentada por criados residentes. Esta análise estática das famílias pode ser criticada, e com razão4. Todavia, em vez de rejeitá-la, parece útil completá-la com uma análise diacrónica de alguns dos grupos domésticos considerados aquando deste corte horizontal. Pode assim observar-se melhor os contornos dinâmicos da inclusão residencial.
15Em primeiro lugar, é possível ver que a entrada e a saída de pessoas nestes grupos domésticos nem sempre têm os mesmos efeitos. Em certas famílias, as entradas e as saídas não chegam a alterar a composição do grupo residencial no tempo, como o demonstra o exemplo da casa do Fundo. Esta tem, em 1907, a seguinte composição, de família «múltipla»:
161907 — O chefe de família e a mulher, o filho Serafim (34 anos), declarado herdeiro privilegiado, a segunda mulher de Serafim (a primeira morreu de parto), uma filha do primeiro casamento de Serafim, e seis criados residentes. Em 1908, a segunda mulher de Serafim dá à luz uma filha.
171928 — Vinte anos depois, continua a ser uma família múltipla, mas os seus membros mudaram. Os pais de Serafim morreram. A segunda mulher de Serafim morreu e Serafim casou-se outra vez. Serafim tem agora 54 anos e a terceira mulher 43, e não tiveram filhos. A filha da primeira mulher de Serafim casou com o filho de um lavrador vizinho. A filha (20 anos) da segunda mulher casou com o filho de lavradores abastados de uma freguesia próxima, e vive com o pai e a madrasta. Este último casal tem já um filho chamado Serafim. Moram seis criados na casa: uma mulher de 23 anos que dá apoio ao casal mais idoso, bem como três outras mulheres (respectivamente de 23, 16 e 15 anos) e dois homens (18 e 12 anos) que ajudam a herdeira e o marido desta.
181946 — Nesta época, continuamos em presença de uma família múltipla mas esta adquiriu e perdeu alguns membros. Serafim e a mulher trouxeram para casa uma sobrinha (22 anos) da mulher de Serafim. Esta virá a herdar o património da terceira mulher de Serafim. A filha herdeira de Serafim e o marido têm agora três filhos (de 19, 17 e 13 anos). Oito criados residem na casa: quatro rapazes e quatro raparigas.
19Este grupo doméstico de lavradores abastados perpetua-se pois com uma dimensão elevada e uma forma de residência complexa, a despeito do movimento constante de indivíduos: alguns saem de casa, outros morrem e são substituídos, outros nunca dela saem, outros entram para dela voltarem a sair um dia (criados). Os sucessivos casamentos de Serafim e o casamento relativamente precoce da segunda filha — a que irá ficar sempre na casa — permitem ao grupo doméstico retomar rapidamente a sua forma de família múltipla.
20Transições individuais mais tardias ou difíceis de realizar conferem a outros grupos domésticos de lavradores um perfil residencial mais irregular. É assim que a casa da Ribeira, em 1908, tem uma família «simples» composta pelos seguintes membros:
211908 — António e a mulher, dois filhos, o mais velho e o mais novo, e cinco criados. Os outros filhos do casal já não vivem na casa. Dois rapazes emigraram para o Brasil, um outro casou com a filha única de um lavrador rico e vive com os sogros.
221928 — Nesta altura, trata-se de um grupo doméstico constituído por uma família alargada. O filho mais novo tornou-se merceeiro/pequeno agricultor numa aldeia próxima e o filho mais velho (48 anos) casou com uma filha de lavradores e está «seguro» como herdeiro privilegiado. Este casal não teve filhos. António (86 anos) está agora viúvo. Cinco criados (três homens de 58, 16 e 14 anos, e duas mulheres de 18 e 15 anos) residem em casa.
23Depois da morte de António, o casal (o filho mais velho de A. e a mulher) passou alguns anos sozinho, com alguns criados. Posteriormente, tendo perdido a esperança de vir a ter filhos, trouxe para casa uma sobrinha da mulher que se casou, pouco depois, com um sobrinho do marido (filho do irmão merceeiro).
241946 — Deste modo, nesta data, foi um agregado de família «múltipla» que se formou. O chefe de família tem agora 67 anos, a mulher 70, a sobrinha 30 e o sobrinho 25 anos. Quatro criados (um homem e três mulheres de 19, 18 e 17 anos) moram com eles.
25Este tipo de perfil irregular, marcado por longos períodos no decurso dos quais o casal formava uma família conjugal simples, com ou sem crianças, não constituía excepção nos grupos domésticos dos lavradores. Acontecia devido à morte prematura dos pais idosos, à ausência de descendência ou ao adiar, por parte dos pais, da designação de um herdeiro que lhes sucedesse na casa.
26O adiar dessa transição familiar é tanto mais fácil quanto o número de herdeiros potenciais é elevado. É assim que, na casa Pinheiros, Francisco e a mulher tiveram 11 filhos. Viram sair de casa três filhos e três filhas. E é apenas aos 70 anos, quando os outros três filhos solteiros têm já 36, 35 e 26 anos, que Francisco começa a ceder às pressões deles para «entregar a terra», ou seja, para estabelecer a sucessão. E mesmo assim, fá-lo-á lentamente, cedendo primeiro algumas terras a dois dos filhos a fim de que estes se possam casar, mas repetindo sempre que não quer «libertar os filhos para ficar ele debaixo do jugo». Segundo as testemunhas, Francisco foi igualmente influenciado, nesta sua gestão demorada da sucessão, pelo caso de um dos seus parentes, também ele lavrador abastado que, tendo escolhido mal o sucessor, foi obrigado a assistir à «ruína» da sua casa. A partilha da casa de Francisco far-se-á cinco anos depois; e serão os três filhos que haviam ficado sempre em casa que dela beneficiarão. O escolhido para dirigir a casa, o mais novo dos rapazes, levou ainda sete anos até casar. Quando se casou tinha pois 38 anos, o pai 82 e a mãe acabara de falecer. Em resumo, a lentidão da sucessão, associada à hesitação e à longevidade dos mais velhos e ao número elevado de herdeiros, permitiram a uma família simples de um casal com filhos perpetuar-se durante mais de 30 anos. Tendo sido uma família complexa (com os sogros de Francisco) no início do casamento do casal dirigente, veio a tornar-se depois uma família simples, e assim permaneceu durante muitos anos antes de se tornar um agregado de família alargada no momento do casamento do herdeiro. Mas isto durou pouco, porque Francisco morreu cerca de três anos depois.
27A análise diacrónica da composição das famílias pressupõe uma certa estabilidade no tempo das «casas de lavoura» estudadas. Isto é válido para a maior parte das casas que examinámos, mas a situação inversa, mais rara, pode igualmente acontecer. Com efeito, em torno de um núcleo de casas mais ou menos estáveis, havia também as que desapareciam e as que se criavam de raiz. Em Lemenhe, no final dos anos 40, é o caso de um casal dirigente de uma grande casa de lavoura que vendeu a terra a pouco e pouco — em consequência, segundo algumas testemunhas, de uma administração desastrosa acompanhada de despesas supérfluas. Em Gondifelos, no início dos anos 50, é o caso de um herdeiro privilegiado e filho mais velho de uma casa grande, que emigrou para o Brasil e nunca mais regressou à freguesia. Os testemunhos atribuem a partida a graves desavenças conjugais. A mulher foi-lhe infiel e o marido teria partido «por vergonha». A mulher começou por arrendar as terras da casa. Mais tarde, quando o marido foi declarado «desaparecido», vendeu uma grande parte das terras a um cunhado, permitindo assim a consolidação de uma outra casa e o fim da casa de origem.
28Quanto à criação de novas casas, isso pode suceder de diversas maneiras. Por exemplo, um dos filhos de um lavrador abastado, que herdou a sua parte legítima em terras, pode decidir vendê-la a alguém de fora (um emigrante brasileiro, por exemplo) em vez de cedê-la ao irmão nomeado herdeiro privilegiado, como estipulam as normas ideais. O emigrante construirá uma nova casa, tentará comprar mais terras. Num outro caso, um caseiro de terras poderá conseguir um empréstimo a fim de comprar terras que foram postas à venda por um proprietário ausente; embora difícil e raro, existem algumas casas que foram feitas por descendentes de caseiros grandes. Num outro caso ainda, um filho de lavrador abastado que não beneficiou da sucessão, casarse-á por interesse com a única irmã de um herdeiro privilegiado, o que lhe permitirá fundar uma nova casa e tentar alargá-la. Por outras palavras, num sistema de herança que é preciputário mas em que todos os herdeiros recebem alguma coisa, a terra é um bem que alguns conseguem manter mais ou menos intacto, enquanto outros a fazem circular, permitindo o fazer e o desfazer de casas. Mas a troca das terras é apesar de tudo restrita, na medida em que é costume, no seio das famílias de lavradores, «favorecer» ou beneficiar os filhos que ficam na casa.
29Quer seja em termos sincrónicos ou diacrónicos, pode então constatar-se que o modo de inclusão na residência, nas famílias de lavradores, não é muito diversificado. A casa admite debaixo do seu tecto o casal camponês dirigente, a descendência deste por via de filiação directa, o herdeiro sucessor e a sua família, colaterais solteiros e, na ausência de filiação directa, sobrinhos e sobrinhas que se transformam em filhos por delegação. Por último, em regime de residência rotativa, admite criados sem laços de parentesco com o chefe da família.
30Três factores principais estão na base desta inclusão «por via de filiação directa» e «aumentada»: o cativar dos herdeiros favorecidos, a exclusão retardada dos outros descendentes directos, a captação de uma força de trabalho suplementar, quase gratuita. Em casa dos lavradores ricos há um problema particular de inclusão que condiciona todas as interacções familiares: quando e como «segurar» um sucessor. A importância conferida a este processo dá lugar, quase sempre, à transmissão a um filho, em vida dos pais, das rédeas da casa e de uma boa parte da propriedade. Esta transmissão é por vezes prematura, no sentido em que o chefe de família está ainda activo nesse momento. Foi assim que nos anos trinta José, lavrador abastado, aceitou dar a quota-parte disponível ao filho quando este quis casar-se com pouco mais de vinte anos, porque pôde negociar um excelente casamento com a filha única de um lavrador vizinho. Esta «junção» de duas propriedades vizinhas não deixa indiferentes os chefes de família e permite ao herdeiro passar à frente dos irmãos, casar-se e assumir cedo a sucessão da casa.
31Uma segunda alternativa para cativar um herdeiro consiste em prometer uma herança privilegiada àquele ou àqueles que os pais pretendem «segurar» ou assimilar definitivamente. A pouco e pouco, essas promessas, inicialmente secretas, chegam aos ouvidos dos outros filhos, que ou aceitam a situação ou reagem a ela procurando ir-se embora ou lutando contra a negociação em curso, que os irá excluir parcialmente. Outrora, a principal alternativa dos filhos, sobretudo dos de sexo masculino, era a de abandonar o país. A emigração para o Brasil, presente na região desde o século xvii, fornece contactos e empregos, especialmente para a pequena burguesia rural, que tem meios para poder partir. Tem-se muitas vezes uma pessoa de família estabelecida lá, com quem se pode contar. Esta partida, tanto os pais como os filhos sabem isso, é quase sempre definitiva: é provável que não se voltem a ver nunca mais, ou então apenas uma ou duas vezes na vida. Alguns preferem ir-se embora a esperar pela herança. Outros, mais seguros das suas hipóteses de uma boa herança, ameaçam os pais com a partida, estratégia destinada a suscitar ou reforçar promessas de herança. Foi o caso de Manuel, filho mais velho de uma casa de lavoura, que conta a seguinte história: ele era, desde pequeno, o braço direito do pai na casa. Dois dos irmãos emigraram e um terceiro, que permanecera solteiro, aprendeu o ofício de carpinteiro. Ao ver o tempo passar e que tinha mais de 30 anos e «nada na mão», também ele pensou em emigrar. «Não tinha dito nada ao meu pai, mas ele veio a saber. Durante muito tempo, não me disse nada. Depois, um dia, estávamos no campo e ele disse-me, com as lágrimas nos olhos: ‘então, vais deixar-me? Tu, o lavrador da família?’ E pediu-me para pensar, prometendo-me, pela primeira vez, o terço.» (M., lavrador de Gondifelos).
32A ênfase posta no segurar de herdeiros que não abandonarão nunca a casa leva, na altura em que os chefes de família têm já mais de 50 anos, à formação de uma família complexa, alargada ou múltipla. Ela é acompanhada por uma certa insistência no factor «exclusão retardada» dos outros filhos, o que contribui para o celibato prolongado, ou até mesmo definitivo, de alguns filhos que permanecem junto dos pais ou do herdeiro privilegiado. Quando se insiste demasiado neste factor, os filhos ficam todos solteiros e, na geração seguinte, a sucessão já não pode ter lugar por via de filiação directa. Neste caso, o problema do assegurar de um herdeiro recai sobre os filhos, que deverão recorrer a um sobrinho ou a um afilhado. Por exemplo, na casa do Monte, desencorajou-se o casamento dos sete filhos. Segundo os outros lavradores, os pais não fizeram qualquer esforço para casar os filhos e «estes viveram à maneira deles». Só uma filha é que se casou. Quando o pai morreu, os quatro filhos solteiros tinham 51, 40, 38 e 30 anos, e as duas filhas solteiras 34 e 33 anos. A mãe estipulou para cada um uma reserva legal na casa, e os irmãos e irmãs foram todos cedendo a sua parte legítima, mediante testamento, aos que permaneciam em casa, permitindo assim que a propriedade não se dividisse. Quando o mais novo dos rapazes ficou à frente da casa com as duas irmãs, levaram para junto de si um sobrinho adolescente. Este foi posto à experiência durante vários anos antes de ser-lhe dado «pertença na casa», isto é, redigido um testamento a seu favor.
33Trata-se de um caso extremo, mas que se encontra de vez em quando. Não é bem visto pelas outras casas. Em termos ideais, é o meio termo que é preconizado, isto é, a insistência simultânea na assimilação e na exclusão, na residência patrilocal e na residência neolocal. É preciso que «pelo menos um dos filhos fique em casa» e que forme aí a sua família. Se a área de exploração for muito grande, dois ou três dos filhos poderão eventualmente constituir a partir dela casas auto-suficientes. Os outros filhos devem abandonar a casa e integrar-se noutras famílias, aliando-se de preferência a outras casas «auto-suficientes». O celibato definitivo de um ou outro filho é bem aceite e o seu estatuto dentro de casa está previsto e acautelado através do estipular de uma «reserva» (de um quarto, por exemplo).
34Quanto ao estabelecimento dos filhos, defende-se a ideia de que o chefe de família se deve preocupar em primeiro lugar com a sua «casa», e que deve ajudar os filhos dentro dos limites impostos por certos constrangimentos. Eis o que um pai de antigamente dizia em voz alta a este respeito: «eu, para ir botar o jugo em cima do meu peito para libertar os filhos, não vou, não estou para isso. São eles que têm que de se amanhar, que endurecer.» (F., lavrador abastado de Lemenhe nos anos 40, citado pelo filho, lavrador abastado, com 70 anos em 1985). No entanto, o chefe de família deve velar pelo «futuro» da casa, estabelecendo com a mulher, em vida de ambos, a partilha das terras e escolhendo o filho que deverá ficar em casa. São dadas duas razões para tal: os chefes de família asseguram deste modo a continuidade da casa de lavoura ao mesmo tempo que evitam os conflitos, que de outro modo não deixarão de eclodir, entre os herdeiros aquando da morte dos pais; simultaneamente, asseguram a sua velhice. Indirectamente, é a auto-suficiência a longo prazo, associada à propriedade das terras, que está em causa. É preciso manter intactas as terras o maior tempo possível. Mas é também necessário assegurar a continuidade e, neste sentido, a divisão antes da morte dos pais, o «segurar» de um filho lavrador e as boas alianças matrimoniais são o melhor garante possível.
35Finalmente, o terceiro factor de inclusão — a captação de uma força de trabalho suplementar — traz para o interior do grupo familiar criados que,'de facto, apenas têm direito a uma inclusão passageira. Isso está implícito nos próprios termos do pedido de inclusão que os pais que desejam pôr os filhos a servir fazem aos lavradores abastados: «tome o meu filho ao seu serviço e fique com ele durante um ano ou dois» (pedido feito a J., lavrador de Lemenhe). Mais raramente, algumas casas tomam estes trabalhadores infantis a seu cargo a mais longo prazo, consideram-nos como «filhos e filhas», ou pelo menos como aprendizes pelos quais se sentem responsáveis, encarregando-se da sua formação agrícola e até escolar.
36O critério de inclusão é pois neste caso puramente funcional. Os criados estão ali para trabalhar durante alguns anos. Alguns vão ficando mais tempo e o estatuto de afilhado pode também justificar uma residência mais prolongada. Em contrapartida, para os membros aparentados do grupo doméstico, existe um duplo critério de inclusão: genealógico e funcional. Os residentes a longo prazo são os «descendentes directos» que «trabalham para a casa». Estes dois critérios reforçam-se mutuamente: quanto mais se trabalhar a longo prazo para a casa, mais se tem direito aos benefícios a longo prazo da autosuficiência e aos bens raros que ela produz: a casa, a alimentação, a terra, o sustento durante a velhice. É este duplo critério que permite uma primeira triagem entre os filhos herdeiros. Os que não abandonaram a casa e que para ela trabalharam e não para «si próprios» são candidatos elegíveis à sucessão, e também são aqueles que poderão receber mais do que os outros.
37Por outras palavras, a «filiação directa» confere uma primeira pertença à casa — na residência, no sustento, na herança de uma parte legítima — mas nem sempre conduz a uma inclusão a longo prazo. A inclusão organiza-se pois segundo três círculos concêntricos: um círculo exterior, onde domina o critério do «sangue» ou da filiação directa, e que define o contingente dos herdeiros potenciais. O círculo seguinte, onde se conjugam filiação e trabalho a favor da casa a maior ou menor longo prazo, e que define os herdeiros privilegiados potenciais. Por último, o círculo interior, onde se conjugam filiação, sexo masculino, trabalho em benefício da casa a longo prazo, competência no trabalho e preferência parental, e que define o herdeiro «favorecido» ou privilegiado. Este ficará na posse plena da casa e do poder. Os do círculo anterior terão sempre direito à sua parte legítima ou até mesmo a um pouco mais e, em qualquer dos casos, o direito de residir na casa enquanto solteiros. Os do círculo exterior terão direito à sua parte legítima, ou eventualmente a um pouco menos se tiverem saído muito cedo de casa.
38Onde situar então a fronteira do grupo doméstico de uma casa de lavoura? Os actores situam-se no segundo círculo, incluindo no «nós» da casa todos aqueles que, tendo ou tendo tido um laço de filiação directa com o chefe de família, residem e trabalham na e para a casa. A comensalidade não funciona aqui como critério. Como veremos mais adiante, podem existir várias cozinhas e mesas separadas no interior de uma única casa.
39Esta fronteira é facilmente reconhecível pelos diferentes actores. Um filho que participa nos trabalhos da casa está sempre em sua casa. Em contrapartida, um filho casado que mora temporariamente numa casa de lavoura abastada mas que «faz terras» que não pertencem à casa (terras que estão a ser compradas por ele, por exemplo), não faz parte integrante da casa. De igual modo, uma casa que não tem herdeiros em linha directa e que faz entrar um sobrinho ou uma sobrinha não vai considerá-lo «incluído» senão ao fim de um certo tempo, quando ele tiver trabalhado durante algum tempo para a casa. Neste último caso, pode ter havido dúvidas à partida quanto à capacidade do sobrinho ou da sobrinha «na passagem da fronteira», a fim de entrar no círculo dos potenciais herdeiros privilegiados. Por isso é costume dizer, a propósito dos sobrinhos ou das sobrinhas que integram em dada altura as casas: «ele foi para casa dos tios — ora! — como criado. Era preciso ver. Mais tarde, deram-lhe a “pertença” por testamento e ele passou a dirigir a casa». Pertencer a uma casa de lavoura significa então, e principalmente, ter direito à herança. O trabalho para a casa reforça e sela essa pertença. Mas é a inclusão entre os herdeiros favorecidos, isto é na sucessão da própria casa, que traduz o máximo de pertença a uma casa.
40Quanto ao círculo exterior, este define permanentemente um «nós familiar» mais alargado: os que irão herdar sem aspirar à sucessão, ou, ainda, os que irão fornecer um herdeiro privilegiado a um casal de lavradores abastados sem filhos. São os tios e as tias, os irmãos e irmãs do sucessor. Se os pais tiverem conseguido levar a cabo a partilha sem demasiados conflitos, estes parentes próximos vêm dar uma «ajuda» ou serão ajudados sempre que é preciso. Estarão sempre presentes nas festas da família, nos casamentos, nos almoços da primeira comunhão das crianças da casa. Trata-se da «família», enquanto os que vivem e trabalham na casa são normalmente designados como «os da casa».
41O apelo e o recurso preferencial aos membros do círculo exterior faz lembrar constantemente que todos os filhos «pertencem» um pouco à casa, e que uma certa pertença se mantém a despeito da neo-residência e da sua não inclusão na sucessão privilegiada. Não surpreende pois que os filhos que se casam e saem de casa refiram sempre a sua pertença à casa parental, sobre a qual mantêm ainda alguns direitos, tanto ao nível dos bens como das pessoas — por exemplo, podem utilizar os animais de trabalho da sua casa de origem em caso de necessidade. Neste sentido, formam uma espécie de cintura exterior da casa e do sucessor da mesma, uma cintura sempre pronta a herdar se porventura a sucessão prevista falhasse. A curto prazo, estão na base das ajudas e dos convívios que se efectuam no interior do parentesco alargado, da «família».
Principais produções e factores de produção: o corpo da gente e o corpo dos bichos
42Outrora, nas freguesias estudadas, o ideal de qualquer família que cultivasse a terra era a autarcia material, ou seja, a produção dos géneros necessários à sobrevivência quotidiana. Estes deviam ser «tirados» da exploração agrícola. O significado concreto deste ideal difere consoante o estatuto de quem explora a terra e da sua posição face ao mercado. A família rural abastada vê neste ideal uma função alimentar alargada: alimenta-se e alimenta os outros ao alimentar os mercados. Nas freguesias estudadas, estes situam-se muito perto e os lavradores e as lavradeiras levam alguns produtos — milho, batatas, feijão, hortaliças — à feira quase todas as semanas. Se bem que a família rural rica retire deste facto um sentimento de superioridade no contexto da freguesia, também tem consciência da sua dependência em relação às classes urbanas. Júlio, lavrador reformado de Lemenhe, comenta a propósito disto em 1987: «no meu tempo, era assim: os lavradores como eu, tinham de tudo para a casa, e do melhor, mas comia-se do pior. Está a ver, se o lavrador quisesse viver à grande, os outros, claro, não teriam grande coisa que comer, e isso prejudicava as pessoas da cidade.» (Júlio, lavrador de Lemenhe, nascido em 1924.)
43A função alimentar passa, em primeiro lugar, pela produção de «pão», isto é, de cereais5. Consoante a quantidade e a qualidade das terras que trabalham, os lavradores ricos produzem milho, centeio e, mais raramente, trigo. O pão, chamado «broa», é feito à base de uma mistura de milho e de centeio. As casas mais ricas juntam-lhe por vezes uma pequena quantidade de trigo a fim de «torná-lo mais branco».
44Nos anos 40, o pão ainda serve de principal aferidor de riqueza: as terras e as casas de lavoura são avaliadas em função da quantidade de «pão» que se «tira». Um criado procurará emprego numa casa «que tenha muito pão»; e os louvados fixam o valor de um campo segundo o número de «carros de pão» que este produz. Um lavrador médio, que explora três hectares de lavradio, produz três a cinco carros de pão de 600 quilos cada um e dez a quinze pipas de vinho.
45Uma exploração agrícola rica produz também batata, feijão, vinho e linho. Na horta, há couves, cenouras, cabaças, cebolas, nabos, favas. À «bouça» vaise buscar o mato para as camas do gado e de vez em quando madeira destinada a ser vendida. No estábulo, uma casa rica tem uma ou mais juntas de bois para o trabalho agrícola e uma ou duas vacas cujos vitelos serão vendidos. Há sempre porcos para a engorda, galinhas, coelhos, algumas ovelhas. Regra geral, a casa rural abastada tem um pouco de tudo — até lã para tricotar meias.
46A casa «auto-suficiente» constitui pois uma organização complexa em termos agrícolas. Dispõe, em partes mais ou menos iguais, de «bouça» e de «lavradio». Este último engloba, de preferência, terras húmidas e terras secas. A casa da Fonte, considerada uma casa muito rica ou «grande», possui, nos anos 40, sete hectares de bouça e sete hectares de lavradio. O proprietário — o lavrador Joaquim — explora-a desde o seu casamento em 1939. Filho único, recebeu a «casa» quase intacta em termos de capital fundiário. A irmã recebeu, por ocasião do seu casamento com o sucessor de um lavrador abastado, «bouças desviadas» (afastadas da casa) e o restante da parte legítima em dinheiro. Nos anos 40, J. possui em média doze cabeças de gado: seis bovinos destinados ao trabalho agrícola, algumas vacas e alguns novilhos de criação. A casa cria ainda três porcos para carne. Para o transporte, existem quatro carros de bois e um carro puxado por um cavalo. Semeiam-se quarenta arrobas de batata, vinte arrobas de milho, dez arrobas de trigo, cinco arrobas de centeio, seis a dez arrobas de feijão (um terço do milho), linho. Nessa época, vende-se bem o trigo, e o milho destina-se antes ao consumo doméstico. Segundo Joaquim, a broa só é «melhorada» com trigo na altura do Natal. Quanto ao vinho, grande parte do qual é vendido, a casa produz quarenta pipas nos anos de produção mais ou menos boa. Existem ainda algumas macieiras espalhadas pelos campos.
47Três factores caracterizam o modo de produção agrícola camponês nestas freguesias: a «terra», o «trabalho» e a «poupança». Veja-se, em primeiro lugar, o significado social de cada um destes factores. No caso da família de lavradores, o facto de ser proprietário da terra constitui uma exigência ideal em termos das relações de produção. Arrendar terra é uma «baixeza». Em compensação, admite-se que um lavrador abastado se torne «administrador», porque «vai dirigir, administrar uma propriedade». E também se admite que ele trate de terras que pertençam a pessoas de família próximas que estejam quer ausentes quer incapazes de cultivá-las. Transforma-se em rendeiro mas as relações sociais são de outro tipo — não são «baixas», dado os laços de parentesco e o estatuto de proprietário daquele que vai explorar a terra.
48Quanto ao factor «trabalho», este faz apelo às energias humanas e animais e tem, deste ponto de vista, um significado preciso: é um trabalho físico duro que é exigido às pessoas e aos animais que as acompanham. Como diz a Maria, uma lavradeira nascida em 1923: «Naquele tempo a gente e o gado é que fazia o esforço. Agora os tractores fazem uma vessada num instante, não é? Naquele tempo era com o arado e com o gado, ali assim, a gente para lavrar um campo andava dias inteiros e agora, é claro, põe-se o estrume, vai-se lá com o tractor e em pouco tempo lavra-se um campo. Antes trabalhava-se muito mais nesse sentido, porque não havia máquinas, era o corpo da gente e o corpo dos bichos. Era muito duro, tanto para o gado como para a gente».
49O trabalho agrícola exige relações directas e estreitas entre os homens, os animais, os instrumentos de trabalho e a terra. A autonomia profissional do lavrador rico pressupõe longos anos de aprendizagem e de experiência, e apela a determinados conhecimentos relativos à produção agrícola, à organização do trabalho, à conservação dos meios de produção e à comercialização dos produtos. A formação, a produção e a gestão formam um todo.
50A exploração rural rica exige também uma mão-de-obra ampla e solidamente «amarrada», como dizem os próprios, ao trabalho. Preconiza-se um recrutamento diversificado da força de trabalho: os filhos participam no trabalho visto ser assim que adquirem a sua formação, mas também se recruta muita mão-de-obra no proletariado agrícola. A auto-suficiência da casa de lavoura abastada, num contexto onde falta o pão em muitos dos grupos domésticos da freguesia, permite-lhe ter à sua disposição uma força de trabalho assalariada pouco exigente e inesgotável.
51A substituição mútua do factor trabalho e do factor terra é essencial para a intensificação da produção6. Um exemplo: o José, lavrador médio, conta como, no início do seu casamento e tendo herdado apenas um hectare de terra (J. não foi privilegiado, mas recebeu a sua parte legítima em terra), a cultivava «de uma ponta à outra»: «Só herdei este campo. Dava para ter duas vacas, vá, e dava, para mim e para a minha mulher, se em todo o lado se fizesse bem pertinho, que eu fazia isto bem feito, trabalhávamos muito. Depois comprei mais».
52A ambição de adquirir terra e de investir naquela que se possui exerce uma pressão muito forte. Daí que a poupança se torne um factor fundamental, susceptível de fazer avançar ou recuar a auto-suficiência da casa e, segundo as próprias palavras dos camponeses, de lhes permitir «angariar a vida». Se se tiver poucas terras, poupa-se para comprar mais. Tem-se «um monte» de dinheiro à parte e que se vai acumulando a pouco e pouco. Negoceia-se laboriosamente uma nova compra de terra de maneira a que tal não acarrete dívidas incomportáveis. E aqueles que têm uma casa de lavoura de uma certa dimensão, poupam igualmente porque pode ser preciso investir ou comprar terra. Em geral, a exploração nunca será demasiado grande para a quantidade de herdeiros potenciais que é preciso ajudar. É por isso que, assim que se tem algum dinheiro, é no investimento no património fundiário que se pensa. Como lembram Monteiro7 a propósito dos camponeses da Lousã, e Thomas e Znaniecki8 a propósito do camponês polaco, a terra é um bem cujo valor qualitativo é irredutível.
53Do ponto de vista da progressão do «monte» de dinheiro, qualquer despesa monetária (em vestuário, trabalho assalariado, produtos alimentares ou adubos) é nefasta. Se se quiser insistir no factor poupança, evita-se o factor despesa, seja qual for a despesa. Jorge, lavrador abastado, proprietário de nove hectares aos 70 anos e considerado como um «duro» sob este ponto de vista, gosta de evocar os esforços desenvolvidos por ele no passado para conseguir articular os factores terra, trabalho e poupança:
54«Andava sempre consumido, a poupar. Quantas vezes a gente se levantava para ir «roçar mato», para não ter de pagar um jornal. Era para ver se conseguíamos apurar um bocadinho, mais uma coroa. Quantas e quantas vezes, a gente ia daqui para Famalicão fazer a feira, chegava-se lá às vezes às quatro da manhã, quatro e meia, para tomar lugar para estar ali a vender. Estava a gente sem comer, com aquele gole de café que tomou às três da manhã. Para quê? Para ver se a gente se ia defendendo na vida. Tinha-se gosto a trabalhar e gosto a poupar. Vendia-se milho, feijão, o que houvesse. Tirava-se um pouco para as despesas da casa e para o sulfato, para o que calhasse. Mas apuravase um bocadinho, guardava-se. Foi assim que consegui pagar os juros, e que mandei fazer algumas obras. E quando não chegava, como é que um homem fazia? Apertava o cinto, ia para a bouça de manhã cedo roçar mato para ver se não pagava a um jornaleiro, para se defender.» (Jorge, lavrador, nascido em 1919.)
55Trabalho, terra e poupança, três factores que se articulam para garantirem o património e a produção agrícola, e que fundam a auto-suficiência alimentar. O pão é disso o símbolo principal, mas é acompanhado pela produção de uma variedade de «comeres»: os produtos dos campos e do eido, da capoeira e da pecuária, fornecem praticamente a totalidade dos produtos necessários à alimentação do grupo doméstico e dos animais. «A gente tinha quase tudo de casa. Tinha a farinha, ia-a moer, fazia-se a broa. Tinha vinho, couves, tinha batata, nabos, cenouras, alguma fruta para comer e tal. Comprava-se arroz e um bocado de bacalhau, e massa, e sardinhas em grande quantidade para salgar. Matava-se um porco gordo, depois dava aquele pingue para adubar a sopa e essas coisas. Nós cá, tínhamos o hábito da carne de porco. Assim, a gente sabia o que comia. E para o gado, nesse tempo não se dava farinha nem nada, era só comida: deixava-se no campo a pastar e depois dava-se erva e palha de milho e palha de centeio, a gente semeava centeio ou aveia, eram aquelas palhas e dava-se-lhes erva, era como se mantinham. Nesse tempo era assim.» (José, camponês reformado, nascido em 1915, Lemenhe, proprietário de três hectares de terreno em 1985.)
56Quando falam da alimentação, os lavradores ricos de mais idade não evocam a ideia de «refeição», mas a de «o comer». «Faz-se o comer» como «se faz» o vinho ou a terra, traduzindo talvez melhor esta expressão os múltiplos processos de transformação implicitamente incluídos na produção de alimentos.
57Dois factores principais caracterizam o modo de produção do «comer»: a cozinha e o autoconsumo, isto é, a utilização de produtos cultivados ou transformados pela casa. A cozinha da casa engloba tudo quanto se encontra debaixo e ao lado da grande chaminé da cozinha: a «lareira», também chamada «lume», com a laje de pedra onde se acende o fogo, as vigas onde se faz o fumeiro, a salgadeira ao lado, o forno de pão, a masseira onde se amassa o pão.
58Até aos anos 60, prepara-se na cozinha a quase totalidade da comida consumida. O pão é amassado e cozido uma vez por semana. A carne vem do porco, dos coelhos e das galinhas, se bem que estas sejam quase sempre vendidas. «Frango, era muito raro a gente comer frango. Nas festas, no Natal e na Páscoa. Mas nunca se sabia quando é que o íamos comer, e se calhasse passava-se muito tempo sem a gente o provar e era assim.» (Maria Albertina, camponesa abastada, nascida em 1944.) As batatas, as hortaliças e o feijão ocupam um lugar central na alimentação familiar. Esta é essencialmente constituída por sopa de hortaliça — cebolas, hortaliça, batata e/ou feijão, e um bocadinho de azeite ou de gordura do porco — e pão. De manhã, ao «almoço», é uma malga de café (para os mais abastados) ou sopa, e pão. Quando se vai para o campo muito cedo, junta-se mais qualquer coisa a esses alimentos, por exemplo sardinhas ou um pouco de carne de porco, um copo de vinho. Ao meio-dia, ao «jantar», come-se sopa e um prato: batatas cozidas com hortaliça, arroz ou massa sozinhos ou com feijão. Junta-se às vezes, sobretudo ao domingo, uma ração de carne de porco ou um ovo cozido para cada um, bacalhau desfiado ou sardinhas. À noite, come-se o resto da sopa com pão, ou engrossa-se a sopa com farinha de milho. Estas «papas de milho» eram feitas da seguinte forma: «O milho era moído e depois, quando sobrava sopa, fazia-se as papas. Punha-se o resto da sopa ao lume e acrescentava-se água e depois deitava-se a farinha de milho. Aquilo ficava grossinho. Deitavase um bocadinho de vinagre para ficar mais picante. E mexia-se muito mexidinho nos potes à lareira. Era muito saboroso. A gente gostava muito. As melhores eram as papas da sopa de grelos, porque os grelos são mais bravos e dá mais sabor. Também se fazia muito papas de cabaça. Cozia-se a cabaça ao meio-dia, à noite ralava-se a cabaça e fazia-se assim as papas de cabaça, com farinha de milho também.» (Maria do Carmo, nascida em 1937.) No Verão, como se vem tarde dos campos, come-se uma merenda a meio da tarde: pão, carne de porco ou peixe frito, fruta e vinho. Só os dias de festa e às vezes as refeições de domingo têm pratos «melhorados»: nesses dias, em casa dos lavradores ricos, come-se carne, ovos ou bacalhau em maior quantidade. «Era mais ao domingo ou nos dias de festa que se fritava uma posta para cada um. Durante a semana o comer era uma coisinha fraquinha.» (Maria Albertina, nascida em 1944.)
59Outrora, o facto de «comer à sua vontade» representava a norma ideal entre os lavradores. Alguns gabam-se de ter sempre servido, mesmo aos criados de lavoura, um prato farto ao jantar, e pão e vinho quanto quisessem. A norma acentua o factor «quantidade», mas os camponeses ricos procuram também, de diversas maneiras, introduzir o factor «qualidade». Nas casas de alguns deles — e é a interpretação mais amiúde admitida — os domingos e os dias de festa constituem a ocasião para tal. Noutras casas, estabelece-se a separação entre «o comer» dos patrões e o das crianças e dos criados. A prática de duas mesas, pouco frequente, é mal vista pela maior parte dos lavradores porque «ensina a só comer coisas boas, como nas casas dos senhores.» (J., lavrador de Lemenhe, nascido em 1915.) Reconhece-se contudo que existia quase sempre uma «separaçãozita», com os patrões sentados numa ponta da mesa e um prato por vezes melhorado e os moços da lavoura e as crianças na outra.
60A fabricação dos bens agrícolas e da alimentação própria domina largamente a produção da auto-suficiência doméstica, pois é preciso afastar o espectro da fome que aflige os lares destas freguesias e alimentar aqueles que trabalham para a casa. Mas a casa de lavoura rica acrescenta a isso outras produções materiais. A produção do pano de linho, nomeadamente, ocupa nelas um lugar de um certo prestígio. Na casa dos camponeses que arrendam terras nem sempre se pode «dispensar» um campo para cultivar o cânhamo; na dos lavradores, isso é já possível. Mas nos anos 40, não se trata de assegurar o fabrico de todo o tecido destinado ao vestuário da família. As mulheres da casa fabricam e cosem o linho, mas compram por vezes outros tecidos e mandam fazer vestidos às costureiras da freguesia. A fabricação do linho exige cuidados múltiplos e minuciosos, nos campos e em casa, e, como se pode ver no discurso das lavradeiras, fala-se dela afectuosamente. Por exemplo, Elvira, lavradeira de Lemenhe, pontua a descrição do trabalho do linho com múltiplos diminutivos que exprimem o seu gosto pela terra e pela natureza:
«Quando eu era nova, semeávamos aqui um pedaço de linho no campo O linho é preciso regá-lo muito e nós tínhamos água, havia aqui um engenho, agora é motor mas dantes era engenho puxado com uma vaca. Ai Jesus, o trabalho que dá fazer um pedaço de pano de linho, ó minha vida. Semeia-se, é a primeira coisa. Preparar a terra, muito preparadinha, muito lavrada, muito ajeitadinha. Depois semeia-se. Assim que ele nasce, começa-se logo a regar é logo água sobre ele. Depois ganha umas ervitas, toca a mondá-lo, a tirar as ervinhas fracas e ficar só as boas, só o linho bom. Depois, então, dá uma flor uma florzinha azul, de dia abre e depois à noite fecha, à noite fecha e depois torna a abrir outra vez; o linho é assim. Depois, está amarelinho, toca a apanhá-lo. Depois, com os ripanços, toca a ripá-lo. Depois, ata-se a cabeça, bota-se ao sol para depois dar outra semente. Depois ata-se aos molhinhos, assim com um atilho com uma palha, toca a levá-lo ao rio. Fazer uma cova no rio, na areia, enterra-se debaixo daquela areia e fica lá nove dias, sempre debaixo da areia, estava lá nove dias e nove noites. Depois trazia-se pare cima. A bem devia ser num campo. Se tivesse um campo que não semeasse botava-se no campo. Se não era numa bouça. Botava-se na bouça aos carreirinhos, tinha-se lá nove dias e nove noites botado num bouça. Tínhamos al uma boucita ali perto e botava-se lá a corar. Depois punha-se amarelinho e trazia-se para casa outra vez, atava-se outra vez aos molhinhos. Depoií levava-se onde houvesse um engenho de linho, era lá para Gondifelos, nós íamos levá-lo, o pai levava o carro, para ajeitar o linho. Chamava-se fazer o linho. Aquela casca sai toda. Até que aquele linho fica molezinho, fica muito amolecidinho. Depois trazemos para casa, toca a fazer manadas, uma manada para depois se espadelar. Tínhamos a espadela, espadeleiros também, toca espadelar. Depois, ao fim de espadelado e de ajeitado, assim ajeitadinho muito bem, toca de lhe fazer então as manadas e toca a ajeitar num sedeiro Sedeiro nem sei se está aí um ao pé do forno, se o Manuel (o sobrinho) botou ao lixo, nem sei, chamava-se sedeiro, assedava o linho. Depois ficava o linho comprido para um lado e o outro ficava a outro lado, chamava-se estopa, era outra repartição. Depois fiava-se o linho mais fininho. Fiava-se a estopa mais cheia um bocadinho, mais grossa. A estopa era para lençóis, fazer lençóis para as camas, e o linho era para fazer camisas e assim, e toalhas de mesa às vezes. Fazia-se esse trabalho todo, depois de ajeitadinho, vamos fazer novelos na dobadeira. Fazia-se os novelos e depois dava-se à tecedeira. A minha mãe mais cedo tecia mas depois mais tarde tínhamos muita lavoura, não tinha tempo de tecer, alugava-se uma tecedeira, a fazer uns tantos metros. À tecedeira levava-se aquele linho. Para fazer ao comprido, urdir, comprava-se umas meadas de algodão na vila e dobava-se ao novelo também. Urdir era o algodão e a tapar era o linho, o linho é que tapava, o linho e a estopa também, tudo a tapar. Depois esse pano, esse pano comprido, vinha para casa. Isso dá uma trabalheira, ui Jesus.» (Elvira, nascida em 1924.)
61As casas de lavoura ricas escolhem pois cuidadosamente o campo ou a parte do campo apta à cultura do linho. O produto final contribuirá para a produção do enxoval das raparigas, que é composto, entre outras coisas, de camisas, de lençóis e de toalhas de mesa de linho «da casa». Além disso, qualquer casa rural abastada sente que é seu dever ter pano de linho em casa. Por ocasião de partilha dos bens, esse linho será muito disputado.
62Neste universo de produção material intensa, a manutenção do interior da casa reduz-se ao mínimo indispensável. Não se fabrica, de maneira activa e permanente, a limpeza e a arrumação, isto é, o trabalho doméstico. Consoante a época do ano e o trabalho que há para fazer no campo, ou a lavradeira trabalha nos campos durante todo o dia e regressa ao meio-dia para fazer ou vigiar o jantar, ou fica de manhã em casa e trabalha no campo de tarde. Em geral, são as raparigas e as criadas que tratam de varrer e de lavar a roupa. Uma vez por ano, na Páscoa, efectua-se uma grande limpeza da casa para se poder receber o padre, o compasso e outras pessoas — principalmente as famílias dos trabalhadores empregados pela casa — que escolhem vir «beijar a cruz» naquela casa.
63Dia após dia, é preciso ir buscar água, acender o lume, cozinhar, lavar a roupa. As raparigas e as criaditas têm a seu cargo a maior parte destas tarefas: «Eu e as minhas irmãs, éramos sete raparigas, estávamos cada uma à vez uma semana na cozinha. Acendíamos o lume, cozinhávamos e ajudávamos nos campos nas horas vagas. Não era só fazer em casa, mas também no campo. A gente trabalhava sempre, a fazer o que fosse preciso, roçar mato, o que calhasse. Se fosse preciso amarrar no arado, nós amarrávamos no arado e carregávamos estrume e tudo.» (Maria Albertina, camponesa abastada de Gondifelos, nascida em 1944.)
64No que se refere à apresentação pessoal, a família rural rica demarca-se dos «pobres» da aldeia «vestindo» os seus membros. Cada um deles tem pelo menos dois fatos de trabalho, mais usados, e um fato de domingo — e às vezes até dois ou três. Procura-se ter «boas roupas»: «A minha mãe gostava muito de andar com roupas boas e não queria andar atrás das outras. E depois também nos dava, dava-nos muita coisa. Ela comprava tecido e mandava fazer, e quando nós íamos a saber, já estava quase feito. Ela tinha o dinheiro das galinhas, e mesmo do feijão. E lembro-me de o meu pai dizer-lhe, 'O dinheiro do feijão é para ti'. Ele sabia muito bem que ela precisava de dinheiro para a casa e para a roupa dos filhos e eram muitos. O outro dinheiro, sempre era ele o senhor da carteira, mas se não chegasse para o que era preciso, então ia pegar no do pai. Às vezes o dinheiro não chegava para o que a gente queria, e então a gente remediava-se conforme podia.» (Maria Albertina, camponesa abastada de Gondifelos, nascida em 1944.)
65Procura-se pois «andar bem posto» sem, no entanto, sobrecarregar o orçamento familiar. Por vezes, é preciso a pessoa remediar-se com o que tem, enquanto se espera por uma ocasião mais favorável. Mas algumas casas ricas insistem demasiado no «remediar» e negligenciam o vestuário da família. Deste modo, expõem-se às críticas das casas que se esforçam por dar resposta às duas exigências. Segundo Joaquim (lavrador e um dos nossos interlocutores privilegiados), a lavradeira Dores (nascida em 1910) era particularmente negligente a este respeito:
«Era muito agarrada. Andava sempre muito mal vestida apesar de ser rica. Um dia, vi-a chegar por esse caminho vestida com uma saia toda rota, muito velha, e disse-lhe: ‘é para vestir algum espantalho?!’ E ela respondeu-me: ‘Mais vale deixar cair em ruína do que andar a pedir a vós. ‘Está bem, está certo’, disse-lhe eu, ‘mas também não é preciso fazer cenas tristes’.»
66Antes de mais, o ser humano é, para os lavradores, um trabalhador consciencioso e poupado. Contudo, enquanto membro de uma classe social elevada, conta-se também com as suas qualidades de dirigente e de representação face ao exterior, bem como com o seu comportamento exemplar (que não deve ser «baixo»). Um lavrador rico deve ser profissional na sua área, apegado ao trabalho e ser um gestor poupado. Deve saber dirigir os trabalhadores da casa. Além disso, deve ser um negociante hábil e saber, se necessário, estabelecer relações com outras classes sociais, no interior ou no exterior da comunidade.
67Por isso, na família rural rica, a criança não é apenas um simples «produtor-trabalhador agrícola» que deve aprender a ajudar e a trabalhar. E o sucessor potencial de uma casa auto-suficiente que forma, gere e reproduz os seus factores de produção, o que significa que é portador de um estatuto social elevado associado à propriedade, aos conhecimentos, à direcção dos assuntos familiares e talvez, também, aos da freguesia.
68De um ponto de vista ideal, os filhos de camponeses ricos formam-se no trabalho. «Fomos criados nisto» (no trabalho agrícola), dizem os lavradores já idosos. Contudo, quase todos andaram na escola, uns mais do que outros, os rapazes mais do que as raparigas, o que constitui, afinal, o privilégio das pessoas abastadas da aldeia. Ao nível da socialização das crianças, os pais reconhecem a importância do desenvolvimento das capacidades de trabalho, do sentido da poupança e do sentido da autoridade (saber dar ordens) através de um processo que assenta num primeiro princípio fundamental: «agarrar» ou «amarrar» os filhos, raparigas ou rapazes, ao trabalho e à actividade. No que se refere ao sentido da poupança, é preciso inculcar nas crianças os princípios da gestão prudente dos bens e da força de trabalho. É preciso que eles saibam gastar muito pouco, e que aprendam a juntar e a investir capital. Para isso, preconiza-se e pratica-se determinados processos, tais como a «doação» de um pequeno capital inicial: o filho ou a filha recebe um coelho, um vitelo ou o usufruto de um bocado de terra. É suposto acumular os rendimentos para fazer face a certas pequenas despesas ou, de preferência, «juntá-los» e reinvesti-los — comprar outro coelho, fazer «criação» deles e assim sucessivamente. Encoraja-se portanto, a propósito do dinheiro, a acumulação e a constituição de uma reserva monetária, repetindo às crianças um provérbio rural segundo o qual «grão a grão enche a galinha o papo». Mas muitas vezes, o acesso a estes meios de produção é tardio, reduzido e desigual. Em certas famílias, estes só são postos à disposição do futuro herdeiro privilegiado:
«Em nossa casa, só o António, o mais velho, semeou sempre.» (Carlos, camponês parcial, nascido em 1938.)
69Insiste-se também na aprendizagem dos negócios. Desde muito novas que as filhas acompanham sempre a mãe à feira e os rapazes acompanham o pai quando este vai fazer algum negócio. Mais tarde, hão-de aprender a tratar eles próprios dos mesmos:
«Quando eu tinha 16 anos, o meu pai disse-me: ‘Vou contigo desta vez, comprar o pilado (caranguejos utilizados como adubo). Da próxima, vais tu sozinho. Se fizeres mau negócio, pior para mim, eu pago; da próxima vez, logo hás-de saber ser mais desconfiado’.» (J., lavrador de Gondifelos, nascido em 1911.)
70Com as raparigas, insiste-se mais na economia doméstica e na adequação das despesas em função dos rendimentos obtidos. Por exemplo, na casa Pereira, as filhas adolescentes tinham de vestir-se com o dinheiro da sua própria criação de coelhos:
71«Nós raparigas, deixavam-nos ter coelhos. A gente vendia-os, e com esse dinheiro, comprávamos tecido na feira. Mas sabe, naquela maré era sempre pouca coisa, pouquinha coisa. E a gente às vezes tinha de pedir dinheiro para comprar roupas e o pai dizia: ‘Não tenho dinheiro, vocês criaram coelhos’. Mas o dinheiro não chegava para o que a gente queria.» (Amélia, lavradeira de Gondifelos.) Aqui, o pai desempenha o papel do futuro marido da filha: o que consiste em restringir ao máximo as despesas da casa. Quanto à mãe, ensina as filhas a gerir os rendimentos com prudência e de forma autónoma e mostra-lhes igualmente quais são as atitudes possíveis face às exigências do chefe da família:
«Lembro-me que a minha mãe nos dizia sempre, quando ainda éramos pequenas, aos 15 ou 16 anos, que não devíamos ser falsas com os homens. Que eles também podiam ser fracos, que eles precisavam de bons tratos e não só de muita comida, mas que também não precisavam de saber de tudo. Que quando a gente ia à feira e ganhava dinheiro, mas não o gastava todo, não era preciso dizer que não o tínhamos gasto todo, nem quantas arrobas é que tínhamos vendido. Nunca me esqueci disto. Pronto, a mulher tem de ter algum; liberdade, não é?» (Inês, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1915.)
72Do ponto de vista do indivíduo, esta socialização não pressupõe um; independência futura, mas sim uma inserção na divisão do trabalho da casa as mulheres gerem as despesas da casa, os homens a acumulação do patrimó nio.
73Neste contexto de trabalho intenso e de gestão cuidada do capital, a produção e a reprodução de energias de trabalho assentam em três factores principais: a actividade constante em vez da desocupação; pouco tempo para des cansar; a alimentação. «Não se pode parar», «há sempre que fazer», «nunca se está sossegado», «não dá para encostar». Ouvem-se frases como esta durante todo o dia de trabalho, incitando a produzir, a estar sempre ocupado Um bom trabalhador deita-se tarde e levanta-se cedo, e procura «espalhar» sono e o cansaço. Quanto aos que mandam, têm que estar a pé antes do outros para darem ordens. Deolinda, uma lavradeira nascida em 1908 e que estava à frente de uma casa agrícola nos anos 40, lembra-se de ter que esta levantada muito cedo. Quando descia as escadas para o pátio, as criadas e o jornaleiros já costumavam estar à sua espera e perguntavam-lhe: «hoje par onde vamos, senhora D.?»
74Apenas as refeições constituem pausas obrigatórias no decurso destes dia de trabalho que ocupam as crianças e os adultos até muito tarde. No Verão trabalha-se no exterior até ao cair da noite. No Inverno, depois da ceia, h quem se ponha a fiar linho ou a remendar a roupa:
«Os nossos serões eram passados sentados ao lume, porque dantes er mesmo assim, não havia electricidade nem nada. E então, tínhamos a luz d petróleo, e ao lume tínhamos os potes. A gente tinha sempre um pote de águ quente para a gente se lavar e para o que fosse preciso. Estávamos todos al tínhamos uns banquinhos pequenos e sentávamo-nos ali todos de volta d lume. E este era o serão de Inverno, fazíamos cada um nas suas casas ma fazíamos sempre todos os dias. De Verão a gente já não fazia serão, porque nã dava. Então a gente preparava assim uma lenhazinha, e enquanto aquela lenh desse luz que chegasse, a gente não acendia a luz do petróleo para não gasta E quando já não desse reflexo como devia ser, a gente então acendia a luz fazíamos de tudo. Fiávamos linho, estopa, fiávamos mesmo lã de ovelha, cai dava-se o que fosse preciso. A gente fazia em casa tudo até ao tecer, depois n maré de tecer é que ia para fora. Tínhamos sempre que fazer ao serão. O velh não queria que a gente fosse cedo para a cama. Mas eu, depois de comer, j estava cheia de sono e dizia: ‘Ó mãe, deixe-me ir para a cama agora’ E el dizia-me: ‘Afia mais um bocadinho, mais uma maçaroca de fuso’. Chamava se assim. ‘Afia mais uma maçaroquinha, nem que seja pequena’. E a gent virava, virava, para ir depressa para a cama, porque estávamos cheios d sono.» (Maria Albertina, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1944.)
75O trabalho está sempre antes do descanso e da alimentação. Come-se par poder trabalhar e, se se trabalhar pouco, menos necessidade se tem de come Margarida, lavradeira de Lemenhe nascida em 1933, lembra-se de certos dias de chuva «em que só comíamos sopa e mais nada porque dizíamos uns para os outros: ‘hoje pouco trabalhámos, por isso não precisamos de comer’.»
76Para organizar e controlar este trabalho ininterrupto, a casa de lavoura rica insiste fortemente na produção do poder. «É necessário alguém que dê ordens, que oriente», diz-se. No que respeita ao modo de produção do poder, é de sublinhar, ao nível da norma ideal, a insistência na autoridade: quem dirige dá ordens, fá-las respeitar inflexivelmente e não admite que o contradigam. É a pessoa que «risca» a organização do trabalho e as linhas de conduta.
77O poder autoritário põe em acção diferentes factores: o estatuto, o saber, o controlo constante, o castigo. «E preciso saber fazer para mandar fazer as coisas e para dar ordens» — todos os camponeses de mais idade estão de acordo com este princípio. Em seguida, é preciso saber impor-se. O estatuto de superioridade contribui para isso mas considera-se também que vigiar e castigar (metendo medo) são factores inevitáveis do exercício do poder autoritário. Estes factores parecem de tal modo indissociáveis que as representações dos camponeses ricos empregam termos associados à palavra castigo para descrever a atitude global dos chefes de família em relação aos seus subordinados. «O meu pai era muito castigador», diz-se para caracterizar um lavrador que obrigava os filhos a trabalhar duramente. (José, lavrador de Lemenhe, nascido em 1924.)
78Os castigos propriamente ditos são sobretudo corporais mas aplicam-se também outras sanções, como a suspensão da autorização de sair ao domingo, o regime «a pão e água», o desprezo («dar ao desprezo») e o isolamento social. Junto dos filhos adultos, são as ameaças de sanções futuras ao nível da herança ou da ajuda parental necessária à negociação de um bom casamento, que permitem aos chefes de família idosos exercer o seu poder.
79O ostracismo ao nível das sociabilidades intrafamiliares constitui, na ausência de escapatórias sociais, uma das piores punições possíveis. Assim, quando a filha mais nova de um casal de lavradores abastados — cujas duas outras filhas, mais velhas, tinham ficado solteiras — ficou grávida de um homem de condição social diferente da sua, a família baniu-a da vida familiar: davam-lhe de comer, mas ela comia sozinha, no pátio lá fora. Acabou por se suicidar, e uma vizinha solteira tomou conta da criança e educou-a (segundo depoimento de J., lavrador, nascido em 1911). Em resumo, nestas famílias onde o trabalho, a identidade e o destino do indivíduo dependem estreitamente do grupo familiar e da sua rede de alianças com outras casas ricas, o facto de se romper com as sociabilidades familiares representa uma queda irreparável. O meio exterior oferece por vezes, como sugerem certos autores9, uma rede de apoio alternativa: a amiga vizinha criou a criança, e esta continuou a ser «desprezada» pelos parentes mas aceite e integrada socialmente pelos vizinhos. Esta criança ficará a viver com a «madrinha» (é assin que os vizinhos passaram a chamar a partir de então aquela que a criou) até i morte desta.
80A tónica posta na autoridade retira toda e qualquer possibilidade de nego ciação com o poder. A regulação familiar é normativa e pouco flexível. Os chefes das casas de outrora são qualificados como «ditadores», porque er; preciso obedecer sempre e em qualquer circunstância. As pessoas deste mei recordam-se no entanto daqueles que, apesar de insistirem na autoridade, ape lavam também ao «concordar», isto é, a um certo entendimento. Tal não cor responde de modo algum a uma negociação. É apenas o reconhecimento d'outro que permite ouvir outras opiniões ou atenuar os castigos, porque faci lita o perdão e admite certos desvios ligeiros relativamente à norma:
«Os antigos eram mais ditatoriais. Só eles é que mandavam. O meu pa também, mas ele «concordava» também. Nunca ninguém lhe podia faze frente, agir contra a vontade dele, mas de vez em quando ele facilitava a: coisas. Não era como certas pessoas de que me estou a lembrar. Por exemplo eu e o meu irmão, às vezes fazíamos asneiras. Matávamos uma galinha, ou então fazíamos gazeta à escola. O meu pai ficava muito zangado, castigava nós fugíamos. Mas voltávamos uma hora depois e pronto, ele estava dispost a esquecer o que tínhamos feito e tudo entrava nos eixos. Castigava-nos acabou-se, e depois não se vingava mais.» (Manuel, nascido em 1938.)
81Em resumo, apesar de uma norma ideal que recomenda o castigo ma desaconselha a “vingança” — isto é, preconiza o perdão —, havia pessoa; mais tolerantes e outras que se vingavam durante muito tempo nos filhos nos subordinados por causa dos erros cometidos O mesmo problema existi; dentro do casal. Nalgumas casas o marido exercia o poder de forma «ditato rial», noutras era mais compreensivo. Para Maria, lavradeira, «quem mandava era mesmo o homem, o marido. Nalgumas casas a mulher andava ali sab Deus como. Mas na nossa casa, os meus pais concordavam um com o outro Era sempre ele a riscar mas se um dissesse, ‘olha, é melhor fazer isto hoje’ eles concordavam um com o outro.»
82Num contexto como este, a fabricação do «estatuto», factor de legitima ção da autoridade para além do saber e das competências, é importante, dad que o estatuto garante a ubiquidade da autoridade no tempo, bem como na situações ambíguas em que as competências e/ou o saber fraqueja. A idade i o sexo do indivíduo, assim como o medo que este suscita, são os pilares di construção do estatuto: ser mais velho e do sexo masculino define um esta tuto mais elevado — aquele que, segundo as próprias palavras dos lavradores deve «impor o respeito». O estatuto assim definido é reforçado pelo mede (porque autoriza a utilização da violência e do castigo), e um gesto basta par; provocar esse medo:
«O meu pai, esse, não dizia nada. Os olhos dele fixavam-nos e nós já nã sabíamos o que havíamos de fazer, onde é que nos havíamos de meter. Iamo: a correr trabalhar.» (João, lavrador de Lemenhe.) Era o pai da «casa» quen dava as chicotadas. A mãe dava antes bofetadas ou sapatadas («sapateava»). As recordações de infância que remontam aos anos 30 e 40 evocam um pai que se serve de uma vergasta de vez em quando e uma mãe que distribui bofetadas aos filhos a torto e a direito: «A mãe batia-nos mais, mas a gente tinha mais medo do pai».
83As ordens devem ser aceites e obedecidas imediatamente, e a aprendizagem da obediência faz-se no trabalho. «Faz isto», «Vai buscar aquilo», «Vem comigo», «Vai a casa de fulano levar este recado». Procura-se «vergar» e «torcer» as crianças desde pequenas, ou seja, torná-las obedientes e trabalhadoras. O trabalho torna-se o principal instrumento de disciplina, e aconselhase os pais a «apertar» com os filhos através do trabalho. Eis o que relata Maria acerca da educação que a mãe lhe deu:
«A minha mãe nunca foi muito carinhosa demais, graças a Deus Nosso Senhor. A proposta dela era só: haveis de ser educados. Se ela dissesse, ‘é aqui’, ninguém tinha a coragem de dizer o contrário. Se dissesse,‘Vai acolá’, não se podia dizer ‘Ora!’. Eu, uma vez, nunca me hei-de esquecer, era cachopinha, mas já me davam para eu fazer também, aquele servicinho que eu pudesse. A minha mãe mandou-me não sei onde e eu, criança, não me apetecia e disse-lhe ‘ra!’. Só disse ‘ora’, não foi preciso dizer ‘eu não vou’. Ela então veio atrás de mim, fez-se a mim, e eu desatei a correr, corri sempre, nem olhei para trás. Mais tarde quando ela se lembrava daquilo, ela ria-se e dizia ela assim: ‘Viste, nunca mais disseste ora’. E não, nem sequer me passava pela ideia. Ela era amiga da gente e tudo o mais, mas não dava mimo, nem grandes carinhos, não dava. Era assim, mas era tudo, era tudo assim. As crianças eram criadas muito mais ásperas. Agora, as crianças criam-se com mais «mimo», com uns beijinhos. Antigamente, não se falava em dar beijinhos, só se fosse muito pequenino, depois quando eram maiorzinhos já não se falava, já era tudo ao contrário. A gente sentia-se bem, educada naquilo desde pequenino. E depois fui para o trabalho da lavoura e foi na mesma. Trabalhei até aos trinta anos com o meu pai. Foi assim que fui habituada. Brincar, também tirava o meu bocadinho, mas era só enquanto era muito pequena. Fui aprender a catequese, era lá uma mulherzinha, aleijadinha, que ensinava assim as crianças que fossem para lá. Fui para lá para aí com cinco anos e foi até aí que me consolei de brincar, até à idade de cinco anos no máximo, depois nunca mais. Nunca mais, porque, é claro, tinha sempre alguma coisa para fazer, depois também ia para a catequese, com seis anos fui à comunhão e entretanto também aprendi a costurar um pouco — porque na altura a miséria era tão grande que não havia escola na minha freguesia — e depois fui para a lavoura.» (Maria, lavradeira de Lemenhe, nascida em Minhotães em 1923.)
84Dia após dia, o estatuto dos mais velhos é produzido e reproduzido pelos membros da casa e pelos de fora: «foi o teu pai que te mandou fazer isso?» «O teu pai não está em casa? Então, vai chamar a tua mãe.» «O pai há-de descobrir, ele sabe tudo o que vocês fazem.» «Fazei o que a vossa irmã diz, é ela a mais velha.» Mesmo entre crianças, delega-se muitas vezes nos mais velhos a autoridade paterna, criando assim estatutos diferenciados no interior do gru po das crianças:
«Nós éramos nove filhos, três rapazes e seis raparigas. Entre os meus irmãos, eu era o terceiro. O Manuel era o mais velho, era ele quem mandaví mais. Era ele que estava mais ligado à lavoura e ao pai. Ele também era muito severo connosco.» (Carlos, filho de lavradores, nascido em 1938.)
85Espera-se que as crianças mais velhas «levem» ou «conduzam» as outras e essa expectativa produz junto dos filhos mais velhos comportamentos autoritários em relação aos irmãos mais novos, mesmo quando já são todos adultos. José, lavrador, conta que, quando já tinha 36 anos e que queria entrar m posse da sua parte legítima, que era explorada pelo irmão mais velho, este fê lo esperar durante muito tempo:
«Ele (irmão mais velho) ficou a fazer o que era dele e o que era meu, t tinha de me entregar a minha parte assim que eu me casasse. Depois casei-me e ele não me queria entregar o que era meu. Eu ainda fiquei um ano a mais a minha mulher, já estávamos aqui nesta casa, comíamos aqui e tal mas íamo: trabalhar para o meu pai. E andámos assim um ano mas ele não me querh entregar. E o meu pai até puxava mais para o lado dele. Depois, começou poi me entregar esta parte de cima, donde se vê aquele milho para baixo. E depois ainda aquele nico lá fora, é pequeno mas faz-me jeito para ervas para o gado Depois ele, com muito custo ainda, sempre me entregou tudo. Mas ele sempre a dizer: ‘vê lá, é preciso fazer bem, a terra que não vá parecer que não ten dono’. Mas eu, é claro, tratei-a muito melhor que ele.» (José, lavrador dt Lemenhe, nascido em 1915.)
86A este poder autoritário, em que a autonomia é arrancada a um colectivo dominado pelos mais velhos, vem juntar-se, para o indivíduo, uma sociabilidade familiar — aquilo a que os camponeses chamam o «convívio» — que se tece no trabalho, durante as refeições e ao deitar. Ariès10 chama-lhe promis cuidade e sugere que o indivíduo nunca está a sós. Efectivamente, raramentí está sozinho: criança e adolescente, partilha a cama com os irmãos ou a: irmãs, com criados do mesmo sexo ou um adulto solteiro ou viúvo. Contudo durante a infância (dos sete aos dez anos), a criança passa longas horas sozinha a guardar o gado. Essa experiência marca-a profundamente e quase toda: as crianças, rapazes e raparigas, se lembram e falam dela. Na realidade, tive ram que assumir sozinhos, e pela primeira vez, uma responsabilidade de tra balho e, também, dominar um espaço exterior desconhecido e ameaçador: a natureza. Depois disso, são integrados a pouco e pouco nas tarefas de produ ção agrícola, colectivas e mais duras.
87É verdade que Ariès fala também de uma outra coisa: da identidade indi vidual, do «eu» no meio do «nós». Na casa de lavoura rica, esse «eu» ten poucos direitos de expressão. Afirma-se por vezes, de modo imprevisto, esco Ihendo como lugar de referência o espaço social da casa. Assim, há os que se vão embora para sempre ao emigrarem, e há também os que se suicidam envenenando-se ou enforcando-se na adega. No entanto, na família de lavradores abastada, o indivíduo não é totalmente desprovido de direitos. O facto de ser um herdeiro potencial confere-lhe um pequeno capital de reserva e uma ligeira margem de liberdade quanto ao futuro. Se for demasiado fraco para trabalhar na lavoura, talvez se aceite gastar o seu dote para que ele emigre ou aprenda um ofício. Se preferir ficar solteiro na casa, protegê-lo-ão do sucessor definindo a sua «reserva». Esta situação é pois muito diferente da dos indivíduos numa família de camponeses pobres: nesta, o único capital do indivíduo é a sua força de trabalho; se não trabalhar, por motivo de deficiência ou de doença, será desprezado.
88Na idade adulta, parte-se para o trabalho a dois ou em grupo, come-se em grupo no campo e passa-se os serões de Inverno em torno do lume. A participação nesta comunidade de trabalho simboliza a pertença à casa e o acesso aos bens, presente e futuros, que ela distribui. Insiste-se no convívio do grupo doméstico, sobretudo em torno do trabalho, mas também se cria, no interior desse grupo, convívios preferenciais. Nas famílias camponesas ricas, o convívio pai-filho é muitas vezes mencionado:
«O meu pai era um homem que convivia muito com os filhos. Nunca comia uma coisa diferente de nós e comia connosco à mesma mesa. Eu lembro-me bem que quando eu era rapazito, nessa altura a minha mãe cozia (pão) e ele deitava pão na sopa, e eu gostava daquilo e andava sempre a fazer a mesma coisa. Quando ele comia alguma coisa especial, estava sempre preocupado que os filhos comessem qualquer coisita que ele tivesse. E quando nós éramos pequenos, ele levava-nos a uma festa, a uma feira. É a mesma coisa que eu tenho feito com os meus. O meu pai gostou sempre de gado. Antigamente, o que se usava era o gado «barroso». O meu pai gostou sempre de gado e gostava muito de ir aos prémios. Concorria aos prémios nas feiras e tinha esse gado bom. Quando eu via o meu pai a ter os prémios do gado, eu gostava daquilo, e gostava de andar com ele pelas feiras com o gado. Só eu e o meu pai é que íamos. Mas os meus irmãos mais pequenos já andavam atrás de nós, para ir também.» (Joaquim, lavrador de Lemenhe, nascido em 1950, pai nascido em 1914.)
89Entre os convívios femininos, evoca-se muitas vezes o de uma filha da casa com uma criada da mesma idade ou um pouco mais velha. Frequentemente, a rapariga e a criada partilham o quarto e o trabalho: «Sempre gostei do campo. Detestava a cozinha, mesmo ainda hoje não gosto. Antes de me casar, era a minha madrasta que tratava da cozinha. Ela dizia que o que nós fazíamos, a criada e eu, não prestava! Então nós íamos para fora para os campos. Fazíamos tudo as duas, dávamo-nos muito bem, ela tinha a mesma idade que eu. Íamos à erva, tratávamos do gado, fazíamos as «palhadas» (mistura de erva e de palha para o gado).» (Deolinda, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1908.) Em certos casos este convívio só dura até ao casamento da rapariga, mas outras vezes dura mais tempo, a criada ajudando a recém-casada a criar os primeiros filhos: «A gente, tínhamos uma criada, porque a minha mãe era assim, não era bem fidalga, não, mas não queria saber da vida de casa, a vida dela era olhar pelo eido. Gostava mais do campo e depois para me criar a mim e ao meu irmão tinha uma criada. Dormia mais eu, tinha-me tanto amor como uma mãe. E eu casei e aquela criada ainda existia ali, err casa dos meus pais, ficou sempre, só foi embora quando já não podia traba lhar. Depois quando eu estava casada, precisava de ir para o campo, não tinha tempo de estar em casa e ela ajudou-me a criar os filhos.» (Amélia, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1922.)
90Praticamente nunca se fala do convívio entre irmãos e irmãs. Durante a infância, formam equipas de trabalho ou de jogos (sobretudo entre irmãos ou entre irmãs). Evocam-se discussões frequentes por causa da repartição do trabalho, ou então devido às ordens do irmão mais velho que é preciso «respeitar». Efectivamente, desde muito cedo, as crianças da casa assumem estatu tos diferenciados que beneficiam as mais velhas e preparam o terreno da competição para a herança e o instalarem-se na vida. As irmãs mais velhas têm o direito de se casar antes das mais novas; os rapazes podem aspirar se não à sucessão, pelo menos a uma parte legítima em terra. Unidos por uma pertença comum, opostos nos seus interesses a longo prazo, as crianças são também divididas pelas alianças que os pais estabelecem com alguns deles Estas alianças acabam por moldar as expectativas dos filhos e por suscitai comportamentos diferenciados em relação ao interior e ao exterior da casa Mas esta fabricação lenta do lugar de cada um, se bem que ajude a preparar a escolha do sucessor, não evita as invejas e os ressentimentos.
91O trabalho e o convívio estão pois estreitamente ligados ao problema da sucessão, isto é, à maneira como as famílias camponesas abastadas procurarr assegurar a continuidade da casa no tempo. Nas famílias estudadas, a produ ção da sucessão é uma preocupação constante. A casa de lavoura auto-sufi ciente explorada pelo grupo doméstico deve ser capaz de se reproduzir no tempo. Não se trata de empreender o trabalho ou as acções por elas mesmas mas pensando no futuro da casa, que não se quer «partir» e «escangalhar» Esta vontade de manter a casa «junta» vai ser acompanhada por uma preo cupação de outra natureza: a preocupação dos pais em assegurar que se tomará conta deles na velhice.
92Entre os lavradores, é pois a ideia de «casa» — constituindo uma casa uma unidade auto-suficiente — que predomina na construção social da suces são. Como demonstram Durães11, Brettel12 e Costa13, não se trata de uma repre sentação recente: a «casa rural» enquanto unidade económica e social era o elemento-chave da herança entre os camponeses abastados que tinham um contrato a longo prazo no Minho nos séculos xvii e xix. Nos anos trinta e quarenta, é também a casa rural enquanto unidade que está em causa na sucessão: os edifícios, as terras produtivas, as bouças, os animais, os instrumentos, os móveis, mas também o estatuto da casa e o papel que ela desempenha na comunidade.
93A fim de produzirem uma sucessão para as suas casas, as famílias examinadas combinam diferentes factores: o «favorecer», isto é, a transmissão da maior parte do património imobiliário em favor de um descendente (nestas aldeias, prefere-se «segurar» um filho); o «saber», isto é, a transmissão de conhecimentos agrícolas e de capacidades de gestão para o herdeiro favorecido-e a produção de uma certa «amizade» filial.
94É difícil conseguir articular de modo equilibrado estes ingredientes da sucessão. Por exemplo, é necessário existir algum respeito e amizade filial para que o filho sucessor que «fica em casa» não maltrate os pais. Todavia, a insistência neste factor em detrimento dos factores «transmissão do património» e «saberes» pode levar, na prática, a casas destituídas de continuidade, «partidas» ou «escangalhadas». Assim, acontece que uma rapariga seja escolhida, pelas suas qualidades filiais, para ficar na casa em vez de um «filholavrador». Na casa do Fundo, os familiares reconhecem que, nos anos cinquenta, a casa abandonou a regra estratégica do grupo social dos lavradores abastados — assegurar a continuidade beneficiando um filho do sexo masculino —, para passar a privilegiar o factor entendimento pais-filhos:
«Era ele, o nosso filho mais velho, que devia ter ficado. Mas eu, eu não gostava da minha futura nora, não a queria cá em casa. E então, foi a minha filha que ficou em casa e acabou por se dividir tudo em partes iguais. Por um lado, foi pena; a casa estragou-se porque o meu genro, o que vive cá em casa, não é lavrador.» (D., lavradeira de Lemenhe, nascida em 1908, três filhos, «patroa» que mandava sozinha na casa porque o marido tinha problemas de saúde. «A mãe não quis que eu ficasse», diz o filho, nascido em 1927. Ele saiu de casa em 1957, e contraiu um empréstimo a fim de se tornar merceeiro e camponês parcial.)
95Em contrapartida, quando se insiste demasiado no factor transmissão do património para um sucessor competente de sexo masculino, pode acontecer descurar-se o factor «amizade filial». É o caso de José, um lavrador rico que doara uma parte das suas terras ao filho mais velho quando este se casou com uma filha única de lavradores abastados. A doação estipulava que o filho pagasse aos pais uma renda vitalícia e cuidasse deles. Entretanto, o herdeiro vivia em casa dos sogros e, apesar de morar muito perto, ligava pouco aos pais. Para obviar a esta falha, estes mandaram vir para junto de si uma das netas (filha da filha) e deixaram-lhe, em testamento, uma retribuição: um campo e um grosso fio de oiro.
96Por outras palavras, para assegurar uma boa sucessão é preciso encontrar, no mesmo filho, qualidades profissionais e qualidades filiais. É preciso que o herdeiro seja capaz de se prender aos pais por um lado, e de responder às exigências da casa-unidade de produção, por outro. Esta ligação dupla não é fácil de conseguir, mas o convívio privilegiado com um dos filhos, a maior parte das vezes o mais velho, contribui para criá-la. Melhor integrado na casa e nos problemas de gestão, mais recompensado e mais ao corrente dos problemas agrícolas da casa, esse filho será o mais cordato e participará deste modo na criação de uma distinção entre a sua própria personalidade — a do filho herdeiro, mais competente e amigo — e a dos seus irmãos.
97Antigamente, a norma ideal de transmissão do património favorecia a transmissão do património em vida dos pais. Eram os pais-chefes de família que «marcavam», ou decidiam, os termos da partilha. Contudo, apesar de preconizar que a partilha seja feita em vida dos pais, a norma ideal também defende a «precaução»: os que transmitem devem «tomar precauções» e acautelar-se a fim de «não deixar que o jugo caia sobre eles ao libertar os filhos». O instrumento por excelência deste modo de transmissão — a doação de uma boa parte do património a favor de um sucessor que permanecerá na casa — procura ter em conta estes dois aspectos. As cláusulas das escrituras de doação costumavam incluir os seguintes aspectos:
a) A obrigação de tratar dos pais, sãos como sãos, doentes como doentes. Em caso de necessidade, a obrigação de contratar uma criada para o seu serviço.
b) A obrigação de pagar uma renda vitalícia aos pais, em milho ou noutros produtos.
c) A obrigação de lhes fazer o funeral no uso e no costume da terra, conforme as posses da casa. Por vezes fixava-se o número de padres que deveriam estar presentes.
d) A obrigação de liquidar ou de acabar de pagar as «partes legítimas» e outros encargos (dívidas, por exemplo) da casa, e de conceder aos filhos solteiros o direito de estar a viver na casa. Por vezes «marcava-se» um quarto para um filho ou uma filha solteira. Em geral, definia-se também uma «reserva» para os doadores no interior da casa: um ou dois quartos e uma cozinha, por vezes um ou dois campos para cultivar.
98Na transmissão por doação em vida dos pais, o doador reservava-se sempre, por precaução, o usufruto da propriedade. Segundo os lavradores de idade entrevistados, o doador ficava deste modo «senhor do usufruto», o que lhe conferia o direito a uma renda vitalícia e também um certo poder de controlo sobre aquilo que o herdeiro fazia e pretendia fazer da propriedade. Além disso, a doação exigia que o filho assim «seguro» tomasse a seu cargo não só as obrigações internas para com os pais e os outros membros da família mas também certos deveres para com o exterior — dívidas e outras responsabilidades.
99Na prática, a transmissão efectua-se quase sempre segundo a norma da transmissão em vida. Contudo, o momento e os meios escolhidos para o fazer variam consideravelmente segundo as famílias, porque certos proprietários privilegiam mais do que outros o factor «precaução». Alguns, de facto, fazem coincidir a doação da quota-parte disponível com o casamento do herdeiro sucessor, relativamente cedo na vida dos pais. Pode estabelecer-se nessa altura as partes legítimas dos outros filhos e encarregar o herdeiro de se ocupar delas, ou manter a propriedade de uma parte do património para terminar a partilha mais tarde. É esta última solução que é muitas vezes utilizada, porque estabelece uma articulação entre os dois factores preconizados: segurar o herdeiro, por um lado; guardar uma parte da propriedade e do poder, por outro.
100Noutras casas, opta-se quer pela partilha no fim da vida do chefe de família, privilegiando nesse momento o herdeiro que irá permanecer na casa, quer pela transmissão através de testamento. Duas razões justificam a maior parte das vezes estas linhas de conduta: de um lado, o receio de abandonar demasiado cedo na vida as rédeas da casa (sobretudo se se tratar de um sobrinho e não de um filho); por outro lado, o problema da designação de um herdeiro sucessor quando ainda estão em casa muitos filhos menores para criar. Nos dois casos, procura-se adiar a designação do sucessor e as partilhas. Quando se tem muitos filhos e o mais velho não quer esperar para se tornar o sucessor da casa, pode escolher-se um herdeiro sucessor entre os filhos mais novos. No século xviii, a lei exigia que o primeiro filho fosse o sucessor do pai. O código civil de 1867 estabelece a igualdade entre os descendentes e autoriza a utilização da quota-parte disponível. Nos anos 1930 e 1940, o uso ainda privilegia, embora de forma menos rígida, o estatuto do mais velho. No entanto, se desejarem adiar a transmissão do património, os lavradores podem facilmente resolver de outro modo o estabelecimento do mais velho: podem, por exemplo, dotá-lo com a sua parte legítima de terra para que ele faça um bom casamento e saia de casa, adiando assim o problema da sucessão e das partilhas.
101Existe outro problema que também incita os pais ao acautelamento e ao adiamento da sucessão. É o facto de o medo de abandonar as rédeas da casa dizer respeito não apenas ao medo de perder o poder, mas também ao de perder o poder económico, de «ficar pobre» a partir do momento em que a sobrevivência depende da renda fornecida pelo sucessor designado. Nas casas de médios ou de pequenos proprietários de terras, este risco pode ser real. Em contrapartida, nas casas de lavradores grandes, é mais fácil uma pessoa poder ficar, ao entregar alguma terra ao sucessor, com uma parte da exploração para si, sem que isso prejudique o novo núcleo auto-suficiente. Dito de outro modo, quanto mais fraco for o grau de auto-suficiência da casa, tanto mais difícil é atingir um equilíbrio entre o factor «transmissão em vida dos pais» e o factor «acautelamento».
102A opção pela transmissão através de testamento não significa necessariamente que os pais privilegiem outros factores que não sejam o de «nomear, em vida, um sucessor» e a «precaução». Nas casas analisadas, esta estratégia significa quase sempre designar informalmente «como caseiro», em vida dos pais, um filho ou um sobrinho (ou ainda uma sobrinha) que se encontra na casa, e a elaborar um testamento a seu favor e com a sua concordância. Neste caso, os dois cônjuges-proprietários definem uma estratégia comum: ou legam sucessivamente por testamento a quota-parte disponível ao herdeiro escolhido, ou, em caso de morte prematura de um dos cônjuges, o outro cônjuge herda e mantém, enquanto proprietário principal, o controlo da casa e o poder de proceder à transmissão prevista14. Como se vê, a escolha da via testamentária para a transmissão do património corresponde apesar de tudo a uma maior insistência no factor precaução: mesmo que o filho (ou a filha) venha a ser o rendeiro dos pais proprietários, estes permanecem donos da casa. Podem além disso modificar o testamento se por acaso o sucessor designado informalmente desempenhar mal os seus deveres profissionais ou as suas obrigações para com os pais.
103Todavia, o facto de insistir de modo mais acentuado no factor precaução pode criar uma importante zona de imprevisibilidade, geradora de estratégias de influência, por parte dos filhos, relativamente à partilha pensada pelos pais. Podem ser feitas pressões sobre os pais, porque a decisão só será definitiva na altura da morte deles. Assim, o lavrador Mário conta que um dos seus primos, rendeiro dos pais e solteiro aos quarenta anos, viu-se praticamente «posto na rua», porque os pais decidiram, por ocasião das partilhas no fim da vida — e contrariamente ao que estava previsto — favorecer uma das filhas, e não aquele filho-lavrador que trabalhara sempre para a casa. Mário desaprova a atitude dos pais do primo. (Mário, lavrador de Lemenhe, nascido em 1933.)
104Devido a esta maior ou menor insistência na «precaução», os resultados da transmissão podem variar consideravelmente nas freguesias estudadas. Quando os pais efectuam uma «doação», procuram obter a concordância de todos os herdeiros a fim de que estes «cedam» o máximo do património ao sucessor. Agindo deste modo, defendem melhor uma transmissão mais ou menos intacta da auto-suficiência patrimonial, e tornam simultaneamente a decisão mais irreversível15. Em contrapartida, quando os pais efectuam as partilhas em fim de vida ou por testamento, há mais pressões a poderem ser exercidas ao longo do tempo: um filho que não está em casa mas que ajuda muito, pode fazer mudar as disposições iniciais das partilhas; um filho ou um genro podem não aceitar os termos das partilhas e protestar, etc. Isto pode acabar por beneficiar menos, ou nada, aquele que «ficou em casa».
105Produzir uma sucessão não é, portanto, um trabalho fácil. Se se olhar agora para alguns casos concretos, percebe-se melhor as dificuldades encontradas pelos chefes de família quando procuravam aliar a «transmissão em vida» para assegurar a continuidade da casa e a «precaução». Na casa Sanfins, por exemplo, os pais fizeram as partilhas por ocasião do casamento do sucessor, e isso apesar do desacordo que reinava entre os filhos. Tinham quatro filhos e queriam privilegiar Fernando, o mais velho, que namorava a filha de um dos mais ricos lavradores da freguesia. Um dos irmãos era carpinteiro e vivia numa freguesia vizinha. Os outros continuavam solteiros em casa e não concordavam com as partilhas que se esboçavam. Contudo, Fernando conseguiu «conduzir» os irmãos a um acordo: receberiam uma parte legítima em terra (um campo com menos de um hectare) e dinheiro. Mas, antes de se chegar a um acordo, o irmão carpinteiro e a mulher exigiram mais dinheiro. Eis o que diz o filho de Fernando a este respeito.: «No tempo das partilhas, a cunhada do meu pai quis-nos pôr o pé no rabo. Ela disse-lhe: ‘dá-nos tanto se quiseres ficar com metade da terra’. O meu pai disse-me que ela era má; não era daqui, era ali de V. Tinha um olhar vingativo. Na altura, andava aí um irmão dela também metido e dizia ele que os meus pais não iam ficar com metade da terra. Mas, felizmente, o meu pai não foi roubado. Conseguiu ficar com as terras. Depois, com o dote que veio da minha mãe, conseguiu dar as partes aos irmãos, mas esse dinheiro não chegou, e lembro-me que, quando eu era pequeno, ainda estávamos a dever algum dinheiro». (Armindo, camponês parcial de Gondifelos, nascido em 1941.) O herdeiro sucessor assumiu nesta família todos os encargos da casa: o pagamento das partes legítimas negociadas, as dívidas existentes, os pais a seu cargo e o pagamento de uma renda em géneros a estes. Mas, devido ao acordo que lhe fora extorquido, um dos irmãos solteiros de Fernando cortou relações com a casa de origem e, a fim de poder cultivar o único campo que herdou, pediu e passou a contar com a ajuda de uma casa de lavoura vizinha.
106Na família Rodrigues, foi uma sucessão mais tardia. Eram oito filhos. Por idade decrescente, vinham primeiro duas filhas, depois um rapaz, mais uma filha, outro rapaz, mais duas raparigas e um outro rapaz. Ao rapaz mais velho, o pai cedeu a parte legítima em terra quando ele se casou, dado que tinha ainda seis filhos solteiros — dos quais alguns eram menores — em casa. O segundo filho foi para o Brasil aos 17 anos. Em 1928, quando o filho mais novo (Miguel), que se tornara entretanto o braço direito do pai, tinha 17 anos, as partilhas ainda não tinham sido feitas. O pai fica entretanto doente e resolve por testamento a divisão da sua parte do património: considerando o Miguel como seu sucessor, cede-lhe a quota-parte disponível. A mãe procederá de igual modo alguns anos depois. Tendo poupado dinheiro durante muitos anos, e ajudado pelo dote que veio da mulher, Miguel vai poder em seguida pagar em dinheiro as partes legítimas dos seus irmãos e irmãs. O que quer dizer que o irmão emigrado e as irmãs (das quais duas viviam no Brasil) receberam dinheiro em vez de bens imóveis.
107Mais raramente, os chefes de família desistem das partilhas em vida ou procedem apenas a uma divisão parcial do património por doação ou testamento, deixando aos filhos o cuidado de negociar as partilhas do resto do património. Elvira, nascida em 1914, conta que os pais «não queriam fazer a partilha. Não, não resolviam nada. Ainda se falou em fazer a partilha, para depois não haver questões nem nada. Mas o pai não quis. Primeiro ainda disse: ‘Bem, posso fazer’. Mas depois disse que dava muito trabalho, que não estava para isso. E nós dissemos: ‘está bem, pai, mas pela mãe fazia-se...’. ‘Não’, diz ele assim, ‘dá muito trabalho, não vale a pena, vós depois arranjais isso como quiserdes’. Porque nós na altura éramos duas raparigas lá em casa, e o meu irmão tinha ido para padre. No fim, como fui eu quem ficou em casa, eles fizeram-me o arranjo da casa, fizeram-me o arranjo da casa e do eido antes de faltarem. O resto, quando eles faltaram, juntámo-nos todos os herdeiros, fomos dar uma volta aos campos e a uns terrenos de mato e resolvemos, não fomos para tribunal nem nada.» (Elvira, nascida em 1914, teve duas irmãs e um irmão que escolheu a carreira eclesiástica, o que deixou vago o lugar do filho-lavrador e, segundo Elvira, desanimou o pai.)
108Em suma, a insistência simultânea na transmissão do património em vida dos pais e no acautelamento, aos quais se vêm juntar diversos constrangimentos — dimensão e riqueza da casa, número de filhos, ausência ou presença de um filho lavrador susceptível de assumir a sucessão, pressões dos filhos ou das noras, mortes prematuras —, mais ou menos difíceis de gerir, não conduz a práticas únicas ou uniformes de transmissão. A transmissão beneficiada em vida dos pais prevalece, mas na prática pode assumir formas variadas:
a) doação a um sucessor (filho, filha, sobrinho ou sobrinha) de boa parte dos bens imóveis (quota-parte disponível ou mais) quando este se casa, e isso quer se faça ou não a partilha da totalidade dos bens;
b) doação a um sucessor, perto do fim da vida do chefe de família, da casa propriamente dita e do eido (é o que se chama fazer «o arranjo da casa e do eido») não acompanhada da divisão do resto dos bens;
c) divisão, mais para o fim da vida dos pais, de todos os bens da casa, favorecendo o sucessor com a quota-parte disponível. Os pais podem igualmente entregar a terra ou beneficiar dois filhos, quer concedendo a um deles a sucessão da casa e ao outro bens imóveis sem sucessão, quer, nas casas muito ricas com várias propriedades, dando a cada um dos filhos a quotaparte disponível de duas propriedades diferentes. Por vezes, a família efectua primeiro a divisão «por boca», isto é informalmente, só sendo efectuada legalmente a divisão alguns anos depois.
d) divisão estabelecida por testamento, em benefício do herdeiro sucessor, com a quota-parte disponível ou apenas com a casa e o eido. Neste caso, acontece também que esta divisão seja feita informalmente, antes da morte dos pais, vindo posteriormente o testamento a sancionar legalmente a situação de facto que foi «combinada» pelos membros do grupo familiar.
109É também importante olhar, neste contexto da sucessão mais ou menos favorecida, para o problema da procriação nas famílias de lavradores. Antigamente, nas casas rurais abastadas, a questão de se ter ou não filhos não se colocava. Quando as pessoas casavam, desejavam ter filhos para que estes ajudassem na casa, nela trabalhassem, sucedessem aos pais e tomassem conta destes mais tarde. A norma só intervinha a propósito da fertilidade: «ter os filhos que Deus ache por bem conceder-nos». Contudo, entre os lavradores ricos, esta norma não é interpretada à letra, no sentido de uma fertilidade natural. Admite-se a procriação de um número elevado de filhos, para trabalhar e dar continuidade à casa, mas tem-se em linha de conta os meios que permitem criar espaços entre os nascimentos. Por exemplo, as mulheres procuram amamentar durante dois anos a fim de aumentarem o intervalo entre os nascimentos. Mais raramente, algumas mulheres e alguns homens evocam a abstinência como estratégia para evitar os nascimentos. Às vezes, esse «evitar» está associado ao medo de morrer de parto, como uma mãe ou uma avó no passado. Outras vezes, está apenas associado a uma intenção explícita de controlar a natalidade. Para Vitória, lavradeira rica que descreve a sua família como mais informada do que outras porque havia homens «que tinham estudos», havia apesar de tudo poucas mulheres que ousassem contrariar abertamente os conselhos da igreja:
«Eu evitava os filhos, estava informada quando me casei. Mas a maior parte das minhas amigas não estavam. Tiveram sete, oito filhos e até mais. As mulheres daqui estavam muito ligadas à igreja — como por exemplo as minhas cunhadas. Com elas, nem sequer se podia tocar no assunto. ‘É preciso fazer como diz o senhor padre...’, era o que elas respondiam. Hoje a igreja admite muitas coisas, mas antigamente era diferente. Então, havia muitas mulheres assim, e havia algumas que pensavam de outra maneira. O meu marido também, ele também pensava de outra maneira, mas a família dele não. Eu cá, nessa altura acho que os homens daqui eram mais evoluídos que as mulheres, estavam mais informados.» (V., casada com o herdeiro privilegiado de uma grande casa de lavoura. V. teve três filhos.)
110São pois raros os casais que exercem em conjunto um certo controlo da natalidade. Em muitos, a mulher tenta prolongar o intervalo entre dois partos amamentando durante muito tempo; nalguns, são os dois a controlar os nascimentos de comum acordo; e noutros ainda, é o homem que controla sozinho a natalidade. É o caso de Alfredo (lavrador da Gondifelos, nascido em 1920) que «tinha cuidado» sem que a mulher notasse («sem ela dar por isso») e porque sabia que ela não estava de acordo. Tiveram cinco filhos, mas o último, nascido onze anos depois do quarto, não estava previsto por Alfredo.
111É preciso não esquecer que o modo de produção do casamento e dos namoros não favorece, no meio social dos lavradores, os casamentos em idades muito jovens, e que a natalidade se encontra por vezes reduzida por essa via. A formação de um casal pressupõe a sucessão imediata ou próxima à frente de uma casa agrícola. E como os jovens estão na dependência económica e social dos pais, o acesso ao casamento depende não só da homogamia social da escolha matrimonial, mas também do consentimento dos pais. Esta aprovação é fundada no interesse que o casamento representa para a «casa», o que põe em jogo as relações entre três dos principais factores de produção de um casamento: a homogamia social e profissional dos cônjuges, as necessidades imediatas da casa em termos de sucessão ou de força de trabalho, o consentimento das respectivas famílias. Necessita-se da mão-de-obra que pretende deixar a casa? Os pais já chegaram a uma fase da vida activa em que desejam transmitir as rédeas da casa admitindo um genro ou uma nora? É preciso aproveitar o aumento do património que essa aliança matrimonial permite? Por outras palavras, a escala de tempo familiar é mais importante do que as escalas de tempo individual e conjugal. Como diz um dos interlocutores privilegiados, «os namoros combinavam mas depois os pais é que manobravam os arranjos, faziam aquele controlo para não escangalhar e para firmar as casas». Acontece portanto que um «bom casamento» seja recusado porque não coincide com a programação familiar da sucessão. Foi o que se passou com Maria, a mais velha de duas irmãs, quando quis casar-se aos dezanove anos:
«Comecei a namorar para aí quando tinha quinze anos. Ainda era sem muito à vontade, mais pelas escondidas e tal. Tinha para aí dezassete ou mais quando a minha mãe começou a dar mais alta, até aí era só pelas fugidas: encontros pelos caminhos ou às vezes, a mãe estava dentro de casa a gente dava uma fugidinha, assim pela janela ou pela porta. Na altura, não se usava sair de casa. A gente quando ia namorar, era ao portão. Como agora, a gente a sair de casa para aqui e para ali, não. Não era só eu, era tudo assim. Os moços saíam, as raparigas estavam um bocadinho às portas de casa. A saída era para ir à igreja, a uma festa, e voltar para casa, de resto não. Tive muitos namoros. Depois tinha lá um, quando eu tinha dezanove anos, ainda era um bocado nova, mas tinha lá um na freguesia que já namorava para aí há dois anos, e nessa altura, se os pais dessem ordem, nessa maré eu casava. Gostava do rapaz e ele também gostava. Mas os pais acharam que eu ainda era nova e não quiseram, e não deixaram. Os pais dele eram lavradores também e ele era bom rapaz. Os meus pais é que não deixaram. Não deixaram, prontos, desistimos. Não se pensava mais porque nessa altura não havia solução. Se eu casasse com ele era nestas condições: ou ia para casa deles trabalhar ou vinha ele para nossa casa. Era duma das formas. Mas os meus pais não queriam nada. Diziam que ainda era cedo e tal. Em casa éramos só duas raparigas e eu era a mais velha, e ajudava muito os meus pais. E não queriam, pronto. Se fosse agora, por exemplo, casavam e ele empregava-se ou isto ou aquilo, estava tudo bem. Mas naquele tempo não havia essa solução. Desde que foi isso, é como eu digo, tinha dezanove anos, comecei a namorar com outros e ele foi à vida dele também, e depois casei aos trinta. Até aí namorei com quem calhava mas era sem interesse. Depois apareceu o meu marido e os meus pais também não gostavam do meu marido. Eu cheguei à conclusão que não gostavam de nenhum. E então resolvi casar. Ele tinha casa, não era homem de vendas, era lavrador para trabalhar a terra, tinha a casa para a gente se meter dentro para viver, tinha uns campos para trabalhar e eu achei que já tinha mais idade, não é? Já tinha trinta anos, e eles também disseram: ‘bem, agora como tens maioridade, faz como tu quiseres’. Eu já sabia o que queria. Por acaso correu tudo bem. Se corresse mal também não podia ir lá dizer nada porque sabia que ouvia logo duas à pressa.» (M., lavradeira de Lemenhe, sem filhos, nascida em 1923.)
112Há pois um outro factor — a inclinação mútua de dois jovens — que nunca se pode substituir aos factores de homogamia e de consentimento parental. Deve, no entanto, acompanhar o factor «interesse» do casamento e ser desenvolvido durante o «namoro», isto é, o período em «se fala para» o outro. Serve também, nalguns casos, para efectuar a triagem entre os candidatos elegíveis. Eis, contado por um sobrinho, como um riquíssimo lavrador de Lemenhe, que não tinha filhos, teve em conta esse factor ao negociar o casamento da sobrinha, futura herdeira da casa dele:
«O meu tio tinha lá em casa a sobrinha da mulher. Ambos queriam que essa sobrinha se casasse com um dos sobrinhos dele. Primeiro, queriam que fosse com o meu irmão António que também era afilhado do meu tio. O António foi viver lá para casa deles durante três anos, mas tinha mau génio, era nervoso e a Maria da Conceição, a sobrinha, não gostou dele. Depois, um dia, vim a saber, porque o nosso criadito falava com as jornaleiras lá de casa, vim a saber que M. da Conceição, a dita sobrinha, estava com o olho em mim. Depois um dia quando fomos à feira, o meu tio veio ter comigo. Eu já sabia ao que ele vinha. Ele foi comprar umas coisas e eu fui com ele. Depois, ele disse-me ‘olha, isto a gente excusa de demorar...’ e quis que combinássemos as coisas logo ali. Concordou então em dar-me metade da terra; não toda, claro, porque assim ele segurava-me melhor... e mais tarde dava-me o resto. Disse-lhe que depois lhe dava uma resposta. Mas a sobrinha da minha tia, e a família dela, achavam que ele devia dar-nos tudo e ela dizia-me: ‘não respondas nada antes que ele diga que te dá tudo, porque se não ele nunca te há-de dar o resto’. Aquilo começou a mexer comigo, a família dela sempre com aquela interesseirice. E eu, uma vez passei por ela nem a cumprimentei, e ela foi dizer à madrinha, e então o meu tio veio ter comigo: ‘Então não me dás resposta, eu não sou nenhum... para não ter resposta. Pior para ti. O teu primo Camilo também agrada à Maria da Conceição, e já falei com o Tio Vítor. É o Camilo que há-de vir para nossa casa’. O Camilo foi para lá, ele e a sobrinha gostaram um do outro, casaram-se e depois ficaram com tudo.» (José, lavrador de Lemenhe, nascido em 1915.)
113As festas religiosas e profanas, a feira, as idas e vindas da missa, oferecem à juventude um pretexto para se encontrar e criam um contingente inicial de pretendentes. Quando não são da mesma freguesia, os jovens começam «por se ver». Noutros casos, o rapaz informa-se sobre as raparigas em idade de casar numa freguesia perto da sua e procura vê-las. Deste modo, sabe-se muitas vezes de antemão quem é o outro. Quando não se sabe quem é, as pessoas informam-se para procurarem avaliar os seus haveres e qualidades de trabalho. Uma vez verificado o interesse social da namorada potencial, o rapaz põe-se a rondar a casa da rapariga para ver se ela «agrada», e participa nas mesmas actividades sociais que ela para tentar «falar para ela». Regra geral, a rapariga fala com diversos rapazes ao mesmo tempo, procurando manter à sua volta os dois ou três que lhe «interessam» mais. Como vamos ver no decorrer das duas histórias seguintes, o jogo está definido à partida. Rapazes e raparigas escolhem namoros susceptíveis de estabelecer uma casa auto-suficiente:
«Conhecemo-nos nas festas. Foi na Senhora da Saúde. Punhamo-nos assim todos a falar uns com os outros, para ver, para ir tirando das pessoas. A gente mentia muito, a gente nunca falava a verdade, era sempre mentira e depois ia tirando das pessoas, ia vendo o que eles tinham em mente, que a gente não se pode fiar! Dantes, no meu tempo era assim. Agora não sei como é. Eles agora é muito diferente de como era no meu tempo. No meu tempo a gente mentia para saber o que saía. Porque às vezes a gente encontrava rapazes que a gente não adivinhava quem eles eram e a gente não sabia se interessava e assim eles não ficavam a saber a ideia da gente, se a gente estava interessada se não. Depois tinha-se conhecimento daqui ou dali e a gente iase informando, se a gente se interessasse ia-se informando e depois ele ia lá no domingo a seguir e a gente já sabia mais ou menos. E então ele chegou lá no domingo a seguir, perguntou onde é que a gente morava e descobriu. Nesse dia, íamos a uma festa, e ele foi-nos encontrar, a mim e às minhas irmãs. Chegou lá, veio com nós embora e daí conhecemo-nos, começamos assim a falar e desde ali começamos a falar todos os domingos. Depois, começámos a tirar mais informações. O rapaz, esse passa por aqui ou por acolá, e a gente a pouco e pouco vai ficando a saber coisas sobre ele fazendo perguntas. A gente pergunta: ‘Vocemecê viu aquele rapaz além?’, e as pessoas dão-nos informações e pode-se saber o que é que ele faz. Às vezes, havia uma festa — a da Nossa Senhora do Carmo — por exemplo —, e ele dizia-nos para ir, mas a gente não ia, para ele não ficar a saber se eu estava interessada ou não. Não lhe dávamos a ver se estávamos ou não interessadas, dizia-se ‘está bem, eu vou’ e não íamos. E ele, a meio da tarde, ao ver que eu não chegava, dizia lá para ele ‘bom, ela não vem, então eu também não vou’. Ou então, se ele estava realmente interessado em mim, vinha ter comigo, mas se eu não interessava, ia sozinho à festa. Nós, as raparigas, éramos sempre assim, não mudávamos de atitude, mas eles sim. Nós pensávamos sempre: ‘bom, tu até me podes deixar ou eu posso deixar’; e nunca mostrávamos assim como agora. Agora se for preciso elas já vão no carro com eles, ou na motorizada, e eles ficam a saber logo se elas estão interessadas ou não e há assim mais abusos e no nosso tempo era mais raro. Não sei se era melhor ou pior, não sei. Mas nós, ao menos, tínhamos essa certeza. A certeza de que os rapazes não abusavam como agora, porque não sabiam a ideia da gente. Nunca se sabia a ideia do outro. Assim como falávamos para este falávamos para outros. Eu tinha uma irmã, assim como eu, e eu falava para este rapaz e dizia-lhe ‘se eu encontrar outro melhor tu arrumas-te, se não encontrar sujeito-me a este. Eu solteira é que não fico, agora com quem caso não sei’. E pronto, nas festas falava para muitos. Depois começava a falar mais para aquele. Não aparecia outro, a gente amarrava-se àquele, que remédio! Por fim, começava-se a ligar só àquele que começasse a interessar. Já saía menos, já não falava com outros e pronto. Às vezes a gente também já gostava mais daquele ou, às vezes, gostava mas não interessava porque eles não tinham condições, sobretudo o ter casa. Porque agora qualquer casal faz uma casa, mas no nosso tempo não era bem assim porque a gente era da lavoura e uma casa assim para viver ainda se faz mas de lavoura fica tão cara como... e se tivessem já umas condiçõezinhas, era o que a gente procurava e era o que eles tinham. E se já vivia, se já estava herdado! E a gente às vezes também ia escolher mais por aqui ou para ali por causa das condições.» (Margarida, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1933, casada aos 29 anos com Júlio, um lavrador que tinha nove anos mais do que ela. Tiveram três filhos.)
«A gente quando era novos, ia passear. Eu tinha uma bicicleta e ia passear por aqui e por acolá, e passei por casa dela, e vi-a a namorar lá com outro sujeito e tal. E depois, ela agradou-me e tal, e além disso ela era trabalhadeira e boa pessoa e tal. Depois, namorei também a filha de um lavrador grande e gostava até dela. Mas depois cozinhavam à parte lá em casa dela, eles comiam na mesa e os jornaleiros e os criados noutra mesa, davam uma comida mais andadeira aos criadas. E comecei a descoroçoar. Porque eu tinha um pouco de medo da vida. E um criado que eu tinha dizia-me: ‘a mãe é assim, e ela, ela vai sair à mãe, só há-de comer do que é bom’. E depois comecei a virar um bocado dela e comecei a virar mais para a outra. E depois deixei daquela, ainda durou uns tempitos. E ela, a minha mulher, estava com outro e ele o meu sogro lá insistia, não queria que ela viesse estar comigo, mas ela deixouo ficar, veio pelos seus pés e veio p’rá minha beira. E foi assim. E foi ganhando uma ideia, a gente começa a ter a ideia, gostar já da pessoa e conversava com ela. E ela dizia-me ‘ó, nós ganhamos para comer, nós trabalhamos e ganhamos para comer’. Ela também animava. Gostava de mim. Portanto depois, resolvemos e casámos e graças a deus, trabalhámos e vivemos sempre bem.» (José, lavrador de Lemenhe, nascido em 1914, casado aos 39 anos.)
114Mais raramente, os lavradores fazem uma aliança vantajosa, do ponto de vista patrimonial e sucessório, sem esperar pelo estabelecimento de um namoro entre os jovens que permitisse aliar, de maneira equilibrada, os factores homogamia, interesses da casa e pendor mútuo. As morgadas (filhas únicas) são quase sempre objecto destas estratégias de aliança, tal como os filhos e as filhas dos lavradores cujas terras são contíguas. Nestes casos, perguntar aos cônjuges como é que se conheceram não tem qualquer sentido. Conhecem-se desde sempre. Como diz Amélia: «Nós, conhecíamo-nos. O campo deles era à beira do nosso, moravam à beira do nosso. Nem chegámos a namorar. Foram os meus pais e os dele, foram eles que conversaram e quiseram-nos juntar e tudo se juntou e pronto. E nós concordámos. Ele por acaso não me aborrecia. Às vezes, quando a gente se põe a querer escolher, às vezes ainda é pior. E assim, ele morava à beira, já sabia o nosso ideal e nós o dele e pronto, foi assim.» (Amélia, camponesa abastada, casada em 1945 quando tinha 24 anos; teve nove filhos.)
***
115O modo de produção na família de lavradores não se reduz a algumas construções prioritárias cuja análise se acaba de fazer. Não seria difícil identificar outras produções — as dos cuidados a ter em caso de doença, a dos tempos livres, da comunicação gestual, da amizade, para mencionar apenas alguns exemplos — e ver reaparecer, inscritos na trama da vida familiar dos lavradores, os principais factores de produção: trabalhar ininterruptamente, ter vários filhos, poupar e ser previdente, segurar os herdeiros, fazer «arranjos» de pessoas e dos bens, saber fazer as coisas e dar ordens, castigar e vigiar, separar as pessoas consoante o estatuto delas, chegar à acordo. Isto produz a sobrevivência no dia a dia, leva a casamentos tardios entre filhos e filhas de lavradores, assegura a continuidade através da sucessão favorecida e do embrechar das gerações, e obriga a um trabalho intenso. Indirectamente, a precaução, o interesse e o medo geram também a desconfiança, a manha e a mentira. São todos estes fios condutores da produção social da família rural auto-suficiente que se procurou sublinhar. É neles que vão assentar as trocas sociais, isto é, o que se dá e em troca de quê, nas famílias dos lavradores.
Contribuir e retribuir nas famílias de lavradores: dar mais àqueles que tratam dos pais
116A fim de proceder à análise das trocas na família rural abastada, é importante começar por lembrar que elas se constroem socialmente em duas escalas de tempo diferentes: a da sobrevivência do grupo no dia a dia, por um lado; e a da sobrevivência do grupo ao longo das gerações, por outro. No passado, estes dois tempos familiares estavam sempre imbricados um no outro: era no «futuro» do grupo que se pensava no momento do casamento ou do nascimento dos filhos e da sua formação profissional, sacrificando deste modo as gerações mais jovens ao futuro da casa. Uma hierarquização deste tipo, que subordina a escala de tempo intrageracional à escala de tempo intergeracional, tem de centrar necessariamente as trocas familiares numa reciprocidade potencial a longo prazo.
117Duas outras condições estruturais da troca devem ser postas em relevo. Em primeiro lugar, dadas as finalidades da casa auto-suficiente, e apesar da produção de múltiplos bens, verifica-se que são determinados valores que marcam de forma sistemática as trocas efectuadas, isto é, aquilo que se dá (contribuição) e aquilo que se recebe em troca (retribuição): o trabalho e os saberes representam os principais contributos, a alimentação e o património as principais retribuições. A família rural abastada pode ser mais ou menos rica em termos deste valores, o que cria contextos iniciais por vezes ligeiramente diferenciados.
118O terceiro aspecto a salientar diz respeito à interpretação social daquilo a que se pode chamar a «dívida» nas famílias do passado. Antigamente, as famílias de lavradores cultivavam a ideia segundo a qual os filhos tinham uma dívida profunda para com os progenitores. Desde o nascimento, o filho era portador de uma dívida «original». Pelo simples facto de ter sido posto neste mundo, estava em dívida para com os pais. Educado e alimentado pelo grupo doméstico, é aliás considerado como sendo-lhes duplamente devedor. Deve pois pagar a sua dívida cuidando dos pais até ao fim da vida e trabalhando duramente para eles, desde a mais tenra infância e pelo menos até à idade adulta (21 anos). Se, nessa altura, o filho se subtrair ao grupo doméstico casando-se, os pais sentem-se menos obrigados, ou em dívida, em relação a ele, dado que a partir daí «ele trabalha para si» e não para os pais e para a casa. Fica no entanto em aberto a obrigação de cuidar dos pais e, também, a questão da herança. Certas famílias procuram liquidar definitivamente a dívida patrimonial da casa para com todos os filhos legítimos que se casam. Se o filho quiser e se a casa estiver em condições de fazê-lo, o filho pode ver serlhe oferecido um «dote» (ou a promessa de um dote), isto é, uma oferta patrimonial em bens móveis ou imóveis que corresponde mais ou menos ao valor da sua parte legítima.
119Pelo contrário, se o filho continuar a trabalhar para a casa depois dessa idade, então é esta que a pouco e pouco tem uma dívida para com ele. De acordo com essa dívida, qualquer filho adulto solteiro que trabalhe para a casa tem, no mínimo, direito a uma «reserva» na casa (um quarto) e a ser sustentado na velhice.
120Em geral, o herdeiro privilegiado trabalha durante anos a fio para a casa, e isto sem retribuição. Todavia, quando as partilhas tardam demasiado e que esse herdeiro, já adulto, assume a pouco e pouco as funções de lavrador profissional da casa, os pais sentem-se na obrigação de lhe dar ou ceder alguma terra. Em contrapartida, se a casa decidir instituir este herdeiro como sucessor privilegiado através de uma doação patrimonial, o herdeiro deve então chamar a si todos os encargos da casa: as dívidas para com os filhos solteiros que nela residem ainda e a dívida «original» da totalidade dos filhos para com os progenitores, aquela que exige que os pais sejam respeitados e sustentados até à morte.
121Uma dívida filial de tal amplitude é pesadíssima em termos de obrigações. Aquele que, por dificuldade ou por incapacidade física, contribui menos para o trabalho da casa, arrisca-se a ser desprezado ou mesmo maltratado. Por isso, os jovens são incentivados, em caso de doença, a agir como se nada fosse. E preciso «espalhar» a doença como se «espalha» o sono.
122Apesar disso, entre os lavradores, aquele que não tem qualquer vocação para o trabalho agrícola pode eventualmente escapar à dívida aprendendo outro ofício para deixar de ser um peso. Para isso, é preciso em primeiro lugar que os pais aceitem «gastar o dote» dele mais cedo do que habitualmente, para o mandarem estudar ou o colocarem como aprendiz. Foi assim que a família Sanfins, em que uma das filhas (Adelina) era demasiado débil para os trabalhos agrícolas, decidiu gastar o dote dessa filha a fim de ela poder frequentar a escola e vir a ser professora primária. O irmão dela, lavrador, faz o seguinte comentário a propósito disto: «Em nossa casa, começámos todos a trabalhar no campo desde os oito ou nove anos. A única que tinha dificuldades, era a minha irmã Adelina, a que veio a ser professora primária, era a única que tinha problemas. Nunca me hei-de esquecer: era preciso 20 escudos para que ela pudesse ir e vir da Póvoa, e decidiu-se então gastar o dote dela. Foi a única a abandonar o campo.» (Manuel, lavrador de Gondifelos.)
123Aparentemente voluntários, as contribuições e as retribuições estão submetidas a uma lógica rígida de endividamento. A reciprocidade não é deixada ao acaso. Claro que pode ser mais ou menos adiada no tempo e o seu conteúdo nem sempre é o mesmo: enquanto um determinado filho contribui com o seu trabalho e recebe terras, outro não trabalha no campo mas recebe o seu dote a fim de poder estudar. Além disso, a reciprocidade é muitas vezes indirecta: o herdeiro privilegiado assume a dívida dos irmãos e irmãs para com os pais. Mas os débitos e os créditos são cuidadosamente registados e invocados na devida altura, como demonstra o testemunho (que acabámos de transcrever) deste filho mais velho que, quarenta anos depois, ainda se lembra da quantia que a mãe gastava para que a filha viesse a ser professora primária.
124Nesta perspectiva, não é a ausência de cálculo que caracteriza a ideologia da reciprocidade, mas a ausência de uma equivalência universal e imediata. São constantemente postos na balança os contributos e as retribuições, tomando-se como referência a amplitude da dívida e o intervalo de tempo entre as gerações. E como em qualquer outro tipo de troca, apontam-se, no decurso desse tempo, os que estão a perder e os que estão a ganhar. Os que estão a perder são aqueles que, tendo trabalhado durante largos anos para a casa ou tendo tratado de um pai ou de uma mãe doente, não receberam mais do que a sua parte como retribuição:
«A minha mulher e eu, tivemos que esperar muitos anos para nos casarmos, porque a minha sogra tinha uma doença grave. Durante dez anos, a minha mulher não soube o que era uma cama, dormia no chão, ao lado da cama da mãe. Então, uma pessoa espera uma compensação qualquer, não é assim? Pois, não senhora, a minha mulher recebeu um dote igual ao das outras filhas.» (Serafim, filho de lavradores de Lemenhe, nascido em 1927 e casado com uma filha de lavradores de Lemenhe.)
125Um outro testemunho, a respeito de um herdeiro privilegiado que não cumpriu as suas obrigações a longo prazo, evidencia a mesma ideia de uma retribuição justa ser aquela que responde a dada contribuição:
«Ao Joaquim, os pais deram-lhe o terço quando ele se casou, e ficou com todos os encargos. Mas no fim, não os cumpriu, porque foi viver para casa dos sogros. Foi uma neta dos pais que tomou conta deles e eles recompensaramna pelo trabalho dela. O Joaquim não gostou disso. Mas é muito fácil, essa coisa de se ter todos os benefícios e de não assumir os encargos.» (Armindo, residente em Gondifelos e irmão da neta em questão, nascido em 1941.)
126As trocas quotidianas só podem ser compreendidas à luz desta reciprocidade adiada, por vezes indirecta, e que corresponde a uma lógica de endividamento segundo a qual mais novos e mais velhos trocam serviços e patrimónios. A distribuição intergeracional do património constitui um pano de fundo que guia os gestos quotidianos e as intenções dos membros da família. Dia após dia, em retribuição do seu trabalho, todos os trabalhadores — quer se trate de um criado ou de um filho — são «alimentados e vestidos». Mas os filhos sabem que «mais tarde», haverá outras retribuições. Esse «mais tarde» confere um outra significado às actividades do momento:
«Eu trabalhei até aos 30 anos com o meu pai, sem nunca receber um tostão de nada para mim, sem que ele alguma vez me dissesse,'pega isto pelo teu trabalho'. Nada. Eu trabalhava ali e então tinha um gosto pelo trabalho, uma paixão por fazer as coisas como se fosse propriamente para mim. Era para o meu pai, não é, mas eu sabia que mais tarde... A minha ideia era que..., e estava tão habituada ao trabalho.» (M., camponesa abastada de Lemenhe, nascida em 1923.)
127Quanto aos criados, não lhes é dada muita confiança e o seu direito à alimentação cessa assim que deixam de trabalhar. Muitas vezes, nem sequer recebem tratamento quando estão doentes:
«Uma vez, era em Maio, havia muito que fazer, e o nosso criadito — que tinha para aí uns 11 anos — adoeceu. Então, mandámos chamar a mãe dele e dissemos-lhe:'Olhe, o pequeno adoeceu, está doente e não pode trabalhar, ele tem de ir para casa. Agora faz muita falta, como é que vai ser?' Diz ela: 'Tenho lá outro que é mais novo mas é muito arrebitadinho, é miudinho mas é muito arrebitado. Ele pode vir enquanto o outro estiver doente'.» (Inês, camponesa abastada de Lemenhe, nascida em 1915.)
128Quando chegam como criadas e criados, muito novos, a casa dos lavradores, estas crianças vêm «ganhar o comer e a roupinha que a gente lhe quisesse dar». Eis um exemplo das recordações destes lavradores acerca da chegada dessas crianças:
«Ele era pobre. O certo é que veio em Abril, e lembro-me de que lhe demos uns soquinhos e demos uma roupinha para ele poder ir à missa, que ele nem roupinha tinha. E pelo Natal, o meu falecido pai pegou e mandou fazer um fatinho de roupa nova, um fato emparelhado — calçinha, casaco, colete. Tudo como antigamente, tudo emparelhado. E eu peguei e disse assim: ‘Então agora, vou-te dar uns sapatos.’ E o miúdo estava todo contente. Nunca se esqueceu daquilo. Quando chegou o dia de Natal, pegou o cesto das consoadas às costas, que a gente lhe deu, e os sapatos e o fato de roupa muito direitinho e lá foi. Depois, a mãe dele contou-nos que quando o moço chegou a casa, quase não podia pôr os pés no chão! A gente ria. Sapatos novos, tudo emparelhado. Depois mais tarde começou a ganhar, conforme ele ia merecendo, ia-se-lhe dando, ou em roupas, ou em dinheiro. Coitado, ele lá esteve em casa, não achava que estava mal, que ele demorou, ainda demorou em nossa casa muito tempo.» (M., camponesa abastada, nascida em 1923.)
129Finalmente, entre cônjuges, é mais difícil avaliar a amplitude da dívida conjugal. Alonga duração da troca permite uma reciprocidade difusa e adiada que põe a tónica na troca de patrimónios, de serviços e de conhecimentos diferentes e complementares ao longo de todo o casamento. Idealmente, marido e mulher devem ajudar-se mutuamente, e trabalhar lado a lado na agricultura e nos seus domínios profissionais respectivos a fim de fazerem avançar a casa, que é dirigida por eles e constituída pelos seus patrimónios respectivos. A dívida conjugal está ancorada na junção de dois patrimónios quer assimétricos, quer equivalentes do ponto de vista simbólico e material, mas muitas vezes diferentes no que respeita ao seu conteúdo. Os homens herdam com mais frequência a casa e as terras de lavradio, as mulheres herdam sobretudo bouças e bens móveis. O alvo do casamento, contudo, reside na aliança estabelecida entre duas casas rurais abastadas e é esta troca que permite muitas vezes a um herdeiro sucessor justificar o interesse que existe em favorecê-lo. É o caso de Fernando e de Maria. Ela é a filha mais velha de um lavrador rico que deu a quota-parte disponível ao filho, mas que quis dotar a filha com uma soma considerável de dinheiro e com algumas bouças. Fernando é o filho mais velho de um lavrador médio e, para manter a dimensão da exploração, quer ficar com a quota-parte disponível e pagar em dinheiro e alguma terra as partes legítimas às quais têm direito os irmãos. Por seu lado, a família de Maria exige, também ela, que Fernando fique «seguro» com a quota-parte disponível. Tudo acabou por se «arranjar». Maria vai viver para a casa do marido, e é o dote que ela leva consigo que irá permitir o pagamento da maior parte do dinheiro devido aos irmãos do Fernando, garantindo portanto a integridade do património familiar que o casal vai explorar.
130Há casamentos nos quais os patrimónios dos cônjuges são mais ou menos equivalentes, e há também aqueles onde o património de um dos cônjuges é inferior ao do outro. No primeiro caso, encontramos casos de mulheres que são herdeiras únicas, e cujos pais negoceiam o casamento com um sucessor privilegiado. Isso permite a junção de duas casas. Mais raramente, encontramos igualmente neste caso irmãs que herdaram a mesma superfície de lavradio que o irmão. Nas freguesias estudadas, é o caso de Amélia, cujo irmão, parcialmente incapacitado fisicamente, não foi favorecido. Ao dotar Amélia com terras de lavradio, os pais permitiram à filha e ao marido (filho de lavradores abastados que herdara uma parte legítima de terra) «fazer» uma casa. Para ilustrar o segundo caso, consideremos o casamento de José e de Deolinda. Esta é a filha mais nova, futura sucessora ainda solteira, de um lavrador que teve duas filhas. O pai combina o casamento dela com um dos filhos, «não-privilegiado», de um riquíssimo lavrador de uma freguesia próxima. Os pais do marido garantiram-lhe um dote razoável em dinheiro, com a promessa de que herdaria um campo posteriormente. Mas o herdeiro privilegiado do lavrador rico não manteve a promessa do pai, e José encontra-se em má posição diante dos sogros. E como além disso, segundo várias testemunhas, ele se revela pouco dinâmico em termos profissionais, é a mulher quem, a pouco e pouco, se vai colocando à frente da casa. Do ponto de vista dos vizinhos, a autoridade de Deolinda justifica-se pela «moleza» do marido. Por outras palavras, a incompetência de um dos cônjuges no plano dos esforços e dos patrimónios autoriza, aos olhos da comunidade, o outro cônjuge a tomar o poder a fim de assegurar o funcionamento da casa, mesmo se isso conduzir a uma perda de reciprocidade conjugal.
131Se bem que os pesos respectivos (em prestígio e em bens) das casas de origem que trocam entre si cônjuges não seja o único factor determinante da dívida conjugal, parece-nos importante chamar a atenção para o poder que é atribuído às camponesas abastadas enquanto herdeiras potenciais, através das quais circula uma parte dos bens patrimoniais. Estes bens são bem menos valorizados, é verdade, do que a herança em casas e em terras de lavradio dos cônjuges. Mas são fundamentais quando o objectivo consiste em assegurar a continuidade de uma casa rural. Este reconhecimento da mulher enquanto herdeira e «patroa» é tanto mais importante quanto ele se sobrepõe, de modo difuso, ao poder simbólico masculino, reconhecido como dominante e apontando para uma dívida feminina profunda e vasta. Tudo se passa como se, apesar de uma troca mútua intensa entre cônjuges, a dívida feminina fosse sempre maior, e quase tão irremediável como a dos filhos para com os progenitores. Esta dívida feminina justifica-se através do estatuto superior do marido, o qual se encontra legitimado pela sociedade inteira.
132As normas ideais de reciprocidade conjugal que dão conta desta sobreposição de universos reflectem uma certa dualidade. Assim, considera-se, por exemplo, que os cônjuges devem um ao outro estima, ajuda, confiança, serviços, fidelidade, mas que a mulher deve tudo isto mais do que o marido. A julgar pelos testemunhos dos casais de idade que entrevistámos, a qualidade das relações conjugais depende igualmente do peso dado a esta dívida feminina mais vasta. É por isso que certos casais a ignoram ao mesmo tempo que mantêm, para com o exterior, a imagem de um poder masculino dominante, enquanto outros se servem dela para destruir a reciprocidade quase simétrica preconizada pela norma, que assenta na conjugação dos esforços e dos patrimónios.
133É neste contexto de planos sobrepostos que podemos situar as descrições das pessoas de idade no que se refere às relações conjugais de antigamente. A este propósito, os testemunhos fazem sempre sobressair a variedade dos comportamentos conjugais:
«Havia de tudo, sabe. Havia mulheres que eram verdadeiras escravas, não esposas... Olhe, a S., o marido nunca confiava nela. Se ela ia à feira vender qualquer coisa, ele ia atrás dela para ficar com o dinheiro. Ela nem sequer tinha o direito de ir comprar um quilo de arroz para o almoço de domingo. E além disso tratava-a mal, até dava pena ver aquilo, é verdade. Mas também havia casais onde ambos se respeitavam e se ajudavam e concordavam um com o outro, cada um no seu domínio. E depois, havia casais onde o homem não tinha capacidade de cabeça e era preciso que fosse a mulher a mandar. Repare, se calhar a S., também não tinha cabeça, não sei, mas não era razão para a tratar mal, não é?» (Joaquina, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1918.)
134Apesar do que dizem certos autores16, não pensamos que as interlocutoras que nos falam hoje em dia das esposas «escravas» de antigamente, apresentem inconscientemente as suas recordações de modo enviesado, por estarem influenciadas actualmente pela ideologia feminista que os meios de informação actuais veiculam. No decurso dos múltiplos testemunhos, a realidade da reciprocidade conjugal foi descrita de maneira matizada: se bem que as testemunhas sublinhem a importância respectiva do «patrão» e da «patroa», da sua associação na exploração, e do respeito mútuo que devem um ao outro, não se esquecem de mostrar que a sociedade de outrora era dominada por um poder masculino legítimo e valorizado, e que este podia destruir a cooperação e a confiança mútua consideradas indispensáveis para levar a bom termo, a dois, uma «casa de lavoura».
Apropriação e repartição dos bens
135Quando se quer compreender o modo de troca das famílias de lavradores, as apropriações e as repartições estabelecidas ao nível do espaço doméstico oferecem uma primeira grelha de leitura. Que espaço é esse?
136As casas de lavradores abastados construídas na primeira metade deste século (ver Figura 4) têm, no primeiro andar, pelo menos três ou quatro quartos. São uma espécie de alcovas (muitas vezes sem janelas) encastradas no meio ou ao lado dos espaços mais amplos do lar, isto é, da cozinha, da sala ou da varanda. Todos os membros da «casa» circulam pela casa, mas estabelecese nela algumas divisões. No que se refere às alcovas, poder-se-ia esperar uma repartição que privilegiasse a comparação entre dois estatutos: o de familiar e o de criado. Mas não é essa a categorização escolhida; faz-se intervir a identidade dos actores de outra maneira. Em primeiro lugar, os proprietários reservam para si algumas alcovas. Há a do casal proprietário (ou as dos dois casais proprietários se os pais ainda forem vivos) e, eventualmente, a de um irmão ou de uma irmã solteira que trabalha para a casa e tem o direito de ter um quarto. Os outros membros da família estão divididos em função do sexo: os rapazes — filhos da família e jovens criados — dormem juntos, e o mesmo acontece com as raparigas. Eis a repartição dos quartos na casa do Fundo: «As crianças, mais ou menos até aos três anos, ficavam no nosso quarto. Depois, iam para o outro quarto. Diziam que não era bom que ficassem ao pé dos pais durante mais tempo. A minha filha e a criada dormiam num quarto pequeno, e os meus dois filhos — e às vezes um moço que tratava do gado — noutro. E os dois criados, dormiam do lado do meu pai, num quartinho que os meus pais tinham para os criados.» (Deolinda, nascida em 1908, casada em 1927.) Atribui-se por vezes aos criados (homens) mais velhos um quarto individual, quer na casa, quer numa arrecadação. Muitas vezes, o quarto da tia solteira ou de uma avó ou de um avô viúvo acolhe uma criança se o habitante do quarto a aceitar ou assim o desejar.
137No trabalho, ao contrário do dormir, a apropriação é mais comunitária (toda a gente trabalha para a casa) e as repartições seguem o princípio do esforço: todos participam no trabalho consoante as suas capacidades, e as linhas de demarcação da identidade social (estatuto, sexo e idade) ponderam e especificam o contributo de cada um.
138As tarefas do lar — preparar e conservar os produtos alimentares, cozinhar as refeições, fazer o pão, lavar, remendar e confeccionar roupa, vigiar as crianças, ir buscar água, acender e vigiar o lume, etc. — estão sob a responsabilidade da «patroa», mas esta delega-as, prioritariamente, às mulheres mais novas e/ou de estatuto inferior (criadas). Nas casas de lavoura ricas, essas são geralmente as tarefas das criadas, das filhas mais novas da casa e até das mulheres de idade se estas já não trabalharem no campo. A «patroa» orienta e controla a execução destas tarefas mas, quanto a ela, toma o caminho dos campos. As «patroas» declaram preferir o trabalho do campo ao trabalho doméstico (o «lá fora» ao «cá dentro»), e fazem notar que, mesmo quando os filhos eram pequenos, raramente se encontravam «presas em casa». Em determinados dias, ficam em casa de manhã e trabalham no campo durante a tarde, noutros ficam o dia todo «fora». Na realidade, as camponesas abastadas têm liberdade suficiente para organizarem elas próprias o seu horário de trabalho. As suas responsabilidades tanto as chamam para «fora» como para «dentro», mas é o primeiro destes universos de trabalho que é mais valorizado. E as patroas podem consagrar-se a ele, na medida em que os membros mais velhos da família (sogro, sogra, tias solteiras, etc.) e as criadas tratam do lar sob as suas ordens, velam pelo lume, pela sopa e pelas crianças de colo. Em contrapartida, são as patroas que quase sempre se ocupam pessoalmente da produção de certos bens de prestígio, caso do pão cozido em casa.
139Nos campos, a patroa ajuda o marido mas também tem responsabilidades próprias que ultrapassam o cultivo da horta. Por exemplo, no Verão, na época de sachar o milho (trabalho essencialmente feminino outrora), ela vigia o grupo de mulheres e trabalha a seu lado. A propósito disto, um lavrador grande contou-nos, com orgulho, como a falecida esposa, já gravemente doente, continuou a trabalhar ao lado das jornaleiras durante o último Verão da sua vida. Um dia em que ela regressara a casa, a meio da tarde, para dar ordens relativamente à merenda, o marido, ao vê-la muito fraca, tentou convencê-la a não regressar mais ao campo. Mas ela foi na mesma, dizendo que as jornaleiras precisavam dela.
140Evidentemente, as tarefas de gestão e de direcção são da exclusiva responsabilidade do casal «proprietário». Mas todos os membros da «casa» participam no trabalho agrícola, consoante o seu estatuto e as necessidades de força de trabalho. Na época das sementeiras, «íamos todos às cinco da manhã, mesmo os mais pequenos», conta Maria. «As crianças chamavam o gado, alguns atrás, outros à frente, cada um tinha a sua tarefa a fazer. Tínhamos campos que levavam oito dias a lavrar, com duas juntas de bois. Preparar a terra, era uma trabalheira.» (Maria, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1923.)
141No dia a dia, as tarefas são repartidas também consoante o estatuto, o sexo e a idade. No Inverno, as mulheres vão mais apanhar erva, as crianças guardar o gado, os homens podar a vinha. Em caso de necessidade, as pessoas entreajudam-se nos diversos tipos de trabalho: na poda, as mulheres ajudam a atar, as crianças apanham a lenha do chão; na apanha da erva, os homens levam o carro para trazerem a erva dos campos.
142Quando se pergunta aos lavradores e às lavradeiras de mais idade para descrever o trabalho do homem e da mulher na casa de lavoura antigamente, eles não estabelecem diferenças muito marcadas: «Era igual, os dois trabalhavam, ajudavam os dois, era um trabalho igual.» Se insistimos, respondemnos: «Sim, as mulheres eram mais isso — sachar, ir à erva —, mas não desprezavam nenhum trabalho». Com efeito, certas tarefas muito pesadas, como roçar mato ou carregar o estrume, são realizadas pelos dois sexos. A poda, em compensação, está reservada aos homens da casa. Há depois processos de trabalho que estão mais reservados aos homens — a responsabilidade de lavrar, de regar, de fabricar o vinho — e outras mais reservadas às mulheres — tratar do eido, ir à erva com a foice, o sachar do milho e das batatas. Mas não se trata de uma divisão estanque:
«O trabalho era o mesmo para todos, era igual. Íamos todos para os campos, o pai é que mandava e dizia como é que se devia fazer as coisas. Trabalhava e nós trabalhávamos ao lado dele. Íamos sachar milho, a ele tocavalhe o sachador e a nós era a sachola. Ele depois acabava com o sachador e pegava na sachola também. Havia homens que não gostavam muito desse trabalho, deixavam isso mais para as mulheres. Em nossa casa era igual, a mesma coisa. Cortar mato para a bouça, vai-se cortar mato com a sachola ou com a enxada, lá íamos todos. A mãe ajeitava mais em casa de manhã, de tarde também ia para o campo. Quando ela ficava em casa, íamos nós, eu e as minhas irmãs e o meu irmão e uma jornaleirita. O pai levava uma enxada e nós outra enxada cada um, carregávamos um bocado de mato, lá vínhamos por aí abaixo. Era assim. O trabalho era igual para todos. Só nas podas, nas podas podavam eles, as mulheres não podavam. Nós atávamos as videiritas, íamos com uma escada, eles iam à frente e podavam e nós atávamos com uns atilhos. Podar não se usava nessa maré, embora houvesse jornaleiras que podassem. Agora mais tarde já se podava mas no tempo que eu era cachopa nova não se usava podar. Agora mais tarde começou a vir a moda, as mulheres também podarem. As mulheres começaram a botar a mão a ajudar, e assim já é mais fácil fazer a poda toda.» (Elvira, lavradeira de Lemenhe, casa de lavoura pequena, nascida em 1914.)
143O modo de repartição do trabalho agrícola parte pois de um princípio de esforço — toda a gente faz esforços, independentemente do seu contributo material concreto — e faz intervir as diferenças de estatuto e de sexo, o que cria tarefas diferenciadas e complementares. No entanto, esta segregação não é muito rígida. A necessidade de realizar as tarefas agrícolas urgentes pode sobrepor-se à identidade social dos intervenientes, o que cria uma divisão flexível em que muitas tarefas são permutáveis entre os sexos. A exclusividade limita-se ao podar da vinha por parte dos homens, às tarefas domésticas no que se refere às mulheres. Aí não há qualquer possibilidade de troca. As mulheres não aprendem a podar as videiras e o lugar dos homens nunca é junto dos tachos. Nestes domínios, a inversão dos papéis só está presente no proletariado rural. É nas famílias de jornaleiros que nos falaram de um homem solteiro que vivia com a irmã e que sabia cozinhar e cozer o pão, e de uma jornaleira que podava e cuja identidade era considerada como «masculina» pela comunidade de Lemenhe.
144No que se refere às trocas de alimentos — um dos principais bens raros — a apropriação ideal defendida pelos lavradores é um modo de apropriação comunitário que também tenha em conta uma comparação estatutária:
«É preciso comer o mesmo. Não acho bem os comeres separados.» (José, lavrador, nascido em 1915.) «Em casa dos meus avós, os criados tinham uma mesa separada, mas na casa do meu pai e na da minha sogra, só havia uma mesa, era o mesmo comer para todos. Acho que é melhor assim. Mas na realidade, havia apesar disso uma separaçãozita: os patrões sentavam-se numa ponta da mesa e as crianças e os criados na outra.» (Justino, lavrador de Gondifelos, nascido em 1920.)
145Considera-se que quem trabalha e dorme sob o mesmo tecto deve comer do mesmo tacho, independentemente dos seus contributos e do seu estatuto. Por isso, na maior parte das casas abastadas de outrora que tinham apenas um casal, encontramos uma única mesa, e a comida é repartida pelos donos da casa segundo o princípio das necessidades. Procura-se satisfazer as necessidades de todos — ao mesmo tempo que estas são ponderadas em função dos estatutos:
«Em nossa casa, a pessoa que estivesse na cozinha punha as batatas ou o arroz, o que havia para comer, a carne de porco se houvesse, e o pai é que fazia as rações. Quando havia carne, o meu pai é que cortava a carne e dava um bocado a cada um. Para ele tirava um bocadinho mais. Com as sardinhas, a gente já sabia antes qual era a nossa ração. Já se comprava sempre uma ou duas para cada um de nós e duas para os meus pais, a gente punha na mesa e cada um servia-se. Na nossa casa era assim. Mas havia muitas casas em que era diferente. Eu às vezes ouvia o meu pai e a minha mãe a contarem, e diziam eles que não tinha jeito. Então eles comiam melhor e os filhos pior. A gente o que tiver, comemos todos igual, tanto filhos como pais, e não queriam.» (Maria Albertina, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1944.)
146Faz-se notar que o estatuto de patrões lhes vale sempre uma dose melhorada. Com efeito, a superioridade de estatuto que dá direito a uma dose melhorada assenta em diversos critérios: o facto de se ser patrão ou patroa, o sexo (masculino), a área de trabalho (fora ou dentro). Altino, moleiro e pequeno lavrador que ajudava às vezes um grande lavrador vizinho na altura da poda das vinhas, conta que, à hora da merenda, este só repartia a carne de porco fumada pelos homens: «A chouriça, é para os homens, dizia». Noutra altura, ao jantar, esse mesmo grande lavrador quase não deu carne à filha, se bem que tivesse cortado um grande bocado para si próprio e para Altino. «Ela tinha trabalhado fora, como nós, e então eu não sabia o que havia de fazer e disse: ‘Senhor M., eu não quero carne’.» (Altino, pequeno lavrador de Gondifelos, nascido em 1928.)
147Certas casas abastadas infringem a norma comunitária e estabelecem diferenças na comida. Toda a gente tem direito a comer, mas o estatuto sobrepõese às necessidades e define um modo de apropriação segregativo. Para os donos da casa (e eventualmente para o filho sucessor ou outros filhos adultos), prepara-se uma refeição «melhorada»; para as crianças e os criados prepara-se outra, mais modesta («mais andadeira»). Na família C., casa muito rica de Gondifelos, a mesa dos donos da casa está na varanda, enquanto os outros membros da casa comem na cozinha. Estes casos indicam que, em certas condições estruturais de troca (casas muito abastadas), a tensão entre a predominância do estatuto dirigente e a apropriação comunitária dos bens vitais pode ser resolvida a favor da primeira.
148A tendência do casal dirigente, sobretudo do «patrão», para se diferenciar do resto da casa mostra bem o que pode estar em jogo quando dois casais estão presentes numa mesma casa rural abastada (família múltipla). O ascendente assumido pelo casal dirigente sobre a comunidade familiar, e que lhe permite um acesso privilegiado aos bens raros, dá-se mal com a presença de um segundo casal que, pelo seu estatuto de casal sucessor se coloca, também ele, acima dos outros membros da comunidade familiar.
149Neste caso, mais uma vez, as famílias abastadas hesitam entre a apropriação comunitária e a apropriação segregativa — para a qual a regra consiste em calcular aquilo que cada um dos casais deve receber segundo o seu estatuto. Os lavradores de idade contam que, antigamente, se aceitava que os dois casais vivessem «em conjunto», isto é, à volta do mesmo lume e da mesma panela, mas reconhecia-se que «se a casa pudesse, era melhor viverem à parte». Esta referência às «possibilidades» da casa mostra que a riqueza da casa rural desempenha um papel considerável. Nem sempre é possível, do ponto de vista económico, ter duas cozinhas e duas lareiras, ou ainda uma segunda casa para onde o casal de mais idade se possa retirar confortavelmente.
150Noutros tempos, era pois necessário avaliar os interesses dos casais e confrontá-los com os do grupo considerado com um todo. Insistia-se nas vantagens da apropriação comunitária para responder aos interesses da «casa»:
«Para os casais, é melhor viverem separados; para a casa, era o contrário.» (Joaquim, lavrador de Gondifelos, nascido em 1911.)
151Quando os dois casais vivem em conjunto sem que haja uma transferência de propriedade, o casal mais novo fornece a sua força de trabalho e o casal mais velho alimenta-o. Mas a reciprocidade imediata acaba aí, pois a comunidade de residência, de trabalho e de alimentação não implica uma comunidade do poder ou dos meios de produção. O casal mais novo depende economicamente e socialmente do casal mais velho. Contudo, esta situação é quase sempre temporária, visto que é sempre preconizada a transferência das responsabilidades para o casal sucessor: ou os mais novos se tornam rendeiros dos mais velhos ou se tornam proprietários através de uma doação ou de uma partilha efectuada tardiamente. No primeiro caso, o casal mais velho mantém um estatuto de autoridade e de controlo muito importante. No segundo caso, a situação é mais ambígua, pois o casal mais novo assume as funções e os encargos de «patrões» da casa. Todavia, os pais mantêm mesmo assim um certo poder através das cláusulas da doação. Vivem na sua «reserva» (um ou vários campos que continuam a pertencer-lhes, e um espaço que lhes está reservado na casa). Mantêm o «usufruto» da propriedade, o que lhes dá por vezes um rendimento elevado e o direito a vigiar o que faz o herdeiro. O casal mais velho procura deste modo manter algum poder nas suas mãos.
152Estas formas de transferência das responsabilidades pressiona o grupo doméstico a montar lareiras e mesas separadas, já que a repartição da propriedade estabelece e justifica a existência de economias domésticas distintas. No entanto, se bem que a maior parte dos casais entrevistados tenha outrora criado, a dada altura do seu ciclo de vida, duas cozinhas separadas (ver Figura 5), há quem tenha mantido sempre uma apropriação colectiva do espaço e da mesa.
153Nas 20 casas abastadas de Gondifelos que, no princípio dos anos 60, vivem ou viviam ainda recentemente com os dois pais do herdeiro, metade tinham cozinhas separadas, três decidiram instalar-se em casas próximas, e sete conservar uma cozinha comum. Nestas últimas, cinco são casais em que o genro veio morar na casa dos sogros. Aliás, todas as testemunhas concordam em dizer que é mais fácil manter uma cozinha comum se for uma mãe e uma filha a geri-la. Há menos conflitos e menos desconfianças. Quando é a nora que se instala em casa dos sogros, dizem, estes estão sempre prontos a dizer que ela come demais ou a criticar a maneira de agir dela. Eis, pois, uma variável — a interacção entre sogras e noras — que pode ser importante em termos da escolha familiar de uma maior ou menor separação entre os casais.
154Quanto aos dois outros casais que constituem um lar em conjunto, as justificações dadas para tal escolha são diferentes. No caso do primeiro, o pai deteve as rédeas da casa até à morte porque o filho era deficiente; não houve repartição entre os dois casais, dado que o casal mais velho não confiava na gestão autónoma do mais novo. No segundo caso, o casal mais velho preferiu, apesar da desaprovação da nora, manter o lar comum a fim de melhor defender os interesses da casa.
155Por outras palavras, quando há dois casais na mesma casa agrícola, a repartição do usufruto da terra, do espaço e das lareiras segue quase sempre, se a riqueza da casa o permitir, um princípio de apropriação segregativa: a troca justa é aquela que satisfaz de igual modo as necessidades de autonomia económica e social entre os dois casais. É verdade que a comparação estatutária entre os dois casais serve sempre para manter uma grande parte de poder nas mãos do casal formado pelos pais. Contudo, apesar de uma certa dependência social e económica relativamente aos mais velhos, a apropriação segregativa dos meios de produção dá ao casal mais novo a oportunidade de efectuar uma gestão autónoma e de definir objectivos económicos a longo prazo.
156Ao nível da repartição entre os dois casais, podemos assim notar que estas famílias aplicavam, às relações familiares de troca, as regras de distribuição que prevaleciam entre proprietários e caseiros de terra na sociedade rural de outrora. Considerava-se que o casal herdeiro era de certo modo o «caseiro» do casal doador, que era obrigado a prestar-lhe contas e a entregar-lhe uma parte da produção (um terço ou metade dos produtos colhidos, embora a renda variasse consoante os produtos e os contratos). Sob este ponto de vista, existe uma certa coincidência sociológica entre o contexto familiar onde o estatuto dos patrões proprietários é preponderante e o contexto social mais vasto onde os grandes proprietários, que são pessoas quer ausentes, quer residentes que não trabalham a terra, predominam. Na família rural abastada, as trocas entre os dois casais reflectem em parte as relações sociais que existem entre um proprietário não-agricultor e aquele que trabalha a sua terra.
157Se considerarmos agora as repartições entre cônjuges, é preciso ter em conta o poder exercido — outro bem raro — que cada um quer manter nas suas mãos.
158Em termos ideais, o controlo dos recursos (força de trabalho, dinheiro, património, a alimentação, etc.) está nas mãos do casal proprietário que está à frente da casa. Os dois membros deste casal têm de mandar mas «é preciso que haja um único chefe — o homem — a menos que este seja incapaz de ser o cabeça do casal.» (Justino, lavrador, nascido em 1920). Além do exercício da sua função de chefe, que lhe confere um poder legítimo e um direito de veto sobre qualquer decisão, o marido encarrega-se de administrar o exterior da casa («tá fora, é mais com ele»): os campos, a venda de produtos provenientes dos campos, o gado que neles trabalha, e a compra dos produtos que lhes são destinados. A mulher deve administrar antes o interior («dentro, é mais com ela»): o lar e a sua manutenção, a compra e/ou a confecção dos tecidos, do vestuário e do linho, a horta, as crianças pequenas, as refeições das pessoas e dos animais, a capoeira, a venda dos produtos provenientes da horta e da capoeira e a compra dos produtos que lhes são destinados, bem como a venda, no mercado ou em casa, de uma ou duas das produções agrícolas da casa (trata-se geralmente do feijão, mas por vezes também de pequenas quantidades de milho), e o pagamento dos salários aos jornaleiros.
159Será que esta divisão da gestão corresponde àquilo que é denominado o «modelo tradicional» de relações conjugais rurais, onde a autoridade é masculina e o poder feminino18? No contexto familiar rural que estamos a estudar, parece ser o caso, mas convém esclarecer quais as normas e as práticas específicas que encontrámos. Em primeiro lugar, defende-se, nas famílias estudadas, uma repartição autónoma do poder segundo a qual, à autoridade masculina e ao poder feminino (direito de vigiar e obrigação de ser consultada no que respeita às grandes decisões) no domínio do exterior, correspondem uma autoridade feminina e um poder masculino no domínio do interior. De uma forma ideal, cada um dos cônjuges deve respeitar a vontade e as decisões do outro no interior do seu domínio:
«Nós cá, o que eu fazia estava bem feito e para mim, o que ela fazia, também estava bem feito; nunca nos contrariávamos, cada um no seu domínio. Claro que, nas coisas mais importantes, era preciso a gente estar de acordo.» (Joaquim, lavrador de Gondifelos, nascido em 1911.)
160Para se ter uma ideia mais concreta da repartição do poder exercido pelos cônjuges, vamos analisar, a título de exemplo, a questão do controlo do dinheiro. A propósito deste bem, como a propósito das relações conjugais em geral, a norma diz que «o casal deve puxar no mesmo sentido». Esta norma do esforço conjunto apoia-se sempre na mesma imagem: a da junta de bois atrelados ao mesmo carro e puxando com força na mesma direcção:
«É preciso que os dois puxem juntos o carro, e sobretudo é preciso que não puxe cada um para seu lado, senão está tudo estragado.» (J., lavrador de Gondifelos, nascido em 1920.)
161A interpretação deste ideal não é fácil. A repartição do controlo do dinheiro deve, por um lado, corresponder à necessidade de autonomia permitida a cada um dos cônjuges pelo seu estatuto e, por outro, à solidariedade conjugal que exigem os interesses da casa. Outrora, defendia-se «o separado», isto é, a existência de duas bolsas ou carteiras, a do homem e a da mulher, cada uma delas alimentada por, e alimentando, domínios diferentes da economia familiar, e correspondendo cada uma delas a objectivos específicos19. A bolsa da mulher dependia da comercialização dos produtos hortícolas, dos produtos da capoeira (ovos, galinhas), e dos produtos agrícolas — como o milho e o feijão — uma parte dos quais é atribuída ao domínio dela. Ela deve prover à maior parte das necessidades domésticas: roupa, salários, mercearia. A mulher vai quase todas as semanas ao mercado vender os seus produtos a fim de obter dinheiro para as despesas correntes.
162A bolsa do homem depende da comercialização do vinho, dos vitelos e dos pinheiros que são vendidos de longe em longe, dos cereais vendidos por grosso. Ela deve prover às despesas com o cultivo dos campos — compra de instrumentos agrícolas, de sulfatos, de fertilizantes como o pilado (caranguejos) — e permitir os grandes investimentos em infra-estruturas e em património. É a bolsa dos negócios maiores, e é também aquela em que se deve poupar para «defender o futuro da casa».
163Na opinião dos casais mais velhos entrevistados, a separação das bolsas justificava-se pela independência funcional que esta conferia a cada um dos cônjuges e, também, pela redução dos conflitos conjugais que acarretava:
«E difícil estar-se sempre juntos, dia e noite, para tudo. Se é preciso pedir ao outro dinheiro para ir à venda, se é preciso prestar contas de tudo quanto se faz, isso não ajuda nada. Além disso, ninguém gosta de dar, mesmo que tenha, e há sempre aquele aborrecimento,'Olha, hoje é preciso isto ou aquilo','Pronto, quanto é que tu queres','Ai, isso não chega', e tal. Se a gente tiver o dinheiro na sua mão, é diferente. Cada um cinge-se àquilo, embora depois juntos os dois seja preciso combinar, compras mais importantes que a gente fazia... mas, para isto ou aquilo que é uma coisa diária, a gente não está a pedir, a aborrecer-se um ao outro. Eu quando ia à feira tinha aquele dinheiro, pagava as despesas da casa, eu acho que isto era uma vantagem, que era bom assim.» (Margarida, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1933.)
164Contudo, os presentes fazem notar que as bolsas mais separadas têm a ver com um certo desafogo económico, próprio das casas de lavoura abastadas. Aí, cada um gere os seus negócios. O excedente, se bem que de modo desigual, é distribuído. Em contrapartida, nas casas onde os recursos são menores, dizem-nos, o chefe da família procura exercer um controlo mais apertado do dinheiro e restringe a autonomia da bolsa das despesas correntes vigiandoa. Em vez de duas bolsas, trata-se mais de uma bolsa e de um porta-moedas no qual se deposita dinheiro para certas despesas, senda a mulher a intermediária entre o porta-moedas e o pagamento das despesas correntes. O respeito pela gestão autónoma perde-se e o chefe de família exerce a autoridade restringindo, por exemplo, os itens de despesa.
165Noutros casos, é a incompetência evidente de um dos cônjuges que justifica a existência de uma bolsa única. Em casa dos Oliveiras, pequenos proprietários lavradores em que o marido trabalha também como alfaiate, era ele quem apertava os cordões à bolsa e não admitia que a mulher, considerada gulosa, fizesse determinados gastos supérfluos. Ele controlava e pagava ele próprio a conta da mercearia. Todavia, quando a mulher queria comer bolachas, ela pedia ao merceeiro que pusesse na conta arroz em vez de bolachas, que as guardasse, e ia buscá-las depois para comer às escondidas. No pólo oposto, na casa do Fundo, já citada, em que a mulher estava à frente da casa, era ela que tinha a seu cargo os cordões da bolsa, e que dava um certo dinheiro ao marido para os gastos dele: «Tinha que ser eu a mandar, senão a casa tinha ido à ruína. A pouco e pouco, fui começando também a tratar dos negócios, a vender pinheiros, a comprar e a vender gado. No princípio, seguia a opinião de um amigo lá de casa. Dizia-lhe o que ia fazer, ele vinha ver o gado e davame a opinião dele acerca de quanto aquilo valia. Eu seguia aquilo que ele me dizia. Depois ele dizia-me:‘leve-o à feira, se for preciso eu dou-lhe uma ajuda’. Mais tarde, o meu filho mais velho ia comigo, e depois foi ele que começou a dar-me conselhos. Bolsas, só havia uma, e era a minha. Tinha de ser. E o meu marido, quando queria dinheiro, pedia-me, e eu dava-lhe. Ele era mole, e não tinha feitio para aquilo tudo. Além disso, era muito surdo. Com a idade ainda ficou pior. Tinha que ser eu a fazer as coisas. Uma vez, foi um ano mau, e estávamos a dever a dízima. Na altura, eram mais ou menos 1000 escudos. Então, eu disse-lhe:‘Vai ter com os teus irmãos, eles devem-te dinheiro, tens de lhes pedir’. E ele lá foi, mas voltou de mãos a abanar e disse-me:‘vamos vender as tuas arrecadas’. ‘Nem pensar’, disse-lhe eu, e lá fui eu pedir dinheiro emprestado. É claro que as arrecadas, a gente só as tinha vendido em último caso.» (Deolinda, lavradeira de Lemenhe, nascida em 1908.)
166Os lavradores desaprovam geralmente a invasão da autonomia do cônjuge. Laura, uma lavradeira rica, aconselhou a filha a não namorar o filho de um lavrador vizinho, porque este não confiava na mulher e vigiava os gastos dela. «O filho há-de sair a ele, é preciso ter cuidado», disse à filha. (Maria Albertina, lavradeira de Gondifelos, nascida em 1944, lembra-se nestes termos dos conselhos que a mãe lhe dava.) Havia assim casas ricas onde a gestão autónoma e complementar era posta em causa, arrogando-se o chefe da família totalmente a responsabilidade e a autoridade em matéria de dinheiro. E, quando isto acontecia, os membros das outras casas receavam que o processo de socialização viesse a reproduzir, nos descendentes dessas famílias, o mesmo tipo de repartição do poder.
167À norma que preconiza uma repartição «independente», em que sejam respeitadas as necessidades de autonomia dos cônjuges sem pôr em perigo os interesses da casa, correspondem portanto práticas diversas e que articulam os problemas em jogo de modo diferenciado: a primeira, melhor aceite socialmente, pode chamar-se de «dualidade solidária»; a segunda de «dualidade rival»; a terceira é a bolsa única.
168A «dualidade rival» dá a cada um dos cônjuges uma completa autonomia no que respeita à gestão do seu domínio económico, bem como o segredo absoluto quanto às decisões e resultados da sua gestão. Nesta situação, cada um dos cônjuges tem que se desenvencilhar sozinho. Se o homem quiser comprar um campo, mas não tiver dinheiro suficiente, não recorre às economias da mulher, e vice-versa. Todavia, não esqueçamos que é o homem quem dispõe da bolsa maior e, também, que é ele quem decide que parte da produção agrícola (feijão, algum milho, etc.) «pertence» ao sector feminino.
169Este tipo de práticas é acompanhado de algumas tensões. A autonomia absoluta cria efectivamente uma rivalidade entre os cônjuges, cada um deles procurando sair-se melhor do que o outro. Além disso, a ausência de controlo recíproco tem tendência a suscitar desconfianças de parte a parte. Se a mulher gasta muito dinheiro no mercado, o marido teme que a arca do pão da família fique vazia porque a mulher vende demasiado milho. Se o homem gasta dinheiro a mais na taberna, a mulher tem medo que ele seja obrigado a hipotecar um dos campos. Em resumo, os cônjuges espiam-se um ao outro, e a vida conjugal associa-se a sentimentos pouco nobres, devidos à impressão que cada um dos cônjuges tem de que está a ser enganado pelo parceiro. O casal chega ao fim da vida com o sentimento de que «aquilo podia ter corrido melhor se o outro tivesse colaborado». Por outras palavras, persiste sempre uma dúvida sobre todas as coisas que cada um dos cônjuges possa ter feito sem o outro saber.
170A «dualidade solidária», mais frequente, consiste em dar a cada um dos cônjuges uma certa autonomia na gestão da sua área de competência ao mesmo tempo que se admite um direito de apelo e de vigilância esporádica por parte do outro cônjuge. Este direito de vigilância instaura um controlo recíproco aproximado e pouco apertado. Deste modo, por exemplo, os dois cônjuges consultam-se de vez em quando a fim de definir objectivos comuns:
«Com o meu marido, a gente ajudava-se quando era preciso. Por exemplo, quando se tratava de comprar uma coisa que custava muito dinheiro. Lembro-me de que um dia o meu marido queria comprar um campo que estava para venda ao lado do nosso, e que não tinha o dinheiro todo. Ele falou-me nisso e pusemo-nos de acordo. Eu disse-lhe que ia ver o que é que podia fazer. E o que aconteceu foi que eu pude contribuir, e o meu marido até ficou admirado, ele não imaginava que eu pudesse ter poupado tanto.»
171A autonomia persiste, mas a rivalidade e a desconfiança conjugais são agora temperadas por concertações ocasionais. Isso não obriga os cônjuges a obter sempre a concordância um do outro, mas abre um espaço de expressão e de confrontação conjugal que a dualidade absoluta rejeitava. Se um dos membros do casal tiver dúvidas ou críticas a formular acerca da gestão do outro, terá provavelmente a oportunidade de lho comunicar. Se o marido tiver feito um mau negócio e se se tiver endividado, é mais provável que a mulher venha a sabê-lo da boca dele do que através dos vizinhos. Em resumo, a dualidade solidária reduz a hostilidade entre cônjuges ao mesmo tempo que cria ocasiões de interacção tendo em vista a definição de interesses comuns.
172Finalmente, existem casas com uma bolsa única nas quais um dos cônjuges — o homem na maioria dos casais de lavradores analisados (a mulher apenas num dos casos) — gere o dinheiro. Aquele que gere a bolsa, dá dinheiro ao outro cônjuge à medida que este dele vai precisando e pode ser mais ou menos generoso ou «agarrado». A autoridade do chefe de família predomina e põe em causa a autonomia do outro cônjuge. Muitas vezes, a mulher abandona a produção autónoma de rendimentos monetários. Ou o homem se encarrega da comercialização ou vão juntos ao mercado.
173Enquanto modo de repartição pensado e aceite pelos dois cônjuges, esta última solução é pouco frequente nas freguesias examinadas. Surge como um desvio mais ou menos tolerado, em que um dos cônjuges tomou o poder. No único casal mais idoso que praticava este modo de repartição de forma consensual, o marido contou-nos o seguinte: depois de ter observado em diversos casais a prática das duas bolsas e as desvantagens de uma possível rivalidade, tinha proposto à futura esposa, assim que começara a namorá-la, que tentassem o sistema da bolsa única, e ela aceitara. Os dois deixavam os rendimentos obtidos na mesma gaveta e iam buscar dinheiro à medida das necessidades, da casa ou da lavoura. Era ele que controlava o dinheiro e fazia as contas do que se gastava e do que se poupava. (José, lavrador de Lemenhe, nascido em 1915.)
174O problema da repartição do poder entre marido e mulher ultrapassa assim amplamente a simples separação entre o «fora» e o «dentro», entre autoridade masculina e submissão feminina. Os lavradores defendem uma repartição baseada na existência de dois estatutos de dirigentes autónomos e comparáveis. Simultaneamente, é reconhecido ao homem o papel de uma espécie de supremo tribunal dos assuntos domésticos. É também reconhecida a legitimidade de qualquer tomada de poder que, face à incompetência de um dos cônjuges, venha abolir o respeito da sua autonomia a fim de garantir os interesses da casa. Por outras palavras, é igualmente aplicado um princípio de avaliação. Em caso de avaliação negativa de um dos cônjuges, os interesses da casa sobrepõem-se à identidade social dos parceiros. Contudo, a mulher que toma o poder é considerada como um bocado «bicha» (megera, de génio insuportável) pela comunidade, enquanto o homem só é considerado «mau» quando inflige maus tratos à mulher.
175Esta relativa flexibilidade normativa, que tem em linha de conta diversos princípios de repartição (a avaliação, a necessidade de autonomia, a identidade social) induz zonas de incerteza, nas relações conjugais, que tornam possíveis e justificam a elaboração, por parte dos cônjuges, de estratégias individuais que lhes permitam obter mais poder ou autonomia.
176Digamos por último que, embora o princípio de subordinação do feminino ao masculino venha ponderar a repartição estabelecida segundo o princípio da necessidade de autonomia de cada um dos cônjuges, este não é o único nem o principal elemento de comparação entre marido e mulher. Estamos perante um contexto em que a interdependência conjugal — determinada pelo grau de equivalência dos patrimónios, pela complementaridade dos conhecimentos, por alianças familiares próximas — introduz um antídoto a qualquer repartição do poder que dê uma vantagem claramente assimétrica ao homem.
177No estabelecimento de trocas equitativas entre cônjuges, procura-se pois ter em conta diferentes princípios de comparação estatutária, sem esquecer a avaliação dos papéis de cada um e dos interesses da casa. O mesmo se passa com a definição das trocas equitativas em termos de sucessão, que também se elabora num universo normativo multidimensional.
178A principal norma é a da «igualdade de direitos», baseada no estatuto social de filho legítimo. Em termos ideais, considera-se que todos os filhos são iguais no que toca ao facto de pertencerem à casa. É aliás neste sentido que os membros das casas de lavradores dizem, a propósito da partilha patrimonial, que «os direitos dos filhos são iguais». Segundo esta norma estatutária, dada a sua pertença a essa categoria, os filhos legítimos devem todos ter os mesmos direitos. Estes direitos são seguidamente ponderados em função da idade e do sexo de cada um dos filhos: o filho mais velho, ou o filho «lavrador», tem um estatuto privilegiado no meio dos outros filhos; os rapazes recebem a sua parte em bens imóveis, enquanto as raparigas recebem de preferência em bens móveis.
179Contudo, as famílias estudadas procuram além disso conservar um elemento de avaliação diferencial dos filhos. Para isso, acrescenta-se à comparação estatutária uma norma de avaliação que pesa os méritos e os contributos de cada um dos filhos (conhecimento da agricultura, habilidade e autoridade na gestão, número de anos de trabalho para a casa), o que permite um reforço eventual dos direitos iniciais. O princípio de avaliação não pode abolir o critério estatutário, isto é, não pode eliminar os direitos originais do filho legítimo, mas permite pôr em causa o estatuto do filho mais velho e o critério do sexo.
180Estamos pois perante uma norma de comparação estatutária que preserva a avaliação ao mesmo tempo que defende a «igualdade dos direitos dos filhos legítimos». No entanto, nesta fase de análise, dispomos ainda de poucas informações respeitantes aos princípios de repartição adoptados por estes grupos domésticos. Efectivamente, estes princípios vão colidir com as finalidades dos grupos domésticos de lavradores e com a significação social que estas famílias dão à sua sucessão. A auto-suficiência patrimonial orientada para a reprodução do grupo no tempo exige que se garanta a continuidade da casa/exploração agrícola. Este objectivo está ligado à ideia de um sucessor único, privilegiado em termos dos bens que fundam a sobrevivência do grupo (casa, terras, instrumentos, gado). Vemos portanto emergir a noção de repartição desigual dos factores patrimoniais entre os herdeiros — a menos que a casa disponha de um património muito vasto que permita o eventual estabelecimento de duas ou três «casas».
181Como responder às exigências simultâneas de uma norma de comparação estatutária entre filhos legítimos e de uma norma de repartição desigual centrada na continuidade patrimonial da casa? Nas famílias de lavradores abastados de Lemenhe e de Gondifelos, os chefes de família procuram «favorecer» o sucessor da casa sem excluir os outros filhos do processo de herança. Neste contexto, defendem pois a repartição segundo o princípio das necessidades. Este princípio não consiste em estabelecer um nivelamento dos resultados no processo de devolução dos bens, mas sim em procurar a igualdade das satisfações: considera-se como sendo justas as repartições que satisfazem as necessidades dos filhos (variáveis em natureza e em quantidade) de maneira comparável. Assim, uma filha que se casa com o herdeiro privilegiado de outra casa receberá o seu dote em dinheiro; um filho que emigra háde ter necessidade de dinheiro para a viagem e para se estabelecer no estrangeiro; um filho ou filha deficientes terão necessidade de aprender um outro ofício ou de gozar de um estatuto de protegidos no interior da casa.
182A fim de construir a igualdade das satisfações a despeito da desigualdade da repartição dos bens, há diversas vias possíveis:
183a) Uma primeira via diz respeito à reciprocidade material difusa. Os pais, ou o herdeiro privilegiado em lugar destes, deverão chamar a si o encargo do pagamento das partes legítimas dos outros filhos. Aqueles ou aquelas que já tiverem sido «ajudados» vêem o valor da sua parte reduzida em conformidade com essa dívida. Em vez de receberem a sua parte legítima de terras, os outros filhos recebem-na em dinheiro ou sob outra forma (ouro, linho da casa, etc.).
184A reciprocidade difusa suscita estratégias familiares que preparam o terreno da compensação: os pais acumulam dinheiro para pagarem as partes legítimas dos outros filhos, ou então tentam casar o filho herdeiro privilegiado com uma mulher rica. Por vezes, gastam dinheiro para colocarem um dos outros filhos numa via profissional alternativa.
185b) Uma segunda via, que é complementar da precedente, consiste em estabelecer uma reciprocidade mais simbólica do que material. Procura-se levar os filhos a entender-se e a aceitar que é necessário privilegiar um deles. Caso seja possível, procura-se também fazê-los aceitar que é necessário reduzir o valor das suas partes legítimas a fim de não sobrecarregar demasiado o herdeiro. Deve-se consultar cada um dos filhos para se chegar a este arranjo, que permite ao sucessor manter a auto-suficiência patrimonial sem se endividar demasiado para poder pagar as partes legítimas dos irmãos e irmãs. Estes acordos são negociados à medida que os filhos crescem e tornam-se mais fáceis quando os «outros» filhos se sentem satisfeitos com a posição social que ocupam — isto é, quando consideram que existe uma certa igualdade de oportunidades. Para se chegar a esta igualdade, que é uma das premissas importantes da igualdade das satisfações e, consequentemente, do consenso familiar, as famílias procuram proceder de modo a que todos os filhos visem e atinjam uma certa posição social: gasta-se o dote de um deles para «lhe dar estudos», arranja-se um bom casamento para outro, etc.
186A sensibilidade das famílias de lavradores ao conceito de troca equitativa no processo de devolução patrimonial é pois específico. Alia, de modo flexível, diversos princípios: a comparação estatutária, a avaliação, a igualdade das satisfações e a justiça ao nível dos procedimentos. A representação de justiça devolutiva que daí resulta reconhece «o equitativo» no facto deste originar consequências felizes para a casa e para todos os filhos, e isto, sejam quais forem as repartições efectuadas. Trata-se de uma concepção «finalista» na medida em que se tenta antecipar as consequências de uma dada repartição sobre a dinâmica do grupo e sobre o futuro dos indivíduos. A decisão ultrapassa o mero quadro da análise dos estatutos e dos contributos, para abarcar a diacronia do grupo e se transformar num instrumento do seu desenvolvimento. Por último, convém também notar que esta concepção finalista implica apesar de tudo a subordinação dos direitos iniciais dos filhos legítimos aos interesses do devir do grupo.
187As práticas resultantes destes princípios normativos constituem um outro capítulo. Pelos seus efeitos a longo prazo na sobrevivência do grupo, pelos conflitos potenciais a que dá origem, a repartição patrimonial é o principal terreno de debate e de confronto entre pais e filhos por um lado, e entre irmãos por outro. Aproxima os membros da família mas também os lança uns contra os outros.
188Os primeiros dados a examinar neste contexto dizem respeito ao estatuto e ao sexo dos herdeiros privilegiados. Para melhor se perceber os processos familiares em que radicam estes dados, pode examinar-se alguns casos concretos de repartição.
189Em Gondifelos, nas 35 casas de lavradores encontradas em 1963, existem 28 homens casados que foram os herdeiros principais do património gerido pelo casal, e seis mulheres casadas. Existe igualmente uma casa que foi herdada por duas irmãs solteiras.
190Entre os homens herdeiros, a maior parte (22) são herdeiros privilegiados. Entre estes, 14 são primogénitos do sexo masculino, quatro são os filhos mais novos da fratria e os outros três situam-se noutros lugares na ordem de nascimento dos filhos. Existe apenas um filho único.
191Seis destes herdeiros masculinos receberam terra, mas não foram privilegiados. Entre estes, dois são primogénitos de sexo masculino, um deles é um filho mais novo e os outros dois surgem em terceira posição. Não se conhece a situação do sexto caso.
192Entre as mulheres que são herdeiras principais do património da casa, existe uma filha única (os dois irmãos morreram afogados num poço quando eram pequenos); outra é a sobrinha de um casal sem filhos; outra ainda tinha um irmão parcialmente deficiente e herdou metade da terra da casa dos pais. As três restantes herdeiras privilegiadas tinham todas irmãos que emigraram para o Brasil e que nunca regressaram.
193Se considerarmos agora dez genealogias horizontais de famílias de lavradores e a profissão de cada um dos filhos (ver Figura 6, no final deste capítulo), encontramos nelas uma certa igualdade de oportunidades. Há os filhos que emigram — a emigração é considerada como uma oportunidade em si —, os que entram para outras famílias de lavradores abastados e levam consigo dinheiro, os que se fazem padres ou comerciantes, os que ficam solteiros e vivem na casa. Mas também se podem encontrar assimetrias nas posições sociais dos filhos de certas famílias. Na genealogia da Casa n° 5, onde o filho mais velho foi privilegiado, um dos outros irmãos, que esse recebeu a parte legítima sob forma de um campo e de dinheiro, torna-se e permanecerá camponês pobre. Há também irmãos e irmãs que trabalham para o herdeiro privilegiado (genealogias da Casa no 1, no 5 e no 9). Apesar da «reserva» que lhes é atribuída, são sempre considerados como «criados» dos herdeiros.
194As genealogias mostram-nos também que certos filhos do sexo masculino receberam bens imóveis apesar de não serem herdeiros privilegiados. Vejamos a história do grupo doméstico R. (genealogia da Casa no 7) a fim de vermos como se desenrolaram os acontecimentos. Nesta casa, o filho mais velho era considerado «um bom lavrador» e dava-se bem com o pai. Atingida a idade adulta, quis casar-se. O pai achou que era muito cedo para lhe ceder a casa dado que tinha mais seis filhos a cargo. Pressionado pelo filho, propõe dar-lhe dois campos. O filho e os sogros aceitam esta proposta e o filho manda construir, com a ajuda dos sogros, uma nova casa. O filho do meio vai para o Brasil ter com a irmã, que é casada com um comerciante. Morre alguns anos depois. Entretanto, Miguel, o filho mais novo dos rapazes, torna-se o braço direito do pai e o seu sucessor na direcção da casa. O pai morre em 1928, quando Miguel tem 17 anos, deixando-lhe a quota disponível. A mãe faz a mesma coisa alguns anos depois. Depois da morte do pai, Miguel pagou uma parte das partes legítimas dos outros filhos em dinheiro, excepto a do irmão mais velho, visto que este já recebera a parte legítima dele em terras. Segundo Miguel, o dote em dinheiro da mulher (filha de lavradores de uma freguesia vizinha) ajudou-o, mas teve apesar de tudo problemas económicos no início do casamento. Em contrapartida, no momento em que a mãe faleceu, Miguel e a mulher já tinham conseguido economizar o suficiente para poderem pagar as tornas sem problema.
195Quando, como no caso do pai de Miguel, os pais se recusam a instituir o filho mais velho como herdeiro privilegiado, dão-lhe contudo bens imóveis a fim de que ele possa negociar o casamento e ter uma certa independência material. O estatuto de filho lavrador parece autorizar que se tenha especialmente em linha de conta estas exigências. Assim, se bem que não lhe seja concedida a sucessão, pelo menos ser-lhe-á concedido um dote em bens imóveis. É por este motivo que encontramos alguns primogénitos que se estabelecem por conta própria sem que por isso sejam herdeiros privilegiados.
196Quanto ao segundo e ao terceiro filho do sexo masculino, quando o irmão mais velho é o herdeiro privilegiado, recebem muitas vezes as partes legítimas em terras. Podem vir a tornar-se lavradores ricos desde que façam um bom casamento (genealogia das Casas no 2 e no 6). É o caso de Jorge, segundo filho rapaz na família (genealogia da Casa no 6), considerado como um bom profissional, e que se casou com Amélia, filha de lavradores abastados. Os pais de Amélia cederam ao Jorge e à Amélia metade das terras da casa, porque o filho lhes dava poucas garantias como sucessor. Nas casas muito ricas, o segundo ou o terceiro filho homem também pode vir a herdar uma segunda casa ou campos mais afastados, deixados por um tio falecido ou pertencentes a uma mãe rica, quando esta é proveniente de uma localidade vizinha. É o caso de António (segundo filho homem na genealogia da Casa no 8), que herdou de um tio, lavrador abastado sem filhos, e de Camilo (segundo filho homem na genealogia da Casa no 9), que herdou terras na freguesia vizinha de Cavalões.
197Quando os pais desejam privilegiar o filho mais velho, as negociações no interior da família nem sempre se mostram fáceis, e isto apesar do estatuto do primogénito e da autoridade dos pais. O procedimento pode ser consensual — sobretudo se os dois rapazes seguintes tiverem encontrado posições sociais equivalentes —, mas também pode ser demorado ou tornar-se conflituoso. Na riquíssima casa S., os pais privilegiaram o primogénito de cinco filhos do sexo masculino concedendo-lhe o benefício máximo (uma quota-parte disponível que representava metade do valor do património). Os outros filhos não estavam de acordo com isso, levaram o irmão a tribunal, mas perderam o processo. Como faz notar um lavrador vizinho, o filho mais velho tinha tudo a favor dele: a lei, o seu estatuto de primogénito e de braço direito do pai, a vontade dos pais. E esta não é a única casa onde os irmãos cortaram relações por razões deste tipo.
198Resumindo, os procedimentos sociais nem sempre conduzem aos mesmos comportamentos objectivos. A norma ideal defende a noção de herdeiro privilegiado do sexo masculino mas também tem em conta os direitos e a satisfação de cada um dos filhos e uma certa justiça ao nível dos procedimentos. A atitude adoptada antigamente pela maior parte das casas seguia esta norma, mas era por vezes difícil contentar os outros filhos. Quando havia conflitos, a vontade dos primogénitos que controlam o devir da casa sobrepunha-se ao princípio da igualdade das satisfações.
199Quanto às filhas de lavradores, nunca são excluídas da repartição do património, mas recebem as respectivas partes legítimas de preferência em bens móveis. Podem contudo tornar-se herdeiras principais e/ou privilegiadas na ausência dos filhos da casa (por motivo de morte, de deficiência ou de emigração).
***
200Em definitivo, podemos dizer que o modo de troca praticado nas casas de lavoura abastadas preconiza, do ponto de vista subjectivo, uma apropriação mais comunitária dos bens de primeira necessidade tais como a alimentação e o trabalho, e uma apropriação mais separativa, reservada aos casais proprietários, dos bens raros como o poder, o património e os espaço doméstico.
201No que respeita aos bens de primeira necessidade, os lavradores defendem uma repartição com base no princípio das necessidades, que separa os contributos das retribuições. A identidade social vem no entanto ponderar e especificar o contributo ou a retribuição de cada um dos indivíduos. Acontece, por vezes, que o estatuto se sobreponha ao princípio das necessidades: é o caso das casas muito abastadas onde a superioridade do estatuto do casal mais velho é de tal modo importante que acaba por criar um acesso diferenciado à alimentação (dois comeres). Dito de outro modo, a insistência simultânea numa lógica comunitária e numa lógica estatutária permite, num contexto em que a lei e as normas pouco põem em causa os direitos dos mais velhos e dos homens, um deslizar frequente no sentido de valorizar o aspecto estatutário.
202Ao nível do casal, a norma ideal baseia-se numa comparação estatutária que estabelece a igualdade dos direitos entre cônjuges mas permite simultaneamente uma assimetria de direitos devida ao estatuto superior do homem. A norma de repartição tem em conta esta comparação estatutária e associa-a a um princípio de avaliação da competência de cada um dos elementos do casal. Em caso de incompetência, a avaliação pode sobrepor-se à identidade social, que determina a necessidade de autonomia e de poder de cada um dos cônjuges. Em suma, é preciso que os direitos dos cônjuges não ponham em perigo a sobrevivência do grupo a longo prazo. Se um dos cônjuges é incompetente, o outro deve assumir as responsabilidades da casa e o poder. Caso haja conflito entre os cônjuges, é o homem, que, dado o seu estatuto de árbitro supremo, é suposto velar pelos interesses do grupo a longo prazo. A mulher só o fará na ausência da autoridade masculina.
203No que se refere à repartição do património entre as gerações, vemos surgir de novo uma comparação estatutária, que estabelece a igualdade dos direitos entre todos os filhos legítimos ao mesmo tempo que concede um estatuto superior ao filho mais velho. Esta comparação deve estar sujeita a um princípio de avaliação por um lado, e à finalização do grupo a longo prazo, por outro. Esta pode sobrepor-se aos outros princípios: é preciso acima de tudo ter em conta os interesses da casa e do grupo no tempo.
204Em resumo, o reconhecimento dos direitos individuais e conjugais não está ausente, mas colide com as finalidades de auto-suficiência patrimonial a longo prazo. Esta introduz um controlo constante da definição das necessidades, o que impede que as necessidades individuais de satisfação e as necessidades conjugais de apropriação segregativa dos bens ponham em perigo «o que é melhor para a casa». É pois a tensão provocada por esta «sujeição» que condiciona as relações sociais de troca. Na família rural abastada, a «sujeição» que permite «fazer arranjos» e «organizar» a vida do grupo é um valor fundamental. Aligeira-se o seu peso ao nível das trocas quotidianas — o que permite aos indivíduos e aos casais maior capacidade de expressão —, para vir a impô-lo com maior força ao nível dos bens mais raros: a herança da casa e o poder que dela decorre.
A integração das famílias de lavradores
205A inteligibilidade da família de lavradores antiga passa não só pela análise das suas relações sociais internas mas também pelo sistema de relações que ela mantém com a colectividade e o exterior nos planos económico, social e político.
206O «antigamente» que procurámos delimitar insere-se num regime sociopolítico particular — o corporativismo — e numa estrutura social cuja análise, ao nível das duas freguesias, revela uma profunda assimetria no que se refere ao acesso ao bem mais raro da colectividade: a terra.
207O sistema de relações que os lavradores mantinham com o Estado e a ideologia corporativista é apresentada na literatura de diferentes maneiras. Umas vezes descreve-se o campesinato como o suporte de uma ideologia corporativista que toma a família patriarcal como unidade de base e como metáfora da sociedade inteira, e que defende o papel doméstico e submisso da mulher21. Outras vezes, os camponeses são apresentados como os agentes subalternos e passivos de uma ordem política que visa simultaneamente a autarcia económica e o enquadramento corporativo da população rural22. Outras vezes ainda, são considerados como actores autónomos agrupados em comunidades familialistas onde a apropriação da terra lhes permite ficar à margem das formas de submissão directas aplicadas, entre outros, pelos grandes proprietários23.
208As freguesias estudadas só se enquadram parcialmente nestas projecções do ideal-tipo da integração camponesa. Por exemplo, não encontrámos comunidades compostas por múltiplos pequenos proprietários, mas uma estrutura de classes mais complexa, reunindo trabalhadores do sector secundário e trabalhadores independentes, comerciantes, camponeses pobres e lavradores abastados, proprietários ausentes e jornaleiros. Os dados sobre a estrutura social e os níveis de vida (ver Capítulo I) não constituem um indicador directo do sistema de relações sociais existente no interior da colectividade. Indirectamente, todavia, sugerem quais os recursos de que dispunham outrora os grupos domésticos das diferentes classes sociais, e nomeadamente o prestígio e o poder de que gozavam os lavradores ou camponeses abastados. Excluindo os proprietários que não exploravam eles próprios as suas terras, o grupo dos lavradores é o único que exerce um controlo considerável sobre a terra, sobre os instrumentos de trabalho e sobre a força de trabalho. A independência económica e social é pois relativa ou praticamente nula para a maior parte dos grupos domésticos destas freguesias, e apenas uma minoria de famílias realiza o ideal corporativista do «pequeno proprietário independente».
209Por outro lado, é verdade que os lavradores partilham com o Estado corporativista uma ideologia familialista. O familialismo do lavrador consiste em considerar o grupo doméstico proprietário de terras como o ponto de apoio mais seguro para a sobrevivência económica e social. Estes lavradores consideram igualmente importante a produção social do estatuto e da autoridade. Mas não existe uma correspondência absoluta entre o ideal corporativista do Estado e o funcionamento interno das famílias de lavradores. Como já vimos, as mulheres e as filhas trabalham intensamente na exploração agrícola e podem tornar-se chefes de família. Reconhece-se a necessidade de nomear um chefe de família, um árbitro supremo, mas associa-se esta necessidade ao equilíbrio e à autonomia também necessários entre dois estatutos dirigentes. Além disso, o Estado e os camponeses não concebem a utilização do estatuto e da autoridade da mesma maneira. Para a ideologia corporativista, o estatuto e a autoridade são instrumentos de controlo e de repressão destinados à manutenção da ordem social. Em contrapartida, para os camponeses, o estatuto e a autoridade são instrumentos de controlo que servem para a sobrevivência e a promoção socioeconómica do grupo familiar a longo prazo. A noção de mudança social no interior da casa é portanto essencial. Por exemplo, a sucessão exige uma certa partilha, entre os mais velhos e os sucessores, do poder exercido sobre os recursos. Além disso, a tónica posta nos interesses colectivos a longo prazo não proíbe a elaboração de novas lealdades no exterior do grupo, e também não obscurece o prestígio daqueles que conseguem libertar-se do jugo familiar para se tornarem senhores do seu destino (emigrando, por exemplo). Em suma, o familialismo é uma estratégia de promoção social e económica, e não apenas uma estratégia de manutenção do poder.
210Quanto às relações económicas externas dos lavradores, vimos, nas duas freguesias estudadas, que os lavradores praticavam a policultura utilizando energias animais e humanas, e com níveis de investimento bastante baixos. Esta agricultura é dominada pela lógica do autoconsumo, mas está parcialmente voltada para o mercado (comercialização de uma parte da produção agrícola). O abastecimento industrial a montante — aquilo a que Tepicht24 chama a intensidade externa I — é fraca e a economia artesanal local fornece os materiais de construção, assegura o fabrico das ferramentas de trabalho, a colheita de certos fertilizantes naturais como o mato e os caranguejos, e a criação de infra-estruturas (poços, edifícios, muros).
211Segundo Baptista25, esta agricultura camponesa é integrada na política levada a cabo no decurso da primeira fase do regime fascista como um «dado» adquirido, isto é, enquanto elemento subordinado a uma política de Estado que tem em vista a autarcia económica e considerada por Cabral26 como «um modelo de estagnação programada». Da agricultura camponesa, espera-se sobretudo um abastecimento alimentar a baixo preço. A importância reduzida do abastecimento a montante e a comercialização irregular dos produtos agrícolas não impedem a existência de algumas transferências monetárias do sector agrícola para outros sectores, nem os contributos desse sector para a acumulação exterior de capital. Estas transferências resultam dos mecanismos do mercado e das rendas pagas a um conjunto de proprietários que, estando na sua maioria ausentes da sua propriedade, reinvestem pouco na agricultura.
212Nas freguesias de Gondifelos e de Lemenhe, o contributo do sector rural abastado para o crescimento da totalidade da economia opera-se em termos de abastecimento em produtos alimentares, de exportação da força de trabalho e da transferência, muito reduzida, de capitais. Os lavradores exportam uma força de trabalho especial: a dos filhos que, excluídos da sucessão ou que não estão dispostos a esperar pelo seu resultado, partem de casa levando às vezes um pequeno capital, com a ambição de se tornarem pequenos comerciantes no Brasil, numa vila próxima ou, mais raramente, nas colónias. O percurso de Mário, filho de um lavrador e que é ele próprio lavrador hoje em dia em Lemenhe, ilustra perfeitamente as esperanças acalentadas pelos jovens camponeses na altura da partida:
213«Nós fomos criados na lavoura. Éramos sete irmãos, e a lavoura naquele tempo dava pouco, não havia esta coisa do leite, o gado praticamente era para trabalhar, para fazer o trabalho de casa, o milho era barato, era sempre tudo à mão, não havia tractores... Quer dizer, chegava-se ao fim do ano, às vezes as coisas nem sequer tinham produzido, a batata não produzia, às vezes chegavase ao fim do ano e o que se vendia não dava, não dava para a despesa. Chegou-se a vender batata a cinco tostões a arroba! O vinho, era a quinhentos escudo a pipa, também dava pouco. É claro que às vezes faltava dinheiro. E é claro que a gente chegava a uma certa altura, queria... queria ir passear para ver uma rapariga e tinha de ir bem ajeitado. Não se andava como agora, mas a gente queria sair mais ou menos e às vezes a gente pedia, não havia dinheiro e os pais enervavam-se e a gente temia pedir uma coisa qualquer. Eu, desde muito cedo, eu queria era ir para fora. Tinha pensado na Argentina, na Venezuela, mas no princípio não me deixaram ir porque eu ainda era muito novo e os meus pais tinham medo que eu fosse para lá e me entregasse à vandolonisse. Mas depois, quando fiz 19 anos, eles deixaram-me ir para o Brasil. A minha ideia não era de ir para o Brasil, a minha ideia era ir para a Venezuela, mas só pude arranjar passagem para o Brasil. Nessa altura, quando eu fui para o Brasil, o meu irmão tinha acabado de se casar e ficou lá em casa. Foi o mais velho. Ele não tinha para onde ir, mas a moça que ele namorava, que hoje é mulher dele, tinha bastante e havia interesse no casamento. Depois ajeitaram-lhes lá uns cómodos em casa, dois quartos separados, e tinha-se pensado na cozinha separada mas nunca chegou a ser montada e eles acabaram por comer connosco. Foi nesse momento — foi em 1956, foi quando andava a guerra na Índia e eles aí também tiveram medo por causa de eu ir para a Índia — aí os meus pais concordaram e fui para o Brasil. Emigrava-se muito para o Brasil. Quando eu fui, o navio era o Vera Cruz, e levava 1500 emigrantes daqui para lá. Ora, você veja, ele fazia quase uma viagem por mês, ia muito pessoal, muito pessoal. Havia muitos portugueses que já lá estavam há anos. Depois lá arranjei trabalho numa fábrica. Quando entrei para lá, eles botaram-me no escritório. Foi o patrão mesmo que chamou o director, e pôsme a trabalhar no escritório, como eu tinha o exame da quarta. Mas eu ao fim de três dias pedi para sair, que aquilo não servia para mim. Eu não fui criado naquilo, desde que saí da escola fui para a terra e nunca mais liguei para as letras. Aquele tipo de trabalho não era para mim. Eles então puseram-me noutra secção. Mas não era aquilo que eu queria. Eu queria montar um negócio. Mas precisava de uma massa. Então, na ocasião escrevi para o meu pai para me mandar, naquela altura eram trinta contos, com esses trinta contos eu já... podia abrir um botequim. Lá chamam botequim. Vendia bebidas, cigarros, e essa história toda. Aqui chamam-lhe café, sendo que isto aqui, um café é uma coisa mais chique que lá. Lá o botequim é onde entra tudo, aquilo é porta aberta, é coisa do Rio de Janeiro, pronto. Ainda cheguei a pensar nisso ou numa padaria ou noutro negócio, tinha vontade de me lançar. O meu pai escreveu-me a dizer que esperasse, que talvez me mandasse o dinheiro no ano seguinte. Então, decidi tirar a carta de chofer lá, que era para comprar uma, ora portanto, uma camioneta pequena de carreira, sendo que lá eram uns carros que chamam lotação. A camioneta carrega de pé, sentado. Existiam na altura, não sei se ainda existem se não. Só carregavam vinte pessoas, mas era uma coisa que dava muito porque andavam sempre cheias, está a perceber? E dava muito porque era preço único, mas o pessoal é difícil que pegue no princípio da linha e vá à final... um pega aqui, outro acolá. O pessoal lá não sabe andar a pé, e aqui agora é a mesma coisa. A gente aqui assim, dantes ia daqui até Famalicão, iam e vinham a pé, às vezes até carregados com mercadorias para vender. E lá não. E eu tive ideia disso, depois não consegui o dinheiro para comprar o carro que queria, e depois o meu patrão disse-me,'Mário, tu fica aqui, não saias, que eu vou arranjar para tu trabalhares como chofer'. Depois aquilo deu uma reviravolta, aquilo começou a ir abaixo, não chegaram a comprar o carro e não cheguei a ser chofer. Mas passaram-me para encarregado duma secção de pintura e dava mais dinheiro. Como a minha mulher trabalhava lá, depois fiquei sempre ali, até vir embora.» (M., lavrador médio de Lemenhe.)
214Mário não ficará no Brasil. Vinte anos depois, regressa definitivamente a Portugal com a mulher (portuguesa, de origem rural) e os dois filhos, vende um campo que herdou nas partilhas numa freguesia próxima, compra terra em Lemenhe, constrói uma casa e cria um nova exploração agrícola.
215Até aos anos sessenta, as principais vias alternativas de mobilidade social são apenas três: os estudos no seminário para ser padre; o estabelecimento por conta própria (mercearias, tabernas, negócios de gado e de vinho), na freguesia ou nos arredores; a emigração para países distantes (ver as genealogias no último capítulo).
216Os filhos que emigram exportam por vezes capitais. Mas vê-se também lavradores transferirem eles próprios capitais para outros sectores da economia, investindo noutras actividades comerciais ou industriais. Assim, por exemplo, uma pequena fábrica de papelão foi instalada no interior de uma exploração agrícola nos anos vinte. Noutra família de lavradores grandes de Lemenhe, um dos filhos tornou-se accionista numa confeitaria em Famalicão.
217Integrado no mercado dos produtos alimentares, exportando a conta-gotas alguns capitais e filhos-camponeses que ambicionam criar uma empresa, será que o campesinato abastado constitui um dos elementos-chave do bom funcionamento do quadro sociopolítico criado pelo Estado Novo? Alguns autores afirmam27 que, nas freguesias rurais do Norte de Portugal, o regime se foi implantando a pouco e pouco apoiando-se nas inclinações ideológicas da população, e amplamente apoiado pela Igreja, o sistema educativo e a organização política local. Que papel desempenharam os lavradores abastados no enquadramento político, e que uso fizeram do seu próprio poder uma vez nele integrados?
218É corrente verificar que existe uma simbiose entre os regimes de autoridade e «os senhores da terra», e ver emergir, ao nível da organização política das freguesias, a dominação de «pessoas importantes» que asseguram a mediação política entre a comunidade e o poder do Estado. No entanto, nas freguesias estudadas, os grandes proprietários, que muitas vezes não é lá que residem, ocupam-se pouco dos assuntos relacionados com a freguesia, e estes estão pois quase integralmente entregues aos lavradores ricos. Em Gondifelos, nos anos de 1940, encontramos como presidente, secretário e tesoureiro da Junta de Freguesia28, dois lavradores grandes e um lavrador médio que é igualmente negociante de vinhos (segundo uma conversa com o antigo secretário da Junta de Gondifelos). O regedor, o único que depende directamente do Estado central, é um lavrador médio que possui três hectares de terreno. Em Lemenhe, nos anos 1940, encontramos também lavradores em todos os cargos atrás referidos. No boletim anual do concelho, publicado pelas autoridades municipais e intitulado O Nosso Concelho, obra de todos para todos29, os nomes deles são citados. Por outro lado, é interessante ver que o mesmo boletim apresenta não só uma lista dos «grandes homens da circunscrição municipal», mas também uma lista de todos os lavradores e de todos os proprietários de terra em cada uma das freguesias30. Nela foram incluídos todos os grandes proprietários não-agricultores e os lavradores ricos e menos ricos. Os caseiros e os pequenos proprietários não figuram.
219As Juntas que estes lavradores gerem são espécies de subunidades municipais que têm meios de acção limitados, mas às quais se atribui um certo número de funções de interesse social: a organização, a conservação e a revisão anual dos recenseamentos dos chefes de família, bem como o dos pobres e indigentes; o estabelecimento e a administração dos cemitérios; a administração dos bens comuns tais como os baldios e as águas públicas da freguesia. O Código de 1940 atribui também à Junta de Freguesia a responsabilidade da assistência aos pobres.
220No enquadramento institucional proposto pelo regime corporativista, todas as freguesias devem também possuir uma Casa do Povo31. Contudo, em 1947, apenas 11 das 49 freguesias do concelho de Famalicão têm uma. Como deixa pressupor o facto da Junta de Freguesia estar encarregada da «assistência», estas casas do Povo não centralizam qualquer função de previdência social à excepção da assistência médica. Cada uma delas põe em princípio à disposição das pessoas um médico da caixa nacional de previdência. Na realidade, na época, à excepção destes raros médicos e de um certo número de médicos com consultórios privados, não havia, em termos de cuidados de saúde, senão dois pequenos centros hospitalares na totalidade do concelho de Famalicão: o que dependia da Casa da Misericórdia32 e o Centro Narciso Ferreira, criado na freguesia de Riba de Ave pelo dono de uma grande fábrica de têxteis para os operários e suas famílias.
221As funções atribuídas à Junta de Freguesia não implicam a canalização de meios económicos importantes para as freguesias. Por exemplo, a Junta não tem edifício próprio. Em Gondifelos e Lemenhe, é na própria casa que os presidentes recebem os membros da freguesia, e esta não dispõe de meios próprios para desenvolver as suas infra-estruturas. Se Lemenhe tem electricidade desde os anos 1940, é porque se encontra junto da freguesia de Nine, estação importante dos caminhos-de-ferro e entreposto de mercadorias. Gondifelos terá de esperar pelos anos 1950 para tê-la e, em certos locais muito afastados, serão os próprios lavradores que, a expensas suas, levarão até lá a electricidade. A propósito disto, o lavrador que na época era presidente da Junta de Freguesia de Gondifelos, recorda-se de ter efectuado um pedido de financiamento especial junto das autoridades municipais a fim de mandar instalar a electricidade. Como a resposta ao requerimento tardava, alguns proprietários propuseram cotizar-se para a instalar num dos lugares no centro da freguesia. O presidente da Junta não concordou e preferiu insistir junto das autoridades. Disse aos seus vizinhos: «Sou presidente de toda a freguesia, e não só deste lugar.» (J., lavrador de Gondifelos, nascido em 1911.)
222Este presidente-lavrador define-se a si mesmo como o principal mediador entre a colectividade e o Estado, e considera que um presidente se deve colocar acima das solidariedades locais decorrentes das relações de vizinhança. Que interesses defende ele para assegurar essa mediação? Será ele, apesar do facto de ter sido eleito pelos chefes de família da colectividade, uma simples correia de transmissão de directivas exteriores? Certos episódios da história local demonstram que este mediador social e político procura fazer face às exigências externas sem esquecer os interesses internos. A este propósito, veja-se o exemplo das quotas de cereais. Durante a Segunda Guerra Mundial, era proibido vender os cereais a comerciantes privados, e o Estado estabelecia as quotas que estas freguesias eram obrigadas a fornecer ao depósito central. A responsabilidade desse abastecimento cabia, evidentemente, à Junta de Freguesia. Para corresponder a estas obrigações, que prejudicavam os lavradores, o presidente da Junta da época tinha adoptado a estratégia seguinte:
«Levava sempre as quantidades que a federação tinha fixado, e até mais quando eles me pediam. Mas tinha muito cuidado ao marcar aquilo que cada lavrador devia fornecer. Era eu que marcava as quantidades, por isso deixavalhes sempre uns «restos» e fechava os olhos. Os lavradores vendiam esse resto no exterior. Aos pequenos lavradores, tirava-se-lhes menos, e assim ninguém por aqui sofreu muito. Mas conheço freguesias mais pobres onde as pessoas sofreram mais.»
223Durante esses anos, o presidente da Junta procura atenuar os efeitos das exigências do Estado. Ele assume-se como «polícia» no seio da colectividade, mas procura também transpor as exigências externas para comportamentos aceitáveis para os actores locais. Quanto ao Estado corporativo, pode dizer-se que exige uma submissão ou conformidade formal ao mesmo tempo que deixa aos lavradores encarregados da gestão das freguesias uma certa margem de autonomia (e de manobra) interna. Isto decorre talvez do facto de o Estado, uma vez cumprido o abastecimento em produtos alimentares, se preocupar pouco com a integração social das comunidades rurais. Aliás, ele empurra mesmo determinadas funções (de educação, de assistência social e médica) para a família e para a colectividade rural.
224No que respeita à educação, por exemplo, o Estado Novo reduz o número de anos de instrução primária obrigatórios e atribui à família o dever de educar as crianças. Em 1927, os cinco anos de escolaridade obrigatória estabelecidos inicialmente pela República passam a quatro; em 1937, são reduzidos a três. A Constituição de 1933 estipula que a educação das crianças será confiada essencialmente aos pais e reconhece a estes o dever de instruir33. Ora, o facto da educação das crianças ser entregue à família implica a possibilidade de escolher entre uma educação em casa e uma educação pública. Cria-se assim, do ponto de vista dos camponeses, uma certa ambiguidade quanto ao carácter obrigatório da instrução pública das crianças a cargo. Além disso, em muitas freguesias, a escolha entre os dois tipos de educação nem sequer é possível, porque não há escola. Mónica34, na ausência de trabalhos de sociologia sobre o assunto, supõe que as famílias camponesas colocassem duas interrogações fundamentais ao procurar decidir se deviam ou não enviar os filhos à escola. Em primeiro lugar, perguntavam a si mesmas se se podiam dar ao luxo de prescindir do contributo dos filhos no trabalho e, em segundo lugar, se as coisas que os filhos aprenderiam na escola iam ter alguma utilidade no futuro.
225Mónica inclina-se para que a resposta seja nos dois casos negativa, no que se refere às regiões habitadas por pequenos proprietários rurais, como é o caso do Minho. Mas na realidade, no que respeita à família rural abastada, as respostas não são essas. Os pais arrogam-se, com efeito, o direito de decidir, para cada um dos filhos, se a casa pode prescindir ou não do trabalho deles, e avaliam também, segundo a identidade social da criança, a utilidade que essa aprendizagem poderá ter no futuro. E as respostas a estas perguntas nem sempre são negativas. Saber ler, escrever e fazer contas é importante por duas grandes razões. Por um lado, a instrução é uma das condições básicas que permite assumir posições de direcção, comerciais e mediadoras no seio da freguesia. Por outro, ela cria oportunidades alternativas de mobilidade social para quem não vai permanecer na casa mas quer tornar-se chefe de família abastado. Além disso, a instrução primária é gratuita, o que contrabalança, aos olhos dos lavradores, o custo ocasionado, no plano do trabalho, pela ausência da criança durante algumas horas por dia. Tanto mais que os lavradores dispõem, quase gratuitamente, da força de trabalho dos filhos do proletariado agrícola. Por tudo isto, a resposta dos lavradores à instrução pública primária é, nas freguesias que estudámos, bastante favorável. Mas é mais favorável à educação das crianças do sexo masculino. Efectivamente, considera-se que as raparigas têm «menos necessidade» de se instruírem do que os rapazes, apesar de esses conhecimentos poderem vir a ser úteis, por exemplo, para «ajudar um marido merceeiro». Nesta perspectiva, entre todos os filhos de lavradores, os mais «sacrificados» às necessidades de mão-de-obra familiares são as filhas mais velhas:
«De nós todos, só a minha irmã mais velha é que não foi à escola. Nós, fomos todos — uns mais tempo do que os outros, era conforme. O meu pai queria assim. A minha irmã tomava conta de nós, por isso...» (J., lavrador, filho de lavradores ricos de Lemenhe, nascido em 1915. Onze irmãos e irmãs nascidos entre 1906 e 1930.)
226«Eu e a minha irmã mais velha, nós nunca fomos à escola. Só a minha irmã mais nova e o meu irmão é que foram. Porque nós já trabalhávamos, já ajudávamos muito nos campos. O rapaz era o do meio, e a minha irmã era a mais novita de todos. Já nós, uma olhava pelo gado, a outra ia apanhar erva, e o carro ia buscá-la ao campo. Também tomávamos conta do nosso irmão e da nossa irmã. E não nos mandaram para a escola. 'É preciso olhar pelo gado, vai uma para o gado, vai outra apanhar erva', lá íamos nós. Depois a mais novita, já havia quem fosse à erva, quem fosse vigiar o gado, depois já facilitaram, deixaram-na ir. Eu na maré não fiz oposição, mais tarde é que eu tinha pena de não ter aprendido, mas foi tarde demais, já era tarde! E, afinal, ajudar em casa também é preciso alguém. E a gente sempre se remedeia, mesmo sem ter aprendido.» (E., nascida em 1914, filha de lavradores médios.)
227Nos casais de lavradores nascidos entre 1910 e 1935, todos os homens frequentaram a escola — alguns fizeram-no esporadicamente e durante pouco tempo, outros andaram até ao exame obrigatório. Declaram saber ler e escrever, se bem que alguns com mais de sessenta e cinco anos digam que têm dificuldade em fazê-lo. Aqueles que nasceram nos primeiros quinze anos deste século evocam a má organização da escola, o absentismo constante dos professores e dos alunos. É preciso lembrar que a maior parte dos professores primários dessa época nem sequer tinham qualificação para tal. Em 1911, a República decreta pela primeira vez que não é permitido ensinar sem um diploma; contudo, como a abertura das escolas normais, destinadas a formar professores, irá demorar algum tempo, continua-se durante muitos anos a aceitar professores primários sem habilitações específicas35.
228Se bem que o poder exterior não faça grande coisa para modificar as bases de uma vida económica e social mais ou menos estagnada, tudo leva a crer que os lavradores não recusam a mudança social e tentam, pelo contrário, integrá-la, devagar e prudentemente, no seu modo de vida. No âmbito da educação, estão dispostos a converter uma parte dos rendimentos em capital escolar apesar de uma política de Estado que pouco se interessa pela alfabetização da sua população rural. No domínio da produção agrícola, a pressão a favor da modernização também é reduzida pois o Estado Novo considera que o país é suficientemente «auto-suficiente» em termos de produtos alimentares. Por outras palavras, encoraja-se indirectamente comportamentos produtivos guiados pela experiência adquirida sobre a natureza e os seus ciclos. Todavia, é importante notar que, quando existe uma pressão a favor da mudança, são os lavradores que servem de elo entre as técnicas propostas pelo exterior e a adopção destas por parte dos camponeses da comunidade. Para o período antes da Segunda Guerra Mundial, é frequente serem referidas duas inovações técnicas de monta: a introdução do sachador e a técnica da sementeira alinhada. J., lavrador que era jovem adulto na altura, recorda-se de que o processo de adopção destas inovações levou um certo tempo. Os primeiros a experimentarem-nas foram dois lavradores. Os outros observaram as experiências durante vários anos antes de se decidirem. Quanto aos camponeses pobres, estes dependem durante muito tempo do conhecimento e dos instrumentos adquiridos pelos lavradores. Por isso, um lavrador grande recorda que durante muitos anos (nos anos trinta) foi sachar as terras dos outros, levando o seu gado, por este já estar treinado para a tarefa.
229No que diz respeito à primeira fase do regime corporativista, não é referida mais nenhuma modificação significativa das técnicas de produção. Enquadrados por uma associação profissional corporativa — o Grémio da Lavoura — com sede em Famalicão, os «proprietários» recebem por vezes conselhos e informações oficiais relativas às leis e regulamentos em vigor. Mas o papel activo da associação só será mencionado mais tarde, nos anos sessenta, aquando de uma alteração que irá marcar profundamente a vida das freguesias: a introdução dos tractores. Nesse momento, vários lavradores serão convidados para as reuniões onde a associação fará a demonstração das novas tecnologias.
230As pressões (e as lacunas) do Estado não são as únicas a que as famílias e a colectividade rural tenham de fazer face. Há as que resultam do facto de os camponeses apenas controlarem parcialmente a natureza. E há sobretudo, enraizada no seio da própria comunidade, a Igreja católica e os seus representantes locais. A presença próxima e activa desta instituição faz dela um parceiro importante das famílias de lavradores no que se refere à assistência aos pobres, à educação dos jovens, à moralização da vida familiar e comunitária. Por exemplo, faz-se apelo ao padre para repor no bom caminho um membro da família que não cumpre com os seus deveres, e isso pode até ocorrer nas famílias ricas. Assim, algumas pessoas lembram-se da mulher de um lavrador de Gondifelos que ouviu um «sermão» do padre por passar tempo demais na igreja, se armar em grande senhora e desleixar as responsabilidades domésticas. Ela não ajudava suficientemente o marido e acontecia as refeições não estarem prontas a horas.
231Veículo suplementar da autoridade e da inculcação de certos valores, como o respeito pelos mais velhos e o gosto pelo trabalho, a importância do estatuto e da família, o padre exerce também uma pressão económica considerável sobre os grupos domésticos da freguesia. O pagamento da dízima, calculada em função dos rendimentos de cada um dos «lares», pesa fortemente na economia familiar, e o valor dela é objecto de negociações permanentes. As famílias de lavradores, que a pagam quase sempre em cereais e em vinho no Outono, receiam que as exigências do padre sejam demasiado ambiciosas. Quanto às famílias menos abastadas, que pagam geralmente a dízima na Páscoa, por ocasião da desobriga, encontram-se já à beira da indigência. Tentam pois que a dízima lhes seja «perdoada». Os que tem um pouco mais de recursos negoceiam às vezes o «perdão» de uma parte do valor exigido.
232No Rol de Confessados de Gondifelos, o padre registou algumas dessas negociações; indicou quais as famílias pobres que «perdoou» nesse ano; quais as que nunca pagaram; e também aquelas, com mais recursos, a que «perdoei demais» nesse ano (1963). De facto, para além de um conferir do estado dos confessados, esse rol é também um registo do estado da dívida das famílias para com a Igreja. Aliás, as obrigações religiosas de um chefe de família podem ser utilizadas pelo padre como um meio de pressão para obter o pagamento da dízima: o padre pode "negar" a comunhão a quem não paga. Contudo, apesar da sua autoridade, o representante da Igreja parece não poder abusar deste meio de «vingança», como é chamado na freguesia. Nos anos quarenta, na freguesia de Gondifelos, o padre recusou-se na Páscoa a deixar comungar um jornaleiro, considerado homem honesto, mas que não tinha pago o que lhe competia. Conta-se que «o povo se revoltou» e pediu ao presidente da Junta que fizesse alguma coisa. Este convenceu então o padre a «perdoar» a dívida. Segundo um dos nossos interlocutores privilegiados, «o padre era muitas vezes obrigado a perdoar aos camponeses, mas resistia o mais que podia, e a proibição de comungar era a única maneira que ele tinha de os segurar». (J., lavrador, nascido em 1911.)
233Nas freguesias examinadas, as famílias rurais dirigentes e o padre estabelecem um «modus vivendi» de partilha da gestão comunitária. O padre e as famílias ricas ocupam-se em conjunto da assistência aos pobres, de julgar e de sancionar os comportamentos dos «que não andam na linha», das obras que é preciso efectuar no cemitério, etc. No entanto, apesar desta colaboração e de um relativo entendimento ideológico, estes actores criam zonas de competência próprias. O entendimento nem sempre é consensual e uma decisão tão simples como a que consiste em fixar a hora da missa pode estar na origem de uma desavença. Em Gondifelos, nos anos trinta, a missa é sempre ao nascer do sol. O presidente da Junta considera aquilo ultrapassado e gostaria de estabelecer uma hora fixa. Quando chove, diz, o padre não acorda e chega atrasado. Por seu lado, o padre defende que os paroquianos estão habituados a reger-se pelo nascer e pelo pôr-do-Sol. Como são bons amigos, os dois homens não se zangam, e o padre leva a melhor. Contudo, no início dos anos quarenta, a Junta aproveita uma situação excepcional criada pela colheita centralizada dos cereais e declara unilateralmente que a missa passará doravante a ser celebrada às sete da manhã. Eis o testemunho do antigo presidente da Junta de Freguesia sobre o caso:
«Eu disse ao padre: ‘de hoje em diante, acabou-se o nascer do Sol; a missa passa a ser às sete, porque eu, às oito horas, tenho de fazer o celeiro. Tens de compreender. Se eu não começar às oito, nunca mais acabo’. E o padre aceitou.»
234Estreitamente dependente dos paroquianos, sobretudo dos mais ricos, no que se refere aos seus rendimentos, o padre mantém relações próximas com as casas de lavradores e cria relações privilegiadas com algumas delas. Por exemplo, concede-lhes lugares de honra nos ritos e nas cerimónias religiosas. Assim, num total de doze membros que integram a procissão da Páscoa de 1963 (segundo o Rol de Confessados de Gondifelos), oito são lavradores ou filhos de lavradores grandes e três são pequenos lavradores que trabalham a tempo parcial na agricultura (a categoria socioprofissional do último membro não é mencionada).
235Os lavradores esperam do padre que este saiba gerir os seus assuntos transigindo com o poder local. Espera-se também uma certa tolerância da sua parte no que diz respeito às relações que os paroquianos têm com o sagrado.
236Como faz notar Ferreira de Almeida36 a propósito da religiosidade rural em Portugal, esta obedece a duas preocupações. Por um lado, à necessidade de encontrar saídas para os problemas quotidianos, socorrendo-se simultaneamente de modalidades legítimas e ilegítimas de manipulação do sagrado. Por outro, e por muito que a distinção nem sempre seja muito nítida na prática, à necessidade puramente religiosa de procurar a salvação da alma. Na óptica da Igreja católica, a resposta a esta procura passa pela existência de um monopólio sacerdotal sobre a atribuição da graça. O acesso dos crentes ao auxílio divino tem pois como condição necessária o recurso a estes mediadores institucionais que são os padres.
237Os aspectos mais intensos da religiosidade rural parecem centrados no recurso instrumental e personalizado aos intermediários sagrados, com o objectivo de se conseguir controlar e resolver as dificuldades do dia a dia. Questões essenciais como a protecção das culturas e da colheitas — sem esquecer a saúde e a doença, o nascimento e a morte, o bom entendimento familiar e entre vizinhos —, devem ser enfrentados quer por meio de orações e de sacrifícios oriundos da religião oficial, quer através da manipulação directa do sobrenatural. Exorcizar o mal que se faz sentir exige uma mobilização efectiva de todos os poderes, mesmo se estes são por vezes contraditórios. No espaço rural — e as freguesias de que nos ocupamos não fogem à regra — articula-se frequentemente, paralela ou alternadamente, as formas legitimadas de relação com o sobrenatural e o recurso às bruxas e aos curandeiros.
238Na religiosidade rural, são os santos — mais do que Cristo ou a Virgem, apesar da importância do culto de Maria — que são escolhidos como interlocutores privilegiados, como intermediários ou atribuidores das graças desejadas. Estabelecem-se pois relações de «patrocinato divino», dado que se trata efectivamente de uma troca: o favor concedido será pago nos termos precisos de uma promessa prévia. Nas colectividades analisadas, esta «protecção» leva a uma dispersão mais ou menos grande das devoções individuais e familiares, mas polariza simultaneamente as preferências num santo particular, símbolo da colectividade. Em Lemenhe, o santo-patrono é o divino Salvador, e em Gondifelos, São Félix e Santa Marina. Entretanto, outros santos marcam as festas locais. Em Lemenhe, é a Nossa Senhora do Carmo, cujo santuário se encontra na freguesia, que assinala a data da festa da freguesia. Em Gondifelos, é o Espírito Santo, cujos poderes especiais protegem as crianças da doença (e em particular da «gota»), que marca uma festividade local. Por ocasião dessa festa, as crianças dão três voltas à igreja passando sob o andor da procissão e dando-lhe uma cabeçada. Outrora, estas práticas não estavam associadas a nenhuma festa, mas um dia, um lavrador rico decidiu, «com o consentimento do padre», pedir uma autorização junto do Bispo. A partir daí, foi a casa desse lavrador que se encarregou de organizar os festejos todos os anos por essa ocasião (mandar os rapazes e as raparigas da freguesia fazer o peditório, gerir os fundos, etc.). A partir dos anos cinquenta, depois da morte desse lavrador, o filho herdeiro da casa tomou essa função a seu cargo.
239Em função dos problemas a resolver, pode também fazer-se apelo a outros santos. Nas freguesias estudadas, as mulheres grávidas, ou que acabam de ter um filho, vão em peregrinação à festa de Nossa Senhora dos Partos, que protege as mulheres no momento do parto, e à de São João da Pedra Leital, durante a qual se dá a volta a uma pedra em forma de seio — a pedra do leite — para assegurar a abundância de leite materno. Estas festas têm lugar nas paróquias vizinhas de Requião e de Seide/São Paio.
240As promessas que se faziam para obter graças e as diferentes formas do culto personalizado dos santos tinham outrora uma grande vitalidade, mas havia também outras maneiras de intervir junto dos poderes sobrenaturais a fim de resolver os problemas quotidianos — a saber, o recurso à bruxa e às técnicas de manipulação directa do sobrenatural, a fim de exorcizar as «forças do mal». Essa análise ultrapassa o âmbito deste trabalho, mas parece-nos importante fazer notar um aspecto particular: a posição social dos protagonistas dessas práticas. Os mediadores privilegiados destas relações com o sobrenatural vêm em geral das fracções de classe «pobres», e não fazem parte nem da hierarquia do poder eclesiástico, nem da hierarquia do poder local. Aliás, estes especialistas vindos do povo agem ora como mediadores entre o humano e o sobrenatural ora como agentes de procedimentos alternativos em matéria de saúde ou de resolução de problemas quotidianos. Nas freguesias estudadas, as parteiras, assim como aquela que é considerada como a bruxa, pertencem a grupos domésticos pobres ou «remediados». Quanto à «habilidosa em desmanchos», é a mulher de um pedreiro que é também barbeiro.
241Sem nos desvendar directamente o campo estratégico das diversas fracções de classe, o que acabamos de ver sugere que as classes «pobres» desenvolvem o seu campo de acção particular e exercem um tipo de mediação específico entre o humano e o sobrenatural e, também, entre as famílias da freguesia. O que aqui nos interessa é ver como o campo estratégico dos lavradores interage com outros campos de acção, e como é que esta interpenetração se exprime ao nível das relações entre grupos domésticos.
242Examinemos em primeiro lugar as trocas que têm lugar entre o campesinato abastado e os outros grupos sociais. Um primeiro indicador destas trocas diz respeito às relações privilegiadas que se tecem entre determinadas casas de lavradores e grupos domésticos de proletários ou de camponeses pobres. Os «pobres» escolhem os lavradores — e mais raramente os notáveis que residem no lugar —, como distribuidores de certos «favores», tais como a obtenção de um meio de transporte para um doente, consultas jurídicas ou procedimentos a efectuar, a obtenção de empregos no interior ou no exterior, a venda ou a avaliação de um bocado de terra quando se pretende construir uma casa, etc. Dado que se trata de contributos que serão retribuídos, estabelecem-se relações de patrocinato social e económico. (A retribuição consistirá em trabalhar gratuitamente, ou em se encarregar de certos serviços ou recados.) A reciprocidade é em geral diferida e difusa e, por causa destas características, é difícil avaliar com exactidão o grau de assimetria. A história das trocas entre António, pequeno proprietário, e a casa da Fonte, ilustra claramente esta reciprocidade difusa:
243António, filho de um lavrador cujo filho mais velho era o herdeiro privilegiado, recebeu a parte legítima em terras (7000m2). Descontente com as partilhas efectuadas pelos pais, António cortou relações com a família. Solteiro, explora a sua propriedade e trabalha ao dia para outros lavradores (sobretudo executando determinadas tarefas especializadas como a poda no Inverno). Para fazer o trabalho agrícola no seu campo, António é por vezes ajudado (empréstimo de instrumentos de trabalho, de gado) pelo patrão — o lavrador J., dono da casa F. — que é também seu vizinho. Com o tempo, António vai-se virando progressivamente para o seu vizinho rico. Começa a ir todos os dias a casa desse lavrador para «ajudar no que for preciso», e passa a comer lá. Pouco tempo depois, acontece que um dos oito filhos da casa F. quer casar, mas não tem casa. António propõe então a esse filho que se instale numa parte de sua casa. Em troca, o casal alimentará António. O lavrador vizinho fez-lhe então outra proposta: como a casa de António é velha, ele irá fazer algumas obras e arranjará dois aposentos, um deles para António e o outro para o jovem casal. António aceita e, em troca, é decidido que o grupo doméstico da casa da F. se encarregará de cuidar dele quando ele for velho. Em troca, o campo e a casa de António passarão a pertencer ao lavrador J., ou aos herdeiros deste, por morte de António. Entretanto, António continuou a trabalhar todos os dias na casa de lavoura de J. O seu estatuto é difícil de definir mesmo para os vizinhos: «É um pequeno proprietário, e a casa F. cuida dele», dizem, ou então: «É uma espécie de criado, vai lá todos os dias ajudar. Não é um criado mas ajuda no trabalho e eles tratam dele. Não se pode dizer que é um criado, porque ele é filho de lavrador, mas enfim, é como se fosse.»
244Segundo os camponeses pobres e os jornaleiros, antigamente as trocas eram quase sempre assimétricas. Subjectivamente, tinha-se a sensação de estar permanentemente em dívida para com os «benfeitores» mais ricos e de se pagar duas ou três vezes seguidas cada um dos favores dispensados. A dívida pode persistir durante a vida inteira e ser transmitida de geração em geração. Contudo, os filhos de famílias proletárias cujos membros trabalham há muitos anos para o mesmo patrão/benfeitor sentem-se devedoras, mas igualmente no direito de exigir eles próprios outros favores. Por exemplo, são os que estão em melhor posição para pedir trabalho para os próprios filhos.
245A reciprocidade exigida de parte a parte apresenta geralmente outra característica. Quando se pede um favor a alguém e que essa pessoa está em condições de satisfazê-lo, espera-se obter o favor imediatamente. Toda e qualquer negligência nesse sentido por parte do benfeitor é considerada intolerável: é sinal de má vontade para efectuar a troca ou de mau patrocinato. Mas se, pelo contrário, as relações de reciprocidade se estabelecerem sem atritos, há hipóteses de ela se tornar intergeracional e cada vez mais ampla. O lavrador que fornece lenha e outros bens para a casa de um jornaleiro acabará por estabelecer uma relação de «apadrinhamento» relativamente à família proletária. O grupo doméstico do jornaleiro fornecer-lhe-á a sua força de trabalho e prestará toda a espécie de outros serviços aos membros do grupo doméstico protector. Poderá igualmente servir de mediador entre a casa rica e o conjunto dos lares de proletários e de artesãos, escolhendo ou fazendo apelo a trabalhadores susceptíveis de fazerem favores.
246Ao nível do tipo de trabalhos que os «pobres» prestam aos mais ricos, verifica-se que estes implicam uma maior liberdade de movimentos e de circulação entre as casas. Uma jovem jornaleira vai e vem do trabalho dela e frequenta diversas casas, enquanto a filha do lavrador fica em casa e só sai para ir à missa, à feira com a mãe e às festas locais. Isto faz dos jornaleiros agrícolas intermediários importantes entre as pessoas e entre casas, entre o «dentro» das casas de lavoura e o «fora», ou seja a freguesia. Os jornaleiros e as jornaleiras «de confiança» podem ser agentes de recrutamento junto de outros assalariados e podem também agir como «relatores», transmitindo informações de outra natureza. Por exemplo, acontece que um rapaz que pertence a uma casa de lavoura, antes de iniciar certas negociações que comprometeriam as partes interessadas, peça a um jornaleiro que se informe, junto da rapariga que lhe interessa, se ela está interessada em «falar para ele».
247Mais ou menos intencionalmente, consoante as instruções que recebe e as suas fidelidades pessoais e familiares, o jornaleiro pode pôr os actores uns contra os outros ou de acordo uns com os outros. Considere-se, por exemplo, a história do casamento da sobrinha do lavrador José. Este lavrador e a mulher não tinham filhos e tinham mandado vir para sua casa uma sobrinha dela. José queria que a sobrinha casasse com o sobrinho, que também era afilhado dele, e que vivia em casa do pai no mesmo «lugar» que José e a mulher. José não escondeu as suas intenções e falou delas abertamente em casa. Estava à espera de um momento propício para falar do assunto em casa do irmão. Mas pouco tempo depois, conta José, resolveu mudar de ideias devido à seguinte história que o seu jornaleiro lhe veio contar. Esse jornaleiro tinha ido levar um recado a casa do irmão de José. Tendo avistado o sobrinho/afilhado, dissera: «Olha, o afilhado do meu patrão, aquele é que tem sorte, vai casar com a sobrinha, vai ser um belo casamento». Em resposta, segundo o jornaleiro de José, o irmão deste dissera: «Casar com a sobrinha? Que ideia, nem pensar, ele já tem em vista um partido melhor, vossemecê não sabia?» José não hesitou: «Disse cá para comigo, paciência, se eles têm outros projectos para o rapaz, hei-de encontrar outro para a minha sobrinha, e foi isso que eu fiz.» (J., lavrador de Lemenhe, nascido em 1915.)
248Umas vezes são intenções que são relatadas, outras vezes são saberes periféricos. Certos saberes femininos, como os relativos à contracepção, são passados de boca em boca pelas jornaleiras. Maria, nascida em 1921 e filha de um lavrador, conta que a mãe nunca lhe falou dessas coisas, nem mesmo o marido, e que ela própria quando ouvia as jornaleiras a falar enquanto trabalhavam, não queria ouvir o que se dizia: «Elas diziam que era preciso fazer assim e assado. Às vezes, quando ouvia falar de qualquer coisa, fazia-me de surda. Mais tarde, quando já era casada e já tinha dois filhos, comecei a prestar atenção ao que elas diziam. Eu lembro-me, que eu tinha uma vizinha que tinha tido muitos filhos e havia quem dissesse que eles eram cada um de seu pai. As mulheres também diziam que se ela os tivesse deixado vir todos ao mundo, ainda eram mais. Diziam que os tinha picado com uma agulha. Eu cá, não sabia nada daquilo, mas ouvia.»
249Falando, trabalhando, misturando-se com os outros, os jornaleiros e as jornaleiras fazem circular não só a força de trabalho mas também os saberes latentes e especializados, os boatos, as intenções não-confessadas. Essa escuta permanente da pulsação íntima da vida doméstica e comunitária não permite aos jornaleiros integrarem-se nas hierarquias patrimoniais que dão acesso ao poder legítimo, mas atribui-lhes uma experiência de protagonistas sociais, de influência na vida social local.
250É evidente que alguns grupos domésticos «pobres» têm um acesso menos fácil às benesses regulares por parte dos grupos domésticos abastados, ou então são protegidos por camponeses/pequenos proprietários ou caseiros. E há também aqueles que, tendo sido destituídos de uma rede de protecção ou de entreajuda, acabam por vir a depender da caridade comunitária gerida pelo padre ou pela Junta de Freguesia. Segundo o antigo presidente da Junta de Gondifelos, esta tinha sempre uma lista das famílias muito pobres. Esta lista incluía, em média, 25 a 30 lares de necessitados.
251Diversos mecanismos de assistência são criados ao nível da aldeia ou da freguesia. A distribuição semanal de esmolas, por parte das casas de lavoura abastadas ou remediadas, parece ser o mais importante:
«Todas as semanas, metia-se pão ou batatas em saquinhas, e já se sabia quem é que as vinha buscar. ‘Em tal dia, há tal pobre que vem’, dizia a minha mãe. ‘Damos-lhe a esmola em batatas’. Às vezes, eles preferiam receber pão, e então, a gente dava.» (J., lavrador de Gondifelos, nascido em 1911.)
«Havia muitos pobrezinhos antigamente, e nós, a gente dava sempre uma esmola. Em nossa casa, havia sempre um maqueirinho a que a gente chamava o maqueirinho dos pobres. Era uma rasa de milho e dava-se esse maqueirinho a todos os pobres que batiam à porta. Havia uns que vinham todas as semanas.» (Olinda, nascida em 1921, filha de um moleiro/lavrador, Gondifelos.)
252Existem ainda outros mecanismos. Em Gondifelos, os que fazem parte da lista dos necessitados têm direito a uma esmola especial no Natal, que é distribuída pelo Hospital da Casa da Misericórdia porque, em tempos, um padre da freguesia deixou os seus bens a essa instituição com a condição de ela dar dois mil escudos no Natal a cada um dos pobres da lista. Quando é preciso, fazem-se também peditórios no interior da aldeia para ajudar uma família pobre a pagar as despesas de um funeral ou a sobreviver durante algum tempo em caso de necessidade.
253As relações de patrocinato e de dependência social reflectem-se nas atitudes dos lavradores para com as famílias pobres da freguesia. Pode dizer-se que essas relações oscilam entre um paternalismo caritativo e protector e um juízo de desprezo face aos comportamentos e à indigência dessas fracções de classe. A atitude paternalista permite por vezes às famílias ricas tirar proveito da dependência social apropriando-se da força de trabalho, dos saberes e, até, do pouco património que possuem as famílias «pobres», em troca da protecção social e económica dispensada.
254Estas atitudes reflectem-se também nas alcunhas das diferentes famílias. Na freguesia, toda a gente tem alcunhas. As dos lavradores evidenciam a sua identidade patrimonial: o «Cancela», é o chefe de família da Casa da Cancela. Quanto às alcunhas das famílias proletárias, estão muitas vezes relacionadas com as práticas sociais que os lavradores desprezam: as «grossas» são duas jornaleiras de Lemenhe; o «José da Reinaçãozinha» é um jornaleiro solteiro de Gondifelos que toca viola, bebe muito e “faz a festa” em toda a parte — em casa, com os irmãos e irmãs, ou nas casas de lavoura na época das malhadas e das colheitas.
255Sobre as jornaleiras mães solteiras, a maior parte dos lavradores diz que se trata de mulheres perdidas e até de «vacas do monte», que não têm dono. Aqui e além, encontram-se apesar de tudo algumas atitudes de maior tolerância, como a do antigo presidente da Junta de Gondifelos:
«Havia mulheres que não conseguiam casar e é verdade que se dizia que eram mulheres perdidas, mas não eram. Havia mesmo algumas que eram educadas e trabalhadeiras, mas tinham-se enamorado, tinham filhos de namoros.»
256Quanto ao padre, incita ao perdão, recomendando aos que dizem mal dessas mulheres: «Rezem por elas, porque somos todos pecadores.»
257Para aqueles que outrora “serviram” em casa de lavradores, a recordação do desprezo de que eram objecto é uma constante, e surge sempre nas suas histórias de vida. O discurso de Zulmira, em Lemenhe, é típico destas recordações:
«Fui servir ainda não tinha sete anos. Eu era pequenina porque éramos mal alimentados em nossa casa. O meu pai era pedreiro, não fazia terras, e a minha mãe era jornaleira. Como eram só dois rapazes e tinham que ir para a tropa, os pais resolveram pô-los na escola, esses ao menos, e nós as raparigas, punham-nos todas a servir, que não nos podiam ter a todas em casa. Para criar dez filhos, tinha que ser assim. Eu fui guardar gado para casa de uma família rica. Era criada, vivia lá. Os meus patrões pagavam poucochinho aos criados — cinco escudos, não dava para nada, era só remendos. Noutras casas, era só o comer e o vestir mas a maior parte já ia dando alguma coisita. A servir, passávamos fome e porrada, os patrões batiam muito e havia poucos que nos estimavam, éramos desprezados. Mas que é que a gente podia fazer? Também a gente ia para casa, nem pão tinha. Era assim. A gente até cantava uma cantiga sobre os patrões, lembro-me muito bem, não sei se a senhora conhece: ‘Quatro coisas quer o amo do criado que o serve: pegar cedo, largar tarde, comer pouco, e cara alegre’. Cantávamos isto muitas vezes.» (Zulmira, sete anos em 1932, caseira reformada de Lemenhe.)
258Para além das relações de patrocinato que estabelecem com as famílias pobres, os lavradores exercem uma certa mediação social a um nível mais alargado, como é o caso das relações sociais entre vizinhos e entre famílias do mesmo lugar. Podem exercer um ascendente considerável nos assuntos materiais e morais do lugar. Essa mediação é particularmente reveladora dos valores adoptados para solucionar conflitos e para harmonizar as vontades e as estratégias dos grupos domésticos e dos seus membros. Eis alguns exemplos deste tipo de mediação, tal como nos foram contados pelo lavrador/antigo presidente da Junta de Gondifelos que, sendo muito «estimado» pelas pessoas da freguesia em geral, era constantemente chamado pelos vizinhos para dar a sua opinião ou intervir na vida familiar, doméstica e de vizinhança:
1. «Essa jornaleira enamorou-se mais do que uma vez e também de um sapateiro que era casado. Esse sapateiro tinha então duas famílias e entretanto a mulher legítima aborreceu-se. E ele veio ter comigo para ver se eu harmonizava as coisas com a mulher dele. E eu tentei, a ver se harmonizava com a mulher dele mas ela já não o queria aceitar e depois abandonou-o.»
2. «Ela era costureira, era viúva de um alfaiate, e um dia disse-me: ‘Senhor C., eu era capaz de casar outra vez’ E eu disse-lhe: ‘Já foste casada com um alfaiate, és costureira, já pensaste em alguém? ‘Não, senhor C. Não sei. Uma pessoa que o Senhor C. lhe pareça que a gente se entenda’. Então eu disse-lhe: ‘Bom, há aquele alfaiate, ele é solteiro, é boa pessoa, se quiseres que eu lhe diga alguma coisa’. A seguir falei com ele e disse-lhe: ‘Olha ela é boa artista e é boa pessoa. Tem uma loja de fazendas, pode-te acompanhar. Anda até lá, conversa com ela’. E ele foi. E como ela não lhe desagradou, resolveram casar.»
3. «A Maria era solteira e tinha uma protegida — uma rapariga cuja mãe foi mãe solteira e que a família deu ao desprezo. Não a deixavam comer à mesa, ia para o pátio. A Maria teve pena dela e da bebé, trouxe a bebé para casa dela e criou-a. A mãe da criança morreu de desgosto. Depois quando a protegida começou a namorar com um rapaz daqui, a Maria não queria, não queria que a protegida casasse. Um dia, a Maria estava à minha espera e disseme: ‘Não quero que ela case, não lhe seguro nada.’ (A Maria era uma pequena proprietária e tinha uma casa sua.) Eu, então, fui ter com a protegida dela (que também se chamava Maria) e disse-lhe: ‘Ó Maria, vê lá, não deixes o namoro vir para aí, não o deixes vir muitas vezes’. Mas, é claro, falava-se daquilo e o pessoal dizia que os papéis do casamento já estavam a correr. Um dia, a Maria veio a correr por aí abaixo e disse-me: ‘Ó Senhor C., ela vai casar’. Eu disse-lhe: ‘Não, não é verdade, tem calma’. ‘É verdade, é, e eu já não lhe seguro nada, quero é fazer-lhe o testamento a si, seguro-lhe tudo’. E chorava. Eu, então, disse-lhe: ‘Eu não quero nada. Somos vizinhos e amigos. Tu criaste a rapariga, deve ser tudo para ela’. Mas preveni a protegida: ‘Olha lá, eu não aceitei. Mas outro pode aceitar, vê lá o que fazes.’ Depois disto, o namorado deixou de vir e ela não casou. Depois de a madrinha falecer, depois casou, até fui eu que tratei de tudo.»
4. «Eles davam-se mais ou menos, ela e o marido. Mas ela passava a vida a gritar com ele. Lembro-me de que um dia, sem querer, ele perdeu o vinho todo. A loja estava cheia de vinho. E ele pegou e fugiu para casa dos irmãos. Quando ela chegou a casa, contaram-lhe o acontecido e ela disse: ‘E onde é que ele está? Ainda se eu lhe tivesse ralhado, ele tinha razão para fugir. O que está perdido, perdido está’. Ele ficou uns dias com os irmãos. O povo ria-se. Diziam que ela para lhe dar uma sapatada, tinha de se pôr em cima de um banco e que mesmo assim, ele tinha fugido. Mas é claro que ele só tinha fugido porque não queria aborrecer-se. Depois um dia lá apareceu, assim de longe. E ela perguntou-lhe: ‘Então, sempre estás resolvido a vir? Faço de comer para mim ou para os dois?’ E ele respondeu: ‘Venho comer à noite’. E eu então disse-lhe quando ela me contou o que se tinha passado: ‘Não lhe digas nada quando ele vier’. E ela calou-se, não lhe disse nada.»
259A entreajuda entre vizinhos ao nível do trabalho agrícola é igualmente importante mas, mais uma vez, o que à primeira vista pode parecer gratuito está afinal submetido a uma lógica de reciprocidade difusa. Se os membros de uma casa de lavoura fazem apelo à mão-de-obra de outra casa, espera-se mais tarde ou mais cedo um movimento em sentido contrário. Se um camponês pobre vem dar uma ajuda, um dia ceder-lhe-ão uma junta de bois para que ele lavre o campo dele, ou dar-lhe-ão um barril de vinho. Quanto aos jornaleiros, são sempre pagos, a menos que venham dar uma ajuda em troca de um favor anterior.
260É preciso todavia notar que, no que respeita ao trabalho agrícola, não são os lavradores que mais intensamente recorrem aos laços de entreajuda entre a vizinhança. Contrariamente aos camponeses pobres, que a eles recorrem muitas vezes para fazerem face à falta de instrumentos de trabalho ou de mãode-obra, os lavradores empregam mão-de-obra assalariada e, quando têm necessidade de pedir emprestada uma junta de bois ou de pedir uma opinião, o que fazem é recorrer à «família», isto é aos laços de parentesco alargado, ou ainda a um lavrador vizinho «amigo». Os vizinhos do «lugar» assistem de preferência às festas de trabalho, como as malhadas ou a desfolhada do milho, durante as quais toda a gente é convidada a vir trabalhar e a divertir-se.
261Além das relações de entreajuda, as casas de lavoura estabelecem entre elas outros laços estreitos. O principal indicador directo destes laços diz respeito às alianças matrimoniais efectuadas. Entre os 34 casais que dirigem casas de lavoura em Gondifelos no princípio dos anos 60, 14 são o resultado de trocas efectuadas entre casas da freguesia. Entre estes casais, metade são casamentos de «porta com porta», ou seja entre casas adjacentes. Há também um casamento que se efectua a partir de um intercâmbio de irmãs: o filho da casa A casou com a filha da casa B, e o filho da casa B casou com a filha da casa A. Quanto aos outros casais de lavradores, 19 provêm de alianças entre casas de lavoura de Gondifelos e casas das freguesias vizinhas (Balazar, Negreiros, Cavalões, Rates, Macieira, Fradelos, Chorente, Minhotães, Arcos) situadas num raio que não vai além dos cinco quilómetros. O último casal constitui a única excepção: marido e mulher vêm de outra freguesia do concelho de Famalicão (Ribeirão), tendo o marido herdado terras em Gondifelos através de um tio solteiro.
262Por outro lado, um casamento desigual é severamente sancionado. A história de Armindo é disso exemplo. Filho de um lavrador, A. devia casar-se com a filha de um grande negociante de vinhos/proprietário médio de Gondifelos. Mas um imigrante do Brasil conseguiu, com a ajuda de várias alcoviteiras, estragar-lhe os planos e casar-se ele próprio com a rapariga. Por desgosto, A. juntou-se então, contra a vontade dos pais, com uma operária da fábrica de papel. A família nunca mais o ajudou e nunca mais quis vê-lo. A. morreu pouco tempo depois sem ter deixado testamento a favor da mulher. Instado pelo Presidente da Junta de Freguesia, o herdeiro privilegiado da casa dos pais de A. fez então uma concessão, dando à viúva uma casa pequena que pertencia à família. O resto da parte legítima de Armindo permaneceu nas mãos da família.
263Entre os lavradores, um casamento desigual deve ser evitado a todo o custo, e o controlo apertado das saídas das jovens visa muito mais a manutenção do poder exercido sobre a escolha matrimonial do que a protecção da sua virgindade. Quanto aos rapazes, são preparados para aceitar a orientação paterna nesta matéria e são incitados a procurar por sua iniciativa uma esposa rica. Casamento, aliança entre casas abastadas e património são, para este grupo social privilegiado, valores indissociáveis, pois a manutenção do seu estatuto depende intrinsecamente das estratégias matrimoniais dos seus grupos domésticos. Evidentemente, tudo isto se passa num contexto social onde as estratégias de emigração e de reconversão de capitais ocupam apenas um lugar secundário na corrida ao poder e ao prestígio. Consequentemente, a integração da família rural centra-se fundamentalmente na produção de alianças entre famílias de lavradores, o que, por seu turno, dirige mais a atenção da família para a sociedade local — a aldeia e as freguesias vizinhas — do que para o exterior.
264Produzindo alianças, relações de patrocinato e uma certa regulação no interior da comunidade, produzindo mediações sociais entre a comunidade e o exterior, os lavradores formam na freguesia uma rede forte de relações sociais. Orgulhosos das suas casas «auto-suficientes», sabem que o cereal que produzem é, para o exterior, prova da importância social da freguesia. E, na própria freguesia, são eles que distribuem o pão, o trabalho, as opiniões, e os recursos raros como os conhecimentos jurídicos. Só a Igreja, no plano institucional, retira a este grupo social uma parte do seu poder.
265Neste contexto, o grupo doméstico surge, ele também, como uma estrutura social intermediária de grande importância. É ele quem, na ausência de estruturas de Estado ou outras, serve de base à construção de uma rede de assistência e de entreajuda. A troca que se organiza faz apelo, de facto, às unidades familiares e não aos indivíduos. Vimos assim que existe uma lista de «lares» pobres, que as relações de entreajuda criadas entre dois indivíduos implicam todos os membros dos respectivos grupos domésticos, que a função de mediador exercida por um lavrador é susceptível de ser transmitida ao filho — como se, a partir desse momento, a família pudesse assumir uma responsabilidade despoletada por um dos seus membros. A família não é apenas a base de que depende a sobrevivência das pessoas que a compõem, mas também a principal estrutura responsável pela circulação do pão, do poder, da entreajuda. É deste ponto de vista que nos confrontamos com uma comunidade que tende a ser «familialista». Contudo, esta estrutura é contrabalançada pelo campo de acção das diferentes classes sociais, pelo campo de acção do presidente da Junta de Freguesia, pelo do padre, pelas solidariedades de vizinhança ou entre indivíduos do mesmo sexo. Para os lavradores, a casa e os membros que a compõem constituem a primeira rede estruturadora da sua acção, e isso é igualmente um valor que eles impõem, enquanto grupo dominante, à ideologia local. Para os jornaleiros agrícolas, este elo é mais ténue, uma vez que são obrigados a circular, como os favores, de casa em casa. A procura do «pão» não os liga à sobrevivência de uma casa ao longo dos tempos, mas apenas à categoria dos criados ou dos jornaleiros, isto é, a uma situação de classe que os outros desprezam.
Em síntese: principais traços da família-tronco no passado
266As características principais da família-tronco e da sua «lógica de casa» já foram sublinhadas por diversos estudos de natureza sociológica, histórica ou etnológica. A atenção incidiu, e com razão, no casamento de conveniência, no poder autoritário dos mais velhos e na transmissão do património (o precípuo) que procura preservar a casa a longo prazo. A defesa dos interesses colectivos e a conformidade foram logicamente identificadas como os principais factores de produção dessa «lógica de casa». Mas alguns outros factores não puderam ser postos em evidência, porque estavam intimamente ligados à dinâmica de vida quotidiana nas famílias de lavradores. A ideia da produção da auto-suficiência, valor fundamental da dinâmica familiar, permite evidenciá-los.
267O aspecto mais significativo desta produção, ou fabricação, da casa de lavradores é o processo que visa Segurar, e que postula a existência de laços estreitos entre os membros da casa por um lado, e entre estes e os interesses da «casa» por outro. Para se criarem tais laços, é preciso lançar amarras específicas: o hábito do trabalho agrícola intensivo e bem executado, destinado a suscitar uma verdadeira paixão pela organização do trabalho da casa; os laços entre cônjuges decorrentes da existência de filhos legítimos, de competências complementares e de um património comum; o «segurar» do herdeiro através da quota-parte disponível ou de outros privilégios económicos ou de relacionamento (comer à mesma mesa que o chefe de família, por exemplo); os laços de colaboração e de competição entre irmãos e irmãs, que se constroem na corrida para a obtenção de retribuições no dia a dia e a longo prazo. Esta competição pela apropriação dos recursos da casa faz passar a defesa dos interesses colectivos dos filhos para segundo plano e permite amarrá-los melhor, individualmente, ao trabalho e aos interesses da casa. A «paixão» pelo trabalho e a dedicação de que se dá prova no que respeita aos interesses da casa são avaliados no momento das repartições diárias (alimentação) ou pontuais (partilha dos bens). Cada gesto assume então uma dimensão considerável: inscreve-se num capital de comportamentos de trabalho ou de entreajuda que produzem posições domésticas diferentes face às condições de subsistência e de herança no interior da casa.
268Se «amarrar» e «segurar» constitui um desafio fundamental para o funcionamento da família-tronco, é pois porque ele permite inculcar, em cada um dos membros da família, normas de ser e fazer que de outro modo seriam vistas como vindas do exterior, impostas pela sociedade ou pela simples autoridade dos mais velhos. As formas concretas deste processo de ligação e de apego só se compreendem, todavia, no contexto das actividades valorizadas pela sociedade rural: trabalhar, poupar, alimentar-se, ajudar-se para assegurar a subsistência, possuir terras e uma casa. É procedendo de maneira a que os indivíduos trabalhem e se ajudem uns aos outros, retribuindo-lhes com alimentos e com património fundiário, que se suscita neles o sentimento de que eles estão «seguros», «agarrados», «amarrados» à instituição-casa e aos objectivos da auto-suficiência.
269A análise mostra também que a «lógica de casa» está profundamente enraizada numa concepção difusa e diferida de reciprocidade e que não se caracteriza por uma apropriação intrinsecamente comunitária dos bens, das tarefas e dos espaços. As finalidades da boa gestão da casa e de designação de um sucessor privilegiado incitam sobretudo à construção de estatutos, de espaços e de poderes diferenciados ou autónomos, baseados quer nas desigualdades tradicionais dos sexos e das idades, quer na avaliação das competências e das «paixões» (pelo trabalho e pela gestão) manifestadas por todos ao longo dos tempos. O estatutário e o comunitário, a separação e a fusão, interpenetram-se pois continuamente ao nível da repartição e da apropriação dos bens raros no seio da família. A vida familiar articula-se simultaneamente à volta de um grande esforço comum no quotidiano, em que toda a gente participa e trabalha intensamente, e numa preservação judiciosa dos interesses e da autonomia dos dirigentes e dos futuros dirigentes.
270Estas características da família-tronco do Baixo-Minho só podem ser compreendidas se relacionadas com um contexto social e económico mais alargado, dominado por uma profunda dependência face à propriedade fundiária, principal fonte de segurança económica e de prestígio na sociedade rural. A família de lavradores, proprietária dos meios de produção, situa-se no topo da hierarquia social. A pertença à casa, mesmo que se tenha nela um estatuto pouco privilegiado, só se troca por um estatuto semelhante no interior de uma outra «casa» de lavradores, por um bom casamento, por um negócio por conta própria ou uma emigração. Tudo isto contribui, portanto, para criar condições favoráveis à produção de uma certa conformidade à vontade da família de orientação. Contudo, segundo os dados examinados, isto não dispensa a implementação de factores específicos que produzam o apego ao trabalho e à «casa». «Moldam-se» as crianças para a agricultura e para a gestão, «levamse» os irmãos e as irmãs a aceitarem arranjos ao nível da partilha dos bens, «seguram-se» os interesses comuns dos membros do casal. Por outras palavras, para assegurar a continuidade da casa de lavradores, não se trata apenas de favorecer um herdeiro e de impor a autoridade. Trata-se sobretudo de trabalhar (fazer obra) no sentido de se fabricar amarras, ou laços, fortes e seguros, de paixão pelo trabalho agrícola e pelos saberes ligados a uma boa gestão, de respeito e amizade pela geração mais velha, de complementaridade entre os cônjuges, de ligação aos interesses da casa no tempo, e nos quais possa assentar uma «lógica de casa».
Notes de bas de page
1 Cf. Kellerhals, J., Troutot, P.-T, e Lazega, E., Microsociologie de la Famille, Paris, Puf, 1984, pp. 36-39: Roussel, L., «Mariages et Divorces. Contribution à une analyse systématique des modèles matrimoniaux», in Population, 6, 1980, p. 1027.
2 Pina Cabral, J., Sons of Adam, daughters of Eve — the peasant world view of the Alto Minho, Oxford, Clarendon Press, 1986, p. 32.
3 Cf. Verdon, M. «Shaking off the domestic yoke, or the sociological significance of residence», in Comparative Studies in Society and History, no 22, 1980, pp. 109-132.
4 Ver Verdon, M., op. cit., 1980, pp. 109-132 e também Anderson, M., «Some problems in the use of census type material for the study of family and kindship systems», in Sundin, J. e Soderlund (eds.) Time, Space and Man, Stockholm, Almqvist and Wiksell International, 1979, pp. 69-80; Elder Jr, G.H., «Family history and the life-course», in Hareven, T.K., (ed.) Transitions: the Family and the Life-Course in Historical Perspective, New-York/London, Academic Press, 1978, pp. 17-64; Kertzer, D.I., «A life course approach to co-residence» in Kertzer, D.I. e Blau, Z.S. (eds.), Current Perspectives on Aging and the Life Cycle — Family Relations in Life Course Perspective, Vol. 2, Ja Press, 1986, pp. 1-22.
5 Sobre a importância simbólica do processo de fabrico do pão, ver Pina Cabral, op. cit., 1986, pp. 41-45.
6 Encontramos aqui aquilo a que Tepicht chama a substituição dominante na economia camponesa: a que se produz, nos dois sentidos, entre o factor trabalho e o factor terra, e que se traduz por uma produção mais elevada por hectare nas explorações mais pequenas, e menos intensa, mas mais forte por exploração, nas que dispõem de superfícies relativamente mais extensas. Cf. Teplicht, J., Marxisme et agriculture: le paysan polonais, Paris, A. Colin, 1973, pp.26-27.
7 Monteiro, P., Terra que já foi terra, Lisboa, Salamandra, 1985, pp. 120-122.
8 Cf. Thomas, W. e Znaniecki, F., The polish peasant in Europe and America, New York, Octagon Books, 1974, p. 190.
9 Ver, por exemplo, Ariès P., em «D'hier et d'aujourd'hui, d'une civilisation à 1'autre», in Couples et familles dans la société d'aujourd'hui, Lyon, Chronique sociales de France, 1973, p. 117-126.
10 Ariès, P., L'Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Regime, Paris, Seuil, 1973.
11 Durães, M., «A Casa Rural Minhota: Papel e Significado no Contexto Hereditário», in Cadernos d Noroeste, Vol. 1, no1, 1987, pp. 81-93.
12 Brettell, C., «Kinship and Contract: Property Transmission and Family Relations in Northwesten Portugal», in Comparative Studies in Society and History, no3, 1991, pp. 443-465.
13 Costa, F.D., «Prazos, sucessão e poder paternal no Minho: a livre nomeação contra a transmissãi igualitária (contribuição para o seu estudo)», in Revista de História Económica e Social, no 26, 1989 pp. 85-118.
14 Segundo o antigo Código Civil, aquando da morte de um dos cônjuges, a sua parte (metade) do património era inteiramente herdada pelos filhos. Foi apenas com o Código Civil de 1978 que a situação se alterou; a partir desse momento, o cônjuge sobrevivo herda 25 por cento do património do cônjuge falecido. Era pois frequente, outrora, proteger o cônjuge sobrevivo deixando-lhe a quota-parte disponível.
15 Era necessário, para se efectuar uma doação, obter a concordância e a assinatura dos outros herdeiros.
16 Ver, por exemplo, Zonabend, F., op. cit., 1980, p.185.
17 N.B. Desde o princípio do século os casais de idade e os herdeiros ocupam sucessivamente as duas partes da casa de habitação.
18 Ver, por exemplo, a análise do casal rural em Segalen, M., Sociologie de la famille, Paris, Colin, 1981, pp. 190-195, e em Segalen, M., Mari et femme dans société paysanne, Paris, Flammarion, 1980, pp. 167-183.
19 Estas normas e estas práticas diferem consideravelmente das práticas descritas pelos casais rurais nos estudos sobre a sociedade rural de outrora. Os autores descrevem geralmente casais em que «a mulher tem o poder de gerir o orçamento familiar. O pouco dinheiro líquido que entra regularmente nas finanças provém da venda dos produtos da leitaria ou da capoeira e é ela que dispensa ao marido semana após semana o dinheiro de que ele precisa para o tabaco ou para ir à taberna» (Segalen, M., op. cit., 1981, pp. 192-193). Ver também Zonabend, F., op. cit., 1980, p. 196.
20 Em cada genealogia, indicámos a idade, em 1946, do filho que permaneceu na casa.
21 Ver a tese de Ingerson, A., op. cit., 1984, nomeadamente o capítulo 2 (pp. 44-65) para uma análise desta questão. Ela propõe uma distinção entre o familialismo das classes populares, assente na promoção económica da família, e o familialismo corporativista.
22 Cf. Cabral, M. V., «Etat et paysannerie. Politiques agricoles et stratégies paysannes au Portugal depuis la Seconde Guerre mondiale», in Sociologie Ruralis, n° 1, 1986, pp. 6-19, nomeadamente as páginas 8-11.
23 Cf. Medeiros, F., «Capitalismo e pré-capitalismo nos campos de Portugal, no período entre as duas guerras», in Análise Social, n° 46, 1976, pp. 288-314, p. 299.
24 Tepicht, J., Marxisme et agriculture: le paysan polonais, Paris, A. Colin, 1973, pp. 28 e seguintes.
25 Cf. Baptista, F., «Apolítica agrária e o Estado Novo», in Cadernos de Ciências Sociais, n° 8/9, 1990, pp. 91-98; Baptista, F., «Economia agrária e política agrária», in Revista Crítica de Ciências Sociais, n° 7/8, 1981, pp. 59-80; e Baptista, F., Política agrária dos anos trinta a 1974, tese de doutoramento, ISA, 1984.
26 Cf. Cabral, M.V., «Sobre o fascismo e o seu advento em Portugal: ensaio de interpretação a pretexto de alguns livros recentes», in Análise Social, n° 48, 1976, pp. 873-915.
27 Baptista, F. op. cit., 1981 e 1990.
28 O Código de 1940 citado por Caetano (cf. Caetano, M., Manual de Direito Administrativo, Tomo 1, Coimbra Editora — 8a ed., 1968, pp. 321-326) define a «freguesia» como o conjunto de famílias que no interior do território municipal, desenvolvem uma acção social comum por intermédio de órgãos próprios — a saber, a junta de freguesia e o seu regedor. A freguesia é considerada como um elemento da municipalidade, tal como a família é um elemento da freguesia. Entre a família e a freguesia, existem outros espaços territoriais — o «lugar» ou a «aldeia» —, mas estes não são considerados como unidades administrativas. Em termos históricos, a freguesia é de origem eclesiástica e os seus limites são os da paróquia. As paróquias foram criadas em Portugal no decurso dos progressos de evangelização, e da colonização interna das terras reconquistadas aos Mouros. Os paroquianos chamavam-se os «filli ecclesiae» e deste termo derivam as palavras «feligresses» e «fregueses» (paroquianos). À congregação dos «fregueses» chamar-se-á «freguesia». A partir do código de 1878, a «freguesia» faz parte da organização administrativa portuguesa. A «junta de freguesia» é o corpo administrativo, o órgão de gestão da autoridade local. É constituído por três membros eleitos pelos chefes de família da freguesia, que entre eles escolhem um presidente, um secretário e um tesoureiro. É o presidente quem representa a junta, dirige os trabalhos e executa as decisões tomadas. Finalmente, existe também um «regedor», que representa a autoridade municipal, exerce as funções de polícia municipal e representa e assessoria, ao nível da freguesia, o presidente da câmara de que depende directamente. Não é um magistrado administrativo.
29 Machado, C. Sousa e Rebelo, L. (ed.), O nosso Concelho, obra de todos para todos, Vila Nova de Famalicão, Vila Nova de Famalicão, ed. Minerva, 1947.
30 Cf. Machado, C. Sousa, e Rebelo, L. (ed.), op. cit, 1947, pp.111-134.
31 A organização corporativa rural apresentava duas faces: de um lado, o enquadramento económico através dos organismos de escoamento da produção — dos quais o mais importante era a federação do trigo —, destinados à regulação da concorrência; do outro, o enquadramento social através da implantação no território de organismos primários (Grémios e Casas do Povo). Ver Cabral, M.V., op. cit., 1986, p. 10 e Lucena, M., A Evolução do sistema corporativo português. I — O Salazarismo; II — O Marcelismo, Lisboa, Perspectivas e Realidades, 1976.
32 A Casa da Misericórdia era uma instituição religiosa criada para «alívio dos pobres e dos doentes», para educar as crianças abandonadas e tomar conta dos órfãos.
33 Cf. Mónica, F., Educação e Sociedade no Portugal de Salazar, Lisboa, Ed. Presença/GIS, Análise Social n° 5, 1978, p. 154.
34 Mónica, F., op. cit., 1978, pp. 252-259.
35 Cf. Mónica, F., op. cit., 1978, p. 212.
36 Almeida, J. Ferreira de, «La religiosité au Portugal», in Sociologie Ruralis, n° 1-1986, pp. 70-83. Ver também Wolf, E.R., Peasants, New Jersey, Prentice-Hall, 1966, pp. 96-106 sobre a religiosidade rural e a sua interacção com a religião dos especialistas.
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