3. Identificando a Bica
p. 81-127
Texte intégral
As várias Bicas
As bases topográficas de um encravamento
1Numa das minhas muitas deambulações pelas Escadinhas, conversando com um habitante idoso, cujo pai e avô já ali haviam nascido, surgiu uma explicação para o aparecimento desta vale fundo – a Bica – que eu logo me apressei a encarar como um mito de origem. Disse-me o sr. Alberto:
Isto dantes não era assim, era tudo plano, a direito. A Bica não existia, chamava-se Monte Sinai, e era um alto. Isto, antes do terramoto – não o de 1755, mas um outro, antes. Um homem que andava a acender os candeeiros, de noite cerrada, desatou a gritar para que todos fugissem, que as terras estavam a desabar... e assim nasceu a Bica (Outubro de 1991).
2Mais tarde e já longe da Bica, afundada nos cadeirões da Biblioteca Nacional, encontro, em duas obras de Júlio Castilho – Lisboa Antiga. O Bairro Alto e A Ribeira de Lisboa, uma descrição semelhante:
O monte de Santa Catarina prolongava-se para a banda do mar na mesma altura do cume que ainda resta. Cento e dez propriedades de casas, em três grandes ruas, se erguiam naquela espécie de promontório que terminava no focinho, por uns cães de pedra, à orla do rio (Castilho, 1954, vol. II: 327).
Correndo o ano de 1597, a 22 de Julho1, pelas 11 horas da noite, acordavam em sobressalto os moradores do sítio, ao ouvirem uma voz de homem, que passava, e parecia fugir, gritando: - «Fujam! Fujam todos que vem o monte abaixo!» Espavorida, saiu a alucinada turba, e num tropel indescritível, desamparando as casas e os haveres, procurou cada qual, como podia, abrigo algures... Cento e dez propriedades de casas e três ruas não tardaram a cair de roldão, com uma parte do monte, desagregado do cabeço das Chagas, que lhe era contíguo, e atirado sobre a Ribeira (Castilho, 1981: 129-130).
3Anos mais tarde, em 1621, outro desabamento de terras desagregou de novo o alto de Santa Catarina, que caiu sobre a estrada da Boa Vista. Estes esboroamentos de terreno2 parecem ter sido, ainda segundo as fontes consultadas por Castilho, bastante frequentes durante o primeiro quartel do século xvii. Em época anterior a eles, parece que os montes das Chagas e de Santa Catarina se ligavam numa plataforma elevada, chamada Monte ou Pico de Belver, ou Belveder, e que era um dos lugares de passeio e de observação do rio e da faina marítima (Ferreira e Calado, 1992: 24). No seguimento deste último aluimento, e ainda no mesmo ano de 1621, um requerimento feito pelos moradores do sítio acidentado, ao vice-rei, solicitando autorização e auxílio financeiro para a construção de uma barbacã ou muralha e alegando a formosura do monte e do seu templo, bem como o valor e a nobreza das casas aí situadas, é transcrito por Freire de Oliveira nos seus Elementos... : Dizem os fregueses desta Igreja de Santa Catarina de Monte Sinai e moradores destes Bairros, abaixo-assinados, que a Câmara desta cidade está mui apostada em acudir à ruína deste monte...sem a ajuda de V. Exa e seu favor este reparo não se pode fazer... (Oliveira, 1885, tomo II: 98-9). Como consequência, pouco tempo depois, assentou a dita Câmara que, reconhecida a urgência de uma obra grande no sítio onde o monte entulhara o caminho marginal e o Cais das Negras mandou desenterrar tudo e encomendou ao arquitecto da cidade, Teodósio de Frias, um plano de urbanização para a área danificada (Castilho, 1954, vol.II: 328-9). O traçado actual da Bica e sua envolvente, de malha ortogonal hoje classificada de pré-pombalina, com a sua articulação entre ruas e travessas, apesar do acentuadíssimo declive do solo, é, como se vê, bastante anterior ao terramoto de 1755. De um modo geral, o sistema de arruamentos que ali hoje podemos observar, tem, por conseguinte, cerca de quatro séculos de existência e terá sido contemporâneo da edificação do Bairro Alto.
4As duas obras atrás referidas, suficientemente abrangentes da área onde a Bica se insere – O Bairro Alto e A Ribeira de Lisboa –, exemplificam a invisibilidade deste enclave. Na primeira obra, histórias e memórias, normalmente relacionadas com os edifícios, seus proprietários, inquilinos e pessoas aparentadas, vão sendo desfiadas, abrangendo as Chagas e Santa Catarina. Algumas referências fugitivas a duas ou três ruas da parte de cima da Bica, vizinha do Bairro Alto, são feitas. Na segunda obra toda a área de S. Paulo é minuciosamente relembrada, na sua história, nos seus ambientes, nas suas construções e instituições, nas suas pedras...como, por exemplo, o nicho que se encontra incrustado na esquina do prédio que torneja da rua de S. Paulo para a Calçada da Bica Grande. Mas esta calçada, o enclave que localmente era – e continua a ser – conhecido e reconhecido como Bica não merece qualquer atenção, nem sequer uma referência fugitiva, não possuindo qualquer tipo de existência nestes textos. No entanto, ele já existia numa densidade de habitantes bastante elevada e o seu nome era não raras vezes referido na imprensa quotidiana por altura das festas do Santo António ou S. João (Cap. 6).
5Outra história que se conta, em tom jocoso, lembra a existência de um portão de ferro, ao fundo das escadinhas, que se fechava à noite e assim defendia o bairro de estranhos. Sempre tomei esta alusão como uma brincadeira. Qual não foi o nosso espanto – meu e de Gabriela Carvalho, historiadora do Gabinete do Bairro Alto – quando, ao analisarmos com mais cuidado as fachadas laterais de ambos os edifícios setecentistas que tornejam para a rua de S. Paulo, ladeando a Calçada, encontrámos bem visíveis, ainda, os parafusos de dobradiças e a reentrância na pedra onde teria encaixado um portão. Segundo Gabriela, que me acompanhou e datou, aproximadamente, todos os edifícios da Bica, um destes edifícios setecentistas, teria sido um Recolhimento de Mulheres de Nossa Senhora dos Aflitos, o que a levou a especular sobre a existência de uma pequena horta ou quintal sobre o qual fecharia o portão – o que não invalida a existência de edifícios pela encosta acima, aliás bem comprovados pelas pré-existências dos séculos xvi e xvii existentes nesta rua (Gráfico 1).
6Esta história reforça a ideia de que a Bica, embora não possa ser considerada uma vila ou um pátio de um ponto de vista estritamente urbanístico (Cap. 2), no seu ambiente cultural e vivencial assume claramente um elevado grau de fechamento e protecção em relação ao exterior, bem testemunhado aliás, pela permanência de memórias sobre a origem e manutenção deste mundo à parte.
Explorando o bairro e os seus limites
7Foi no bairro da Madragoa que a Bica me surgiu, pela primeira vez. Não a conhecia – só de nome, como todos os lisboetas – e comecei a alimentar uma grande curiosidade por esse bairro, tanto e tão mal falado nessa Madragoa rival. Foi no Verão de 1990, quando tentávamos, duas portuguesas coordenadas por um antropólogo catalão, definir um projecto sobre a construção de identidades urbanas locais.
8Em finais de Maio desse ano – época anual em que os bairros que participam nas Festas da Cidade se encontram em estado de efervescência com a preparação dos seus arraiais e, sobretudo, das suas marchas – fugi, um fim de tarde, da Madragoa e entrei pela primeira vez nessa Bica que me acompanhava como a imagem invertida da humanidade dos habitantes da Esperança3. Atravessei essa área mal definida, uma espécie de no man’s land, que dá pelo nome de Conde Barão, com a nítida sensação de estar a transpor uma fronteira entre bairros4. Caminhei pelos passeios estreitos da Rua da Boavista que se prolongam pela Rua de S. Paulo, com o ininterrupto desfiar de eléctricos a rasar pela sua beira, até deparar, do meu lado esquerdo, com uma porta-arco, encaixada num imponente edifício, ostentando a frase identificadora de uma entidade: Elevador da Bica. Após um momento de hesitação avancei um pouco mais em busca de uma entrada que me desse acesso ao bairro, escondido pelas fachadas dos prédios. E as escadinhas lá me surgiram, de repente, numa imponência de anfiteatro, escuras, irregulares, imensas.
9A sensação de invadir casa alheia, atenuada o mais possível por expressões verbais e faciais de quem pede desculpa por ali estar sem ser convidada, era uma sensação já conhecida dos contactos com a Madragoa, bairro de características idênticas, embora esta tenha conhecido nos últimos anos uma abertura ao turismo, com a proliferação de restaurantes, bares, pequenas lojas especializadas em objectos de arte e artesanato, o que não sucedeu na Bica. Logo me surgiu uma vizinha, de um postigo, a saber o que ali me trazia e mal eu referi o Marítimo Lisboa Clube – a associação local – a vizinha identificou-se como familiar do seu presidente; que não estava, nesse momento, mas que o seu filho, director e ensaiador da marcha, e cunhado do presidente, me poderia receber, bem como um outro director. Mandou uma criança que por ali andava chamar o padrinho. O garoto levou-me escadinhas acima e, parando debaixo de uma janela, gritou – O Raúúúúúúúúl! que logo apareceu à janela, que sim senhor, que já descia, que já falávamos. Passados pouco minutos saía pela porta do prédio e gritava, por sua vez, em direcção ao que me parecia ser a mesma janela onde há segundos ele próprio me tinha aparecido; mas não, afinal era para a janela ao lado, onde uma cabeça de mulher, desconfiada, assomou. – Atira a chave do Clube! E quase de seguida, dávamos meia volta e transpúnhamos a porta do prédio da frente, descíamos as escadas e entrávamos no Clube. Raul ia resumindo a dinâmica recente deste Clube: há 15 meses tinham uma ordem de despejo sobre o aluguer da casa, naquele momento não só já eram proprietários do andar como se tinham alargado para a cave do lado e tencionavam, talvez, comprar o prédio. A associação estivera encerrada quase vinte anos e, nessa altura, pela mão de um punhado de amigos – todos vizinhos da rua – conseguiram-na transformar numa força viva, com arraiais pelo Santo António, marcha e tudo... O jovem ensaiador foi à casa da frente chamar um dos directores5, sem o qual não se sentia bem para falar do Clube, e em conjunto, com mais outro sócio, conversámos sobre o bairro, a associação, as festas, primeiro em volta de uma mesa, depois ao pé do esqueleto dos arcos e dos adereços da marcha, ainda por completar, na pequeníssima sala transformada em oficina de trabalho.
10Do muito que falámos, e perante a minha ânsia, explicitada, em definir territorialmente o bairro da Bica, foram-me sugeridas pistas de análise, que eu guardei, ciosamente, nalgumas «notas de campo» e na minha memória. No dizer destes rapazes haveria duas Bicas, separadas pela linha do elevador; a Bica de Baixo e a Bica de Cima. As três principais colectividades existentes na Bica – Vai-Tu, Zip-Zip e Marítimo – repartiam o espaço do bairro em três fatias, correspondendo uma à parte a norte, outra a um dos lados da linha do elevador (a leste) e finalmente, a sudoeste dessa mesma linha, toda esta Bica de Baixo onde nos encontrávamos a conversar. A aparente contradição entre a separação entre duas Bicas e a sua partição em três, poderia indicar, a título de hipótese explicativa, que, para a Bica de Baixo, as relações de rivalidade se construíam em relação ao lado de lá da linha, à rua dos Cordoeiros e, no caso particular do Marítimo Lisboa Clube, em relação à sua congénere, Zip-Zip, sediada nessa rua. A parte de cima da Bica, sob «jurisdição» do Vai-Tu, parecia ser ignorada em relação a essa mesma rivalidade, como se existisse uma relação pacífica, talvez mesmo distante, entre essa Bica de Cima, perto da fronteira com o Bairro Alto6 e a Bica de Baixo. Quando eles se referiam à Bica de Cima, por oposição à Bica de Baixo, referiam-se, mais fortemente, ao lado de lá da linha, a um território variavelmente definido que incluía a Rua dos Cordoeiros e suas vizinhanças, na fronteira com Santa Catarina... Talvez a razão desta percepção separatista fosse devida à dificuldade, nesse ano, em organizar em conjunto o arraial, por parte de duas colectividades (Marítimo e Zip-Zip), pensara eu, relativizando...
11Foi um primeiro contacto com o bairro, esta conversa tida com três indivíduos, co-responsáveis pelos destinos da associação: todos directores, sendo um deles ensaiador da marcha. A simpatia cativante, a pronta disponibilidade, a exuberância das descrições das suas actividades, o enaltecimento implícito – e, por vezes até, bem explícito – nas muitas referências ao bairro e à associação, o à – vontade de quem está habituado a este tipo de solicitações e curiosidades que não precisam de apresentações, alimentaram a nossa conversa e desde logo – tenho de confessar – produziram em mim um primeiro fascínio, difícil de esquecer.7 Na despedida convidaram-me para o Ensaio Geral da Marcha, marcado para dia 8 de Junho.
12Nesse ano acompanhei todo o ciclo festivo dos Santos Populares pelos olhos da Madragoa, mas não pude deixar de me emocionar ao ver descer, pela Avenida, a marcha da Bica, com a sua réplica da bacia da Bica Grande, existente no Pátio, como primeiro arco, e os três homens, que me tinham recebido, à cabeça da marcha muito nervosos. Em Outubro comecei a tentar entrar no bairro, mas só senti, verdadeiramente, ter começado a ter acesso no início do ano seguinte (Janeiro de 1991), quando conheci um dos notáveis da Bica8 que iniciou um ciclo de apresentações dentro do bairro, facilitando-me a familiarização com os meandros complicados do seu tecido social.
13Uma segunda tentativa de delimitação territorial da Bica, solicitada aos seus habitantes, decorreu no Grupo Excursionista Vai-Tu, à beira da linha do elevador, em final de Novembro do mesmo ano, 1990 – antes, portanto, de ter começado a sentir o acesso ao bairro facilitado. Numa tarde de aguaceiros entrei na sua sala ampla, renovada, pintada de fresco a indicar obras recentes. Meia dúzia de homens, entre meia e avançada idade, empoleirados em cima de cadeiras, mesas e escadotes, ocupavam-se a embelezar e enfeitar a sala, em preparações de festa próxima. Após as minhas desajeitadas apresentações e alguns momentos de conversa de reconhecimento mútuo, lá me sentei a uma mesa com um dos Directores e de chofre, abordei o problema que me obcecava: os limites da Bica. Rapidamente, fui reenviada à Junta de Freguesia—que eles lá é que a sabem informar disso-, denotando esta atitude alguma sobreposição conceptual entre a Bica e a freguesia de S. Paulo. Neste momento aproximou-se um indivíduo de meia-idade – Joaquim Amado, nado e criado na Bica (Fig. VI, em Anexo) – que, de bom grado, centralizou a conversa em torno do termo bairrismo, iniciando todas as frases com a expressão: Em relação ao bairrismo nós temos que....Falou-me em três Bicas: uma, em sentido alargado, que coincidiria com a freguesia de S. Paulo: Podese dizer que a Bica e a Freguesia de S. Paulo são uma e a mesma coisa já que a Bica é o único bairro da freguesia. Outra, uma Bica mais Bica, constituída por um subconjunto de ruas e largos no interior da freguesia; e, finalmente, uma terceira Bica – o seu coração, por assim dizer – apenas constituída pela Rua da Bica Duarte Belo, a Calçada da Bica Grande9, a Calçada da Bica Pequena e todas as travessas. E, após esta explicação, concluiu: A Bica, mesmo a Bica, é esta. Mas a outra também é. Até há pessoas do Bairro Alto que dizem que são da Bica e que nas marchas vêm pela Bica...Isso de ser da Bica ou não depende do bairrismo.
14Durante algumas semanas fui recolhendo, aleatoriamente, elementos que me pudessem ajudar a definir uma primeira mancha do bairro tal como era percepcionado e construído cognitivamente pelos seus habitantes, indispensável para a escolha de um ou vários lugares de observação e familiarização com o «ambiente de bairro». Talvez influenciada pela imagem quase de ghetto que o seu coração – a Calçada da Bica Grande – me inspirava, comecei o meu reconhecimento do bairro pelas ruas que a cercavam – eventualmente regiões de margem sobretudo a Rua dos Cordoeiros e da Bica Duarte Belo, situadas na parte de cima do bairro, aparentemente mais urbanas e acessíveis10. Comerciantes e artesãos mais disponíveis da Bica de Cima, sócios e frequentadores de espaços de comida e bebida, e também da colectividade mais dinâmica – o Vai-Tu, na Bica Duarte Belo – foram abordados ao sabor da minha intuição e, sobretudo, da sua paciência e boa vontade. Alguns – poucos – residiam longe, embora vivessem ali o seu quotidiano diário outros – a maioria-viviam numa área que se estendia das ruas referidas até às do Bairro Alto ou de Santa Catarina.11
15As respostas obtidas deixaram-me perplexa e obrigaram-me a requestionar as minhas questões de partida, fazendo-me duvidar seriamente por um lado, do interesse da própria questão dos «limites de um bairro» – que, à primeira vista, parecia completamente exterior e, por vezes, até incompreensível, aos meus interlocutores – e, por outro lado, da metodologia adequada a um tal empreendimento. No entanto, este primeiro reconhecimento de uma das dimensões cognitivas de um bairro – a representação dos seus limites, ou, mais razoavelmente, a verbalização, conjuntural, de uma das suas possíveis representações espaciais – esclareceu – me, logo à partida, não só sobre as minhas próprias limitações relativamente a uma noção de «bairro», demasiado presa a representações territoriais, como igualmente sobre os limites metodológicos de uma pesquisa solitária, baseada num contacto de terreno centralizado em torno de uma única pessoa – eu própria – produtora de todo um conjunto complexo de expectativas, atitudes, respostas, dúvidas e mal-entendidos de difícil auto-relativização.
16Um dos elementos perturbadores deste tipo de inquérito situou-se ao nível da representação da freguesia de S. Paulo, onde este bairro se insere, e cujas fronteiras, nalguns pontos, coincidem com os da Bica (Figura II, em Anexo).
17Freguesia e bairro são entidades que por vezes se sobrepõem, que se esclarecem mutuamente nas suas pertenças, e a verdade é que nunca ficava claro qual dos dois – Bica ou S. Paulo – era tema de definição. A Bica é aqui. A Rua dos Cordoeiros já não lhe pertence. Um lado pertence, outro não. A partir do elevador, também já não pertence. Dantes pertencia, mas depois houve uma divisão e deixou de pertencer. Agora é só aqui mais as travessas lá para cima, explicava a Mila, referindo-se às alterações na área das freguesias, em 1959 (Cap. 2). O próprio presidente da Junta de Freguesia teve o cuidado de me esclarecer que uma coisa é a Bica, outra é S. Paulo, apesar de as pessoas terem a mania de chamar Bica a partes que não são; para este homem, a Bica corresponde apenas à Calçada da Bica Grande, o Largo de Santo Antoninho, o Beco dos Aciprestes, a Travessa do Cabral e a parte sul da Bica Duarte Belo, onde ele vive.12
18As frases trocadas entre dois homens, numa colectividade, constituem um bom exemplo da constante confusão – ou sobreposição – de noções:
- Para lá do Pátio da Galega é Madragoa, o próprio pátio é Madragoa e Bica...
- Não senhor, a Madragoa é mais para lá, porque ali ainda é freguesia de S.Paulo...
- Mas eu estou a dizer em relação ao bairrismo, ali já é Madragoa...
19De facto, a noção de «limites» imediatamente remete o interlocutor para o aspecto da divisão administrativa entre freguesias. Aparentemente, um bairro não parece ser conceptualizado em termos de «limites», mas sim de inclusões e exclusões, o que me levou a centrar a conversa nas ruas que pertencem/ou não pertencem à Bica. Mais uma vez, a questão não era clara, e as respostas dificilmente se podiam comparar: as ruas nem sempre são percepcionadas na sua totalidade nem nos seus nomes. Um Beco dos Aciprestes nem sequer é nomeado, porque é representado no conjunto global das Escadinhas da Bica Grande; uma Calçada da Bica Pequena raramente é referida porque é a continuação da Rua da Bica Duarte Belo e como tal, pertence, à linha do elevador deixando cair no esquecimento de quem lá não vive aquele pequeno pedaço que afinal, já é a Bica Pequena...', uma Calçada da Bica Grande pode ser completamente omissa numa conversa, de tal forma é inquestionável a sua pertença à Bica! Algumas ruas podem-se constituir como referências importantes, tal como um pátio, um bairro ou um edifício. Outras parecem não ter existência própria, pelo simples facto de não serem nomeadas – embora essas omissões de nome nem sempre signifiquem uma omissão social. Outras ainda ficam numa zona de indecisão, de um não sei... que, claramente, mostra a inadequação de esquemas cognitivos em jogo, entre um inquiridor, tentando desenhar um mapa, e uma população alheia a este modo de representar cartograficamente a realidade socio-espacial.
20Outras vezes optei por perguntar pelo centro da Bica: O centro para quê? O comércio, o centro do movimento é na Bica Duarte Belo, veja só, todas as ruas vão dar ao elevador... A Caixa Geral dos Depósitos já não pertence, não sei muito bem onde começa Santa Catarina... Dantes o limite das duas freguesias (S. Paulo e Santa Catarina) dividia os dois lados desta rua (dos Cordoeiros), respondia-me uma artesão que vive e trabalha na Rua dos Cordoeiros há largos anos. Para este homem, por exemplo, as escadinhas apenas eram associadas, vagamente, a um arco muito bonito que ali costumam fazer nos santos e às fotografias que ali vão tirar...
21De qualquer modo, e apesar da sistemática introdução das entidades «Santa Catarina» e «S. Paulo» no correr das conversas, um aspecto consensual tornou-se visível: para este conjunto diversificado de pessoas, com as suas vivências quotidianas polarizadas para os lados de Santa Catarina ou do Bairro Alto (já que as Chagas constitui um verdadeiro vazio social, um outro mundo sem relação com este13), a Rua da Bica Duarte Belo parecia definir o centro simbólico da Bica – elevador, movimento, comércio, colectividade – e toda a sua parte baixa – Escadinhas, Beco, Travessa da Bica Grande – ser frequentemente esquecida. Por outras palavras, a imagem da Bica, tal como é apresentada para um elemento exterior ao bairro que claramente se interessa pelo assunto, corresponde apenas à parte mais próxima socialmente destes indivíduos, à Bica de Cima, num ocultamento da sua parte de baixo – a Bica de Baixo, mais próxima da zona ribeirinha de S. Paulo, certamente mais degradada e empobrecida.
22Entre estes primeiros inquiridos, todos homens de meia-idade ou idosos e habitantes das margens do bairro, um aspecto curioso ganhou forma: os que habitavam a Rua dos Cordoeiros designavam a linha do elevador como a coluna vertebral da Bica e frequentemente não referiam a Calçada da Bica Grande; os que habitavam a rua por onde passava esta linha, sempre que designavam a Calçada da Bica Grande como centro, omitiam a Rua dos Cordoeiros. Claro que esta relação arrisca-se a ser pura e simplesmente ocasional, sem nenhum significado particular, até porque a número de inquiridos não ultrapassou, nesta primeira fase as duas dezenas. No entanto, à luz do que aprendi posteriormente, num contacto mais próximo com a população e as vivências da Bica Grande, estas poucas informações, quase ao acaso, encaixaram-se à justa no puzzle das pertenças bairristas que ia tentando completar.
23Por exemplo, Joaquim Amado, com quem eu falara no Vai-Tu, fá-las pertencer a duas Bicas diferentes: os Cordoeiros ao coração da Bica, a Calçada da Bica Grande ao coração do coração. Mais tarde, vim a saber que a sua infância e juventude se passara no universo da Bica Grande bem como as suas relações familiares; de facto, e apesar de ele se encontrar no Vai-Tu na qualidade de associado e de me ter confessado ser ali onde melhor se sentia, a verdade é que também era sócio do Marítimo e aí tinha trabalhado no período das festas dos santos de Junho. Já um dos elementos mais implicados na direcção do Marítimo, residente na Rua de S. Paulo junto ao elevador, considerava a Bica apenas a área envolvente da Calçada da Bica Grande, excluindo toda a parte de cima e a Rua dos Cordoeiros...
24Após um alargamento deste inquérito aos habitantes e frequentadores assíduos da Bica Grande – como alguns jovens habitantes do Conde Barão, Santa Catarina, Bairro Alto, Av. 24 de Julho, etc. – optei por valorizar aquilo que me surgiu de uma forma repetitiva, consciente ou inconscientemente expressa: algumas das suas clivagens.
25Parecia haver duas linhas de separação, que se cruzavam numa zona de intersecção: uma, opondo uma Bica de Cima a uma Bica de Baixo, outra, opondo os dois lados da linha do elevador (Fig. 4). Contudo, esta última linha de separação criada pela linha do elevador só funcionava na sua parte de baixo, aquela que opunha as Escadinhas à Rua dos Cordoeiros, já que na sua parte superior, a Rua da Bica Duarte Belo e as suas 4 travessas sempre me foram apresentadas como uma unidade14. Por seu lado, a Rua dos Cordoeiros apresentou-se, sempre, como uma região problemática: para os que viviam fora do bairro, nas suas redondezas, ela fazia parte, obviamente da Bica; os da Bica de Cima, esqueciam-se frequentemente de a referir; e para os que viviam, ou mantinham laços afectivos e parentais na Bica Grande, as opiniões dividiam-se entre os que consideravam os Cordoeiros como fazendo parte da Bica e os que a excluíam, peremptoriamente, do bairro.
26A perspectiva dinâmica da representação de um bairro impôs-se, desde logo, como um facto a respeitar, e a partir desta primeira etapa, frustrada no seu objectivo de cartografar linearmente as fronteiras do bairro, optei por tentar compreender alguns dos processos que, quotidiana ou ciclicamente, o vão construindo. Foi já com uma concepção de fronteiras elásticas, situacional, sentimental e afectivamente definidas, que me aproximei da única porção mínima de território que, consensualmente, me foi permitida definir como Bica, Bica: a sua parte baixa. Aqui, as festas dos Santos Populares e a adesão a uma colectividade local surgiram desde muito cedo, como elementos-chave para esta busca, não tanto pela sua relevância intrínseca, mas, sobretudo, pelo facto de serem fenómenos com uma razoável visibilidade e, por isso, observáveis no âmbito de uma pesquisa de terreno.
As Escadinhas da Bica
27Muito ou pouco referidas, as Escadinhas da Bica Grande sempre foram unanimemente incluídas no bairro da Bica. Pode-se mesmo dizer que foi a única porção de território que, para lá de todas as querelas, rivalidades, más-vontades e sectarismos, nunca foi posta em causa como pertencendo à Bica. Os habitantes das suas «margens» mais afastadas, próximos de Santa Catarina ou do Bairro Alto, que definiam a linha do elevador como centro do bairro, quando confrontados com a pergunta directamente formulada sobre se essa calçada pertencia ou não à Bica, sempre responderam sem hesitações: obviamente que sim. Por outro lado, alguns jovens habitantes desta calçada chegaram ao ponto de afirmar que o bairro da Bica apenas era a Calçada da Bica Grande, excluindo todos os outros arruamentos circundantes. Desde muito cedo, esta calçada – e suas margens, que incluem o beco, a pequeníssima Travessa da Bica Grande e parte da Travessa do Cabral – surgiu como uma área bem demarcada por um consenso absoluto, uma região de intersecção inequívoca entre as inúmeras e subjectivas conceitualizações do bairro.
28Se, enquanto território espacialmente delimitado pelos próprios habitantes, esta calçada parecia coincidir com uma definição mínima de bairro da Bica, socialmente, ela reforçava esta ideia. Como atrás foi referido, a sua pouca visibilidade exterior – o seu real encravamento topográfico e urbanístico –, a densidade do relacionamento interpessoal dos seus habitantes bem visível na intensidade da «vida de rua» quotidiana e, particularmente, no momento da preparação e consumação das festas dos santos populares de Junho, através do seu arraial e da sua marcha «saída» dali, das escadinhas, pareciam, de facto, reforçar esta primeira imagem da Bica como uma autêntica aldeia na cidade (Gans, 1962).
29Foram estas as razões – acrescidas de alguma intuição dificilmente sistematizável – que me levaram, ao fim de alguns meses, a postular a existência de um núcleo duro, um centro vital do bairro. A procura de um lugar, territorialmente delimitado, onde uma permanência quotidiana fosse possível, com a desejável utilização dessa mistura de técnicas que caracteriza a originalidade do processo de reconhecimento antropológico – observação, conversa e entrevista informal, disponibilidade à participação, implicação pessoal, ligação afectiva, etc., etc. – orientou esta delimitação prévia. O objectivo era, a curto prazo, o de me familiarizar o mais possível com modos e concepções de vida que me eram desconhecidas, com todo um ambiente cultural diferente do meu próprio, num permanente exercício de compreensão e tradução de uma microcultura, pouco interessada em se fixar através do registo escrito na memória de uma cidade, para uma outra que utiliza a escrita como instrumento fundamental. A médio prazo, pretendia, não só contribuir, de alguma forma, para um melhor conhecimento de uma realidade cultural relativamente ignorada e mal conhecida – a dos bairros populares e antigos de Lisboa, geradores de fenómenos de grande visibilidade publica associados ao próprio ethos da cidade, através de uma participação criativa nas festas dos santos populares – como, também, esclarecer algumas das ligações existentes entre esses fenómenos mais visíveis – essas manifestações festivas – e certos ambientes e estilos culturais, mais invisíveis, alicerçados na vida de bairro tão mitificada quanto desconhecida.
30Esta definição de bairro mínimo foi, portanto, meramente instrumental. A necessidade de me situar na microlocalidade, como forma de alcançar um certo tipo de conhecimento próximo da realidade do dia-a-dia, e o indiscutível valor que o interconhecmento pessoal, na nossa cultura assume – e, quem sabe, em qualquer cultura? – reforçaram a necessidade de um conhecimento pessoal e individualizado, e, consequentemente, implicaram a escolha de um local de observação e de levantamento intensivo: durante cerca de dois anos, o «ambiente comunitário» das Escadinhas da Bica Grande enquadrou as minhas inquirições e deambulações. A rua e, sobretudo, a sua colectividade – o Marítimo Lisboa Clube –, foram a minha casa durante algum tempo, e foi nesta posição de estrangeira semi-enquadrada, semi-ignorada, que eu construí o meu ponto de vista da Bica. Contudo, e paralelamente a esta abordagem microetnográfica, impliquei-me na tarefa de tentar definir um outro nível de análise, contextualizador dos limites inevitáveis de uma percepção microescalar: uma abordagem histórica que iluminasse as permanências//transformações da actualidade, ao nível do bairro e da comunidade urbana. Como já foi referido, fontes históricas e estatísticas foram procuradas no sentido de iluminar e contextualizar um «lugar-de-aqui» (0’Neill e Brito, 1991) dificilmente explicável apenas pelo presente.
31Ao longo deste trabalho será, tanto quanto possível, respeitado o próprio percurso da pesquisa empreendida: da procura, infrutífera, de dados estatísticos suficientemente esclarecedores, até à evidência etnográfica, muito centrada na principal festa de bairro mobilizadora das suas forças colectivas, incluindo, sempre que possível, a análise de algumas fontes históricas15 capazes de dar algum sentido às limitações de um conhecimento muito centrado no aqui e no agora.
Casas e as pessoas
A freguesia de S. Paulo
32Em termos populacionais, o crescimento da freguesia de S. Paulo apresenta, ao longo do tempo, algumas particularidades interessantes. À semelhança de outras freguesias do centro da cidade, S. Paulo cresceu mais intensamente em final do século passado e mais moderadamente durante as quatro primeiras décadas deste século, decrescendo a partir desse momento, a acompanhar o crescimento negativo da cidade (Gráfico 2). Porém, entre 1878 e 1890 registou um pico de crescimento intenso, comparativamente à evolução da população citadina. Boom demográfico este que terá, certamente, correspondido a uma maior intensidade de fluxos migratórios.
33O pico de grande crescimento que surge entre a década de 50 e de 60 do presente século é completamente artificial: é causado pelo alargamento da área da freguesia, que mudou a sua linha de fronteira que separava o bairro da Bica em duas fatias de modo a incluí-la por completo numa mesma freguesia. O acréscimo populacional corresponde, assim, à inclusão de todo o território norte do bairro que, embora pequeno em superfície, revela uma grande densidade populacional por ser exclusivamente residencial. Este crescimento populacional fictício, apenas real no âmbito de uma unidade administrativa que vê o seu território alargado, tem, como correlato, um acentuado decréscimo populacional, não menos artificial, na sua freguesia vizinha de Santa Catarina (Gráfico 3).
34A comparação da evolução populacional desta freguesia com duas outras freguesias vizinhas, uma de características ribeirinhas muito semelhantes, onde se situa o bairro da Madragoa – Santos-o-Velho – outra mais interior, incluindo parte do Bairro Alto – Santa Catarina – evidencia algumas discrepâncias significativas. Enquanto Santa Catarina regista variações mais moderadas, S. Paulo e Santos-o-Velho demonstram uma alteração mais acentuada do seu crescimento, sobretudo em tempos mais recuados: as suas populações parecem mais instáveis, com fluxos e refluxos populacionais certamente mais dependentes de vagas migratórias do que de variações do seu saldo fisiológico. Com efeito, estas duas freguesias mais ribeirinhas – Santos-o-Velho e S. Paulo – registavam, até à viragem do século, um número de homens mais elevado do que mulheres, reflectindo uma população recém-chegada em busca de oportunidades de trabalho ou de emigração, contrariamente a Santa Catarina, que registava uma proporção de homens menor que mulheres, sinal de uma relativa estabilidade e uma permanência mais antiga (Gráfico 4).
35Não constitui surpresa, por isso, que os picos e refluxos do crescimento populacional destas duas freguesias ribeirinhas – Santos-o-Velho e de S. Paulo – sejam provocados, em grande medida, pela sua metade masculina (Gráfico 5): enquanto Santos-o-Velho revela um certo equilíbrio entre o crescimento masculino e feminino que, de facto, se acompanham entre si – tanto no pico de crescimento do 3° quartel do século xix como no refluxo que se segue –, os homens e mulheres de S. Paulo parecem registar crescimentos médios independentes, mais estáveis na metade feminina do que na masculina, devido, com certeza, a uma maior mobilidade laboral.
36Com efeito, e analisando a naturalidade da população destas freguesias, vemos que a freguesia de S. Paulo se demarca das restantes, com uma menor percentagem de naturais do concelho de Lisboa, e um elevado número de não naturais e estrangeiros-sobretudo nos primeiros tempos (Gráfico 6).
37Se é certo que no período em que a Lisboa antiga se repovoou com uma população recém imigrada, com um elevado índice de masculinidade e atraída por possibilidades de trabalho, a verdade é que nesta pequena faixa de S. Paulo para ocidente-Bica, Conde Barão, Madragoa16 – se destaca a freguesia de S. Paulo. De facto, pelo pouco que foi possível apurar na escassez das estatísticas disponíveis, esta freguesia não só registava um maior número de estrangeiros e não naturais como, sobretudo, até ao princípio deste século era, comparativamente a Santa Catarina e Santos-o-Velho, a freguesia com um maior desequilíbrio nas presenças diferenciadas por sexos.
38Em termos socio-espaciais, é surpreendente a partição desta freguesia em dois domínios vivenciais: um, preponderantemente residencial, a norte, que inclui o bairro da Bica; outro, fundamentalmente laborai, sobretudo em épocas passadas, que ocupa toda a parte sul da freguesia (Fig. II em Anexo). A linha divisória acompanha, grosso modo, a rua de S. Paulo/Boavista, antiga rua Direita de S. Paulo, que corre paralela ao rio, se bem que dele afastada.
39Este eixo rodoviário – Conde Barão / Boavista / S. Paulo – caracteriza-se pela intensidade do seu tráfego, a todas as horas do dia. É uma rua de vida intensa, com passeios exíguos e inúmeras lojas, entre grandes e pequenas. O tipo de comércio aqui existente vai desde as especializações metalúrgicas de uma Casa dos Parafusos, no Conde Barão, até aos grandes armazéns de roupa Rodrigues e Rodrigues, no Largo de S. Paulo, para além de todos os pequenos comércios mais ou menos especializados que sobrevivem ao barulho ensurdecedor dos eléctricos e autocarros que a toda a hora passam a dois palmos da porta aberta das lojas, cruzando o seu horizonte poluído. Noutros tempos, estes altos prédios albergaram muitas famílias. Hoje, os seus espaçosos andares esvaziam-se ou reconvertem-se em escritórios e pequenas empresas, com vocações diferentes da habitação familiar.
40À densidade de casas que quase escondem as encostas destes Bairros Ocidentais que, do alto, vêm cair nas já esquecidas praias da Boavista e S. Paulo, contrapõe-se toda a zona plana até ao rio, aterrada há cerca de um século, com os seus vestígios de antigas fábricas e oficinas, os seus enormes armazéns esquecidos e depósitos abandonados, alguns edifícios públicos, o mercado da Ribeira, a Praça D. Luís, o Cais-do-Sodré, a linha de caminho-de-ferro, os barracões do Porto de Lisboa... Toda a linha de cais, aparentemente despovoada e arejada, que acompanha o rio, é, na realidade, um dos recantos do lazer clandestino das populações vizinhas que ali vêm pescar, entre outras diversões, no sossego da madrugada, respirando a maresia fresca do rio e sonhando com uma vida de ar livre e fartos recursos.
41Relembrando a parcelização da vida urbana em cinco domínios vivenciais sugerida por Ulf Hannerz (1983),-vizinhança, lar e parentesco, tráfego, lazer e aprovisionamento – pode-se afirmar que este pedaço de território se separa e separava, num passado não muito distante, duas dimensões da vida social, complementares: a do abastecimento (incluindo o trabalho e o consumo) e a do lar/parentesco, em franca sobreposição com a dimensão vicinal, como bem ilustra o caso da Bica. Ultimamente, e sobretudo a partir do momento em que o fenómeno da 24 de Julho começa a prolongar – e talvez a substituir – o fenómeno Cais-do-Sodré, com o nascimento de uma intensa zona de lazeres e divertimentos nocturnos ao longo desta Avenida, pode dizer – se que a uma vocação laborai atractiva de grandes contingentes populacionais se sobrepôs uma vertente mais orientada para as actividades de lazer e de diversão que quotidianamente atrai vagas juvenis pendulares. Esta nova dicotomização entre vivências diurnas e nocturnas, não só alterna grupos sociais, funções urbanas e vivências contrastantes num mesmo espaço – como é o caso exemplar do mercado 24 de Julho –, como atrai fluxos migratórios que, apenas por algumas horas, ali vivem uma parte do seu quotidiano.
42Após uma análise do Ficheiro Síntese referente ao Censo de 198117, que apresenta os dados recolhidos desagregados a nível de quarteirão, tornou-se possível uma maior aproximação ao bairro da Bica. Os quarteirões pertencentes a uma Bica Alargada pecam por excesso, já que alguns quarteirões incluem ruas que ficam do «lado de fora» do bairro (Figura 5). No entanto, de um modo geral, conseguiu-se traçar um perfil estatístico, segundo as variáveis valorizadas por este tipo de recenseamentos: número de edifícios, época de construção, número de pavimentos por edifício, sua utilização, materiais de construção; número de alojamentos e suas infra – estruturas-electricidade, água, esgoto, casa-de-banho, retrete –, número de divisões, regime de ocupação; contagem de famílias, sua dimensão e número de filhos; quantidade de indivíduos, idades, nível de instrução, ramo de actividade económica (Tabelas VII-XI em Anexo).
43Com um edificado bastante antigo, anterior – na sua maior parte – aos inícios do século xx, e cuja vocação é essencialmente residencial, em termos da sua composição populacional a Bica parece ser, actualmente, uma parte significativa e representativa de toda a freguesia. Apesar de pequena em área, relativamente à área total da freguesia, este enclave surge como uma das suas partes mais habitadas e densamente povoadas (Tabelas VIII e XI em Anexo).
44Segundo os dados deste Recenseamento, a dimensão média das famílias que habitam a Bica Alargada é relativamente reduzida, indo raramente além dos 5 elementos (Gráfico 7). Mais frequentemente as pessoas vivem sós ou em coabitação com outra pessoa, em casas de dimensões variáveis.
45Como tem sido acentuado pelos demógrafos que têm estudado a cidade de Lisboa, a pequena dimensão dos núcleos familiares encontra-se infimamente relacionada com o envelhecimento da população residente no centro da cidade, visível no facto de haver um número relativamente elevado de famílias com indivíduos idosos (com mais de 65 anos) e poucas famílias com indivíduos de idade inferior a 15 anos. Embora a maioria dos seus habitantes sejam adultos18, logo seguidos pelo grupo de maiores de 65 anos, os jovens entre os 14 e os 19 e, sobretudo, o grupo das crianças menores de 5 anos demonstram que em finais de 70 e princípios de 80 o bairro se reproduzia (Gráfico 8).
46A maioria dos seus habitantes em idade activa ocupam-se em actividades terciárias – cerca de 80% (Gráfico 10) –, o que, aliás, não constitui surpresa numa cidade administrativa, como Lisboa, onde os serviços, nos seus vários níveis de desempenho, ocupam a maioria dos seus habitantes. Atendendo ao baixo nível de instrução formal (Gráfico 9) dos habitantes da Bica Alargada – cerca de 35% –, é previsível que os trabalhos com que estes indivíduos ganham a sua vida se encontrem nos níveis mais baixos da escala que hierarquiza o amplo leque das actividades terciárias.
47De facto, a informação retirada deste Ficheiro-Síntese, não se revelou particularmente elucidativa para esboçar uma primeiro caracterização sociológica do bairro em análise. A necessidade de recorrer a outro tipo de fontes capazes de fornecer um quadro mínimo das condições de vida dos habitantes deste bairro, nomeadamente no que se refere às suas habitações, levou-me até ao arquivo municipal dos Processos-Obra dos edifícios ali existentes.
Lojas e mansardas...
48É verdade que a Bica não é um pátio, nem uma vila, nem uma ilha. É certo que não possui portas nem portões a fechar o bairro à via pública; é verdade que contém um beco e um pátio de grande dimensão – o Pátio do Broas –, e que, de resto, se organiza em torno de algumas artérias, todas com numeração de polícia, ficando os números pares do lado ocidental e os ímpares na parte oriental, subindo a numeração do rio para norte; é certo que é composta de prédios de rendimento, de construção barata e de baixa qualidade, pertencentes a variadíssimos proprietários, como quase toda a parte velha da cidade; é certo que os seus habitantes trabalham nos sítios mais diversificados, exteriores ao bairro. Mas, quem decida subir as Escadinhas da Bica Grande, não pode deixar de se sentir fora da cidade, num espaço recolhido, familiar, seguro, doméstico, como se tivesse transposto uma porta imaginária.
49Apreciada na sua globalidade, a Bica poderia ser um pátio, uma vila ou uma ilha. A porta simbólica existe, e quem a ultrapasse tem que ter uma boa razão para explicar tal intromissão às vizinhas guardiãs que logo surgem, inquisidoras; no tempo das festas, um arco enfeita essa porta inexistente, apresentando o bairro – ou convidando: A Bica saúda-vos! A sua invisibilidade protege-a da cidade. Em declive, sem trânsito, quase sem comércio, a sua Calçada da Bica Grande, como espaço livre comum que de facto é, assemelha-se a um corredor que a liga ao exterior, com as suas casas baixas – lojas – a deitarem para a rua19; quem olhe da sua parte de baixo dirá que esta rua não tem saída, que é fechada, e nem se apercebe que esta rua-beco, esta rua-pátio esconde dois pequenos mundos ainda mais segregados da cidade, que com ela comunicam: o Pátio e o Beco.
50Em termos do seu edificado, o bairro da Bica define-se como uma região relativamente empobrecida de Lisboa, com estratos sedimentados ao longo dos séculos. Os seus edifícios testemunham centenas de anos de história e inserem-se num tipo de arquitectura corrente e popular, sem ostentação ou requintes, exemplificando uma continuada fixação de populações com um estatuto de subalternidade social, de poucas posses, mais ou menos empobrecidas. Os únicos edifícios de feição aristocrática e burguesa situam-se perto das Chagas ou do Calhariz, claramente virados para fora do bairro, nas suas margens.
51Por aproximações sucessivas, tentámos caracterizar o substracto arquitectónico deste bairro que, embora pré-existente aos indivíduos que o habitam – e, consequentemente, sem poder ser analisado como uma produção colectiva deste grupo social – a verdade é que fornece o quadro de vida quotidiano deste bairro e, como tal, faz parte do seu quadro cultural. É, pois, parte da sua reprodução social: We may love or hate where we live or work, but there is no doubt it shapes us as much as we shape it and, for that reason, it deserves more serious attention (Satler, 1990: 21).
52No já citado Ficheiro-Síntese, tentámos uma prévia caracterização dos edifícios da Bica, comparando-os com os de S. Paulo. Se, ainda hoje, nem todos os alojamentos possuem electricidade, água, esgoto ou retrete, o certo é que em 1981 apenas 65% de entre estes eram providos de casa de banho, o que denota bem a antiguidade do edificado e o nível de riqueza dos seus habitantes (Gráfico 11).
53De facto, os edifícios são bastante antigos, maioritariamente anteriores a 1919, data que, até certo ponto, pode induzir em erro, pois existe um semnúmero de edifícios de raiz setecentista e oitocentista, tanto na Bica como na restante freguesia, o que leva a que os edifícios cuja data de construção se aproxime de 1919 sejam, para todos os efeitos, edifícios moderníssimos. De construção posterior a 1919, contam-se raros edifícios, o que provoca a quase inexistência de edifícios em betão armado. De facto, de um ponto de vista urbanístico, a Bica enquadra-se perfeitamente na restante freguesia, representando-a bem (Gráfico 12).
54De acordo com uma datação aproximada de todos os edifícios do centro da Bica – Calçada da Bica Grande, Travessa da Bica Grande, Beco dos Aciprestes, Largo de Santo Antoninho, parte da Travessa do Cabral, e Calçada da Bica Pequena –, demo-nos conta da antiguidade verdadeiramente impressionante deste edificado, que já terá assistido a tantas e tão variadas gerações de humanos a passarem por ele. Na Calçada da Bica Grande e Beco dos Aciprestes, apenas dois edifícios foram construídos de raiz, no século xx. Os restantes, com mais ou menos camadas representativas de épocas distanciadas, mais ou menos reconstruções e renovações a esconder a sua precariedade, testemunham o peso e o desgaste de séculos de vida (Gráfico 1 pág. 86).
55Sendo a Bica um bairro residencial, sabemos que no seu interior todos os edifícios são ocupados com essa finalidade, apesar de surgir uma pequena mancha, no gráfico, de alguns edifícios com fins não residenciais. Estes últimos situam-se, de facto, no lado de alguns quarteirões exteriores ao bairro, a exemplo do que se passa com o palácio hoje ocupado pela 6a Conservatória do Registo Civil e uma biblioteca, no topo da Bica, virado para o Calhariz. No que se refere ao número de pavimentos, existem poucos prédios com apenas dois – r/c e 1° andar – tendo a maioria até ao 3° andar, e, em menor número, com um 4° andar e acima dele (Gráfico 13).
56Com efeito, se nos debruçarmos mais pormenorizadamente sobre os edifícios que fazem parte do coração da Bica, podemos encontrar alguma informação mais rigorosa, com base no conhecimento das suas casas, completado com a análise dos Processos Obra do Arquivo Municipal da C.M.L.. Os prédios desta Calçada são bastante altos, comparativamente à sua construção inicial. Quase todos foram crescendo, ao longo de finais do século passado e do actual, com andares amansardados sobre os quais se foram acrescentando outros. O túnel que hoje a Calçada da Bica Grande parece ser deve-se, em larga medida, a este crescimento em altura, a esta construção de mansarda sobre mansarda, processo que só através do arquivo municipal foi possível acompanhar, retrospectivamente (Figura 6A).
57De acordo com a informação desta fonte – que eventualmente pecará por defeito, já que nem todas as obras clandestinas terão sido registadas – os pavimentos dos edifícios da Calçada da Bica Grande e do Beco dos Aciprestes distribuem-se, no momento actual (1994), do seguinte modo:
58Mas esta realidade visível da rua, não esgota a complexidade da base habitacional da Bica. Por detrás destes prédios, nos seus logradouros, saguões, quintais, foram surgindo barracas que se transformaram em casas, sobre as quais se construíram mais casas, densificando mais e mais este bairro já de si precário, do ponto de vista do estado de conservação destes prédios. Este processo decorreu num passado relativamente próximo, por vezes, embora já em finais do século xix se tenham detectado pedidos de licença de senhorios para fazerem crescer os seus prédios de rendimento. Por vezes, estes pedidos não foram feitos e, por denúncia de vizinhos, as obras ficaram embargadas ou a vistoria limitou-se a descrever uma situação que nasceu afastada de qualquer controlo.
59E o caso de um prédio do Beco dos Aciprestes que se foi reproduzindo à revelia das legalidades. Um auto de vistoria, em 1982, traçava a seguinte descrição:
...prédio muito antigo, constituído por dois corpos. O corpo principal, com a numeração (3 números) é constituído por r/c e 4 andares. O outro corpo, localizado a tardoz e implantado a um nível do 3° andar do primeiro citado, possui 2 pisos e tem acesso pela porta no... e pela escada comum do seguida de um corredor. Considerando o corpo principal a nível do r/c localizam-se 2 habitações com acesso directo à via pública, com os nos... e...., respectivamente. Pelos restantes pisos distribuem-se mais 6 habitações, sendo uma no 1° andai; uma no 2°, três no 3° e uma no 4°. No 3° andar, ainda a tardoz e com a denominação de «3° andar interior» localiza-se um quarto e uma casa de banho pertencente à habitação do 3° andar esquerdo. No 2° corpo, localizado a tardoz, situam-se três habitações, com a denominação de 3° terraço-direito, 3° terraço-esquerdo e 4° terraço (PO xxxx).
60Este prédio contém, nada menos que onze inquilinos, separados por escadinhas e corredores verdadeiramente labirínticos. Em 1934. uma denúncia, transmitida pelos bombeiros, foi arquivada no Processo-Obra referente a esse edifício: no no ... daquele Beco, no quintal existente nas traseiras do prédio, estava-se procedendo a uma construção de um pavimento em alvenaria com a altura de 3 metros assentando sobre um terraço que, por sua vez, assentava sobre casas! A queixa havia sido feita por um inquilino que habitava uma cave do outro lado do quintal e que via cada vez mais a luz e o ar a fugir-lhe, com as sucessivas construções que o senhorio do prédio vizinho ia fazendo... Queixas que devem ter caído no esquecimento, visto essas múltiplas construções terem vingado.
61O pátio do Broas20 é um outro caso extremo de aproveitamento de um amplo quintal vago, entre as ruínas de uma construção notável, remontando a algum grande edifício do século xvi – a avaliar pelo tanque onde se situa a Bica que, localmente, se diz ser a responsável do nome de Bica Grande-e o prédio alto, setecentista, virado para a rua de S. Paulo, em cujas traseiras nasceram casas e barracas, existindo hoje vinte e três fogos (Fot. 8). A entrada para este pátio faz-se pelo no 2 da Calçada da Bica Grande, por um corredor estreito e escuro, onde se podem ver uma vintena de caixas do correio. Na Ficha Pátio/Vila, da CML (1988), consta que, por informação dos seus habitantes, este pátio remontará a 1870, tendo ocupado o lugar de antigas cavalariças. No entanto, a acreditar na sua antiguidade, ele não é referido no levantamento que nos primeiros anos do século Augusto Montenegro (1903) fez dos pátios de Lisboa, embora refira a existência de cinco pátios na freguesia de S. Paulo.
62Num texto sobre fontes, bicas e chafarizes, da autoria de Mário Real, publicado em 1957, pode-se ler que esta bica, nessa data, ainda fornecia água aos moradores deste pátio: A bica de que falamos está metida num grande e alto vão aberto na escarpa e possui largo tanque que utilizam para lavar a roupa...(202). Luís Florêncio (Fig. VI em Anexo), co-ensaiador da marcha da Bica vários anos, nascido e criado neste pátio, lembra-se, não só de ver a mãe a lavar neste tanque, com outras vizinhas lavadeiras, como também de tomar banho, nas mesmas celhas, como todos os miúdos do Pátio, com a água dessa bica. Actualmente em obras – e por isso não foi possível ter acesso ao seu Processo-Obra, a água já não corre e as mulheres já não lavam com a água da sua bica, mas os enormes paus dos estendais de roupa ali continuam a testemunhar a presença de algumas famílias. Com efeito, este Pátio assiste, hoje, a um processo de recomposição social21. Apesar de ainda aí habitarem alguns representantes de velhas famílias que ali conviveram uma vida – o caso dos Amados, por exemplo (Fig. 6, em Anexo) – a verdade é que hoje ele é ocupado por pessoas que, mais recentemente, chegaram de zonas próximas de Lisboa – caso de Torres Vedras, por exemplo – ou do Alentejo.
63O conhecimento in sito do bairro permite uma descrição impressionista do seu edificado, sobretudo o das Escadinhas. As lojas, com uma única janela-porta sobre a rua e em comunicação directa sobre esta, vivem o contraste de um interior rectangular alongado em profundidade para dentro do prédio, sem luz e pouco arejado, com a luz do exterior (Figura 6B); muitas vezes as portas estão abertas e apenas uma cortina estabelece a fronteira entre o dentro e fora de casa.
64Cada prédio tem, normalmente, dois números de polícia: o número de escada, que identifica a porta que conduz a cada um dos pisos e outro que identifica a loja que hoje apenas se designa como rés-do-chão. As escadas que levam aos andares superiores são estreitas, velhas, precárias, algumas de tiro, outras contornam os andares, cada um ocupado quase sempre por um único fogo. Só o prédio novo – de 1929 – onde se encontra o Marítimo Lisboa Clube, revela uma construção mais moderna, com uma única porta de entrada que leva aos lados direitos e esquerdos dos seus cinco pisos.
65Destes prédios da Calçada a rua é percepcionada de modos diferentes. A partir do rés-do-chão, o exterior é percepcionado em menor amplitude, mas ganha em proximidade com a imediatez da rua; de cima, a visão ganha em amplitude, mas perde com a vida da rua, pois a sua vida fica mais longínqua: os sons, as trocas, a intervenção. O contacto com os vizinhos é muitas vezes feito pelas janelas e varandas, e utilizam-se processos engenhosos de trocas de objectos: cestinhos com um fio são içados, chaves ou roupa é atirada, gritos são trocados... pôr os pés na rua resulta de uma decisão clara, o tempo de descer umas escadas estreitas de madeira; nas lojas, a rua está ali mesmo ao pé (Fotos 9 e 10).
66As casas são velhas, com imensos problemas de habitabilidade; humidade e infiltrações, decomposição de materiais, escorrências líquidas com mau cheiro, parasitas (ratos, vermes, etc.), pouco iluminadas, exíguas, precárias, ruinosas. Raras são as casas em bom estado de conservação e que se podem orgulhar de terem sido reconstruídas. Como já foi referido, apenas dois edifícios são novos, deste século. Nos restantes, o estado de conservação é, no geral, bastante deficiente, atingindo por vezes situações verdadeiramente dramáticas para os seus inquilinos. Um auto de vistoria de 1941, refere um prédio da Calçada da Bica Grande:
...é de muito antiga e deficiente construção (...) internamente verifica-se que existem paredes fendidas, divisórias com grande encurvadura e os pisos notavelmente descaídos para a parede do fundo. As pias de despejo estão colocadas na escada a qual mostra os degraus muito desnivelados...a empena fendida e divisórias apodrecidas. O telhado permite grandes infiltrações de águas pluviais que chegam a atingir o piso do 1o andar. O r/c apresenta-se num estado miserável (Processo-Obra xxx).
67Noutro caso, são os habitantes que se queixam do senhorio que não lhes melhora o prédio que habitam: um casal de deficientes habita umas águas furtadas, com divisões baixas, inclinadas; chove em todas as dependências e os inquilinos não podem utilizar a pia de despejos pois tudo o que lá é deitado cai no andar inferior; faltam tábuas no tecto de onde caem ratos, por vezes; o prédio, com r/c, um andar e umas águas-furtadas, ameaça ruína... Estes exemplos são, infelizmente, representativos de uma grande parte do estado de conservação dos prédios. Os indivíduos que, no bairro, desempenham o papel de intermediários com o poder autárquico capaz de resolver estes problemas, pagando ou obrigando os senhorios a fazer obras, são bastante assediados, no seu quotidiano, pelos mais necessitados: idosos, pessoas que vivem sós, com fracos recursos financeiros e humanos, na sua maior parte.
68São poucos os proprietários destes prédios que habitam ou habitaram o bairro. Entre estes poucos, conta-se o Manei das Caldeiradas, relembrado por vários habitantes: O meu pai, que era sapateiro, entretinha-se na taberna da frente, onde hoje é o Domingues, que era o Manei das Caldeiradas que era o dono do prédio. A configuração da casa era tal e qual como está... E o Florêncio, mais uma vez, quem recorda. O dono da taberna da loja que faz esquina, e que vivia no 1o andar, acabou, afinal, por comprar todo o prédio. Também o Francisco José Braz, lembrado por Alberto como um dos primeiros directores do Marítimo, negociante de peixe, era proprietário do prédio onde ele vivia, no no 11 do Beco dos Aciprestes: Era da Bica e do Benfica; quando o Benfica ganhava ninguém era pobre aqui na Bica. Dava grandes almoços e jantares, nesse prédio que o número de escada é o 9 e tinha um terraço grande... terraço este que já tivemos a oportunidade de descrever, atrás.
69Mas a maior parte dos proprietários destes prédios de rendimento habitam fora do bairro, em Lisboa e até fora de Lisboa (Gráfico 15). Alguns deles foram inquilinos do prédio que, mais tarde, foi comprado, tendo-o abandonado por uma melhor residência, longe da pressão de vizinhos a exigirem melhores condições de habitabilidade. Revelam, muitos deles, dificuldades financeiras semelhantes aos dos seus inquilinos, e não raras vezes se escusam a fazer obras de melhoramento por comprovada pobreza; outros são os herdeiros (viúvas, órfãos) a braços com uma propriedade que pouco vale e só lhes traz despesa e preocupações.
70Não podemos deixar de lembrar os casos apresentados por Paulo Guimarães, no seu artigo sobre a habitação popular em Setúbal, alertando para o facto de que, em meios populares urbanos, os papéis de morador, proprietário e construtor não se identificavam e a relação senhorio-inquilino era a norma22 (1994: 527). Para este autor, a
... designação de habitação popular pretende ser mais lata do que a de...operária que, em rigor, deixa de fora os trabalhadores eventuais e indiferenciados, os pescadores, a numerosa criadagem urbana, os trabalhadores do comércio e dos transportes.(...) Os pequenos industriais e comerciantes, pescadores independentes, taberneiros, baixos funcionários completavam o quadro dos «bairros populares» cujas condições de alojamento não eram qualitativamente superiores aos do operário de ofício (ibidem).
71Embora desempenhando papéis diferentes, senhorios e inquilinos, na sua globalidade, parecem pertencer todos a um mesmo universo, popular, composto por essa diversidade de ofícios e ocupações sugerida pelo autor citado. Nos últimos anos este panorama tem-se alterado, com a possibilidade da compra dos andares em que vivem os seus inquilinos e a consequente passagem a propriedade horizontal para essa finalidade. Este processo, no entanto, não é geral e ainda muitos edifícios existem na Bica de um único proprietário, ausente e sempre fugitivo em relação aos múltiplos melhoramentos, sempre insuficientes, que, por lei, é obrigado a fazer.
Como caracterizar estes habitantes?
72Aquilo que em termos da sua topografia e do seu edificado parece constituir uma ilha, num conhecimento mais cuidado da sua vida social, atenua-se. Embora a mercearia fronteiriça à Carvoaria Minhota, na Travessa do Cabral tenha as suas portas abertas até noite cerrada; embora a padaria da Estrela seja a alternativa a um padeiro solitário que todas as manhãs rapidamente sobe a calçada, com o seu pregão, a fornecer todos aqueles idosos com dificuldades em escalar a imensidão de escadas e escadinhas íngremes com os seus sacos de compras; e uma mulher de fraca figura passe as manhãs, com as suas hortaliças e fruta, na esquina da Calçada com o Beco, a verdade é que, de uma maneira geral, o abastecimento, o ensino, a saúde, o trabalho, os divertimentos, definem uma multiplicidade de relações sociais que extrapolam o quadro vivencial do bairro na sua dimensão territorial mais restrita.
73A Igreja de S. Paulo congrega vários tipos de actividade, entre as crianças e os idosos. Catequese, escutismo, esmolas, distribuição de roupas, são apenas algumas das atracções da igreja que fica no largo. Os baptizados, casamentos e funerais passam, quase sempre, por aqui, as crianças vão semanalmente à catequese, os jovens implicam-se nos Escuteiros, alguns dos rapazes mais activos do Marítimo – como o Florêncio, verdadeiro artesão da marcha – recordam o seu tempo de escuteiros com uma saudade evidente.
74Em 1991, o sr. João Maria Paquete, sócio no 1 e fundador do Vai-Tu, elogiava-me a centralidade deste bairro. O melhor bairro do mundo, a acreditar nos seus argumentos:
Isto aqui é uma maravilha! A vista do rio, então ali de Santa Catarina...23 Já viu? E é o bairro mais central, para tudo: o mercado da 24 de Julho, que é o melhor mercado de Lisboa: é só atravessar a rua; há autocarros para os hospitais civis mais importantes (e enumera sete); fica perto dos barcos para a Outra Banda e dos comboios para Cascais e para Sintra e até para Vila Franca de Xira... enfim, é uma maravilha. Isto aqui é o centro (João Maria Paquete, 78 anos).
75Com efeito, esta percepção da sua centralidade ilustra bem a forma como, de uma maneira geral, os habitantes deste bairro, o representam: a Bica, embora protegida do bulício infernal da Baixa da cidade, vive perto desse centro, do Chiado, do porto. Rodeada por um abundante e variado comércio, por pontos de abastecimento próximos, por linhas de transporte rodoviário, ferroviário e fluvial, por importantes serviços de saúde, burocráticos e financeiros, a acessibilidade deste bairro a todo um conjunto de serviços é de assinalar. Os Paços do Concelho da Câmara Municipal ficam a cinco minutos; as sedes dos Bancos mais importantes, na Baixa, a Conservatória do Registo Automóvel do outro lado da rua, mesmo em frente das Escadinhas; o Rossio a dez minutos de caminhada; o Bairro Alto, um dos centros de lazer nocturno de Lisboa, a dois passos; os bares, restaurantes e dancings do Cais-do-Sodré, que hoje cedem o lugar à movida nocturna e juvenil da Avenida 24 de Julho, com tendência a se fixar na Doca de Santos, segundo os mais recentes planos de revivificação da zona ribeirinha e portuária destes quadrantes, ficam a um passo da rua de S. Paulo, bem como o Terreiro do Paço, centro das festas mais imponentes da cidade, com concertos e fogo de artifício...De facto, é verdadeira a valorização que João Maria Paquete faz do bairro onde vive. Uma visão mais pessimista, no entanto, pode ser, igualmente, traçada: a introdução da droga entre a juventude do bairro e algumas formas recentes de marginalidade relacionam-se com a envolvência de todas estas áreas urbanas, mais ou menos decadentes, e apenas vocacionadas para o vício e a perdição; mas mesmo nesses casos, a Bica surge claramente como uma ilha pouco corrompida e ainda protegida.
76Claro que outras circunstâncias fixam este bairro a uma territorialidade mais restrita, aos necessários e úteis serviços de uma Junta de Freguesia, por exemplo. É ali que se organizam actividades para crianças e idosos: os miúdos fazem ali ginástica e luta livre; os idosos saem nalguns domingos em excursões; ciclicamente são organizados prémios de atletismo, torneios de futebol, em colaboração com algumas colectividades; é ali que os fregueses podem procurar auxílios vários, desde monetários, a consultas jurídicas ou médicas; além disso, a escola mais frequentada pelas crianças da Bica, é, precisamente, a Escola no 3 que, embora não pertença à Junta, se situa na Rua de S. Paulo, com ligação interior ao seu edifício.
77Materializada na sua sede, no Largo do Stephens, o decrépito e exíguo edifício ocupado pela Junta de Freguesia de S. Paulo, ganha uma dimensão de grande proximidade com os seus fregueses. E a Bica tem, aqui, um lugar privilegiado, não só na frequência com que os seus habitantes a procuram como nos corpos da sua gestão. Em 1991, os cinco elementos do Executivo da Junta eram todos vizinhos da Bica, o que tornava esta sede não só ponto de encontro entre gente conhecida, como um local de circulação de informação bastante importante, apesar de geograficamente afastado do bairro.
78De todas as dimensões que inserem os habitantes da Bica no espaço urbano e no tecido social mais abrangente que faz a cidade, há uma delas – talvez a mais importante e a menos visível – que é a grande ausente, escondida, camuflada, esquecida: a dimensão laborai, o trabalho que leva um número considerável dos seus habitantes a sair de manhã do bairro para só regressar ao cair da tardinha. De um modo geral, as pessoas não gostam de falar do seu trabalho. Referem-se a ele de fugida, ou com variadas camuflagens. A designação da sua profissão muitas vezes é pouco clara, ambígua, pouco segura. De um modo geral, todos trabalham, jovens e adultos. A escolaridade é só para os mais pequenos e, passados os anos da primeira adolescência, rapazes e raparigas já tratam da sua vida, com trabalhos de ocasião ou a aprender ofícios mais fixos. Se a cabeça der para os estudos, ele – ou ela – vai estudar, é a esperança que muitos pais acalentam; se não der, como normalmente não dá, espera-os um trabalho qualquer, que nós não queremos parasitas, que os rapazes se perdem a andar p’rà’í.
79É difícil fazer-se uma estimativa de quantos indivíduos habitam a área, definida neste trabalho, como centro da Bica. De acordo com os Recenseamentos Gerais da População de 1981 e 1991, a freguesia de S. Paulo registava em 1981, 6756 indivíduos, 2173 alojamentos e 2690 famílias e em 1991, apenas 4676 indivíduos, 2026 alojamentos e 1976 famílias. Segundo os quarteirões isolados no já referido Ficheiro Síntese (1981)24, a sua população rondaria sensivelmente metade da freguesia. Hoje, pode-se estimar que esta Bica Alargada contará com pouco mais de 2000 habitantes, o que leva a que a Bica Restrita atrás delimitada tenha bastante menos habitantes.
80É habitual os antropólogos colherem, eles próprios, os dados nos lugares que estudam. No Censo, ou mais correctamente, no projecto de censo por nós efectuado em 1993 – tendo o Zé Machado perdido alguns dias comigo a percorrer as principais ruas, casa a casa – apenas conseguimos obter informação de cerca de 150 casas e 400 indivíduos, o que é claramente insuficiente. No entanto, e apesar das limitações deste inquérito, pareceu útil apresentar alguns dos resultado obtidos, pela sua ligação directa à realidade observada.
81A recolha foi efectuada ao longo de alguns dias seguidos, em Maio de 1993, já terminado o período de trabalho de campo. A minha maior familiarização com o bairro e o melhor conhecimento que os seus habitantes tinham da minha pessoa contribuíram para reduzir a natural desconfiança que qualquer tipo de inquérito porta a porta levanta numa cidade, em que os seus habitantes são sistematicamente assediados por todo o tipo de entrevistas com objectivos, por vezes, pouco claros. Esta foi a razão que me levou a decidir tardiamente pela aplicação deste questionário. Mesmo assim, e apesar de ter conseguido um relativo sucesso em muitas casas-sobretudo naquelas cujos habitantes me conheciam-noutras, a porta não se abriu ou abriu com desconfiança e o formulário ficou quase vazio de informação. Outras ainda estavam vazias, ou porque temporariamente desabitadas, ou por que os seus habitantes se encontravam a trabalhar ou em visitas. Estas lacunas foram a principal causa do insucesso deste levantamento. As perguntas foram reduzidas a um curto tempo de resposta: quantas pessoas viviam em casa, que relação as unia, profissão, naturalidade, idade, sexo, nível de instrução, tempo de permanência, qual o regime de ocupação da casa... (Figura V, em Anexo). As ruas abrangidas foram: a Calçada da Bica Grande, o Beco dos Aciprestes, a Travessa do Cabral, a Travessa da Bica Grande e parte do Largo do Santo Antoninho, tendo abrangido com sucesso apenas 140 casas e 364 indivíduos.
82Mais de metade destas casas (83) são ocupadas por agregados familiares simples – casal com ou sem filhos, mãe com filhos; em menor número famílias conjugais em coabitação com outros parentes ou pessoas não aparentadas e, mais raro ainda, agregados não conjugais. Por seu lado, existem bastantes pessoas que vivem sós, de uma certa idade, na sua maioria viúvos e viúvas (Tabela 3). O regime de ocupação destas casa é, ainda na sua grande maioria, o aluguer.
83A relação entre diferentes grupos de idade e os dois sexos parece bastante equilibrada neste microespaço. De facto, e embora o sexo feminino esteja melhor representado nas idades mais avançadas, como é natural, nos restantes grupos etários as diferenças entre um e outro são pouco relevantes (Gráfico 16).
84No entanto, se relacionarmos o nível de instrução com o sexo, já se nota uma discrepância entre os homens e as mulheres. Para se proceder a uma análise global por sexo, acumulou-se em sentido ascendente as percentagens de indivíduos encontradas em cada nível de escolaridade (de “não sabe ler nem escrever” até “curso superior completo”). As diferenças entre sexos são muito acentuadas nos níveis elementares de escolaridade, onde uma percentagem muito significativa de mulheres não frequentou escolaridade ou, tendo-a frequentado, não a concluiu (Gráfico 17). Esta conclusão não teria contudo qualquer significado se não se separasse as diferentes gerações que aqui se encontram misturadas. Após alguns ensaios, verificou-se que a distinção entre as gerações nascidas há mais ou há menos de 25 anos era crítica, revelando que estas diferenças deixaram de ter significado nas gerações mais novas onde as diferenças de escolaridade deixaram de ser significativamente afectadas pelo sexo, tendo-se invertido até a tendência no sentido de uma ligeira superioridade das raparigas sobre os rapazes na continuação e conclusão dos estudos. Pelo contrário, a diferença entre sexos, já encontrada para a totalidade da população estudada, torna-se muito mais acentuada na parte da população adulta já que se prolonga até ao fim do ensino secundário (antigo 5° ano dos liceus ou equivalente) (Gráfico 18).
85Ao nível da profissão desempenhada pelos indivíduos questionados, tentou-se uma classificação grosseira, de acordo com a Classificação Nacional de Profissões, na sua revisão mais actualizada, que permite um agrupamento em nove grandes grupos segundo critérios que adiante serão melhor explicitados (Nota Metodológica). Manteve-se, no entanto, a designação que cada um deu ao seu trabalho, descriminando a metade masculina da feminina (Tabela 4)
86Embora cerca de um quarto das mulheres abordadas se afirmem como domésticas, sabemos que, algumas destas se ocupam com trabalhos variáveis, desde a guarida de crianças até às limpezas. De facto, a maioria das mulheres que afirmam trabalhar fora de casa, fazem-no em torno das chamadas limpezas. É prática habitual, pelo menos entre algumas destas mulheres, a circulação por várias casas, no serviço doméstico ao domicílio – onde engomam, limpam, cozinham, etc. – ou, na sua vertente mais especializada, em empresas de limpeza; pago muitas vezes à hora, em regimes de contratação precários, as limpezas são o que toda a mulher da Bica sabe fazer e, que em momentos de crise, se apressa a arranjar, quando possível, nas proximidades do bairro. Muito semelhante a este trabalho, é o que se consegue arranjar nos restaurantes e cervejarias da zona, mais frequentemente nas cozinhas e na copa, mais raramente a servir ao balcão ou às mesas. Algumas trabalham na costura, por conta própria ou de outrem, como é o caso das que ainda mantêm ligações contratuais com o Rodrigues e Rodrigues. Tal como entre os seus companheiros, muitas vezes fica-se sem saber qual o real trabalho desempenhado: estou empregada na Caixa Geral de Depósitos; ou trabalho nos CTT, foram algumas das respostas avançadas, o que, normalmente, se refere a trabalhos não especializados, já que quando o são, surge logo uma descrição mais concreta da profissão desempenhada.
87O mercado da Ribeira surge como um lugar de trabalho que ainda ocupa alguns habitantes da Bica, homens e mulheres. Empregados administrativos, dos serviços e vendedores, operariado, artífices e motoristas são algumas das profissões masculinas mais comuns. De um modo geral, esta pequena amostra permite dar uma ideia da forma como os habitantes da Bica ganham a vida, num quadro laborai caracterizado por um conjunto diversificado de trabalhos pouco qualificados e bastante dependente de outrem.
88No que se refere à naturalidade destes habitantes socorremo-nos de um outro recenseamento existente na Junta de Freguesia: o Censo Eleitoral de 1991. De acordo com este levantamento, referente às ruas do bairro, numa definição alargada – Bica de Baixo + Bica de Cima – pode-se dividir esta população, de acordo com a sua naturalidade, em dois grandes conjuntos: um, maioritário, de nascidos fora de Lisboa, outro, menor (um pouco mais de um terço), nascidos em Lisboa. Em relação aos imigrantes, não parece haver qualquer concentração suficientemente acentuada de um concelho ou distrito em particular – como sucede em Alfama, com o concelho de Pampilhosa da Serra (Costa, 1985) ou na Madragoa, com alguns concelhos do distrito de Aveiro (Pujadas e Lima, 1990). Os distritos de Coimbra e de Viseu encontramse um pouco melhor representados do que os outros, mas de uma forma ligeira (Tabela 5).
89De facto, a avaliar pelos resultados deste Censo Eleitoral, o caso da Bica parece confirmar o dado anómalo sugerido por Firmino da Costa ao descobrir que os tão típicos lisboetas de Alfama eram maioritariamente nascidos fora de Lisboa. De um modo semelhante, a actual população da Bica, na sua maioria nascida fora de Lisboa, exemplifica uma situação semelhante. O enraizamento que um determinado quadro de interacção parece ter no bairro, capaz de gerar uma população que se sente portadora de uma identidade colectiva duradoura (Costa e Ribeiro, 1989: 88), é interpretado como paradoxal com a contagem estatística das naturalidades dos seus habitantes. No entanto, o facto paradoxal parece decorrer de algumas relações pouco explícitas estabelecidas entre, por um lado, a naturalidade e a quantidade de população e, por outro, a criação e reprodução de sistemas culturais e estilos de vida urbanos.
90Valeria a pena colocar um conjunto de questões: qual a operacionalidade da categoria de imigrante em bairros onde, a exemplo da Bica, aparecem indivíduos nascidos fora de Lisboa – por exemplo Setúbal –, cujos pais e, por vezes avós, nasceram no próprio bairro; qual a semelhança de condição entre um indivíduo nascido fora e que, com pouco tempo de vida veio viver para um destes bairros, e outro que, já adulto aqui chegou? Com o pouco que se conhece sobre os padrões migratórios de certas populações litorais do país e da sua relação com o mercado abastecedor da capital, bastante antiga e sedimentada ao longo de várias gerações, a categoria de imigrante tem de ser constantemente relativizada e afinada. Por outro lado, e partindo do princípio que, quantitativamente, existem mais habitantes paraquedistas na Bica, falta analisar qual o seu real protagonismo na dinâmica colectiva e afirmativa do bairro – na preparação da festa, nas associações, nas relações com o poder camarário –, dinâmica esta que contribui activamente para a definição da imagem do bairro, dos seus estereótipos, da sua individualidade.
91Mais importante do que uma caracterização demográfica e estatística de uma determinada população, como forma de aceder aos factores que contribuem para a produção e reprodução de elementos de afirmação identitária locais, parece ser o protagonismo de certos grupos sociais, dentro e fora do bairro, responsáveis por um projecto de afirmação de um lugar reconhecido socialmente. Com efeito, e apesar de ser verdade que, na Bica, existem muitos habitantes exteriores ao bairro, um dos aspectos que, ao longo deste trabalho, se pretende demonstrar, é que algumas famílias ali enraizadas há algumas gerações tomaram nas suas mãos a definição de uma imagem do bairro – de uma memória e de um imaginário –, e por isso lutam contra ventos e marés – dentro e fora do bairro. No capítulo que se segue, uma fonte é analisada – registos civis e paroquiais – com o objectivo de contemplar a dimensão temporal como uma das variáveis fundamentais para a caracterização sociocultural do bairro em foco.
Notes de bas de page
1 Na Lisboa Antiga este aviso é situado em 21 de Julho, apesar de a derrocada só se ter dado na madrugada de 22.
2 Alguns autores afirmam terem sido causados por tremores de terra (José Augusto França, 1980: 20).
3 Madragoa.
4 A caracterização desta porção de território como vazio social refere-se, evidentemente, ao ponto de vista adoptado neste trabalho, da relação de rivalidade entre dois bairros semelhantes, Madragoa e Bica, e como tal tem de ser relativizada.
5 Director este que, mais tarde, descobri ser primo afastado do ensaiador-embora este grau de parentesco nunca me tivesse sido referido, por desconhecimento ou ocultação.
6 E com ele registando uma acesa rivalidade, como mais tarde tive ocasião de confirmar...
7 Outras pessoas que têm contactado com a Bica e com alguns dos reponsáveis desta colectividade, têm-me descrito a sua simpatia.
8 Referido pelo pseudónimo de Zé Machado.
9 O Beco dos Aciprestes é, de um ponto de vista local, muitas vezes integrado na Calçada da Bica Grande, como prolongamento desta. Por isso, a sua não referência não significa, nem esquecimento nem exclusão deste Beco.
10 A imensa Rua de S.Paulo com as suas perpendiculares foi excluída desta primeira aproximação às vivências da Bica, por constituir uma região socialmente destacada do enclave do bairro, caracterizada por uma intensa vida comercial, um ensurdecedor trânsito rodoviário, enfim, toda uma vida de relação aberta com a urbe.
11 Torna-se necessário incluir aqui um pequeno esclarecimento técnico. Num primeiro momento, as perguntas eram lançadas, ao sabor das conversas surgidas. Numa segunda fase, esbocei uma planta das ruas de parte da freguesia, com as indicações de alguns referentes orientadores para a sua leitura – Caixa Geral dos Depósitos, Igrejas de S. Paulo e das Chagas, etc. – e pedia às pessoas que riscassem aquilo que achavam pertencer à Bica. Claro que só sugeria este exercício a pessoas com um nível mínimo de instrução, capazes de perceber o mapa.
12 Segundo Michel Coste (1985:538 e segs.), a referência ao nível local combina dois níveis próximos mas que não se sobrepõem: a commune, unidade administrativa e o bairro, socialmente reconhecido, subjectiva e objectivamente. Estas duas representações conjugam a referência à prática das circunscrições administrativas que, nalgum momento, terão coincidido com uma realidade social e a unidade comunitária, por assim dizer, a vizinhança, a escala humana, a apropriação territorial de um lugar.
13 Sempre que, em conversa sobre o bairro eu lembrava a vizinha Chagas e queria saber qual a relação com esta parte, as respostas, embora variando, significavam sempre o mesmo, a exemplo desta: Ora, isso eram só palacetes e condes e gente assim, não havia contacto com esse lado da Bica....
14 Talvez porque o meu contacto com esta parte da Bica – Bica de Cima, para os da parte baixa – tivesse sido superficial e pouco aprofundado.
15 Ver Nota Metodológica.
16 E outros pequenos bairros, hoje desaparecidos. Ver, por exemplo, a referência que J. Castilho faz, no anexo do seu vol. IV da Ribeira de Lisboa, às miseráveis barracas que urgiam ser removidas, entre o Conde Barão e a Madragoa (1981).
17 No momento da redacção deste trabalho, já era possível encontrar dados equivalentes a este Ficheiro Síntese, para 1991, embora as unidades mínimas territoriais já não fossem secções idênticas. No entanto o custo para a sua aquisição era elevado e o seu interesse bastante marginal, em relação aos objectivos deste trabalho. Por isso se recorre mais aos dados de 81, recolhidos na fase de trabalho de terreno.
18 Entre os 20 e os 64 anos, respeitando o grupo etário proposto...
19 O espaço livre comum, para o qual convergem as habitações com os seus pisos térreos, e o ambiente de privacidade, são talvez duas das vertentes mais importantes, devidamente acentuadas pelos autores que têm estudado os pátios, as vilas e as ilhas. Manuel Teixeira define sumariamente pátio e vila: Um pátio (é) um espaço mais ou menos regular, situado no interior de um quarteirão, com pequenas casas construídas à volta viradas para um espaço livre comum (...) As vilas consistiam em grupos de pequenos edifícios construídos em volta de uma espaço comum, geralmente uma rua privada... (1992: 70)
20 Ou Vila Pinheiro, como consta da «Ficha Pátio/Vila» do levantamento efectuado pela Câmara Municipal, com a data de 1988.
21 Segundo dados de um levantamento que, durante alguns dias, levei a cabo acompanhada por uma adolescente que aí vive com a sua madrinha, que de facto é a sua mãe adoptiva e a quem ela chama, carinhosamente, avó. O acesso a este pátio foi, várias vezes, dificultado, por ordens expressas do senhorio; o seu Processo-Obra não foi consultado, por se encontrar o pátio em obras. Por estas razões, não se incluem em anexo os dados deste levantamento.
22 Apenas um caso de construtor-proprietário pode ser acompanhado devidamente, no Processo-Obra. Tratou-se de dois edifícios que, de tão ruinosos foram demolidos, em meados dos anos 20, tendo o proprietário de um deles acabado por construir esse prédio novo que ocupa a esquina do Beco com a Calçada da Bica Grande, cuja cave é ocupada pelo Marítimo.
23 Referência ao miradouro de Santa Catarina.
24 Como já foi referido atrás, não foi possível conseguir este tipo de informação para 1991, devido à relação preço/ utilidade para esta investigação não ser aceitável; enquanto os dados para 1981 foram facilmente consultáveis, os de 1991, na sua versão definitiva ainda eram, no momento em que foram procurados, excessivamente caros.
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