7. Conclusão
p. 369-375
Texte intégral
1Iniciámos este percurso de escrita com uma interrogação. Como compreender que o « vadio-mendigo », personagem da vida pública no princípio do século em Portugal, reconhecido pelas próprias autoridades administrativas, fosse, a partir da década de trinta, segregado nos albergues de mendicidade, expulso da cidade, exilado de qualquer lugar público ? Como vimos, ainda nas primeiras décadas deste século, a relação entre mendigos e doadores de esmola consistia num sistema de prestações e contra-prestações (Mauss, 1950) mediado por um terceiro termo (sagrado e/ou ligado com os antepassados) que preenchia importantes funções simbólicas no imaginário colectivo.
2Foi neste contexto que situámos muitas das representações sobre a mendicidade e práticas afins propagandeadas pelo Estado Novo e, em particular, aquelas em que as suas elites dirigentes criticavam fortemente a lógica de reciprocidade que suportava o sistema de caridade tradicional, nomeadamente através da acentuação da distância entre « indigentes verdadeiros » e « falsos pedintes » (e da equação destes últimos à « perversidade », à « impureza », à « perigosidade social », ao crime, à patologia mental, etc.). Não se pense, porém, que esta distinção entre « bom » e « mau » pobre, entre « verdadeiro » e « falso mendigo », constituía uma especificidade do salazarismo ; tal clivagem (e seus aproveitamentos) tem sido um dos aspectos mais persistentes das concepções e das atitudes sobre a pobreza ao longo dos últimos séculos, podendo ser ventilado quer na lei das Sesmarias, quer em comportamentos e atitudes sociais contemporâneas face à pobreza (as quais, similarmente, enfatizam a ligação de uma certa pobreza à proliferação de comportantes desviantes) (cf. D. Matza, 1966 ; L. Waxman, 1976 ; Geremek, 1986).
3Contudo, a dessacralização vincada do mendigo e, por acréscimo, a « perigosidade social » que nele foi projectada pelas elites da Primeira República e do Estado Novo marcaram um afastamento fundamental em relação ao padrão tradicional, acentuando a vertente repressiva da mendicidade (no respeitante ao « mau pobre »), muito embora permitissem a sua coexistência com uma vertente caritativa ou beneficente. Os modelos de reciprocidade formulados por Sahlins (1972) sobre a troca nas sociedades primitivas ajudaram-nos a reflectir sobre a coabitação destas duas vertentes no princípio do século em Portugal.
4Apesar de não o pretendermos demonstrar nesta tese, pensamos, na linha de Geremek (1986), que entre gestos misericordiosos de esmola e ameaças de prisão e de castigo físico aos indigentes não podemos encontrar uma progressão histórica linear ; em contrapartida (e apesar da falta de documentação neste domínio) parece-nos mais interessante partir da hipótese de que a «caridade e a repressão conheceram longos períodos de coabitação e alternância de forças »1 tendo sobrevivido e continuando a influenciar as atitudes sociais contemporâneas em relação à pobreza.
5Após uma primeira perspectiva genética sobre a emergência de um corpus significativo de representações sobre a mendicidade e sobre a vadiagem, francamente contrastante com o modelo tradicional da caridade aos « pobres de Cristo », questionámos tais conceptualizações, mais concretamente a do mendigo-vadio « imoral », « inimigo de Deus », « impuro », « má companhia », « contaminante », « corruptor », « socialmente perigoso », sublinhando o papel das elites dirigentes (e, neste caso, das salazaristas) na construção da identidade marginal, no seu exílio do tecido social, bem como na produção de « especialistas » e de « técnicas » de regeneração (moral) da marginalidade por elas configurada.
6Nesse sentido, procurámos mostrar como aos olhos de uma maioria significativa da população portuguesa de outrora, o recurso à mendicidade (mas também à prostituição, ao pequeno furto, etc.), constituía uma estratégia indispensável e tradicionalmente aceite de superação e/ou compensação dos seus quotidianos precários e das condições incertas de trabalho (sobretudo em contextos de crise económico-social, frequentes no período que nos ocupou). Esta « normalidade » de certas estratégias semi-ilícitas em tempos de crise, bem como o facto, daí decorrente, do português pertencente às camadas mais desfavorecidas não reconhecer uma distância excessiva entre ele e os que recorriam à esmola ou a práticas afins, (muito embora mendigos, vadios, prostitutas, ladrões ocasionais, etc., lhe evocassem um destino altamente temido), estiveram na base da impopularidade das medidas de repressão da mendicidade e da vadiagem, bem como da falta de solidariedade e até da oposição circunstancial de uma porção considerável da população face ao trabalho desempenhado, nesse âmbito, pela P.S.P. do Estado Novo.
7A « simbólica do idêntico e do diferente » que F. Héritier (1979) concebe como um esquema universal de organização das representações e das práticas, estruturante da diversidade dos sistemas de regulamentação das relações entre indivíduos, de construção das relações proibidas e lícitas, bem como das representações sociais a elas associadas e, em particular, algumas das leis desta simbólica, a saber — a evitação do excesso de idêntico e da diferença excessiva, assim como a ambivalência que gere frequentemente a relação entre o idêntico e o diferente (atraindo-os e afastando-os) — parecem também, virtualmente, gerir o campo de representações e práticas referentes a mendigos (e seus duplos) e não-mendigos, em muitos sectores da população portuguesa nas primeiras décadas do século vinte. Na óptica dos segundos não era possível estabelecer uma diferença vincada entre eles e os primeiros, mas face a estes últimos (ou face ao que simbolizavam) actualizavam, em simultâneo, estratégias de distanciamento, repudiando o excesso de proximidade (angustiante) ; esta ambivalência do português comum face a mendigos e seus afins inviabilizava a aceitação da projecção destes últimos para um espaço à margem, contrariava o estabelecimento de uma relação de total irreconciliação entre eles, exigidas pelo grupo politicamente dominante.
8A antipatia ressentida face ao enclausuramento de indigentes, mendigos, vadios, prostitutas, homossexuais, garotos de rua, crianças abandonadas, velhos decrépitos, etc., num mesmo espaço institucional, de funcionamento marcadamente carcerário, não constituía apenas um traço distintivo das camadas populares ; a estranheza perante tais medidas permeava também alguns sectores mais diferenciados, relacionados com a beneficência pública. Características estruturais do processo histórico português, determinando que entre nós não se tenha feito sentir aquela política de « grand renfermement » (Foucault, 1961) dos indigentes que dominou as doutrinas sociais dos séculos passados nas zonas mais industrializadas da Europa, parecem estar na base da estranheza suscitada pela criação de Mitras a cargo da P.S.P., internando universos humanos e possuindo padrões de funcionamento verdadeiramente anacrónicos (comparáveis aos dos hospitais gerais da Idade Clássica), mas inauguradas, em Portugal, na década de trinta.
9Face a que critérios mendigos, vadios e seus equiparados puderam ser acusados de « perigosidade social » e encerrados nos albergues ? Que obsessões possibilitavam a assimilação de todos eles a uma única categoria e o seu internamento conjunto no mesmo espaço ? Que lógicas e objectivos justificavam e geriam a sua estadia (tantas vezes longa e terminal) nestas instituições ? Foi sobre estas questões que nos debruçámos ao longo de vários capítulos. Partir justamente daquilo que um regime político condenou, ocultou (dos estrangeiros) segregou e tentou regenerar, dos atributos que seleccionou como desviantes e considerou ameaçantes para a sua desejada e idealizada harmonia e homogeneidade internas, das semióticas através das quais promoveu e legitimou as acusações proferidas de marginalidade e de perigosidade social ou das instituições repressivas e regeneradoras que inventou e inaugurou, remeteu-nos para o seu cerne mais secreto. A marginalidade projectada no mitreiro conduziu-nos às preocupações, às vergonhas, às imperfeições e aos fantasmas do seu intermador.
10Paralelamente, à medida que íamos explicitando os critérios (e as semióticas a eles subjacentes) utilizados pelas elites salazaristas na construção do estatuto marginal de vadio (e seus afins) — migração em direcção aos centros urbanos movida por espírito aventureiro, recusa voluntária do único modelo de família valorizado, « sacrifício da honra » feminina e masculina, « ociosidade » ou opção por determinado padrão de trabalho, incerto, sazonal, em contacto com a rua, « prazer perverso em contaminar » moralmente (e fisicamente) o « bom português », « loucura moral », « estigmas de degenerescência », etc., procurámos mostrar como, nuns casos, não se verificava sequer uma correspondência entre os trajectos de vida dos mitreiros e as representações produzidas pelos seus internadores (directos ou indirectos) ; como, noutros casos, ambas as visões (dos próprios ou dos seus regeneradores) podiam até concordar nas vicissitudes biográficas narradas ou apontadas como trajectos propiciatórios de comportamentos desviantes mas diferiam profundamente no respeitante às motivações que lhes atribuíam ; ou ainda como, muito frequentemente, estes dois grupos divergiam nas suas apreciações ou julgamentos morais das mesmas condutas, em função de se orientarem por espectros de valores distintos, nomeadamente acerca do que era ou não era legítimo em determinadas circunstâncias, do que era mais ou menos condenável e da hierarquia das suas punições, etc..
11À luz do desfazimento visualizado entre os discursos projectados pelo grupo politicamente dominante sobre vadios e seus afins e os discursos dos actores sociais concretos ditos « vadios » acerca do seu trajecto e modo de vida, bem como da proximidade identitária (que sobressaía dos testemunhos autobiográficos destes últimos e da análise das estatísticas sobre vadiagem e mendicidade) entre alguns dos rostos da vadiagem e o português comum de outrora, propusémos-nos olhar para a categoria « vadio » como uma construção ideológica, gerida por um modo de produção simbólico, através da qual o salazarismo pôde conceptualizar e justificar o seu projecto de renovação identitária e consolidar determinadas relações hierárquicas.
12A perspectiva estrutural-dinâmica2 utilizada na abordagem dos mecanismos simbólicos manipulados pelo salazarismo no processo de construção de uma oposição assimétrica e rígida entre governantes dos « bons portugueses » e « vadios »-reservatórios de primitividade, poluição e perigo mostrou-nos que tal processo insistia numa dinâmica ternária entre dois rivais hiper-realizados miticamente (identificados em atributos, projectos e poderes) — os « anti-heróis vadios », « especialistas da metamorfose do ouro em excremento » e os « heróis governantes », salvíficos, « especialistas da metamorfose purificadora do excremento em ouro » — e um terceiro termo, o actante « bom povo português» concebido (através de um ideologema que o desrealizava) como passivo, infantil, corruptível, com concomitante esvaziamento desrealizante dos vadios-actores sociais concretos e das suas circunstâncias e motivações socioeconómicas. De triangulação em triangulação, enchendo miticamente, desrealizando socialmente, reinscrevendo patologicamente, imobilizando espacialmente, etc., um ou mais termos do sistema, o projecto ideológico salazarista visava a consolidação do seu estatuto miticamente grandioso de « bom governante» e, em simultâneo, a revigoração e legitimação de uma relação hierárquica (de tipo familialista) em relação aos « bons portugueses do povo », remetidos idealmente para uma posição (incontornável) de dívida e gratidão (filial).
13Debruçámo-nos também, pormenorizadamente, sobre um espaço paradigmático de regeneração moral da vadiagem e das práticas a ela assimiladas, sobre o seu funcionamento, objectivos e quotidianos sequenciais — o albergue de mendicidade de Lisboa e suas metamorfoses entre 1933 e 1974. A reprodução do conjunto de subconclusões apresentadas nos capítulos intermédios constituiria uma repetição inoportuna neste balanço final. Gostaríamos apenas de reenfatizar que após uma viagem pela Mitra do antigamente, ao longo da qual focalizámos as (novas) compulsões de purificação e separação emergentes intramuros, as tipologias discriminatórias dos vários rostos da vadiagem desenvolvidas pelo internador, a ideologia de recuperação moral proposta pelo amigo regenerador, os seus principais objectivos e técnicas de metamorfose do « mau português » (bem como as semióticas que as justificavam ou suportavam), as descoincidências entre os ideólogos da « obra dos albergues » e as práticas institucionais, bem como as contra-estratégias actualizadas quotidianamente pelos mitreiros face ao « pacto de regeneração » imposto pelo internador, nos surgiu uma hipótese de interpretação das técnicas de recuperação moral (e das semióticas que as acompanhavam) como estratégias ritualizantes geridas por uma lógica simbólica de tipo sacrificial.
14Paralelamente, tentámos dar conta de certas circunstâncias e vicissitudes da assistência psiquiátrica portuguesa que contribuíram para que a loucura partilhasse, nas décadas de trinta e seguintes, o mesmo território do vadio, do mendigo, da prostituta, do homossexual ou do presidiário, chamando a atenção para a regressão que tal facto significava num contexto tão importante da história do direito penitenciário português e das políticas de assistência psiquiátrica como aquele que coincidiu com a promulgação da Nova Organização Penitenciária de 1936 e com a lei 2000 de 1945 sobre a assistência psiquiátrica.
15Uma instituição criada com o propósito de « defender os bons costumes », internava, em simultâneo, e logo desde os anos trinta, doentes mentais apanhados na rua pela P.S.P. ou oriundos do hospital psiquiátrico da capital, sobrelotado e moribundo, sem os submeter a qualquer terapêutica, situação esta que se prolongou e até se acentuou em períodos posteriores (decorrente quer da assumpção de uma vertente essencialmente clínica pelo Hospital Miguel Bombarda, reformulado em 1948, e pelo novo hospital do Campo Grande inaugurado em 1942, quer da ausência de instituições de retaguarda para os doentes mentais crónicos ou cronicizados, acumulados em tais instituições), ao ponto de, nas décadas de 50, 60 e 70, a Mitra ter assumido uma forte vocação parapsiquiátrica, a qual alterou parcialmente a feição oficial do estabelecimento.
16Muito embora nas últimas fases da sua vigência, o universo e os padrões institucionais do albergue tenham sofrido algumas modificações (e entre elas a introdução do Serviço Social), o modelo instaurado a partir de 1933 só se desestruturou no contexto do processo desencadeado pelo 25 de Abril de 1974. Desde modo, o albergue da Mitra é globalmente coetâneo do Estado Novo, nascendo e agonizando com o sistema político que o englobou e determinou, constituindo-se assim como um condensador relevante dos seus principais fantasmas ideológicos.
17No mesmo território, nas décadas de oitenta e noventa, os mitos de primitividade, poluição e perigo projectados no « vadio » bem como a violência agida na sua repressão, no seu internamento e na sua idealizada regeneração já não fazem sentido. Seriam, talvez, completamente esquecidos (dada a destruição quase total dos arquivos dos serviços de repressão à mendicidade e à vadiagem) se não fossem os seus estranhos residentes — pessoas que foram consideradas marginais e que, posteriormente, deixaram de o ser ; mas que, mais recentemente, voltaram a adquirir um estatuto marginal, distinto do que lhes foi atribuído no Estado Novo embora o partilhem (ironicamente) com alguns dos rostos dos « bons portugueses » de outros tempos — o de velhos moribundos, sem família, sem casa, sem propriedade.
18Foi sobretudo a sua generosidade terminal que nos permitiu dar visibilidade à violência quotidiana agida sobre uma porção significativa da população portuguesa nas últimas décadas e, mais especificamente, ao encerramento arbitrário, habitualmente sem direito a julgamento e tantas vezes perpétuo, de milhares de pessoas (mais de vinte mil só em Lisboa), violência esta que julgamos constituir um analisador central do salazarismo, escassamente trabalhado nas análises da grande maioria dos especialistas do Estado Novo. Equiparados em certa medida aos opositores políticos do regime e, por isso, como eles, encarcerados, após o 25 de Abril, todavia, ninguém se lembrou deles. O seu estatuto de velhos moribundos ou senis, a cargo da assistência social, contribuiu também para a invisibilidade das suas memórias, que constituíram a principal fonte da investigação realizada.
Notes de bas de page
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000