Prefácio
p. 15-17
Texte intégral
1Este livro de Graça índias Cordeiro constitui a primeira monografia portuguesa no campo da Antropologia Urbana. Numa disciplina como a nossa, em permanente desenvolvimento devido à sua recente implantação, é frequente surgirem novos campos de especialização e novos desenvolvimentos teóricos. No entanto, no caso da antropologia portuguesa, com excepção de algumas incursões de João Pina Cabral no estudo da família burguesa portuense, ou de Joaquim Pais de Brito na análise de um canto popular da cidade de Lisboa – o fado –, tem havido uma inibição total, por parte dos profissionais, relativamente à relevância das realidades urbanas. Quase como se o rural, o campesinato e a vida aldeã constituíssem a única dimensão pertinente para o estudo antropológico. Trata-se, sem dúvida, de uma opção muito respeitável que se insere, aliás, numa larga tradição da Antropologia Social europeia, tendo sempre as sociedades mediterrânicas interessado mais na sua dimensão «rural» e «tradicional». O que se pode comprovar com os claros paralelismos existentes entre os estudos em e sobre Portugal, Espanha, França, Itália ou Grécia.
2Para a permanência desta tradição académica contribuiu, indubitavelmente e de forma decisiva, o facto de muitas teses de doutoramento, que logo se converteram em monografias ao alcance de um público mais amplo, terem sido concebidas e realizadas no quadro de universidades britânicas, francesas ou norte-americanas – onde se situam os grandes centros do saber antropológico. A partir desse olhar distanciado, que é um dos atributos metodológicos convencionalmente escolhidos pelos nossos antepassados para objectivar a imagem do outro, a Europa mediterrânica é o sul. Um sul construído ideologicamente por oposição directa ao norte, ao qual o maniqueísmo dualista atribui a etiqueta da tradição que contrasta com a modernidade, património do norte. Como muito bem assinalou Edward Saíd, esta tradição etnocêntrica que descobre no sul e no oriente o que profetiza, provém, pelo menos, desde a segunda metade do século xviii como podemos comprovar com a abundante bibliografia de viajantes e vendedores de bíblias que percorriam o sul da Europa e o Próximo Oriente em busca do exotismo e do proselitismo religioso. Tal como os testemunhos de Borrow e Ford sobre a Espanha na primeira metade do século xix, encontramos em Portugal alguns textos importantes, editados pela Biblioteca Nacional, como o diário de William Beckford, de 1787, as cartas de Carl I. Ruders (1799-1801) ou as notas que Charles de Merveilleux e César de Saussure escreveram sobre o Portugal de D. João V.
3Se o romantismo britânico tornou exóticas as decadentes culturas do sul, olhando-as por sobre o ombro, foram os antropólogos, igualmente britânicos, que, um século mais tarde, após o abandono das suas colónias africanas, «voltaram a descobrir o Mediterrâneo», adjectivando-o em termos de honra, vergonha, ou familismo amoral. A antropologia ibérica, directamente influenciada por esta nova tradição, tem persistido, nas últimas décadas, no estudo dessas unidades camponesas em vias de desaparecimento. Não se trata, evidentemente, de pôr em causa a validade e a importância de tal empenho, atendendo ao facto de que são muitos os temas e as regiões que faltam ser estudados para se ter um conhecimento satisfatório do campesinato e da vida local aldeã. No entanto, o que chama a atenção no caso da antropologia social portuguesa é o esquecimento sistemático de certos objectos e determinados terrenos. Um deles é precisamente o estudo das ricas tradições e culturas urbanas, sistematicamente negligenciado.
4Este esquecimento parece-me especialmente significativo no caso da metrópole lisboeta. Por um lado, devido à abundante e rica panóplia de bairros, comunidades e gentes que habitam uma das poucas cidades verdadeiramente cosmopolitas da Europa. Por outro lado, devido à existência de uma forte tradição interna de estudos histórico-folclóricos, a olisipografia, com os quais, creio, a antropologia social portuguesa deve dialogar (assim como com outras tradições disciplinares), para retirar do esquecimento e tornar relevante esse rico caudal de reflexão urbanológica, de forma a contribuir para a nossa compreensão dos complexos processos de transformação que têm modificado a face da sociedade lisboeta.
5O livro que o leitor tem entre mãos, e que é uma reelaboração de parte da tese de doutoramento que a professora Graça Cordeiro defendeu há cerca de um ano, tem a virtude de conciliar esses dois esquecimentos. Por um lado, resgata um espaço emblemático e amplamente conotado da realidade urbana e do imaginário colectivo lisboeta – o bairro da Bica – abordando-o analiticamente a partir da mais sólida ortodoxia antropológica. Mas, ao mesmo tempo, introduz todos aquelos elementos analíticos e apologéticos que têm forjado dialogicamente a própria identidade dos actores do bairro no contexto mais amplo da cidade.
6Em simultâneo com uma pesquisa sistemática de notícias nos principais periódicos da cidade, desde 1865 até à actualidade, a autora percorreu os textos olisiponenses mais relevantes em busca de referências, não só do bairro da Bica, como também uma aproximação ao próprio conceito de bairro popular que, no fio histórico da criação e difusão das marchas populares, constitui o marco básico no processo de construção de uma tradição interna, de uma representação emic da realidade social, da sua história e dos seus ícones urbanísticos. Aqui aparecem com voz própria os mestres Norberto de Araújo, Francisco Câncio, Júlio de Castilho, Luís Chaves, Júlio César Machado, Gustavo de Matos Sequeira ou Augusto Vieira da Silva. À obra destes autores, verdadeiros modeladores da comunidade imaginada lisboeta, haveria que somar Raúl Proença, o exímio bibliotecário que em 1924 redigiu o seu famoso Guia de Portugal que, evidentemente, muito mais do que um guia para turistas é um verdadeiro compêndio de história e dos costumes de um país e da sua capital.
7O mais importante do trabalho da autora é a sua capacidade em percorrer fontes tão díspares e abundantes como esta literatura olisiponense, fontes censitárias, urbanísticas e históricas municipais, conservando sempre a imparcialidade e um ponto de vista próprio e, especialmente, dando voz aos actores sociais do bairro. Através destes, a autora constrói, de forma miniaturizada, a história social de algumas famílias, das suas relações sociais e de parentesco, de formas de associativismo, recuperando a memória histórica dos bicaenses. Sendo este facto só por si muito importante, a autora consegue articulá-lo perfeitamente no quadro contextuai do processo histórico, cultural e social lisboeta, como um todo integrado e interactivo. A etnografia do bairro da Bica não constitui um estudo na cidade mas sim um estudo da cidade de Lisboa.
8Outra virtude – talvez a principal a longo prazo – deste trabalho pioneiro e um pouco solitário da professora Graça Cordeiro, é que consegue um modelo e marca um caminho a seguir em futuros estudos urbanos deste tipo. São muitos os bairros populares que faltam estudar, mesmo tendo em conta o magnífico trabalho do sociólogo António Firmino da Costa sobre Alfama. Com ele, falta abordar, numa escala urbana mais geral, tanto o estudo do processo de construção dos imaginários colectivos sobre Lisboa (do qual o trabalho em curso da própria autora sobre as marchas populares constitui uma peça fundamental), como o debate epistemológico sobre qual o papel que os estudos urbanos podem desempenhar dentro da antropologia portuguesa, no processo de construção da sua própria especificidade e identidade como ciência social. Creio, sinceramente, que no futuro imediato da Antropologia Urbana portuguesa, a voz autorizada da professora Graça Cordeiro irá soar constantemente. Esperemos que a ela se unam muitas outras vozes.
9Tarragona, 4 de Janeiro de 1997
Auteur
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000