5. A instauração de um modelo institucional (1933-1951)
p. 123-325
Texte intégral
5.1. À revelia dos discursos oficiais: as primeiras estratégias de funcionamento do albergue
1Distinguindo entre os que esmolavam «por virtude do reconhecido estado de necessidade» e os que o faziam «por vício», o decreto n.o 30 389 de 20 de Abril de 1940 insistia repetidamente no facto dos albergues distritais de mendicidade se tratarem de estabelecimentos «de simples detenção e internamento provisório», (até se averiguar o estado e a situação dos entrados e se decidir do seu destino), abrindo uma excepção apenas para «os reconhecidamente pobres, sem família ou qualquer amparo [e] incapazes de angariar meios de subsistência», que poderiam «permanecer com mais alguma demora» na instituição.
2Tendo em vista esta sua função de triagem e encaminhamento, o preâmbulo do mesmo decreto procedia, aliás, à divisão dos albergues em duas secções distintas. A primeira, de simples detenção, era designada de «depósito provisório» (art. 3.1.) e funcionava como centro de identificação das situações individuais, familiares, profissionais e sociais dos entrados, que podiam ser enviados de seguida a tribunal ou aí retidos até se decidir dos destinos legais julgados mais adequados. Na segunda, ingressavam, sob um regime de internamento provisório, os indigentes doentes, a extrema velhice sem condições de subsistência, os sem família (ou rejeitados por ela) que exerciam a mendicidade por necessidade e os menores de dezasseis anos em «perigo moral».
3Era também nesta direcção que se situavam os testemunhos oficiais da polícia, encarregada na década de trinta, do Albergue Distrital de Mendicidade de Lisboa:
«Todos os indivíduos, seja qual fôr o seu sexo ou idade, que a Polícia encontra nas ruas, andrajosos ou a mendigar, são detidos e enviados a uma esquadra já preparada com as necessárias instalações de limpeza e desinfecção de corpos e roupas e, dali, transportados a uma camarata-depósito do Albergue, onde são inspeccionados por um médico. (...). Organiza-se o processo, (...) dá-se destino ao detido conforme as circunstâncias em que se encontra. São internados no albergue aqueles, novos ou velhos, que incapazes de angariar pelo trabalho os meios de sustentação, também não têm família que os ampare, só podendo viver da caridade pública (e) aos restantes é dado o destino mais aconselhável.»1
4Focalizemos, agora, os livros de entrada do albergue naquilo em que estes nos podem informar sobre a sua função oficial de internamento provisório, triagem e encaminhamento (cf. Quadro 2).
5Nos dois primeiros anos do seu funcionamento, a Mitra admitiu 3872 indivíduos. Uma vez que a informação referente à causa de internamento era praticamente nula, não podemos contar com esta fonte para quantificar e, em consequência, discernir o peso da «mendicidade exercida por necessidade» e o da «mendicidade profissional» (bem como das restantes situações equiparadas à vadiagem), nas admissões.
6Muito embora devesse funcionar idealmente como um centro de triagem e encaminhamento, nestes dois primeiros anos, o quantitativo das saídas registadas (2301)2 atingiu apenas cerca de 60% do quantitativo dos admitidos. Tal desproporção entre o número de entradas e o de encaminhamentos parece ter provocado um estado de superpopulação e despoletado, nos anos seguintes, uma estratégia de diminuição vincada das admissões3, acompanhada de um aumento considerável das saídas, cujo diferencial (E-S), nos anos de 1935 e 1936, chegou mesmo a ser negativo, invertendo-se o desfazimento inicial entre entrados e saídos, agora a favor destes últimos.
7No entanto, esta situação foi temporária. Entre 1937 e 1938, a cifra das admissões voltou a crescer (para um valor médio de 404) sem que o quantitativo das saídas acompanhasse este aumento e o resultado parece ter sido o de uma nova situação de sobrelotação. Com efeito, temos notícia que, em 1938, com 165 internados menores, 663 albergados cuja idade flutuava entre os 15 e os 100 anos, sedimentando paralelamente 94 indivíduos nas suas camaratas-depósito, à espera de identificação e atribuição de destino, o albergue estava quase a abarrotar.4
8Consequentemente, nos primeiros anos da década de quarenta e até 1944, o número de admissões apresentou uma queda considerável, raramente ultrapassando os 300 indivíduos por ano5. Apesar da diferença entre entrados e saídos ser positiva, o desfazimento numérico não era significativo, apontando antes para um equilíbrio entre o fluxo das admissões e o das saídas.
9Contrastando com esta situação, a partir de 1945, a percentagem das admissões elevou-se para a casa das centenas superiores, erguendo-se, de um pulo, para o milhar de entrados, nos anos de 1948 e 1949; concomitantemente, o quantitativo dos saídos, não obstante acusasse um aumento, não ia a par do recrudescimento impressionante das admissões. Em consequência, a desproporção entre entrados e saídos exacerbou-se, de novo, neste período, sem que, no entanto, se instalasse, de imediato, um estado de acumulação.
10Convém desde já referir que, das variações verificadas no movimento de admissões entre 1933 e 1951, indicação alguma se pode directamente deduzir sobre o fenómeno da mendicidade e da vadiagem em geral. As oscilações nos quantitativos dos entrados no albergue resultam, como veremos, de factores endógenos ao próprio funcionamento da instituição.
11O ano de 1936 bem como, posteriormente, o período 1939-1946 constituem exemplos flagrantes da impossibilidade de estabelecer uma relação de proporcionalidade entre as flutuações do número anual de entrados e o incremento ou a diminuição de casos de mendicidade e vadiagem na área em que o albergue recrutava os seus admitidos. Assim, dados fornecidos pelo Comando da Polícia de Segurança Pública, referem que, em 1936, 1899 mendigos foram capturados pela Polícia de Segurança Pública em Lisboa (valor da mesma ordem de grandeza dos apurados para os anos de 1933 e de 1935)6 e, no entanto, os livros de entrada do albergue da Mitra acusam uma quebra impressionante das entradas (198 indivíduos), que se deve, como já sugerimos, não a uma diminuição do número de mendigos capturados mas a uma política restritiva das admissões, accionada em situações de superpopulação institucional. Por sua vez, os anos comprendidos entre 1939 e 1946, que balizaram a conjuntura económica e social de guerra em Portugal, ao longo dos quais as condições de vida da população sofreram um agravamento intenso e o fenómeno da mendicidade aumentou significativamente (cf. ponto 2), caracterizaram-se, do ponto de vista das admissões no albergue, como um período muito escasso em internamentos.
12O mesmo se poderia deduzir da ascensão impressionante das entradas (que não se acompanharam de um aumento das saídas) no período do pós-guerra. Tal aumento, reflectindo menos as condições socioeconómicas do sistema envolvente, relacionou-se sobretudo, com a ampliação das instalações do albergue, nomeadamente, com a criação de uma colónia agrícola na Quinta do Pisão, entre os concelhos de Sintra e Cascais. Apesar da sua criação datar de 1942, os materiais mais antigos sobre os seus internados, consignados numa série incompleta e semiardida de guias de transferência (Sede-Pisão), dizem respeito ao ano de 1945, data esta que coincide com o recrudescimento progressivo do número das admissões no albergue.
13A construção de infra-estruturas na colónia do Pisão, com a mão-de-obra de albergados, atardou a dilatação da instituição mas, no final da década de quarenta, tornou possível a admissão anual de cerca de um milhar de indivíduos. Porém, em 1951, o quantitativo das saídas (742) volta a superar o das entradas (641), constituindo um indicador da saturação dos espaços institucionais recém-adquiridos.
14Se, entre 1933 e 1951, 12683 indivíduos foram admitidos no albergue e 10144 internados deixaram a instituição, isto é, se cerca de 80% dos entrados, entre 1933 e 1951, sairam neste mesmo período, uma análise segmentada, comparando o fluxo de entrados com o de saídos, revela-nos que, com excepção dos anos de 1935, 1936 e 1951, o quantitativo de admitidos superou sempre o de saídos. A sobreposição sucessiva de um saldo positivo de admitidos produziu inevitavelmente uma tendência à acumulação, culminando em situações críticas de superpopulação, parcialmente superadas por uma estratégia restritiva das entradas.
15Poderíamos, no entanto, pensar que, apesar do albergue, em determinados anos, se ter confrontado com situações de superacumulação e de insucesso no cumprimento dos seus objectivos oficiais, os dados totais, no período em estudo, não põem completamente em causa a sua eficácia como centro de detenção provisória, uma vez que o tempo médio de permanência institucional dos admitidos entre 1933 e 1951 era de cerca de três anos (cf. Quadro 4) nem como órgão de triagem e encaminhamento, na medida em que 80% dos entrados até 1951 deixaram a instituição no mesmo intervalo temporal. Contudo, uma abordagem dos motivos de saída registados nas fichas dos que deixaram a instituição entre 1933 e 1951 permite-nos problematizar, de outro ângulo, esta questão (cf. Quadro 3).
16Para os que deixaram o albergue no próprio ano da sua inauguração, o motivo de saída mais frequente foi a «guia de saída», registada em 81,7% dos saídos (e, nestes, em mais de 60% das situações, atribuída a internados de idades entre os 22 e os 66 anos). Com efeito, de acordo com o artigo 9.o do já referido decreto de 20 de Abril de 1940, quando se verificava que o exercício da mendicidade se tratava de um acto ocasional e não constituía «um hábito inveterado», ao detido poderia ser atribuída uma guia de saída, mediante «caução de boa conduta» e «pagamento de uma multa» que o comandante da polícia fixava entre 50$ e 100$.
17Por sua vez, a percentagem de encaminhamentos para outras entidades atingia apenas 7,2%, tinha como destino principal os hospitais civis (mais de 80% dos casos) e relacionava-se sobretudo com o universo mais envelhecido. O falecimento — 5,2% — dizia respeito às gerações internadas com idades de entrada mais avançadas e a fuga — 4,3% — era realizada predominantemente pelo segmento etário mais jovem e do sexo masculino.
18Para os registados como tendo deixado o albergue em 1934 e em 1935, a ausência de informação sobre a causa de saída elevou-se (30,2% e 23,8% respectivamente). Contudo, nas fichas dos saídos nestes anos que apresentam informações sobre o motivo de saída, a «guia de saída» (32% e 28,8%) e a fuga (20,3% e 21,2%) constituíam as razões mais frequentemente evocadas, seguidas do falecimento (13,4%), no ano de 1934, e da tranferência para outras instituições (15,6%), em 1935.
19Todavia, já entre 1936 e 1937, apesar da guia de saída ser a razão predominante de saída (40,9%; 39,8%), o falecimento apresentava-se como o segundo motivo mais frequente (21,1% e 32%), ao invés da fuga (19,2%; 17,1%) como acontecia nos anos anteriores. Depois de 1938 e até 1945, a morte do albergado transformou-se na causa de saída numericamente mais importante (45,1%), secundarizada pela «guia de saída» (23,6%) e pela «fuga» (20,1%), bem como pelas transferências para instituições que, se salvaguardarmos uma excepção — o ano de 1938 — (22,8%), atingiam valores diminutos. Também o ano de 1946 se torna verdadeiramente singular no que respeita aos motivos registados nas fichas dos que deixaram a instituição neste período, uma vez que apresenta o valor mais elevado de transferências para outras entidades (45,3%) e, nomeadamente, para instituições asilares (44,8%).
20No período 1936-1945, embora se observem algumas excepções, as guias de saída mas também as fugas aumentaram no universo dos menores de 14 anos; o segmento mais fustigado pela morte era o dos internados com mais de 52 anos; e, em 1938 e em 1946, anos nos quais as transferências adquiriram maior relevância, verificava-se que estas se relacionavam significativamente com o universo envelhecido; porém, enquanto que, em 1938, se nota uma sobretransferência do sexo feminino, em 1946, regista-se o inverso.
21Nos saídos nos anos seguintes e até 1951, os motivos de saída caracterizaram-se por uma oscilação entre a «guia de saída» e o falecimento, bem como por um valor sensível (mas tão elevado como em 1946) das transferências para outras entidades, nomeadamente, para instituições asilares e, em percentagens muito reduzidas, para institutos de apoio à infância, hospitais civis e sanatórios, hospitais psiquiátricos, etc. No que respeita às transferências para instituições asilares, observa-se que estas incidiam, predominantemente, sobre o universo internado com mais de 52 anos e, em particular, sobre o masculino.
22Uma análise global dos motivos de saída do universo que deixou o albergue no período compreendido entre 1933 e 1951 permite afirmar que a morte era a principal «causa» de saída (29,5%), atingindo percentagens muito elevadas (por vezes, superiores a 50%), particularmente, no primeiro quinquénio da década de quarenta.
23Paralelamente, a guia de saída (26,6%) mediante o pagamento de uma multa contribuía, também, para a abertura de vagas no albergue e, em simultâneo, dando entrada nos seus cofres, constituía uma importante fonte de receitas do estabelecimento. Perante a realidade estrutural da pobreza e da mendicidade por todo o país, agravada pela crise da guerra7, particularmente alarmante nos centros urbanos e, nomeadamente, em Lisboa para onde se dirigiam muitos migrantes sem pão nem trabalho, a Mitra — que já em 1938 estava a abarrotar — não possuía outra alternativa senão restituir «à liberdade» uma porção significativa dos seus albergados.
24Funcionando como albergue permanente para muitos necessitados e menores em «perigo moral», transferindo um quantitativo reduzido de internados (sobretudo de idosos para instituições asilares) e, como veremos, constituindo um espaço de correcção para vadios e mendigos profissionais em cumprimento de medidas de segurança, o albergue da Mitra dificilmente poderia ser concebido como um centro de triagem e encaminhamento. A elevada taxa de mortalidade verificada no seu interior, bem como o recurso a uma estratégia restritiva das entradas e de «libertação» de albergados (mediante uma multa) permitiam, todavia, que o albergue recuperasse parcialmente das suas sucessivas crises de superpopulação.
Quadro 2 — Quantitativo de entrados e saídos do albergue da Mitra8 (1933-1951)
Anos | Entrados | Saídos |
1933 | 2 179 | 1 090 |
1934 | 1 693 | 1 211 |
1935 | 517 | 956 |
1936 | 198 | 308 |
1937 | 354 | 269 |
1938 | 455 | 374 |
1939 | 310 | 252 |
1940 | 234 | 225 |
1941 | 311 | 218 |
1942 | 284 | 273 |
1943 | 272 | 258 |
1944 | 319 | 301 |
1945 | 482 | 269 |
1946 | 854 | 698 |
1947 | 699 | 532 |
1948 | 1 028 | 713 |
1949 | 1 043 | 790 |
1950 | 810 | 665 |
1951 | 641 | 742 |
TOTAL | 12 683 | 10 144 |
5.2. «Velhos» e «menores»: constantes em tempos de crise
25Os livros de entrada mostram-nos, paralelamente, que as oscilações no quantitativo anual de admitidos se faziam acompanhar de outras variações, agora no tocante às características básicas dos entrados, no período compreendido entre 1933 e 1951.
26Com efeito, a construção de três grandes grupos de idade referentes aos entrados — crianças e adolescentes (0-21 anos), adultos (21-51 anos); meia-idade e velhice (mais de 52 anos) — mostra-nos que, nos dois primeiros anos de funcionamento do albergue, a proporção de entrados compreendidos nestas três faixas etárias atinge, cada uma, cerca de um terço do valor total das admissões (cf. Quadro 5). No entanto, e apesar desta tendência ao equilíbrio entre os três grandes grupos de idade, uma abordagem conjunta das características da permeabilidade institucional à entrada e do padrão das saídas permite-nos afirmar que a população presente na Mitra nos seus dois primeiros anos de funcionamento deveria ser predominantemente jovem, uma vez que os motivos de saída mais frequentes neste período se relacionam, sobretudo, com o universo de idades superiores aos 22 anos. Convergindo com esta afirmação, um relatório elaborado pela comissão gerente do albergue da Mitra referia que, em 28 de Fevereiro de 1935, 50% do universo internado era composto por albergados com menos de 20 anos9.
27Por outro lado, e regressando aos livros de entrada, encontramos um diferencial relevante entre os entrados do sexo masculino (73,1% do total das admissões no período 33-34) e do sexo feminino (26,9%, no mesmo período) que se agudiza nos grupos etários 15-21, 22-37, 52-66, decresce ligeiramente nos entrados com menos de 14 anos, para diminuir ainda mais nos admitidos com mais de 67 anos (cf. Quadro 6). Tal desproporção, mantendo-se à saída, constituía uma característica, mais ou menos constante, do universo internado no albergue.
28Subvertendo parcialmente o padrão inicial das admissões na instituição, nos anos seguintes, a proporção de indivíduos entrados com mais de 52 anos ultrapassa quase sempre a dos entrados de idade compreendida entre os 22 e os 51 anos e entre os 0 e os 21 anos, indiciando mudanças na permeabilidade institucional.
29Assim, no período compreendido entre 1935 e 1938, que poderíamos caracterizar como predominantemente gerontológico (uni-extremado), a admissão de indivíduos com mais de 52 anos atinge, em média, 54,1% da totalidade das entradas, percentagem esta que nunca será ultrapassada nas décadas seguintes. Concomitantemente, sabemos que este aumento dos entrados com mais de 52 anos face a anos anteriores se deve, por um lado, ao aumento dos admitidos de idade compreendida entre os 52 e os 66 anos e, mais acentuadamente, aos com mais de 67 anos e, por outro lado, à diminuição dos admitidos dos restantes grupos etários, muito vincada no caso dos menores de 7 anos e dos entrados dos grupos etários 15-21 e 22-36 anos e mais ligeira no caso dos grupos etários 8-14 e 37-51 anos.
30Deste modo, a contracção do movimento das admissões, função da situação de superlotação emergente ao cabo dos dois primeiros anos de inauguração do albergue, posta em prática entre 1935 e 1938, atingia diferencialmente o universo de potenciais albergados, isto é, restringia a entrada aos universos infantil, juvenil e adulto e, pelo contrário, apresentava uma maior permeabilidade relativamente aos indivíduos mais idosos.
31Se tomarmos em conta, agora, as características etárias dos saídos no mesmo período, isto é, a proporção significativa de menores de 21 anos (35,5%) entre os que deixavam o albergue podemos deduzir que o predomínio de uma população jovem, típico dos primeiros anos, se desfaz. De acordo com uma informação da P.S.P. de Lisboa, em 1938, a Mitra albergava apenas 17,9% de menores de 15 anos10, o que contrasta com a percentagem de 42,9% registada no início de 1935 pelo relatório da respectiva comissão gerente11. Ao invés, e apesar do peso relevante de indivíduos com mais de 52 anos que deixavam a instituição (sobretudo por falecimento), a Mitra, neste segmento temporal, parece ter adquirido uma dimensão asilar acentuada, vocacionada para uma certa velhice (cf. ponto 5.3.2.).
32A partir de 1939 e até 1946, as percentagens de entrados com mais de 52 anos conservam-se bastante elevadas, muito embora sejam ligeiramente inferiores às apuradas no período 1935-1938 mas, paralelamente, constata-se um crescimento impressionante dos entrados de idade entre 0-14 anos (e, mais especificamente, dos de idade compreendida entre os 8 e os 14 anos), o que nos leva a definir esta subfase institucional como duplamente extremada, infantil e gerontológica.
33A restrição intencional das admissões que explica a queda do quantitativo dos entrados nos primeiros anos da década de quarenta até 1945, relacionada não apenas com as sucessivas crises de sobrepopulação, resultantes do fracasso das funções institucionais de distribuição e encaminhamento mas também com as dificuldades económicas decorrentes da conjunctura de guerra (também elas experimentadas no interior do albergue cujo fundo, em boa parte, advinha de particulares), comportava, portanto, uma política selectiva. Menores até 14 anos e indivíduos de idade mais avançada — indigentes, abandonados, doentes, inválidos, etc., — constituíam, em média, 75,4% das admissões e, ao invés, as portas da Mitra encontravam-se parcialmente vedadas ao universo adulto. Em tempos de crise, com taxas de mortalidade elevadíssimas, pondo em liberdade muitos detidos, o albergue parecia ter rejuvenescido o seu universo, alojando, em 1945, 400 rapazes e 150 raparigas num total de «1300 e tantos indivíduos»12.
34A ascensão das entradas que se observou nos últimos anos da década de quarenta possibilitada pela dilatação do espaço físico da instituição (e pela construção de infra-estruturas com o auxílio de subsídios estatais) fez-se acompanhar de algumas variações nas características básicas do universo internado. A especificidade das novas instalações (destinadas a adolescentes e adultos do sexo masculino) permitem-nos compreender o aumento significativo dos entrados de idades entre os 15 e os 51 anos registado nos livros de entrada. Viabilizado pela entrada em pleno funcionamento da colónia agrícola no Pisão, anexa ao albergue, o aumento do universo adulto dissolveu, em grande parte, o desequilíbrio a favor dos grupos etários mais jovens e dos mais velhos no universo internado13.
35Apesar de não nos informarem directamente sobre as causas de internamento, os registos dos livros de entrada mostram-nos que a Mitra albergou uma grande proporção de menores e de idosos durante as suas primeiras décadas de existência e que, por acréscimo, conservou um grau de permeabilidade face a estes dois grupos de idade, mesmo em situações de acumulação.
5.3. A população «reclusa»: perfil antropológico
5.3.1. O universo adulto
36Partindo dos testemunhos do seu internador mais directo, o que parecia definir o mitreiro era, essencialmente, o facto de, nas suas múltiplas figuras, encarnar um conjunto de atributos interpretados como desviantes face a um modelo de «bom português»:
«Saiu da terra da sua naturalidade em 29 de Maio de 1949, onde vivia como industrial de padaria (...) na Ilha da Madeira, dirigindo-se a Lisboa com o fim de fazer tratamento por meio de águas. Poucos meses depois foi preso no Cais do Sodré, por suspeita de vadiagem. Diz ter como família só um irmão (...) com quem estava de relações cortadas quando saiu da terra e até à data nunca se corresponderam.»
Referente a J..., internado em 1949, 37 anos, solteiro, natural da Madeira.
«Foi trabalhar para o hospital da Misericórdia de Montemor-o-Novo como servente de uma enfermaria, onde se conservou durante um ano, saindo dali por sua livre vontade para começar a trabalhar em carroceis, correndo as feiras do país, até que veio para Lisboa, sendo preso pela P.S.P, por andar a exercer a mendicidade.»
Referente a M..., internado em 1941, 41 anos, solteiro, natural de S. António do Alentejo.
«O digno magistrado do Ministério Público acusa o réu (...) de que tendo mais de dezasseis anos e menos de sessenta, também de idade e, sem quaisquer rendimentos com que proveja ao seu sustento, também não exerce habitualmente qualquer mester em que ganhe a vida, porque só se dedica à mendicidade, não obstante estar demonstrada a sua completa robustez física para qualquer espécie de trabalho próprio da sua modesta condição social a que se furta, desde os vinte anos, talvez porque pertence àquela espécie de infelizes dos meios citadinos, que sem qualquer amparo, ou carinho familiar logo ficam inoculados com o estigma da completa carência de laços normais da vida social (...).»
Referente a A..., 43 anos, solteiro, natural de Lisboa, em cumprimento de medida de segurança por vadiagem.
«O arguido declarou em audiência que se tem dedicado ao trabalho na carga e na descarga de camionetas na Ribeira e que, quando tinha dificuldades económicas provenientes por falta de trabalho, se entregava à mendicidade. (...). Trata-se de um vadio e mendigo habitual...»
Referente a H..., 46 anos, solteiro, natural de Almodôvar, internado em 1949 com medida de segurança por vadiagem e mendicidade.
«(...) tem levado uma vida bastante irregular mormente a trabalho, pois apenas se dedicava a fretes no mercado 31 de Janeiro, tendo dado entrada no Albergue de Mendicidade da Mitra.»
Referente a L..., 45 anos, solteiro, natural de Lisboa, a cumprir medida de segurança de liberdade vigiada, desde 1946.
«Trata-se de um indivíduo refractário ao trabalho, que em liberdade pouco trabalha, preferindo frequentar tabernas e andar no exercício da mendicidade.»
Referente a C..., 47 anos, solteiro, peixeiro, internado com medida de segurança em 1948.
«Sempre é capturado por pedir esmola, tem até para o efeito simulado aleijões físicos que não tem.»
Referente a V..., 45 anos, solteiro, natural de Santarém, internado em 1941.
«E muito manhoso. Faz-se de coxo para não poder trabalhar.»
Referente a M..., 31 anos, solteiro, natural de Coimbra, internado em 1938.
«Fazia propaganda subversiva por meio de panfletos, às ocultas (...) Passada a revista, foram-lhe encontrados vários recortes de jornais, na sua maior parte de propaganda oposicionista.»
Referente a J..., 29 anos, solteiro, natural de Lisboa, em cumprimento de medida de segurança por vadiagem, desde 1948.
«Não é de admirar ocultarem a verdade, visto tratar-se de indivíduos com fracos sentimentos morais, e ainda por já serem conhecidos os seus métodos de defesa e a união, que entre eles existe, para esse fim.»
Referente a vários colonos da Quinta do Pisão, no seguimento da tentativa de fuga de um deles.
37Os testemunhos apresentados mostram-nos, em primeiro lugar, que o universo adulto admitido no albergue de mendicidade de Lisboa não era, na sua totalidade, natural da capital. Similarmente, os livros de entrada (cf. Quadro 7) registam que apenas cerca de 41% dos admitidos até 1951, de idade compreendida entre os 22 e os 51 anos, eram naturais do distrito de Lisboa (e destes, 31,7% nascidos no concelho de Lisboa), correspondendo os restantes, sobretudo, a distritos do centro do país e, nomeadamente, aos distritos de Santarém (6,1%), Castelo Branco (5%), Coimbra (4,7%), Viseu (4,0%) e Leiria (3,5%). De proporção significativa, eram também os naturais do distrito do Porto (4,5%) em percentagens quantitativamente menos relevantes, os originários dos outros distritos do continente, notando-se uma maior predominância dos naturais do sul do país, particularmente do distrito de Faro (3,6%) e de Setúbal (3,7%) sobre os do norte14 e, secundariamente, os nascidos nas ilhas e nas colónias africanas.
38No que respeita à naturalidade do mitreiro, com efeito, as representações bem como os livros de entrada construídos pelo seu internador directo convergem com as histórias de vida de muitos internados ainda hoje residentes no CASL e no CASP, isto é, reconhecem que uma proporção significativa do universo adulto admitido na Mitra entre 1933 e 1951 havia, em determinado momento da sua vida, migrado para Lisboa.
«Éramos muito pobres, vim para Lisboa à procura de emprego, qualquer coisa me servia.»
«Vim tentar a sorte, melhorar a vida.»
«Passávamos muita fominha. Éramos 11 irmãos. Às vezes nem havia um naco de pão para comer (...). Vim servir para Lisboa aos 14 anos, para casa de umas senhoras conhecidas da minha madrinha.»
39Contudo, outros testemunhos mostram-nos que as suas motivações não eram exclusivamente económicas, não resultavam apenas da pobreza e/ou das carências estruturais das suas famílias de orientação, nem da sua instabilidade económica, consequência da sazonalidade e da escassez do labor da pesca e da agricultura, de salários baixos ou irregulares. Nas histórias de vida recolhidas, eram frequentemente mencionados os abandonos precoces, os casos de famílias monoparentais com muitos irmãos, a situação de «pai incógnito», os conflitos com o padrasto ou com a madrasta, os maltratos por parte de pais alcoólicos, ou até a violação por algum membro da família (tio, padrasto, etc.) ou por algum conhecido, situações verbalizadas, por vezes, como um factor paralelo do afastamento do meio de pertença.
40Ora, a migração em direcção aos grandes centros urbanos era frequentemente associada pela ideologia salazarista a um projecto «de aventureiros, vadios, vagabundos, falsos mendigos e até (de) verdadeiros», que vinham «tentar a sorte, na miragem da ociosidade, da liberdade no vício e na vida fácil, explorando a caridade pública de meios grandes» onde pretendiam «passar despercebidos»15; por outro lado, e ao mesmo tempo que canalizava para as cidades «seres (...) já fétidos e corrompidos», a migração para a cidade era ainda assimilada à conversão de indivíduos «puros e sãos», «em lama, escória e signos delituosos»16, isto é, identificada como uma situação propiciatória de comportamentos marginais:
«É de crer que, entre os ingressos, alguns, muito poucos, tenham vindo sãos, pervertendo-se em Lisboa, que, como todas as grandes cidades, constitue o elemento de maior perdição, produzindo maior número de vítimas do que as terras provincianas, o que se compreende porque os grandes meios oferecem aos vagabundos mais recursos e mais atractivos, mas pode dar-se também o contrário, tendo operado a perdição nas próprias províncias, pois que a desmoralização alastra por toda a parte.»17
41À luz de tal ideologia, o migrante, afastado das referências moralizantes da família e do meio comunal, era facilmente pervertido pelos meios citadinos, geradores de imoralidade, ociosidade, subversão, excessos, etc., e, em consequência, arrastado para a delinquência. Emigração e urbanismo constituíam dois «cancros nacionais»18 que era urgente evitar19.
42Todavia, o discurso das elites politicamente dominantes não justificava apenas a potencial delinquência de um indivíduo em função do afastamento da sua terra natal e do subsequente contacto com a capital corruptora. Outras características eram essenciais para transformar um migrante num indivíduo «suspeito de perigosidade social». A motivação que supostamente o levou a afastar-se do seu meio de pertença permitia configurar dois trajectos de vida, sobre os quais recaíam diferentes juízos de valor: o do «aventureiro» (consubstanciado no mendigo-vadio) e o do «bom migrante».
43Enquanto que a partida do primeiro era atribuída ao seu «espírito de aventura»20, «à procura do eldorado, do seu sonho, da sua fantasia, à busca do ouro e dinheiros, dos prazeres e deleites», arrastado «pela miragem sedutora dos gozos e distracções», que não existiam nos lugarejos onde nasceu21, o afastamento, temporário, do segundo (para as Américas, para a França, para o Brasil, etc., mas também para os centros urbanos ou para o sul do país em determinadas épocas do ano) era motivado pela vontade de «acumular dinheiro para se casar» ou, se já casado, pelo intuito de «adquirir uma casa para viver à parte», «comprar terra» ou «sustentar os velhos pais»22.
44Latente e estruturante destes dois perfis salientava-se a oposição entre um projecto de vida supostamente movido pela ambição, pelo sonho, pela fantasia, pela aventura ou pelo prazer — eminentemente narcísicos e desinvestidos das instituições e referências de origem — e um outro trajecto, orientado por motivações bem mais modestas, caracterizado pelo «espírito de retorno»23 e totalmente organizado em função da sobrevivência da família, do casamento e da terra. Por acréscimo, num prolongamento da mesma oposição, insistia-se em descrever os actores sociais típicos do segundo trajecto como «já frequentemente casados», «pelo menos noivos» ou «solteiros por dedicação à família» e, em contrapartida, considerava-se que os migrantes «por espírito de aventura» não tinham família ou dela se encontravam mais ou menos desligados24.
45Constatamos, assim, que é numa (suposta) componente ambiciosa, permeada pelo sonho, pela fantasia e pela vontade de encontrar «uma vida que saia da banalidade»25, numa (atribuída) ausência de projecto familiar e espirito de não-retorno que a ideologia do Estado Novo, apologista da fixação à terra-mãe e ao mundo aldeão, promotora do ressurgimento moral da «pequena casa lusitana» com base no culto do sacrifício26, da modéstia, da simplicidade27 e do familialismo social28, constrói a acusação de «aventureiro» — um traço central da construção salazarista do mendigo-vadio como identidade marginal e na justificação da sua «perigosidade social».
46Anote-se, nesse sentido, que a acusação de «aventureiro» se estendia a todo aquele que punha em causa e fazia perigar (pela sua forma de viver, de «sonhar» ou «fantasiar» outro regime político, etc.) a ordem implantada com o Estado Novo. Partilhando o mesmo rótulo de «aventureiros» (bem como, como veremos, o de «arruaceiros») mendigos, vadios e seus afins surgiriam, também, como semioticamente equiparados a conspiradores políticos e vice-versa:
«É aqui oportuno assinalar que existe um largo excedente de candidatos a aventureiros, que sonham com países de além-mar ou com uma mudança política, e que, esperando esse dia bendito, se contentam em fazer um passeio monótono na via pública. É entre eles também que se recrutavam em grande parte os agitadores políticos, os conspiradores, a armada de revolucionários.»29
47De outro ângulo, alguns discursos da época, porventura mais próximos da realidade vivida no país, fornecem-nos outra visão sobre a «normalidade» e aceitação, por parte da comunidade envolvente, dos que deixavam, periódica ou mais demoradamente, as suas terras natais. A emigração masculina, sobretudo nas províncias do Norte e nas Beiras, constituía uma «espécie de lei tradicional»30 a que muitos se curvavam; similarmente, a grande variação de necessidade de mão-de-obra, de acordo com certos momentos do ano, originava migrações periódicas de trabalhadores rurais («ratinhos», «cabaneiros», «galegas», etc.) para o sul do país. Por sua vez, na Estremadura e no Alentejo, as migrações femininas para Lisboa e para as vilas maiores eram uma constante, chegando mesmo a provocar um excedente de população masculina nas freguesias rurais31.
48Os condicionalismos estruturais da agricultura portuguesa (falta de ocupação em determinados períodos, maus anos agrícolas, baixos salários, etc.), bem como as vicissitudes do labor da pesca e as dificuldades da nossa indústria, provocando um mal-estar cíclico entre a população (pontualmente agravado pelas conjunturas económicas que marcaram este período) criavam motivações suficientes para a procura de trabalho e de pão longe das referências originárias. Os próprios relatórios dos governadores civis enviados ao ministro do Interior punham frequentemente em causa a tese «do espírito aventureiro» com as suas múltiplas vertentes — ambição pelo «eldourado», miragem da ociosidade desapercebida, sonho da liberdade, atracção pelos «gozos e deleites» da vida urbana, etc., — salientando, ao invés, a escassez de trabalho, os salários baixos e irregulares, a ausência de pão em muitos lares, como motivações maiores dos movimentos migratórios internos (ou da emigração):
«É um facto a falta de trabalho no intervalo das sementeiras às colheitas. (...). A prova do mal-estar (...) reside no facto de 4039 famílias com cerca de 20 000 pessoas desejarem abandonar a terra que as viu nascer e procurar longe o pão que ali falta. Creio que não é certamente o espírito de aventura que anima esta pobre gente, mas sim as dificuldades com que lutam.»32
49Por outro lado, a partida de um homem para longe, deixando a família e uma mulher, «quase sempre corajosa e fiel»33, na aldeia natal não constituía uma profanação à «honra» masculina. Já o afastamento da mulher solteira da casa materna, sobretudo em direcção às «terras grandes», poderia, mas não obrigatoriamente, suscitar uma alteração do seu estatuto de mulher honrada pois, para o imaginário da camponesa, «cair na má vida» estava intimamente associado aos grandes centros urbanos.
«Cair na má vida não é aparecer com um filho nos braços, sem ter pai legítimo para lhe dar. (...). Má vida é outra coisa... Acontece nas terras grandes e lança a mulher na maior desgraça e desconsideração. Elas sabem, por ouvir dizer, mas muito vagamente. E envergonham-se de falar em tal, como se melindrassem a sua própria dignidade ou atraíssem sobre si as chamas do inferno.» (Soajo)34
50Todavia, não se pense que as que partiam para as vindimas, para os trabalhos agrícolas do Alentejo, etc., ou as que «abalavam» para as cidades e vilas onde podiam ganhar melhor a vida como «criadas de servir», só por isso, viam a sua reputação moral ameaçada. Se perdiam totalmente o contacto com a aldeia, nunca mais escreviam, ou não podiam comprovar a «honestidade do seu viver» eram apontadas «como exemplo de perdição» a todas as outras que sonhavam com as terras distantes; no entanto, quando mantinham os laços de pertença (e, tantas vezes, enviavam regularmente uma parte do seu salário) ou pediam, mais tarde, «os papéis para casar», conservando «intacta» a «boa fama», a notícia espalhava-se «sensacional como um milagre» e, nas suas visitas anuais, eram tratadas com toda a consideração. Já a reputação moral daquela, cuja partida (temporária) tivera como único objectivo amealhar algum dinheiro para comprar o enxoval e casar, de retorno à aldeia, não se distinguia das que permaneciam para sempre ancoradas à terra natal; pelo contrário, a sua experiência nesses lugares longínquos era alvo de curiosidade e até de admiração por parte das que haviam ficado.
«A relutância antiga em sair da sua freguesia também vai cedendo à pressão do problema económico — tudo custa um dinheirão (...) Uma que vai, põe todas as outras em alvoroço, quando volta ao lugar. Olham-na com uma certa desconfiança, mas admiram-lhe os modos (...) o penteado (...) e as vestes (...). Se alguma escreve, a pedir os papéis para se casar, a notícia corre de boca em boca, sensacional como um milagre. (...) Também há aquelas que abalam e nunca escrevem «duas regras»...Todas as suposições más acompanham a sua lembrança, e são apontadas como exemplo de perdição às outras que sentem atracção das terras longínquas... Fala-se delas com mais pena do que se a morte as levasse.» (Alto Minho e Barroso)35
«(...) o número de raparigas que procura rumo de vida nas vilas e nas cidades, quase sempre como ‘criadas de servir’ aumenta de ano para ano. As que se aventuraram até ao Porto ou Lisboa não escapam à maledicência da sua terra natal. Dificilmente recuperam os créditos de moças honradas, a não ser que possam comprovar a honestidade do seu viver.» (Trás-os-Montes)36
«É rara a aldeia ou freguesia em que não há uma mulher nestas circunstâncias, sem falar nas que saem da terra natal, para «servir» nas cidades, e voltam, mais tarde, com ares civilizados, que despertam a curidosidade e lhes dão consideração, se elas mantêm intacta a sua boa fama. Quanto mais próximo estão dos meios grandes, mais frequente e comum é a saída das raparigas para se empregarem como criadas. Raras são aquelas que alguma vez regressam, definitivamente. Casadas, ou não, preferem as terras maiores. A aldeia agrada-lhes, quando muito, para uma visita, ano a ano, com pouca demora. AS antigas companheiras e as outras, que deixaram ainda pequenas, copiam-lhes os modos, o trajo e o penteado. Isso lisonjeia-as e dá-lhes importância perante si próprias.» (Beiras)37
«Porém, a não ser quando se fixa no Alentejo, pelo casamento, a adaptação da beiroa é aparente e transitória. (...). Só lhe interessa o dinheiro que lá ganhou — bem rudemente ganho. (...). É claro que o regresso das camponesas que emigraram é sempre um acontecimento de vulto, lá nas terras da Beira donde partiram. Cada uma tem a sua história para contar, novidades com sabor de aventura, coisas passadas nesses lugares longínquos, que alguns nunca viram e que, mesmo a quem de lá vem, se afiguram, assim de longe, como pertencendo a outro mundo.»38
51Deste modo, aos olhos do imaginário popular, deixar a terra e partir para longe era um acontecimento comum, não necessariamente conotado com uma estreia na marginalidade ou com a diminuição do estatuto moral do seu protagonista. Mesmo a rapariga solteira que se afastava das referências contentoras da família e da aldeia, embora objecto de suspeita, garantiria a sua identidade de mulher honrada, quer regressasse ou não, se se mantivesse fiel a certos padrões de conduta sexual.
52À luz dos dados que temos vindo a apresentar, o projecto de trocar a terra natal por meios maiores à procura de uma melhoria económica, que caracterizou o percurso de vida de mais de metade dos internados no albergue da Mitra nas décadas de trinta, quarenta e cinquenta, só por si, não poderia ser interpretado como marginal, desviante. Não se conclua, igualmente, que a sua migração constituía sempre uma iniciativa autónoma e individualizada, desinserida de um projecto familiar, como nos fazem crer os discursos salazaristas sobre vadios, aventureiros e outros afins.
53A par de algumas situações, nas quais a vinda para Lisboa era verbalizada como «fuga» aos «maltratos» e, em simultâneo, à «miséria» e à «fome», nas quais a migração e o acolhimento na cidade não eram apoiados pela família e, em geral, conduziam a uma ruptura total com o meio e os laços de pertença, outros casos havia em que a iniciativa de migrar tomava a configuração de um propósito familiar.
54Mais saliente nas histórias de vida das velhas mulheres que entrevistámos, a decisão de ir «servir» para fora era frequentemente remetida para um parente feminino (a mãe, uma tia, etc.); por sua vez, nos testemunhos recolhidos, repetiam-se as referências à importância de uma rede de solidariedade entre mulheres (da família, da vizinhança, etc.), na primeira colocação da mulher solteira que deixava o campo39. Sublinhe-se, nesse sentido, que a vinda para os grandes centros urbanos era, muitas vezes, precedida por um afastamento anterior para «servir» em vilas próximas, em casa de «madrinhas» ou dos patrões dos pais.
«Tive que ir trabalhar para fora muito nova. Ainda não tinha 12 anos. (...). Vivemos sempre com grandes dificuldades (...). A minha mãe conhecia uma senhora fina que precisava de uma ama de meninos.»
«A gente não tinha nada. Era muita miséria e a minha mãe pôs-me a servir em casa de umas senhoras ricas.»
55Muito embora a situação de «fuga» de casa ou de vinda para Lisboa sem o apoio de conhecidos ou parentes na procura de alojamento e emprego fosse frequentemente mencionada nas histórias de vida dos velhos mitreiros ainda hoje internados no CASL e no CASP, ventilámos alguns casos nos quais também a rede de parentes possuiu um papel relevante no primeiro contacto com possíveis empregadores:
«Comecei a trabalhar aos seis anos. Quando cantava o galo, de noite, tinha de me levantar (...) andava descalço a apanhar estrume (...). Éramos muito pobres. A minha mãe batia-me. Não me dava o dinheiro que eu ganhava (...). Resolvi apanhar o comboio. Vim à sorte com 50 escudos no bolso. Quanto cheguei a Santa Apolónia sentia-me perdido. Um motorista de táxi meteu conversa comigo. Era de uma aldeia perto da minha. Disse-me que sabia de um café onde precisavam de um moço para servir à mesa.»
«A minha infância foi trabalhar e mais trabalhar. (...). O meu pai era um homem doente e gastava tudo na bebida. A minha mãe falou com um primo que tinha em Lisboa e ele arranjou-me um emprego num lugar de hortaliça.»
56Por outro lado, as histórias de vida dos velhos mitreiros nascidos no distrito de Lisboa revelaram-se, em vários planos, similares às dos oriundos do resto do país. O nível económico das suas famílias de orientação rondava apenas o da subsistência mínima e em numerosos casos não o atingia, sendo complementado pelo exercício da mendicidade (particularmente das crianças) e, noutros casos, da prostituição ocasional. Embora menos numerosas, as famílias de orientação dos Lisboetas não eram menos problemáticas do que as dos restantes albergados: «pai incógnito»40, conflitos com a madrasta ou com o padrasto, morte prematura da mãe, dissociação familiar, violência por parte de pais alcoólicos, desalojamento prolongado, etc.
57Do mesmo modo que o migrante recebia um estatuto de pré-delinquente quando trocava a terra natal pela capital corruptora, também o natural de Lisboa era concebido como um potencial criminoso, mas agora em virtude dos meios cidadinos onde havia sido criado, interpretados à época como indutores de comportamentos marginais. Se consideramos significativas as histórias de vida levantadas, constatamos que, na sua maioria, os naturais de Lisboa provinham dos então chamados «bairros-cancro»41 da capital — Socorro, Mouraria, Alfama, Castelo, S. Vicente, S. Bento, Bica, Madragoa, Mocambo, Cais do Sodré, S. Paulo, Alcântara, etc., — associados, pelo regime, a «costumes «defeituosos» e «a vícios de promiscuidade», a hábitos de «libertinagem», de irreverência e conflito com as autoridades policiais42 ou marcados por ambientes populares, gentes, linguagens, estilos de vida muito próprios, conotados invariavelmente com uma certa marginalidade.
58Por exemplo, o bairro da Mouraria, (segundo as notas coligidas por uma agente da P.S.P. que, durante anos, se havia dedicado ao policiamento da área), «outrora tão fértil em cenas de sangue, roubos, conflitos com soldados e marinheiros, escândalos com mulheres de vida fácil e abusos dos vendedores ambulantes», palmeada por «desordeiros de profissão», ágeis na navalha e no «pular» (para o que muito concorriam «as rameiras» que «mantinham muitas vezes os amantes por serem valentes embora como recompensa recebessem às vezes a sua facada no rosto ou sovas quási diárias»), percorrida por «fadistas» com sua cicatriz na cara, patilhas e calças à boca de sino e movimentada pelas frequentes «rusgas» (terminando geralmente com alguns presos e feridos de ambas as partes), apesar de mais «sossegada» e «pacata», continuava a ser considerada como «o vassadouro de grande parte de Lisboa e arredores» nas décadas que nos ocupam43.
59Possuindo uma «animação febril», atravessada pelas «midinettes lisboetas que dos bairros da Almirante Reis e Morais Soares» se dirigiam para «os ateliers da Baixa», pelo «operário honesto, de boné e fato de ganga», pela «rodeuse fadista», com «o chale de malha ou o lenço de seda caindo em bico sobre as costas, saia curta mostrando o joelho e a perna roliça», «pela meretriz rufia, género típico (...), em ar de desafio à fauna» (...) que frequentava certas ruas, pelo «moço de fretes com o seu molho de cordas», pela «regateira da Praça da Figueira», por «vendedores ambulantes» e habitada (entre as ruas da Guia e da Amendoeira) por uma «população honesta e trabalhadora», a Mouraria, ao escurecer, era, contudo, descrita como um «antro de perdição»44.
Os seus cafés, casas de pasto, tabernas (desde o Poço do Borratém à Mouraria) «enchem-se com esses desgraçados sem lar, espalhados pelos quatros cantos da cidade, arrastando, a maior parte, o sudário da sua miséria, a mendigar ou a explorar os outros» (...) «perdem-se em conciliários às esquinas dos becos duvidosos (...) ou gastam a noite (...) por prostíbulos.»45
60Ao quadro de «vício» projectado no bairro e, sobretudo, em certas ruas «mais suspeitas» (as ruelas dos Vinagres e Alamos) acrescentava-se a dimensão da pobreza, da degradação e sobrelotação das habitações, da «mais terrível» promiscuidade nos quotidianos46.
61As descrições do bairro de Alfama não eram muito diferentes. Entre as ruas de S. Pedro, S. Miguel e Regueira, Alfama convivia, também ela, com uma variedade de rostos: «embarcadiços», «marítimos», trabalhadores ribeirinhos, «tripulantes de vapores e veleiros (...) estrangeiros» (fundeados a montante do Terreiro do Paço), «desgraçadas», «rixosos e brigões» (os tão conhecidos «Manéis de Alfama»), «contrabandistas e ladrões», «secretas» mas também «a fina flôr dos cantadores» de fado47.
62Dir-se-ia que, quanto a condições de higiene, as descrições de Alfama quase ultrapassariam as da Mouraria, enfatizando as suas ruas «sórdidas», «malcheirosas», «sombrias», polvilhadas de «troços de couve e cascas de batatas» e as suas habitações — «colmeias de três e quatro andares, onde esta gente vive empilhada», de cujos interiores, «negros, sujos, de paredes baças e despidos de mobiliário, escancarando a miséria de quem neles habita», exalava «um odor fétido»48.
63No respeitante a «maus costumes», os autores não concordavam entre si. Para alguns, a miséria de Alfama não era semelhante à da Mouraria ou à da Guia, «proveniente do vício, do relaxamento de costumes da urbe». Ao invés, a sua miséria era descrita como sendo a «dos que não conseguiram vencer tendo trabalhado, dos que não tiveram dinheiro para dar de comer aos filhos, dos que a doença e a fatalidade perseguiu e lançou, inexoravelmente, na desgraça»2. Todavia, já na opinião de outras elites da palavra, se reeditava a mesma dimensão «imoral», tipicamente projectada sobre os habitantes de certos bairros populares:
«a grande maioria da classe operária (do bairro) não sofre fome, embora tenha deficiência de recursos para os desperdiçar, em regra, nas tabernas e nos lupanares, seus centros de ócio e do gozo, seus pontos de reunião e de perdição.»49
64Também as referências sobre a Madragoa (outro bairro popular com características próprias decorrentes da sua antiga população de «marítimos» e de «varinas»), sobre o bairro de Santos e do Mocambo (onde também predominavam «peixeiras» e «homens do mar») ou sobre o bairro de S. Paulo (frequentado por uma população de «embarcadiços» aos quais se juntava, por vezes, o elemento estrangeiro)50 eram geralmente acompanhadas da atribuição de um cunho «imoral» relacionado com as numerosas tabernas e com os «prostíbulos» que neles existiam.
65Descrito, no final do século xix, como um «bairro (...) de poetas, de fadistas (...), de jornalistas e de actores», como «um bairro de boémios», «de gente honesta» e «também de râscoas» — «tantas delas honestíssimas dentro da sua desonestidade» mas fiéis ao amante do coração, fosse este bom ou «rufião», comedidas em linguagem e atitudes e até cumprimentadas pelas «pessoas honestas da vizinhança»51 — as referências ao bairro Alto na década de trinta evocavam, frequentemente, a modificação do seu ambiente e já só faziam menção a certos rostos, outrora típicos, para sublinharem o seu progressivo desaparecimento. Perdidos certos traços (a animação, a boémia aristocrática, a diversidade de habituais e de estilos de vida, a «população flutuante», etc.), o clima do bairro Alto surgia apenas associado à ideia de bas-fond ou de meio vicioso e, sobretudo, o território circunscrito entre a rua da Rosa e a de S. Roque onde então se concentravam as tabernas, os «lupanares», as casas de penhores.
«Desapareceram para sempre certos tipos caracteristicamente rufias, como o fadista, o toureiro e o bolieiro, comparsas certos em rixas de tabernas, e embora estas predominem no bairro, apresentando tipicamente os seus grandes tonéis, sempre encimados por pirâmides de garrafas, os seus frequentadores são, na maior parte, gente de morada certa. Nada da população flutuante, misteriosa, roda satélite de Sua Majestade a Miséria que frequenta as baiúcas da Guia e da Mouraria (...). O Bairro Alto é, agora, um bairro de sombras, monótono e triste, parte dêle antipático pela miséria social que estadeia. Urge fazê-lo desaparecer»52
66Conhecidos por apresentarem determinados traços distintivos (gentes, linguagens, estilos de vida, códigos de honra agonísticos, etc.), os bairros populares donde provinham os mitreiros naturais de Lisboa eram também, regra geral, identificados pelo regime a «antros de perdição». Nem mesmo o bairro de Alcântara, não obstante ser descrito pela predominância do elemento operário — «essencialmente (...) gente humilde, mourejadores honrados na busca do pão de cada dia»53 — escapava à fama dos «maus costumes» que lhe advinha da presença, mesmo secundária, de fadistas, desordeiros e rameiras nos seus interstícios.
67Para além de serem definidos pelo carácter «belicoso», «imoral», «delituoso» de alguns dos seus moradores e frequentadores, os meios lisboetas de origem e criação de uma porção importante do universo adulto internado na Mitra eram, ainda, descritos como muito pobres e/ou associados a quotidianos, padrões familiares, condições de habitação que se afastavam fortemente dos ideais higienistas e do modelo mítico do «doce lar português», elevados a estandarte do regime: nichos superlotados, prosmíscuos, fétidos, obscuros, sem hábitos de limpeza, que se extendiam funcionalmente para as ruas ou para os pátios, mães que trabalhavam fora do lar, crianças que «vadiavam» durante todo o dia na rua, sujeitas a todo o «tipo de sugestões e maus exemplos», costumes «desmoralizantes», homens «degradados pelo vinho e pela tuberculose», mulheres «divididas entre a pobreza e a tentação», etc., complementavam a caracterização destes bairros, enquanto indutores de «nocivas» predisposições54:
«Dez ou doze creanças, de vestido de chita, algumas de chinellos, despejos da prolificação das famílias do Bairro Alto, encadeam as mãos, cantando de roda (...)
Olha a triste, olha atriste viuvinha:
Elle diz, ella diz que quer casar
Ella não, ella não tem que vestir
Nem o noivo, nem o noivo que calçar.
Esta simples cantiga põe a descoberto toda a vida miserável da capital; (...) aquelas são as mulheres do povo que no futuro hão-de habitar as casas abafadiças e escuras do Bairro Alto. (...) A História da ‘Triste Viuvinha’ é a história de todas. Depois do primeiro casamento com um homem rapidamente devorado pelo vinho, pela syphilis e pela tuberculose, achar-se-ão livres para procurar um segundo marido. Mas ese novo idylio (...) será um suplício a dois (...).
E as creanças (...) mudam de cantiga sem mudar o tom, o mesmo tom plangente, que faz tristeza:
Aquelle rapaz
De calça amarela
Já me perguntou
Se eu era donzela.
Se eu era donzella,
Donzella eu sou,
Aquelle rapaz
Já me perguntou.
Esta nova cantiga revela outro aspecto da vida popular. (...). Ficam a descoberto, não menos evidentemente as misérias da vida real, a dúvida de que a mulher do povo possa conservar-se honrada no meio social em que vive, entre a pobreza e a tentação, entre a virgindade, que lhe não dá vintém, e o chape linho (...) que lhe pode ganhar a vida depois.»55
68Sob outra perspectiva, os testemunhos dos velhos mitreiros, apesar de parcos em informações sobre práticas consideradas ilícitas ou evocando-as indirectamente em expressões tais como «fui fazer a minha vida particular que ninguém tem nada com isso», fornecem-nos uma visão acerca de alguns dos bairros populares onde nasceram, reenviando-nos para determinados estilos de vida e quotidianos, relativamente tolerados e verbalizados sem auto-recriminação, para certos padrões relacionais (de tipo «honra à flor da pele» onde o confronto agonístico corpo-a-corpo era uma constante), bem como para a construção de um espectro moral particular — segundo o qual, por exemplo, a mendicidade e a prostituição surgiam, de um ponto de vista tipicamente feminino, como menos reprováveis do que o roubo ou o crime de sangue ou, no seio do qual, numa perspectiva eminentemente masculina, ter «conhecimentos com a polícia» (possuir o estatuto de denunciante) era considerado, nas palavras de um entrevistado, «coisa que não honra ninguém»:
«Nasci na Mouraria, por cima da esquadra da Mouraria, não sei se ainda lá está (...). Fui artista do Parque Mayer. Saí de lá porque o meu pai tinha medo que me montassem. Também vendi pentes e roupas. Estou aqui há uma quantidade de anos e não matei nem roubei. Tanta cruz naquela Mouraria, em tabernas, em leitarias... a polícia andava por lá, trás, trás, trás...»
«Trabalhava em Alfama como carregador de mar e de terra (...). Foi na leitaria do (...). Já tinha emborcado dois calces da rija e o secreta chegou-se e disse-me: ‘Você está preso’ e eu voltei-me e disse: ‘Quem é você?’ Ele deu-me duas bofetadas e levou-me para o Governo Civil.»
«Nasci na Madragoa, depois tive na ‘tituria’ da infância. (...). Fui para o reformatório de S. Fiel (...) combati na guerra civil de Espanha e porque comecei a deitar sangue pela boca fui internado em S. José e em vários sanatórios. Melhorei e sai... Fui fazer a minha vida particular que ninguém tem nada com isso. Um dia, estava na rua da (...) e aproximou-se um guarda: ‘O que é que anda aqui afazer?’ perguntou-me e eu respondi — ‘Quem é o senhor, não tem nada com isso’. Mostrou-me o emblema e disse-me para o acompanhar.»
69Encarnação, por excelência, da mobilidade e/ou dos seus «perigos» quando trocava a terra natal (e a casa paterna) pela cidade pervertida e corruptora ou, se nascido em Lisboa, conotado com certos bairros populares, interpretados pelo regime como propiciadores de comportamentos marginais, o trajecto de vida do mitreiro divergia, logo à partida, dos ideais exaltados pelo projecto salazarista: a imobilidade, a fixação à terra, um modelo de «bons costumes» associado à família patriarcal e ao mundo da casa.
70Prosseguindo na caracterização do internado de idade compreendida entre os 22 e os 51 anos, admitido nas primeiras décadas do funcionamento da Mitra, verificamos que o estado civil de solteiro se impunha como um dos elementos mais constantes dos livros de entrada do albergue56.
«Fiz uma vida que nunca me levou a ter família. Quando precisava ia àquelas casas.»
«Amiguei-me três vezes. Elas faziam aborto e pronto. Sempre quis viver sozinho.»
«Era um leviano, um galdério, destrocei a vida com as mulheres. Gostei de uma que era uma jóia mas depois troquei-a por uma vadia.»
«Casei muito cedo, aos 19 anos mas ele não prestava (...) Olhe, para dizer a verdade, nós não eramos casados.»
«Passei a vida a saltar de sítio para sítio e de mulher para mulher, havia o amor carnal, não havia o espiritual, e depois há o amor financeiro (...). Todas me pareciam de vida fácil.»
«Conheci um homem na casa do meu patrão que amantizei (...). Ele levava outra mulher lá para casa e não me sentia bem. Andava por aí. Às vezes dormia em pensões.»
«Conheci um homem com quem vivi oito anos. Ele batia-me, não trabalhava, só se interessava pela pinga. (...) Sabe menina, a minha vida foi muito triste, não tinha ninguém que me socorresse...»
71As histórias de vida recolhidas junto de antigas mitreiras (admitidas no albergue com menos de 40 anos) referiam frequentemente a iniciação e a reprodução de condições de vivência sexual insusceptíveis de viabilizar a reconstituição de laços familiares (relações esporádicas ou clandestinas com homens casados ou não interessados no projecto matrimonial bem como, algumas vezes, no contexto de serviçais, com o patrão e/ou com seus familiares e conhecidos) e a fixação a um padrão de relações maritais temporárias, instáveis e conflituosas (com ou sem filhos), vivências estas, em muitos casos, associadas a uma entrada no mundo da prostituição.
72Dir-se-ia que os percursos masculinos mais representativos eram, de certo modo, complementares aos das mulheres entrevistadas, revelando-nos um quotidiano feito de aventuras amorosas de curta duração, frequentemente baseado numa desconfiança básica acerca da fidelidade feminina, de relações maritais pontuais dando origem a desmanchos ou a filhos ilegítimos, do recurso continuado à prostituição, em alguns casos, acompanhado de uma recusa consciente de qualquer projecto matrimonial e paternal.
73Nas representações do internador sobre o mendigo-vadio, ao contacto corruptor da cidade ou à contagiosidade das «gentes de vida incerta» com quem convivia nos bairros da sua infância e adolescência, acrescentava-se ainda a recusa ou o fracasso de um projecto familiar ou o enveredar por um trajecto infiel aos códigos valorizados pelo regime. Era, pois, também nesta sua faceta de «inoculado com o estigma da completa ausência de laços normais da vida social» que o internador situava uma outra componente para a construção do seu estatuto marginal.
74Esta última acusação de marginalidade compreende-se melhor se tivermos em conta a obsessão familialista que caracterizava o projecto sócio-político salazarista e a visão do mundo das suas elites. Ocupando um lugar «fundamental» (e/ou insubstituível) nos discursos ideológicos dominantes, a família era definida como possuindo particularidades ou potencialidades únicas57:para além de «célula social irredutível»58, de «primeiro grupo natural»59, ela constituía, em simultâneo, o «elo profundo e indestrutível que prende o passado ao presente»60, a fonte da renovação e o germe da regeneração do presente num futuro engrandecido. Com efeito, nos discursos produzidos pelas elites da palavra, à época, a família, ao mesmo tempo que tinha como «missão» a propagação e a conservação do género humano61, era concebida como uma «grande escola de aperfeiçoamento»62 e de fortalecimento «de todas as virtudes morais: amor, obediência, fraternidade, dedicação,» etc.63, enquanto «laboratório de todos os sentimentos»64, como «mais pura fonte dos factores morais de produção»65, como garante da transmissão e do enriquecimento «da herança espiritual dum povo, duma raça e da humanidade»66, como instituição central nos processos de regeneração do «carácter» e da «personalidade nacional»67 do povo português.
75Garantia da continuidade das virtudes herdadas do passado, princípio enzimático dos processos regeneratórios (tanto a nível biológico como moral, mas também, numa escala nacional, quer ao nível das características físicas da raça, quer no plano da personalidade ou da «alma» nacional), a família surgia, ainda, como a força motriz da manutenção de uma «boa» ligação com o divino, propiciatória da viagem eterna pelo além: de «origem divina»68, a família constitui «um meio de santificação» (dos cônjuges e dos descendentes)69, bem como um caminho para «a salvação dos indivíduos» e obtenção de «um dia de felicidade eterna no céu»70.
76Instituição divina, misto de santuário71 e de escola, «espelho»72 ou «resumo»73 da pátria, «depositária de todas as virtudes»74, factor da sua continuidade e estabilidade no tempo, e fonte da sua regeneração, a família não se discutia75. Esta instituição familiar inquestionável, note-se, correspondia única e exclusivamente à família nuclear, constituída pelo casamento cristão, monogâmico e indissolúvel76. Todavia, o projecto familialista do Estado Novo não se limitava a eleger a família nuclear como sua referência sócio-política fundamental; para além de lhe inculcar uma única forma (pai, mãe, unidos pelo sacramento do matrimónio, e filhos legítimos), definia também a sua organização como naturalmente hierarquizada, com diferenciação clara dos vários papéis familiares, impondo padrões rígidos às dinâmicas relacionais internas e externas da célula básica do corpo social77.
77Inserido originalmente em meios familiares diferenciados do modelo valorizado pelas elites, descritos como «ilegalmente» constituídos, caracterizados pela «desmoralização dum ou de ambos os cônjuges», pela sua «vida escandalosa», «acções perversas e deletérias» e «má conduta individual ou social», pelo «abandono moral dos filhos», etc.78, ou tendo-se afastado da aldeia e da família rural (considerada ainda mais exemplar, em pureza, simplicidade, etc.) e, entregue a si próprio, ficando sujeito às tentações e às «horas mais perigosas da vida da Cidade»79, o trajecto de vida do mitreiro escapava à missão educativa e regeneradora da família no quadro dos valores nacionais idealizados. A literatura de então (quer a relacionada com os problemas da família, quer a do foro criminológico) não hesitava mesmo em prever: de tais trajectos de vida, no seio de meios cidadinos que «nada têm que lhes comunicar de bom»80 ou pelo afastamento do «que de mais caro e valioso em suas almas germinava» («os hábitos de uma vida simples, na singeleza dos seus lares» campesinos)81, «brotam inúmeros delinquentes», «quantos vagabundos» e «os que estão em perigo moral»82.
78Por sua vez, influenciados por tais matrizes familiares de orientação (ditas «desagregadas, desmoralizadas, promíscuas, instáveis, abandónicas»), também os seus trajectos adultos não contemplariam o casamento cristão nem levariam à reconstrução de laços neofamiliares, deveres e dívidas intergeracionais, consonantes com os códigos valorizados.
79Desligado das referências moralizantes da casa, do lar e da família, o mitreiro surgia, assim, aos olhos das elites salazaristas, como um ser «isolado», «estranho» «individualista» e «despido moralmente de mais de metade de si mesmo»83 e/ou dos principais valores que a instituição familiar lhe deveria ter inculcado — «amor pelo trabalho» honesto84, hábitos de disciplina e obediência, «culto da verdade»85, «bons sentimentos»86, etc. — e, em contrapartida, era descrito como uma criatura de «loucos caprichos» e «perversos intentos», «não duvidando em sacrificar o que há de mais santo como a honra, a dignidade e a pátria»87.
80Centremo-nos nesta «honra», «sacrificada no modo de viver do mendigo-vadio», e deixemos para diante a acusação de antipatriota e/ou de antinacionalista, igualmente nele projectada. Também o princípio fundamental em que assentava esta noção de honra (próxima ou acoplada à noção de reputação, brio, dignidade, orgulho) residia na família, lugar onde um homem atingiria a plenitude da sua identidade masculina, o aperfeiçoamento máximo de determinadas qualidades «morais», a completude do seu papel social, obtendo o respeito dos outros, dignidade, estatuto, honra.
81O «homem honrado» seria então o «defensor e previdência da casa com trabalho e economia»88 (através do exercício de uma profissão regular), o «exemplo» que «incutirá nos filhos boas ideias e bons sentimentos»89, isto é, o garante da prosperidade material e moral da família (muito embora neste último ponto o seu papel fosse mais secundário); por sua vez, caberia à mulher manter e guardar a honra do homem a que estava ligada através da sua pureza sexual pré-matrimonial e da sua fidelidade e concentração conjugal.
82Em parte, tais códigos de honra não seriam exclusivos de uma elite mas igualmente encontráveis nas camadas mais populares. O ritual de casamento no Barroso (Trás-os-Montes), (Chaves, 1922; Lamas, 1948), ilustra bem como o acesso a um nível mais pleno da honra se dava através do casamento, evidenciando simultaneamente a dependência da honra (assimilada à virilidade masculina ou à qualidade de ser homem) da figura feminina:
«Quando o noivo vai buscar a noiva, encontra a casa fechada e tudo silencioso, como se ali não morasse ninguém. Bate fortemente à porta. Vem o futuro sogro e pergunta:
— Que procurais?
Tirando o chapéu, o noivo responde, com voz firme, de maneira que se oiça nitidamente:
— Procuro Mulher, Fazenda e Honra.
Desta vez é a noiva quem responde, de dentro, num tom alto, de alegria e confiança:
— Entrai que tudo encontrareis.»90
83No Alentejo, similarmente, temos notícia que
«o acesso aos direitos da hombridade (qualidade de ser homem) faz-se pelo casamento. Um homem solteiro permanece para sempre um ‘rapaz’ e o status moral de um rapaz é inferior ao de um homem. Quando um grupo de homens vacila perante um empreendimento, mostrando tibieza ou falta de sentido das responsabilidades, ouve-se às vezes um deles dizer: ‘Então, somos homens ou somos rapazes?’»91
84A última parte deste extracto remete-nos já para uma das várias funções do sistema honra/vergonha e, nomeadamente, para o estabelecimento de «um nexo entre os ideais de uma sociedade e a sua reprodução nos indivíduos através da sua aspiração em os personificar» (Pitt-Rivers, 1977: 36; Campbell 1964: 274-91) bem como, em simultâneo, para a de promover um controlo social através do «envergonhar» dos indivíduos que esquecem a honra (Gilmore, 1987; Ortner e Whitehead, 1981) — «Então, somos homens ou somos rapazes?»
85Para além dos múltiplos materiais etnográficos que relacionavam a aquisição de honra com o casamento e que definiam deveres e obrigações diferenciadas para solteiros e casados, muitas cantigas populares chegavam mesmo a comparar o «rapaz solteiro» a um «vadio» (só deixando de o ser quando «dá o nó»), convergindo em parte com a assimilação salazarista entre o estado civil de solteiro e a «vadiagem» mas não se lhe sobrepondo totalmente, uma vez que nelas a expressão «vadio» não tomava um significado imediatamente pejorativo ou acusatório:
«O rouxinol é vadio
faz a cama onde quer
é como o rapaz solteiro
enquanto não tem mulher.»92
86Regressemos agora aos testemunhos de vida recolhidos junto dos antigos mitreiros. Neles não se pressentia (pelo menos num nível manifesto) «a vergonha» de terem permanecido para sempre «rapazes» ou «rouxinóis vadios». A consideração mais fácil seria supor que vadios, mendigos, rufiões e outros personagens equivalentes não se geriam por tais sistemas de valores, que as noções de honra/vergonha não afectariam as suas práticas e os discursos sobre a sua identidade ou, ainda, que lhe haveriam atribuído novos conteúdos.
87No entanto, na explicitação das razões pelas quais não casaram, os velhos mitreiros enumeravam um princípio fundamental ao sistema honra/vergonha tradicional (convergente com o das elites): se, por um lado, o casamento permitia aceder a um estatuto social superior e a um grau de honra mais completo, por outro, a entrada e a estadia no casamento podia ser acompanhada de um certo número de riscos e ameaças à reputação de um homem, em função de uma potencial conduta sexual feminina (neste caso, da esposa e menos das filhas vindouras), irregular ou desconcentrada.
88Também a noção de que cabia à mulher/esposa garantir a integridade moral do homem, através da manutenção da sua «pureza», apoiada na vergonha, constituía, portanto, uma latência central dos seus testemunhos. Poder-se-ia então afirmar que «não se casaram» porque a ameaça de infidelidade feminina se impunha como uma ameaça incontornável à sua reputação viril. Não se trataria, pois, de um novo código de valores mas, com base numa interpretação diferencial do mesmo sistema, da delimitação de uma estratégia de maximização possível de uma honra (vulnerável).
«Nunca tive queda para casar, apesar de gostar muito de mulheres. Gostei duma, mas em pouco tempo estaria elevado à categoria de corno.»
89Apenas no campo da suposição, dir-se-ia ainda que o mendigo-vadio, caracterizado, como veremos adiante, por certa irregularidade no tocante à sua situação perante o trabalho, não poderia garantir eficazmente um outro pilar básico do sistema honra/vergonha tradicional: a segurança material de uma família. Todavia, à luz dos seus testemunhos, entre as razões que os afastaram de um projecto familiar não sobressaem as motivações económicas; em contrapartida, enfatizavam que lhes «custava», sobremaneira, a «vergonha» (potencial) produzida pela infidelidade de uma mulher.
90Todavia, que a honra de um homem passava, também ela, pela garantia da segurança económica da sua família constituía uma noção conhecida e verbalmente utilizada (ou manipulada como estratégia) pelo vadio-mendigo casado ou tendo vivido maritalmente. Como vimos no ponto 3, a posição de dependência (humilhante) que alguns referiam quando exerciam a mendicidade ou o estatuto de «ladrão ocasional» (simultaneamente, condenado e tolerado em tempos de crise) eram justificados (por exemplo, aquando das detenções ou no intuito de obter uma «guia de saída») pelo idioma que prescrevia certos deveres a um homem honrado, mesmo estando desempregado: suprir a fome dos filhos, permitir a sobrevivência da família faminta, etc. Fabricando apenas uma estratégia para obter um ganho concedido por outrem ou tendo interiorizado tal noção, o mendigo-vadio estruturava, pelo menos os seus discursos, utilizando princípios fundamentais do sistema honra/vergonha tradicional.
91Reportando-nos para a questão do «conflito entre a honra e a legalidade» (Pitt-Rivers, 1965:21), também muitas das suas práticas (apesar de ilegítimas à face da lei) eram compreensíveis e toleradas à luz do sistema de valores honra/vergonha, tendo do seu lado uma opinião pública (a qual exerce, geralmente, um papel central no reconhecimento e atribuição dos juízos de valor relacionados com este sistema) que não os acusava irreversivelmente de inferioridade moral nem, ao contrário das elites salazaristas, os votava ao ostracismo social (cf. ponto 3).
92Já a dimensão mais agonística da honra (Bourdieu, 1965), a relação entre a honra e a pessoa física, a sua equação com coragem e da vergonha com cobardia, a possibilidade de não existir um conflito necessário entre a honra e certos comportamentos (o truque, o ludíbrio, o ardil, etc.), (Pitt-Rivers, 1965), que têm vindo a ser salientados como características (em maior ou menor grau) do sistema honra/vergonha das sociedades mediterrâneas, constituirão outras facetas dos mitreiros (intra e extramuros) de que voltaremos a falar.
93Retomando o ponto de partida, isto é, a «recusa» do casamento por uma grande maioria dos mendigos-vadios e a interpretação que as elites salazaristas facilmente lhe davam enquanto sacrifício da «honra», gostaríamos agora de colocar a hipótese, ao contrário da tese que identificaria vadios e mendigos a uma subcultura completamente outra, que, muito embora dentro de um sistema de valores relativamente semelhante (mas não homogéneo), os ditos «marginais» e as elites dominantes interpretariam e manejariam de maneira diferenciada idênticos códigos de honra e vergonha, em contextos específicos que lhes forneceriam significados distintos e até contraditórios. A recusa do ancoramento familiar (e dos deveres e obrigações concomitantes) que, aos olhos de um grupo (a elite dos internadores), constituía critério para uma acusação de «sem vergonha», bem como uma componente importante do processo de equiparação do mendigo-vadio a um personagem marginal, aos olhos do grupo «acusado», era interpretada como uma tentativa de salvaguardar a «honra» e evitar uma outra acusação (mais desprezável): a de «cabrão» ou de «corno»93.
94Centremo-nos, de seguida, no sistema de valores relacionado com a «honra» feminina. Para as mulheres portuguesas da época, muito embora o casamento constituísse um passo indispensável para aceder à plenitude do seu papel social94, também o estatuto de mulher «honrada» nem sempre parecia exigir uma rígida castidade pré-nupcial nem um matrimónio sancionado obrigatoriamente pela Igreja católica, e muito menos implicar uma relação de exclusividade ao mundo do lar, ao contrário do discurso salazarista que situava «naturalmente» a mulher no interior da casa, condenando o seu trabalho fora do universo doméstico95 e atribuindo-lhe os papéis principais de esposa, de mãe e de anjo da guarda do lar, divinizados pelo matrimónio cristão indissolúvel.
95Com efeito e apesar dos vários provérbios portugueses que ligam a mulher «honrada» ao mundo da casa (até, se preciso, com utilização da força física do homem, como naquele «Mulher honrada, em casa, de perna quebrada»), as condições prevalentes do trabalho feminino na maioria do campesinato e das classes mais desfavorecidas dos meios urbanos contrariavam claramente a vigência de um padrão de reputação moral e respeitabilidade fundado no isolamento caseiro, com limitação rígida dos contactos (sobretudo, com o sexo oposto) no espaço público.
96Bem entendido, nos extractos mais ascendentes da hierarquia social, ainda sobreviveria a noção de que mulheres respeitáveis não apareceriam em público (deixando as tarefas ligadas ao espaço rua à criadagem), embora na década de trinta tal estado de coisas já comportasse modificações visíveis. Beja, que sirva de exemplo:
«até 1930, mais ou menos», relata-nos E. Willens, «somente as festas religiosas, as feiras em maio e agosto, os bailes domésticos de carnaval e as recepções que se seguem às grandes caçadas ofereciam oportunidade para travar conhecimento com pessoas do outro sexo. Mulheres respeitáveis não apareciam em público. (...). Quando era necessário sair à rua, levava-se um empregada. Nem a igreja, que tantos viajantes descreveram como lugar de encontros sociais e namoro, era frequentada por mulheres. (...) Nos últimos anos, certas mudanças ocorreram em Beja. Uma informante testemunhou uma gradual liberalização das convenções tradicionais (...) partiu das mulheres solteiras de Beja que, então pela primeira vez, ousaram mostrar-se na rua e nos parques públicos em grupos naturalmente e a determinadas horas que não dessem margem a equívocos (...) e desde então a reclusão das mulheres foi-se tornando menos severa.»96
97No mesmo sentido, Maria Lamas, quando descrevia as ruas dos grandes centros urbanos, referia o movimento constante e a presença de numerosas mulheres de todas as classes, com predominância, porém,
«das mulheres domésticas, elegantes, que fazem as suas compras, vão à modista ou saem apenas para dar uma volta nos sítios centrais, encontrar pessoas conhecidas, ver montras e tomar chá na pastelaria que preferem.»97
98A centralidade da instituição do trabalho feminino extradoméstico nas camadas mais populares, de norte a sul de Portugal, ilustrado exaustivamente em «As mulheres do meu país», exigia a construção de um padrão feminino de «decência» e «reputação» que estava longe de corresponder ao fechamento da mulher no mundo da casa:
«No povo não há, praticamente, mulheres domésticas. Todas trabalham, mais ou menos fora do lar. Quando não são operárias, são trabalhadoras rurais, vendedeiras, criadas de servir ou ‘mulheres a dias’. Mesmo quando não seguem um horário fixo, pouco permanecem em casa (...) pois se lhes torna forçoso ganhar a vida, mesmo em serviços eventuais. (...). A mulher portuguesa (...) possui qualidades de trabalho e possibilidades de adaptação a qualquer serviço verdadeiramente notáveis. Seria quase impossível mencionar todas as suas ocupações que vão do roçar mato aos mais delicados bordados, sem contar com as grandes indústrias em que ela ocupa lugar predominante (…).»98
99Mesmo a imagem enfatizada pelas elites «da boa dona de casa» — verdadeira amante da limpeza e da arrumação minuciosa do lar, apresentando-se também ela sempre «limpa e airosa», se distanciava dos quotidianos da maioria das mulheres portuguesas, cuja casa, só em dias festivos, era merecedora de cuidados, pois a sua contribuição para a sobrevivência económica da família dificilmente lhe deixaria vagar para «coisas de somenos importância»99. Mais raras, aquelas que tomavam outros ares, se preocupavam com a sua aparência e/ou com a da casa, geralmente tinham o marido de volta (mais ou menos endinheirado) das Américas, da França ou do Brasil ou haviam passado temporadas nas grandes cidades100. Com excepção das mulheres alentejanas e algarvias sobre as quais se mencionava um gosto tradicional pelo arranjo e limpeza da casa, e o orgulho do seu asseio101, as descrições da época acerca dos interiores das casas portuguesas e dos hábitos de limpeza da população feminina afastavam-se em muito da imagem da mulher «anjo bom do lar», atendendo a todos os preceitos de higiene, arejamento e arrumação. Os dois discursos seguintes põem a nu o contraste entre um ideal (quase obsessivo) de limpeza doméstica e a sua secundarização por parte das camadas mais populares, justificada pela necessidade primordial de «dar amanho à vida» para que houvesse «pão e lume»102 no lar:
«Conforme as possibilidades de cada família, a boa dona de casa deverá esforçar-se para que, em sua casa, reine a paz, a harmonia e o bem estar. (...) A mulher que foi criada nos sólidos princípios da moral cristã, esforçar-se-á por que o seu lar seja atraente, tendo sempre a sua casa bem limpa, bem arejada, as roupas, embora velhinhas, consertadas, bem lavadas e mudadas a amiúde. O soalho bem esfregado e os móveis perfeitamente limpos. As paredes bem espanadas. As louças bem escaldadas e os panos da cozinha, todos os dias passados por água. Sobre a mesa, uma toalha bem alvinha e sobre ela, algumas flores. Terá sempre um lugar para cada coisa e cada coisa no seu lugar. A comida feita com a maior limpeza e asseio. (...) Ela apresentar-se-á sempre limpa e airosa, tendo palavras de carinho para o marido, fazendo-lhe, assim, esquecer as agruras do trabalho.»103
«A camponesa duriense, como a minhota e trasmontana, detesta a vida doméstica. Peneira, amassa e coze o milho; cozinha a alimentação da família, reduzida, quase sempre a caldo e broa; remenda mal e à pressa o seu vestuário, do marido e dos filhos — e foge o mais que pode do ambiente enfumarado e das paredes mascarradas que constituem o seu lar.
Evidentemente, estas condições não são favoráveis a hábitos de limpeza e arranjo, absolutamente desprezados, senão desconhecidos, nos meios rurais». (...). «A necessidade de ganhar ou ajudar a ganhar a mantença da família afasta-a do lar e obriga-a a abandonar os filhos durante dias inteiros.» (...) «Tudo quanto temos escrito sobre o desconforto da casa, o abandono das crianças (...) entre os camponeses pode aplicar-se às aldeãs da zona da Beira Litoral.»104
100Pedras basilares do papel idealizado para a mulher/noiva/esposa pelas elites salazaristas, a virgindade pré-nupcial e a legitimização da sexualidade apenas no contexto do casamento cristão, também ela casta105, concentrada (fiel) e tendo em vista apenas a maternidade, não traduziam os códigos de valor de uma grande maioria da população portuguesa. A mulher que perdia a virgindade antes do casamento, a que fora abandonada pelo homem em cujas promessas acreditou ou mesmo aquela que aparecia «com um filho nos braços sem ter pai legítimo para lhe dar» não eram vistas nem se auto-consideravam, por isso, como «desavergonhadas» ou «deshonradas»:
«Cair na má vida não é aparecer com um filho nos braços, sem ter pai legítimo para lhe dar. Isso acontece a muita rapariga honesta, por essas aldeias além. Cada uma reage conforme a sua energia moral e as particularidades do próprio ambiente. Podem ser espancadas por pai e por mãe a quem o conceito de honra endureça o coração, ou olhadas de revés por algumas, já distantes da mocidade, a quem o amor nunca sorriu, mas ninguém lhes faltará ao respeito. Pelo contrário nota-se firme solidariedade na maneira como as outras mulheres lamentam sem condenar, a pobre que cedeu a uma hora de instinto ou foi ludibriada na sua confiança.» (Soajo)106
«(...) no caso de abandono do homem em cujas promessas de casamento acreditou, ela não toma atitudes de vítima. Pelo contrário, olha com arrogância quem se atreva a lamentá-la, como se ela fosse uma desgraçada.» (regiões fronteiriças de Trás-os-Montes.)107
«O caso é falado, na ocasião, mas o filho sem pai cria-se de mistura com as outras crianças, a mãe sem marido enxuga as lágrimas da sua desilusão e da sua vergonha, e o tempo apaga a diferença, igualando todas no trabalho, nas ralações e nas breves alegrias. Aquele que faltou à sua palavra não encontrará mais na freguesia rapariga que o queira. Esta solidariedade faz parte do brio feminino (...).» (Castro Laboreiro)108
«A mãe solteira enfrenta corajosamente a sua responsabilidade. Há mulheres nestas circunstâncias, com vários filhos, de pais diferentes, que conseguem criá-los e dar-lhes um rumo na vida.» (Douro)109
«É grande, em toda a região, a percentagem de mães solteiras. De uma forma geral, elas enfrentam corajosamente a sua situação, mesmo no caso frequente de serem abandonadas pelo pai do seu filho. Algumas conduzem-se de tal maneira, lutando pela vida ainda com maior afinco (...) que constituem um exemplo notável de independência e brio» (Aveiro)110
«Se uma rapariga solteira tem um filho, a família despreza-a, mais para ‘dar satisfação ao mundo’, que por indignação. As outras mulheres, porém, mostram-se compreensivas e fazem o que podem para amparar essa rapariga. Depois... tudo esquece e a própria família volta a recebê-la no seu seio.» (Alentejo)111
«(...) a atitude das mulheres, às vezes muito novas, que se vêem com um filho nos braços, sem que o pai reconheça a sua responsabilidade, é, de uma forma geral, cheia de nobreza e coragem (...). Vale-lhes, de certo modo, a solidariedade e o amparo moral, e às vezes, material das outras mulheres, na sua própria aldeia.» (Estremadura)112
101Similarmente, L. C. Gonçalves, num estudo sobre a vida rural do Alentejo, afirmava que «viúvas mas até as mulheres seduzidas por outrem» «conseguem casar», «pois a virgindade da mulher não tem importância no campo»113, situação que E. Willens corroborava com dados semelhantes colhidos na Beira Baixa, Douro e Minho114. De mais próximo de Lisboa, J. Freire referia, igualmente, que «não tem o saloio grandes preocupações sobre o passado daquela a quem dá o nome, mas ai dela se o não respeita a partir do momento em que lhe pertence.»115 Também o estudo de Silva Picão fazia referência a iniciações sexuais prévias ao casamento por parte das moças solteiras que integravam os ranchos migratórios para o sul do país, sem isso as macular para sempre116.
102Se, de acordo com as observações destes autores, parecia existir uma certa tolerância face às relações sexuais pré-nupciais, já o casamento trazia consigo ou implicava uma completa fidelidade ao marido, fonte e garantia da sua honra aos olhos da comunidade envolvente. O adultério, ao contrário da sexualidade feminina pré-nupcial, poria em causa a reputação moral de uma mulher, colocaria contra ela quase todos os seus pares, não lhe sendo reconhecida atenuante, nem mesmo a «prolongada ausência do marido»117. E contudo, também a própria etnografia nos dá conta da frequência de certos tipos de adultério que, não obstante fossem desidealizados e condenados, eram tolerados em virtude de determinadas situações de pobreza:
«(...) muito frequentes até há cerca de dez ou quinze anos, entre as mulheres de trabalhadores rurais, guardas de herdade ou pequenos seareiros e os lavradores mais prósperos, feitores, e membros das profissões liberais. Em todas as povoações e herdades havia casos destes e, embora muitos fossem do conhecimento geral, os maridos, conhecedores da situação, não provocavam nenhuma confrontação nem repudiavam as mulheres. E a comunidade onde viviam não tornava, pela maledicência ou afronta descarada, a vida impossível aos intervenientes (...). Estes adultérios eram atribuídos em parte à condição de ser pobre, mas nem por isso contradiziam menos as normas ideais. (...). Os maridos envolvidos beneficiavam materialmente deles (...) mas o dano à sua personalidade moral estava feito e a sua vergonha perdida, embora isso lhes não fosse recordado constantemente. Havia antes uma espécie de tácito acordo para não mencionar o assunto.»118
103Por acréscimo, o padrão do casamento cristão efectuado através do Sacramento da Igreja (enquanto origem, fundamento e garantia da sua perpetuação, oposto à laicização do laço conjugal potencialmente desregrado) não constituía um modelo único e insubstituível de pensar este vínculo. Como refere E. Wilhems, em Portugal, na primeira metade do século, era raro encontrar uma freguesia, rural ou urbana, em que não se verificasse «certo número de uniões matrimoniais não sancionadas pela Igreja ou pelo Estado», apesar deste quantitativo ser reduzido nas regiões de pequena propriedade (como no Minho) onde simultaneamente as instituições católicas possuíam maior influência e tendesse a aumentar nas zonas de grande propriedade rural, acompanhadas da presença de «um proletariado rural aglomerado em aldeias» (Alentejo) e de um menor peso e/ou controlo da Igreja119.
104Também os relatórios mensais dos governadores civis ou das câmaras municipais enviados ao ministro do Interior se referiam ao estado de «mancebia» que lavrava por esse país fora, mas considerávam-no um indicador de grave desorganização social e moral. O extracto seguinte é paradigmático:
«a questão social chegou a um estado de verdadeira decadência moral, pois verifica-se que mais de dois terços das famílias das classes pobres; e mesmo uma grande parte dos remediados, vivem no estado de pura mancebia. Deste facto, resulta ficarem registados, em geral, como filhos de mãe ou pai incógnitos, e muitos nem sequer registados são. (...) Lavra pois uma grande imoralidade em todos estes elementos (...).»120
105Contudo, aos olhos da população comunal envolvente, estas uniões conjugais não sancionadas (pelas autoridades civis ou pela igreja) não eram, em geral, distinguíveis ou menorizadas relativamente às legais ou sacramentadas, existindo um certo grau de tolerância para com elas, sobretudo no sul do país e, em particular, entre trabalhadores migratórios. Um caso limite, Grândola (Alentejo), foi descrito por P. Descamps, em 1935, nos seguintes termos:
«Há poucos casamentos; os jovens juntam-se ou separam-se, ora vivem juntos a vida inteira. Quando há duas ou três crianças, acontece que se decidem ao casamento civil.»121
106Paralelos da situação de adultério descrita por Cutileiro no Alentejo, eram também as ligações clandestinas entre raparigas solteiras e homens casados ou solteiros de classe social superior, frequentes por todo o país, as quais, embora desaconselhadas, eram aceites em função das dificuldades económicas da mulher (ou da sua família):
«(...) há aquelas que aceitam a protecção clandestina de um homem de classe diferente, solteiro ou casado, às vezes o patrão, ou qualquer outro que possa melhorar, materialmente, o seu viver (...). Aludindo a este ponto (...) não o fazemos, especialmente em relação ao Douro, embora se verifiquem ali muitos casos deste género.»122
107No entanto, pelo menos em três importantes vectores, os ideais das elites e os dizeres (bem como os quotidianos) populares convergiam entre si. Como esposa, deveria ser fiel e submeter-se incondicionalmente ao marido123, suportando tudo como um desígnio que pesava sobre a sua condição de mulher (mesmo os maus tratos físicos do marido «numa hora de mau vinho», muito frequentes nas diversas regiões do país mas escamoteados pelos discursos das elites); como mãe, ela deveria ser o regaço amigo e sacrificado dos filhos (muito embora, como já foi indiciado, a «missão» major de educação «física e moral» da prole124, tão propagandeada pelo discurso salazarista, se apagasse parcialmente nas práticas dada a importância do trabalho feminino longe do lar, enquanto sustentáculo material da própria família); em suma, dela se esperava (tanto no familialismo do Estado Novo como nos enunciados tradicionais) uma dedicação total e um sacrifício incondicional, como mãe e como companheira fiel do homem (mesmo quando este permanecia longos anos fora e ela, redobrando o sacrifício, sustentava, sozinha, a família)125; por último, como dona de uma casa, a ela se atribuía, quer por esse país fora126, quer pelo próprio chefe de Estado, a administração dos dinheiros e proventos familiares e a boa regulação da economia doméstica, função que lhe dava uma posição de destaque enquanto «ministra das finanças» da célula base e protótipo do corpo social:
«Qualquer boa dona de casa, antes de ir à praça, vê quanto tem no porta-moedas e faz as compras consoante o que tem. Não há nenhuma diferença entre o orçamento de um lar e do Estado. Não se deve gastar tudo para ter para as más épocas. Também o ministro das Finanças só pode dar o que tem e fazer algumas reservas para o futuro.»127
108Focalizemos, de seguida, os pontos de convergência e de divergência entre os discursos de algumas antigas internadas da Mitra e os perfis, tradicional e salazarista, esperados de uma mulher honrada. Convergindo com ambas as versões, quando visualizavam o casamento como um passo indispensável para atingir a completitude do papel social de mulher, as velhas com quem conversámos enfatizavam, também, a importância de um projecto de ligação conjugal, eventualmente mas não obrigatoriamente sobreposto a uma ligação matrimonial sancionada pelas autoridades civis ou pela Igreja católica.
109Com efeito, e apesar de nas primeiras entrevistas (não directivas) algumas internadas terem escamoteado ou até mesmo alterado o seu estado civil (como aliás ocorreu com outras variáveis), dizendo-se «casadas» ou introduzindo a expressão «marido» quando se referiam a determinada relação amorosa passada, em momentos posteriores, a correcção «afinal nós não éramos casados» ou «fui junta», etc., era espontaneamente mencionada (sem qualquer estímulo nosso na direcção de conferir o seu testemunho com dados dos seus processos institucionais). Outras, dizendo-se iludidas pela paixão inicial, gerindo-se por outras referências ou simplesmente já cansadas de uma vida de desencontros, falavam do casamento noutros moldes, sem que isso indiciasse menor religiosidade ou apego a crenças católicas:
«Deus é testemunha que não há mentira no que lhe estou a dizer, nós não fomos casados. Eu era nova, acreditava em todas as patranhas que ele dizia. Prometeu-me fundos e mundos... (...) embeicei por ele, não me importava. (...) O tipo era um afadistado, tinha outra mulher, uma sirigaita que não me chegava aos calcanhares, feia como um corno.»
«Eu queria um homem para amantizar e sair daquela vida. Não me importava se casava ou não... Às vezes, sentia-me tão sozinha.»
«A minha mãe viveu da mesma maneira e criou seis filhos. Não tive sorte. Acontece a muito boa rapariga honesta. Nenhum deles era de boa rês. Tinham contas com a polícia.»
110Denominando-se, por vezes, pela expressão «desgraçada» — um termo insultuoso para qualquer mulher do povo que significava, no seu critério, «as que caem na má vida»128 — algumas das velhas internadas exprimiam, explicitamente, uma «vergonha» relacionada com o seu trajecto de vida; porém, situavam-na menos na inexistência de um casamento católico ou na presença de filhos ilegítimos, mas sobretudo nas vicissitudes de um projecto de coabitação conjugal fracassado, ao qual se sucedeu, na sua perspectiva, uma «fartura de desgostos» ou «uma vida muito triste», conducentes tantas vezes à prostituição. Também à luz dos seus próprios testemunhos, e de harmonia com os códigos tradicionais, a «honra» feminina residia num certo retraimento e concentração conjugal mas, à sua revelia, não surgia necessariamente vinculada a um casamento católico e, muito menos, à maternidade de filhos legítimos.
«Abalei para a vida de servir ainda não tinha feito 14 anos. (...). Fui deshonrada por um malandro (...) um filho do meu patrão que se aproveitou. Fiquei sem gosto a tudo. (...) Depois conheci outros homens... Foi o meu destino...»
«Casei muito cedo, com 19 anos, mas ele não prestava (...). Olhe, para dizer a verdade, nós não erámos casados. Foi um homem que eu conheci quando estava a servir em casa da minha madrinha. Deixou-me uma filha que foi criada aqui comigo (...) A minha vida era muito triste. Apanharam-me na rua.»
111Ao contrário dos homens entrevistados cujo comportamento sexual nos remetia para a prevenção de uma potencial «ofensa à honra», as histórias de vida recolhidas junto das velhas internadas evocavam, por vezes, um sentimento de «vergonha». No entanto, (o que já constituía uma atenuante e uma estratégia tradicional de reparação da «honra» perdida), a fonte da poluição sofrida, a origem da nódoa que manchara a sua reputação era, por elas, frequentemente projectada sobre as figuras masculinas a quem se haviam ligado e tomava a forma típica da mulher, «nova» (sem experiência), «enganada» ou ludibriada na «confiança» (eminentemente sexual) que «deu» a determinado homem (descrito como de «má rês», «malandro», «afadistado», etc.).
112Emergindo paralelamente, e em estreita ligação com a evocação de uma conduta sexual feminina infiel aos códigos de honra tradicionais, os seus discursos exprimiam, com frequência, uma hierarquia de valores na qual, todavia, a ofensa à reputação de uma mulher decorrente do uso da sua sexualidade como modo de vida, era menorizada face à profanação da integridade moral proveniente do roubo ou de outras formas de crime. Preocupadas ainda com a conservação da sua reputação (parcialmente manchada) e construindo um espectro moral com vários degraus, as entrevistadas não posicionavam a prática da prostituição (nem o exercício da mendicidade) no pólo máximo de inferioridade e desprezo moral, o que aliás coincidia largamente com a tolerância popular envolvente face a tais práticas sobretudo em situações de crise (cf. ponto 3).
«Foi a Ramona que me trouxe. Eu era uma desgraçada que andava na vida mas não matei nem roubei para ser presa.»
«Posso ter sido uma desgraçada mas nunca roubei nada a ninguém.»
«(...) apesar de andar na rua, fui sempre uma mulher honesta.»
113A ausência de um trajecto de vida, consolidado pelo casamento cristão, pela sexualidade casta no interior do matrimónio e pela construção de laços familiares geridos por padrões rígidos de inter-relação entre sexos e gerações, em que se baseavam os discursos elitistas na construção da acusação de «sem vergonha» e de «sacrifício da honra» atribuídas ao mendigo, ao vadio e seus afins, redescobre-se, à luz dos testemunhos dos próprios internados, como um fracasso — eminentemente feminino — e uma recusa — específica dos discursos masculinos — de um projecto conjugal (não necessariamente sancionado pela Igreja) mas cuja interpretação e codificação (numa escala de valores) se apoiava, no entanto, no sistema de valores honra/vergonha tradicional. O mitreiro, em geral, recusava o casamento para, justamente, não ser elevado ao estatuto de «marido enganado» («cabrão») nem sacrificar a sua honra viril; já na sua face feminina, a albergada «sonhava» com o casamento, como a maioria das mulheres da sua época mas, «deshonrada» por um homem em quem confiou (a sua pureza sexual), inicia um trajecto de relacionamentos que a podiam levar à prostituição, reconhecida por ela própria como uma humilhação moral ao estatuto de «desgraçada», porém, menos condenável do que a decorrente de práticas como o roubo ou o homicídio e, em todo o caso, insuficiente para justificar a sua segregação em espaços de cariz carcerário129.
114Por outro lado, muito embora construídos pelo internador directo, os livros de entrada no albergue contrariavam fortemente a equação do mitreiro ao ocioso, patente na definição de vadio que vigorava à época («todo aquele que, tendo mais de dezasseis anos e menos de sessenta, sem quaisquer rendimentos para prover ao seu sustento, não exercesse habitualmente qualquer mester em que ganhasse a vida130). » Aliás, também os próprios processos (redigidos pela P.S.P.) explicitavam que este não era apenas um «ocioso inveterado», preferindo «frequentar tabernas e andar no exercício da mendicidade» mas, muito frequentemente, aquele que levava «uma vida irregular, mormente a trabalho», dedicando-se a «fretes» e a «expedientes» (cf. extractos iniciais).
115Assim, entre os homens entrados até 1951131, pertencentes à faixa etária 22-51 anos, temos notícia de que 92%, eram pedreiros e pintores da construção civil, 7,4% se dedicavam ao comércio — sobretudo, à venda ambulante (6,2%) — , 4,1% eram sapateiros, 3,9% criados de mesa, cozinheiros e empregados dos serviços pessoais e domésticos (barbeiros, cabeleireiros, porteiros, etc.), 3,4% ‘marítimos’, 3,3% carpinteiros, marceneiros e similares, 3,0% serralheiros e afins (canalizadores, caldeireiros, etc.), 1,7% embaladores, carregadores e descarregadores, 1,5% condutores de veículos de transporte, 1,4% ocupavam-se no fabrico de produtos alimentares e bebidas, 1,2% eram trabalhadores da produção e tratamento de metais, 1,1% trabalhavam na agricultura e na pesca, 0,9% eram compositores tipográficos, encadernadores e similares, 0,9% alfaiates e equiparados (peleiros, estofadores, etc.), constituindo as profissões dos restantes um aglomerado heterógeneo de actividades semiartesanais e de pequenos ofícios urbanos132.
116Por sua vez, no que respeita à ocupação do universo feminino admitido na mesma faixa etária e período, verifica-se que 19,9% não foram classificadas nesta variável, 1,1% foram registadas como não tendo profissão e 68,8% assinaladas como «domésticas». As restantes internadas, em percentagens relativamente reduzidas, eram caracterizadas, essencialmente, como criadas de servir (3,5%), costureiras, aprendizes de alfaiate e similares (1,2%), empregadas do comércio (1,1%) — vendedoras ambulantes, sobretudo (0,7%). Neste contexto, a prostituição surgia, por vezes, como uma ocorrência possível do item profissão (2,8%), particularmente, a partir de meados da década de quarenta (cf. Quadro 11b).
117Uma análise atenta de algumas das profissões referenciadas, mostra-nos que estas coincidem com as definidas, em 1926, por Augusto de Oliveira, como «profissões perigosas» ou «imorais»133.
118Às profissões «imorais pelas condições do seu exercício», pertenciam os vendedores ambulantes, os vendedores de jornais, os engraxadores de rua, os pequenos marçanos, as criadas de servir, as costureiras e as aprendizes de alfaiate, na medida em que arrastavam «invariavelmente para a vadiagem, e como consequência para o furto, pela inteira liberdade», «pelo contacto permanente com a rua e as más camaradagens, pela irregularidade de trabalho», «pelas horas consecutivas de completa ociosidade» que proporcionavam134.
119Ao ser apontada como uma profissão «imoral», tanto para os homens como para as mulheres, a venda ambulante poder-nos-á esclarecer sobre o sentido da articulação, estabelecida na época, entre certos tipos de trabalho e a emergência de determinados comportamentos ditos marginais.
120Vendendo pelos lugares, por conta própria ou alheia, os objectos do seu comércio a todos os que apareciam para comprá-los, o vendedor ambulante agrupava-se, segundo A. Lopes (1944), em várias «classes»135. Havia aqueles «que durante o ano e com vocação própria, exerciam uma volta certa, o que na gíria dos vendedores quer dizer: percorrer todos os dias, às mesmas horas, as mesmas ruas, quer faça sol, quer o vendedor esteja doente ou tenha saúde, quer seja dia de semana, domingo, dia santo ou feriado». Estes eram os «verdadeiros» vendedores ambulantes. Outros, «embora tivessem volta certa não tinham brio profissional, como os primeiros». Ainda menos briosos, «os pingonheiros [se] um dia não lhes apetecia ir à venda, ficavam a jogar à ‘bisca’ na taberna mais próxima, ou iam para as ‘provas’, ou seja, embriagavam-se»136. Nem regulares, nem briosos, nem trabalhadores, os vendedores de sinas, de almanaques «Borda d’Água» e de pequenas historietas, ora pairavam na taberna, ora estagiavam na cadeia137.
121Por sua vez, os «verdadeiros» vendedores ambulantes conservavam-se ligados a um lugar e a valores de pertença; todos os anos ou alternadamente, em férias, regressavam às suas terras nas quais possuíam uma «casita» e uns terrenos onde exercitavam as ferramentas de seus avós. Na sua maioria, mantinham e criavam novos laços familiares, tinham uma casa — «boa casa, às vezes» — educavam os filhos e, quando velhos, retomavam definitivamente à terra natal, para aí descansarem o resto dos seus dias. Em contrapartida, as últimas classes eram caracterizadas por aventuras amorosas de curta duração que raramente davam origem a relações familiares, bem como pela ausência de um lar — comiam em tabernas, dormiam em albergarias e possuíam, tantas vezes, apenas um pequeno embrulho, um saco, ou o que traziam vestido, como bens pessoais138.
122No essencial, o que parecia distinguir estas últimas «classes» do vendedor ambulante «bem conceituado» era, por um lado, a infidelidade a determinados lugares, laços e valores — o casamento, a propriedade, a terra, etc. — e, por outro, a relação fluida, incerta e irregular estabelecida com a sua ocupação.
123Estas duas vertentes, patentes nas descrições da época acerca do «mau» vendedor ambulante, transformavam-no, simbolicamente, num homólogo urbano ou semiurbano do vagabundo tradicional, errando indefinidamente de povoação em povoação, sem trajecto fixo e desprendido de qualquer laço de ancoramento. Identificados e assimilados entre si na errância, certas «classes» de vendedores ambulantes e os vagabundos do mundo rural partilhavam, assim, o facto de manterem uma relação semelhante com dois territórios simbolicamente equivalentes (Da Matta, 1980: 72): a intimidade com o espaço da rua (no caso dos primeiros), concebido como lugar do acidental, do imprevisto, da ilegitimidade, do menor controlo moral (dimensões que o discurso salazarista acentuaria); a permanência num espaço natural, intersticial, floresta ou mato (no caso do vagabundo), também ele popularmente imaginado como um lugar semidesconhecido, semicontrolado, sem orientação moral, povoado por seres perigosos (espíritos, almas transviadas, ladrões, malandros, etc.). Pela sua ligação a tais domínios, opostos, respectivamente, ao da casa e ao da aldeia (definidos, nomeadamente, por um maior controlo e moralidade das relações sociais), certos vendedores ambulantes e vagabundos recebiam o estatuto de personagens «suspeitos», «perigosos».
124O mesmo quadro de associações simbólicas estruturava a identificação conhecida (pelo menos no Ocidente) entre alguns grupos de artesãos e uma certa dose de «perigosidade social», identificação esta que estava na base da determinação multissecular de uma valorização social negativa a tais profissionais. Embora vários autores (J. P. Vernant, M. Detienne, F. Frontisi-Ducroux) tenham vindo a salientar e a reavaliar o papel mítico-simbólico do artesão em múltiplas cosmologias, os artistas, pela contingência das suas artes, eram frequentemente obrigados a afastarem-se dos seus lugares de origem, casa, família, etc., a migrarem periodicamente em função das exigências e necessidades de trabalho, sem se enraizarem demoradamente a um lugar constante. Constituindo um grupo flutuante, conotado em maior ou menor medida com a errância do vagabundo, muitos destes profissionais eram situados «à margem» do tecido social, ocupavam, por vezes, um papel de «estrangeiros», suscitavam atitudes de ambivalência (de valorização e rejeição) nas várias povoações por onde passavam (Dumézil, 1957: 717; Beaune, 1983: 45).
125Conservando essa errância (agudizada pelos vários períodos de crise socioeconómica que caracterizaram o princípio do século em Portugal) e enquadrados num contexto ideológico que reinvestira a imobilidade, a localização estática, o ancoramento definitivo como padrões de comportamento prescritos ao «bom português», várias categorias de artesãos (latoeiros, soqueiros, tendeiros, ferreiros, etc.) eram, explicitamente, assimilados pelo regime à vadiagem, à mendicidade, ao furto e a outras práticas ilícitas. A informação seguinte da P.S.P de Lisboa ilustra bem a equiparação de certos artesãos ao estatuto errante dos vagabundos e, por corolário, dá conta da sua equação imediata a «suspeitos de vadiagem» e/ou de «furto»; de outro ângulo, a correspondência de dois albergados na Mitra, enviada em 1944 ao ministro do Interior, completa o leque das construções ideológicas, tecidas pelo regime, sobre o artesão ambulante (de vadio, a ladrão, passando frequentemente por opositor político):
«J..., de 30 anos de idade, solteiro, ferreiro, filho de (...), natural da freguesia de Almancil (...), sem residência. Foi preso por vadiagem e suspeita. Não traz documentos. Declarou ser latoeiro, profissão com que se acostumam acobertar os vagabundos. Opinião sobre o preso: — É possível que seja um indicador de furtos e de gados para roubar. Dias depois da sua estadia nesta região deu-se um furto de burros que não foi possível descobrir.»139
«(...) tendo sido preso em Mourão pela Guarda Nacional Republicana em 8 de Fevereiro de 1943, onde andava em serviço ambulante da sua profissão de latoeiro, onde estava à dois meses hospedado em casa do Sr... Como V. Exa se poderá informar, seguindo para a cadeia daquele concelho onde esteve até 8 de Abril, e dali para Reguengos de Monsaraz onde esteve até 20 do mesmo mês, indo em seguida para Évora onde esteve de 20 de Abril a 14 de Maio, dali para Montemor-o-Novo até 14 de Junho, dali para Caxias onde esteve um dia, depois para Peniche onde esteve até 18 de Janeiro, dali para o Forte de Caxias até 26 do mesmo mês, dali para o Albergue de Mendicidade da Mitra, onde se encontra e estando por isso isento de qualquer culpa que lhe possam atribuir (...) peço para que seja restituído à liberdade (...).»140
«Tendo sido preso, no dia 25 de Outubro, do ano findo, em Vendas Novas, pela Guarda Nacional Republicana, de onde transitou para Montemor, onde se conservou 55 dias, seguindo daí para o Aljube de Lisboa, onde esteve 23 dias, por conta da P.V.D.E, sendo finalmente enviado para o Albergue da Mendicidade da Mitra, onde se encontra há 6 mêses.
Não tendo o signatário, feito motivo para uma tão longa detenção, por isso que, foi preso, somente por falta de documentação, visto que andava desde Janeiro, percorrendo o Norte e o Centro do país na venda de perfumarias, não tendo permanecido nem estado, senão cerca de um dia, no Alentejo, de passagem e regresso para a capital.141
126É oportuno referir, em jeito de parêntesis, que o primeiro extracto acima apresentado põe, ainda, em evidência um outro aspecto (estreitamente ligado ao da profissão) estruturante da representação salazarista do mendigo-vadio enquanto personagem móvel ou sem laços de ancoramento: a ausência de uma residência. No entanto, e no que respeita ao universo de idades compreendidas entre os 22 e os 51 anos, admitido nos dois primeiros anos do funcionamento do albergue da Mitra, os livros de entrada acusavam que apenas 32% dos homens e 23% das mulheres não tinham residência ou seja que mais de 2/3 do universo internado evocava, à admissão, uma morada. Muito embora estes valores percentuais se mantenham até ao final da década de trinta, já nos anos quarenta, as percentagens de homens e mulheres desta faixa etária registados como não tendo residência ou não codificados nesta variável ultrapassavam mais de 50% da totalidade dos entrados.
127Não podemos, porventura, deixar de relacionar este dado (eventualmente um tanto ou quanto sobreavaliado) com o enorme afluxo de gentes da província para Lisboa fugindo à miséria dos campos as quais dificilmente arranjariam abrigo certo numa capital onde a falta de habitação constituía um problema «alarmante» frequentemente mencionado nos relatórios da polícia municipal, bem como com a onda de despejos, de que nos falam os relatórios da P.S.P., sobretudo, no período da guerra, pela impossibilidade de suportar rendas de casas com salários, tantas vezes insuficientes para suprir as necessidades mais elementares de alimentação.
128Por sua vez, os restantes, e ainda à luz dos livros de entrada do albergue, habitavam nos seus bairros populares de origem ou residiam em algumas das 9.300 construções clandestinas existentes na cidade de Lisboa em 1944, espalhadas pelas freguesias de Ajuda, Alcântara, Anjos, Arroios, Beato, Castelo, Madalena, Penha de França, S. Sebastião da Pedreira, Sta. Isabel, Restauradores, etc., descritas como não oferecendo «as mínimas condições para dentro delas viverem seres humanos»142.
129Do mesmo modo que a oposição «bom camponês-errante» (vagabundo), bem como, por extensão, a dicotomia «ancorado a uma casa-sem domicílio fixo» subjaziam à atribuição de uma dose de «perigosidade social» ao vendedor ambulante, a certos grupos de artesãos móveis e a todos aqueles que não possuíam uma residência certa, a oposição «casa-rua» justificava, ideologicamente, outras equiparações profissionais, incluídas na categoria «imorais pelas condições do seu exercício», da lista de A. Oliveira.
130Nos seus passeios diários — compras, recados, etc., — a criada de servir, afastada do «lar materno», convivia indefesa com todas as «tentações e sugestões» da vida da cidade e da rua, tal como a costureira, que «passava o dia fora das vistas das famílias» e recolhia a casa a horas tardias «acompanhada pelos galanteadores da pior espécie»143. No desenvolvimento da equação da rua a um espaço de «perdição», estas duas profissões eram frequentemente mencionadas como as que mais forneciam «prostitutas ao mercado»; as segundas, devido ao «fechamento tardio das oficinas, lojas e armazéns de modas» que as expunham «a solicitações de homens de fora»; as primeiras, sujeitas a estas e a outras solicitações «imorais», provenientes dos «homens de dentro» (patrões, seus filhos, etc.)144. Por outro lado, tanto as criadas de servir como as aprendizes de costureira, «pela atracção e sedução do luxo» e pela «falsa e descuidada orientação» que recebiam das próprias donas de casa, eram, de acordo com a ideologia da época, facilmente «arrastadas para o furto» e/ou para a própria prostituição, «como meio mais fácil e rápido de gozar uma vida aventurosa de falsos atractivos»145.
131Afastadas da contenção proporcionada pelo mundo da casa materna e da família de orientação, era também a familaridade com o mundo da rua, possibilitando-lhes uma rede de ligações com o sexo oposto, impelindo-as potencialmente para a sexualidade ocasional e para a prostituição (e, por acréscimo, no caso da criada de servir, a convivência com os «homens de dentro» mas de casas estranhas), bem como o efeito de estonteação pelo luxo e imitação provocado pelas gentes com quem se dava, que serviam como justificação para a sua inclusão no grupo das profissões «imorais» pelas «más condições» do seu exercício.
132Por outro lado, profissionais «imorais por si mesmos», eram os «criados e grooms de cafés, de casinos, de clubes, empregados de teatro, animatógrafos e dancings, etc. e, de um modo geral, todos aqueles que se exerc(ia)m num meio reconhecidamente viciado ou de difícil controlo moral.»146
133Vemos, pois, que era no contacto quotidiano com a rua e, em geral, com os espaços intersticiais, conotados com o imprevisível, o ocasional, a errância, a aventura, a irregularidade e a ilegitimidade, bem como, simultaneamente, na ligação ao mundo da noite e do lúdico que residiam os critérios unificadores destas profissões sob o rótulo de «imorais por si mesmas» e «imorais pelas condições do seu exercício». Subjacente a este quadro, e organizando-o semioticamente, emergia ainda uma oposição velada entre o dever (tutelado, associado ao longo prazo, tradicionalmente enquadrado pela família, pela aldeia, etc.), e o desejo (instável, irregular, influenciável, não orientado, lúdico), pensado como conducente ao desvio.
134Em ruptura com os códigos de valores exaltados pelo Estado Novo, este grupo de profissões mostra-nos, por oposição, o padrão de trabalho valorizado, bem como as expectativas do sistema ideológico em vigor, no tocante à relação do indivíduo com a sua profissão: o trabalho produtivo, regular, dependente, rotineiro, diurno, ligado a uma casa, recusando qualquer possibilidade de iniciativa e de mobilidade, de prazer e de lúdico.
135Neste sentido, anote-se que também o trabalho operário não era bem visto. Por exemplo, um relatório de actividades da P.I.C., no período compreendido entre 1931 e 1936, associava as «camadas operárias» a uma «estreita moralidade», «à ausência de religiosidade» e, concomitantemente, assimilava os meios operários ao espaço da rua uma vez que ambos favoreciam a emergência de «costumes e vícios de promiscuidade»147.
136Contudo, de acordo com os livros de entrada, as profissões do universo adulto entrado no albergue não se cingiam apenas às ditas «perigosas» e «imorais» mas recobriam, como vimos, todo um outro conjunto de ocupações — pedreiros, pintores, serralheiros, carpinteiros, marceneiros, sapateiros, marítimos, padeiros, bem como uma lista heteróclita de ofícios (tipógrafos, tecelões, polidores, oleiros, tanoeiros, vidraceiros, etc.).
137Numa primeira tentativa de compreender a admissão destes profissionais na Mitra, sob a acusação de mendigo-vadio, podemos ensaiar a hipótese de que estes se encontrassem transitoriamente desempregados, de acordo com a natureza de algumas das suas actividades que, tornando-os vítimas preferenciais das crises de emprego e/ou expondo-os a períodos mortos no tocante a trabalho, os podia conduzir a uma vida de expedientes e, por vezes, a uma iniciação no submundo do «desvio». Convergindo com esta hipótese, os relatórios confidenciais da P.S.P. de Lisboa148, entre 1931 e 1947, dão-nos conta da situação crítica (crise de trabalho, salários insuficientes para fazer face ao crescente custo de vida, desrespeito por parte do patronato de determinados acordos, suspensões da laboração durante períodos significativos de tempo, despedimentos, etc.), que caracterizara algumas das classes profissionais nas quais se incluíam os internados da Mitra registados como possuindo uma ocupação definida.
138Aliás, à época, possuir «trabalho certo» ou seguro, ter direito à continuidade do emprego ou garantias de o conservar, conseguir laborar seis dias por semana e condições de previdência em caso de acidente, doença ou velhice, eram privilégios a que muito poucos trabalhadores portugueses tinham acesso, especialmente durante o período da guerra que proporcionou «uma razoável margem de manobra ao despedimento arbitrário». «A ‘escassez de trabalho’; as ‘participações malévolas e infundadas’ dos operários às autoridades, as faltas, mesmo por doença (...); a redução de laboração (...), tudo eram razões para despedir com ‘justa causa’»149.
139Paralelamente, neste mesmo contexto crítico, a capital «fervilhava de ‘adventícios’», oriundos de todo o país, «que faziam bicha na ‘Casa do Conto’ para a estiva, para as cargas e descargas das principais fábricas, como serventes da construção civil, para assentadores de vias na Carris, para os ‘biscates’ de algumas semanas que fossem aparecendo»150. Se, por um lado, o aproveitamento do número enorme de desempregados que migravam para a capital, da sua fome para os fazer aceitar as mais precárias condições de trabalho e salário agravava a crise de trabalho, lançando muitos outros trabalhadores para o desemprego, impelindo-os a uma vida de expedientes e/ou sujeitando-os à caridade pública, por outro lado, os salários baixos e o despedimento do trabalhador ‘adventício’ mal terminasse a tarefa propiciavam, também, tantas vezes, a sua estreia no pequeno furto ou no exercício da mendicidade. Não surpreende, pois, o quantitativo considerável de trabalhadores da construção civil, de carregadores e descarregadores, e de estivadores, internados na Mitra neste período, uma vez que eram justamente estes sectores os mais procurados e atingidos pelo afluxo de trabalhadores provenientes da província.
140Constante nas sínteses quantitativas que elaborámos a partir dos livros de entrada no albergue até 1951 era, ainda, a proporção significativa de «marítimos» ou de «embarcados». Também a vulnerabilidade desta classe profissional parecia residir no não reconhecimento do seu direito à continuidade de emprego (mesmo no caso daqueles que já possuíam alguns anos de escalas); com efeito, de acordo com a legislação vigente, os contratos terminavam sempre com o fim da viagem e se o trabalhador fosse dispensado, por qualquer conveniência do patronato, não tinha direito a compensação, havendo muitos tripulantes que não encontravam recolocação imediata, o que os sujeitava periodicamente a situações de desorganização económica. Paralelamente a esta instabilidade profissional, as condições de previdência social para os trabalhadores marítimos eram quase nulas sendo frequente encontrarem-se «tripulantes com mais de 65 anos de idade e mais de 40 anos de actividade no mar»151 em serviço, pois na ausência de uma reforma, a sua velhice significava «estender a mão à caridade», o que sucedia frequentemente152.
141Por acréscimo, terminada a guerra e iniciada a renovação da nossa frota comercial, a crise de trabalho nas classes marítimas acentuara-se. O afastamento dos navios que funcionavam com caldeiras, queimando combustíveis sólidos e a sua substituição por navios a motores e a turbinas com caldeiras alimentados por combustíveis líquidos implicou grandes reduções no pessoal, atirando um número considerável de «embarcadiços» para o desemprego, a tal ponto que, em 1951, só na Capitania do Porto de Lisboa, se contavam cerca de oitocentos homens inscritos para embarque, aguardando emprego:
«(...) crise que poderia ser passageira e facilmente suportável se, como seria de esperar, os novos navios proporcionassem colocação a todos os homens que haviam servido nos velhos. Ora este caso não se verificou totalmente, para o chamado pessoal de fogo; poucos lugares se contam nos navios acionados a motor, e, como estes constituem o maior número da nova frota (...), uma grande parte desse pessoal continua sem emprego.»153
142A instabilidade no trabalho e o desemprego periódico, obrigavam ao «expediente», levavam à aceitação do «biscate», criavam o terreno propício à emergência de certas práticas (furto, mendicidade, etc.), com vista à satisfação das necessidades mais elementares. Também a suposta «perigosidade social» do mitreiro «embarcadiço» não se deixava explicar, simplisticamente, pelo desejo (caracterial) de ociosidade, pelo «horror» a uma ocupação fixa154 ou pela «extraordinária incapacidade para o trabalho regular»155; pelo contrário, chama-nos, de novo, a atenção para o desfazimento existente entre os critérios utilizados pelo regime na construção da categoria de vadio (não possuir hábitos de trabalho regular, por exemplo) e a realidade social subjacente, na qual o direito à efectividade e à continuidade do emprego constituía uma situação de eleição.
143Mas nem só a escassez, a instabilidade de trabalho ou o despedimento explicavam o recurso a certas práticas ditas ilícitas, justificando uma acusação de mendicidade ou de vadiagem e o subsequente internamento na Mitra. Mesmo para aqueles que possuíam uma ocupação, a desvalorização real dos salários, a redução do regime de trabalho e, em geral, a degradação das suas condições de vida (acentuada pela guerra) obrigavam a accionar estratégias alternativas de compensação da exiguidade dos seus vencimentos: o estender a mão à caridade pública, a venda ambulante, o pequeno furto, etc.
144Todavia, para certas elites salazaristas, estes comportamentos eram frequentemente concebidos como opções «voluntárias» (ou seja, radicadas apenas na natureza intrínseca do sujeito e isoladas de fortes contrangimentos sócio-ambientais) e/ou como tentativas «de menor esforço» de angariar dinheiro à custa de outrem. Nesse sentido, a correspondência de várias classes profissionais enviada ao ministro do Interior constitui uma fonte elucidativa: ao mesmo tempo que defendia a contratese de que a maioria dos trabalhadores portugueses preferiria possuir um trabalho certo e regular a sujeitar-se à mendicidade, revelava-nos, por oposição, a posição ideológica do seu interlocutor sobre esta matéria.
145O extracto seguinte, expondo a situação aflitiva de muitos profissionais das classes gráficas que, para evitarem o desemprego ou longos períodos sem colocação (cada vez mais dificultada porque, surgindo a guerra, muitas das suas actividades haviam sido restringidas), escolhiam suportar um «mal menor», trabalhando três dias por semana durante doze anos seguidos (entre 1933 e 1945) embora compensando-se pelo recurso à mendicidade e à venda ambulante nos dias de folga, ilustrava bem a tensão existente entre a tese da predisposição caracterial para o trabalho incerto e irregular e a opção «involuntária» por certos comportamentos, condicionada por razões socioeconómicas que transcendiam os seus actores.
«Durante doze anos a nossa vida tem sido um calvário, não só material, como moral, pois além do prejuízo da insuficiência de meios, temos muitas vezes dado a aparência do que não somos e senão julgue V. Ex.a se é de conceber que um operário, novo, casado e com filhos, se tivesse possibilidade de angariar trabalho pela sua profissão, se sujeitaria a descer ao ponto de, num verdadeiro quadro de miséria, andar pelas ruas a vender amendoim para dar de comer aos filhos; ou então (...) um operário de cabelos brancos, que sempre havia vivido do seu trabalho, estender a mão à caridade pública. Não, só por maldade se poderia conceber que tais atitudes fôssem tomadas voluntáriamente. (...). No dia em que nos fôr dado trabalhar todos os dias tudo se modificará, porque não há um só entre nós, que não prefira um trabalho certo e regular à situação actual. Trabalhar três dias por semana durante doze anos é quási inacreditável.»156
146Todavia, estas situações (recurso à mendicidade em função da escassez de trabalho ou do despedimento, enquanto estratégia compensatória de salários precários, etc.) não justificam completamente a totalidade das admissões de indivíduos com profissão definida, na Mitra. Com efeito, temos notícia que um impulso irreflectido face à autoridade ou uma transgressão à ordem pública por influência do álcool, uma estadia repetitiva em certos locais suspeitos durante os horários normais de trabalho, uma iniciativa de propagandear a oposição ao regime salazarista ou simplesmente qualquer desabafo sobre a situação sócio-política podia valer ao habitante de Lisboa a acusação de suspeita de vadiagem ou de ociosidade e, por corolário, conduzir a uma estadia no albergue.
«Foi capturado por ter exercido propaganda subversiva e ter feito referências desagradáveis para com suas Ex.as os Presidentes da República e doMinistério.»
(referente a F..., vendedor ambulante)
«(...) acusado de fazer parte dum grupo de indivíduos que se reuniam em diversas tabernas da cidade para conspirar contra a actual situação política do país.»
(referente a M..., padeiro)
147À medida que fomos analisando alguns discursos politicamente dominantes acerca da «perigosidade social» projectada sobre certos personagens constatámos, frequentemente, a manipulação simultânea de traços idênticos, quer na construção da identidade marginal do mendigo, vadio e seus afins (concebidos como «rebeldes» a uma determinada ordem social, fundada essencialmente em três padrões idealizados de casa, família e trabalho), quer na caracterização da figura do «opositor político». Descrito como um «aventureiro» ou como um sonhador de «eldourados», o mendigo-vadio era, explicitamente, assimilado ao conspirador político. Definido pela relação de intimidade que mantinha com o espaço da rua, era ainda associado, pelo menos formalmente, aos populares revoltosos contra o regime de 1926, também designados por ele de «arruaceiros». Os extractos acima apresentados, completando esta equiparação (mas agora não apenas no plano semiótico), introduzem-nos um outro rosto do mitreiro que condensava, na mesma figura, a subversão da ordem social idealizada e do sistema político vigente.
148Estamos em crer, no entanto, que este rosto do albergue (onde, apesar de tudo, as possibilidades de fuga eram consideráveis) não corresponderia, no geral, à figura do «opositor político» ou do «agitador social» integrado numa organização ou actuando como seu agente. Todavia, exibindo as imperfeições do regime ou encarnando tudo aquilo que o sistema político se propunha mas não havia conseguido solucionar (a pobreza, a fome, o desemprego, etc.), o mendigo-vadio, só pela sua presença, punha em causa o investimento optimista no Governo vigente. Ao evocar as vergonhas (ou as insuficiências) nacionais, neste sentido, ele podia ser concebido como um «opositor político», a esconder intramuros.
149É neste contexto que pudemos listar uma outra modalidade ideológica de justificar, aos olhos de outrem, uma certa marginalidade (mendicidade, vadiagem, prostituição, etc.) muito aumentada pela guerra. Paralelamente à censura persistente da degradação das condições de vida da população portuguesa seguida da afirmação de que pedintes, vadios e seus assimilados o eram, sobretudo, em virtude, de uma predisposição caracterial, confrontámos-nos com a paranoidização do mendigo-vadio enquanto agente da oposição política, isto é, tendo como propósito voluntário a demonstração, ao público nacional e estrangeiro, do fracasso das medidas de assistência social implantadas pelo Estado Novo. O texto seguinte, que pelo seu interesse transcrevemos na íntegra, levando ao extremo este último delírio, é sintomático da generalização de uma tendência ideológica que procurava aproximar a mendicidade e a vadiagem da «delinquência» política:
«Genebra, 21 de Julho de 1946
Meu querido Amigo Senhor Doutor Salazar
Perdõe-me o abuso mas um português que viveu mais de trinta anos no Brasil (onde não é «estrangeiro»...) e que pelo Estrangeiro, propriamente dito, tem passado outras largas temporadas, adquiriu ipso facto uma sensibilidade patriótica, talvez hipertrofiada, que lhe não permite encolher os hombros e deixar passar notícias que firam o seu amor pátrio.
Eis o caso deste recorte da Tribune de Genève que me permito enviar a V. Ex.a, onde «un seul regret» mencionado por um jornalista suiço de visita a Lisboa e cheio de justificada simpatia para connosco, é o bastante para comprometer os fóros de cidade civilizada da nossa linda capital.
E o jornalista tem carradas de razão!
Ouso, a propósito, contar a V. Ex.a o que se passou comigo na Agência dos Wagons-Lits, à Rua Nova do Carmo, dias antes desta minha viagem ao estrangeiro, isto é, em meados de Junho pp.o.
Enquanto esperava que me atendêssem, pois que o escritório estava à cunha, alguém me tocou no braço atrevidamente e logo verifiquei que era uma dessas pedintes esfarrapadas, alcoolisadas e mal intencionadas que infetam (para vergonha nossa perante os «brasileiros» e os estrangeiros!) as ruas e os próprios estabelecimentos comerciais da nossa capital.
Revoltado com aquele espectáculo, deprimente para mim perante tantos turistas que enchiam o recinto, disse alto à mulhersinha:
— «Procure o Socorro Social que tem distribuído milhares e milhares de contos de auxílio aos pobres»
Resposta imediata da atrevida, aos gritos:
— Isso é tudo intrujice, a mim nunca me deram nada: é só «para eles»!...
Senti, Excelência, que o chamado «reviralho» mobilisou os pseudomendigos de Lisboa para mostrar ao público o fracasso das medidas de Assistência do Estado Novo, a miséria do «povo»... e nesse sentido fiz os meus comentários com os funcionários do Wagons-Lits, enquanto a agente do MUD era posta na rua. Mais do que isso: — fui imediatamente ao Gabinete do Sr. Ministro do Interior e narrei o episódio ao Dr. Rosa, do gabinete do Secretário do Senhor Ministro.
Parti para Genève, cheio de preocupações, como V. Ex.a sabe, e não pensava mais no caso, quando agora me salta aos olhos este «seul regret» do bem intencionado jornalista suiço, chocado com um espectáculo na verdade degradante e absolutamente inédito para ele, visto que na Suiça não há mendigos nas ruas e também se não escarra no chão, como em Lisboa!
Não seria possível, Excelência, que o Senhor Governador Civil de Lisboa, custasse o que custasse, puzesse côbro a tais misérias e explorações (políticas?...) que tanto nos rebaixam perante o Estrangeiro que nos visita?
Perdoe-me V. Ex.a este meu desabafo e creia-me sempre incondicionalmente seu admirador e amigo gratíssimo
Augusto Carneiro Pacheco»157
150Os discursos do internador directo sobre os albergados (cf. extractos iniciais) chamam ainda a atenção para mais uma vertente da repressão da vadiagem e da mendicidade. Epilépticos fingidos, paralíticos falsos, purulentos pintados, coxos postiços, avivando chagas e inutilizando membros, exibicionistas de monstruosidades e de defeitos singulares (que não atingiam, porém, a espectaculariedade do circo ou da feira), de aleijões, de crianças e de enfermos, transformando a mendicidade num negócio, os «mendigos de profissão» eram descritos como verdadeiros especialistas do ludíbrio e da lamúria com o propósito de exaltar o «espírito caridoso»158.
151Deste modo, o que caracterizava ainda o mendigo-vadio e, em simultâneo, o separava do mendigo por necessidade ou da pobreza envergonhada, era esta prática exibicionista, este poder de metamorfose159e de simulação, aproveitado para fins lucrativos. Também nesta sua ligação a uma forma de «inteligência» (cf. M. Detienne, J. P. Vernant, 1974; M. de Certeau, 1980: 155, Fatela, 1984) que fazia uso de uma certa teatralidade, manipulando a aparência, a máscara e o truque em seu benefício, o regime encontrava um outro critério para o projectar para as margens do sistema social. Como comediante e/ou enquanto especialista no ardil, o mendigo-vadio sobressaía ainda pela oposição a um ideal de verdade, de sinceridade e de transparência que o regime político elegia como seu traço distintivo e procurava impor à sua volta160 enquanto regra básica da (idealizada) harmonia social. No topo das subversões à lógica do sistema sócio-político vigente, surgia, assim, a mendicidade organizada ou transformada numa indústria lucrativa (utilizando crianças, enfermos e estropiados) e, por consequência, adentro das práticas assimiladas à vadiagem, era uma das mais severamente punidas.
152O discurso sócio-legislativo, as estatísticas da época, as representações do seu internador mais directo, etc., deixam entrever a principal razão subjacente à acusação de «perigosidade social» projectada em algumas das primeiras figuras encerradas no albergue da Mendicidade de Lisboa. Como aprofundaremos adiante, o mendigo-vadio contrariava, em várias frentes, o modelo dominante do «português ideal». Contudo, entre o seu trajecto e modo de viver e os padrões de vida das camadas populares da população não se ventilava um divórcio profundo. Deixar a terra natal num país onde a emigração e as migrações internas constituíam um dos fenómenos sociais mais constantes, ser oriundo de determinados bairros populares ou habitar em construções clandestinas, não possuir trabalho certo, regular ou seguro, utilizar certas estratégias ilícitas para ludibriar o próximo (mais abastado), etc., não constituíam, para a maioria da população portuguesa, critérios suficientemente fortes de marginalização social. Também ao nível da caracterização, supostamente divergente e pré-delinquente, que as elites dominantes do regime teciam sobre o percurso e modo de vida de certos portugueses, se desvela o seu papel na produção de uma identidade desviante e na subsequente criação de uma nova categoria de «marginais» a institucionalizar em espaços fechados, pensados como regeneratórios.
5.3.2. O universo envelhecido
153Vimos atrás que a percentagem de entrados com mais de 52 anos predominou, desde 1935 e até 1951, sobre a dos admitidos de idade compreendida entre os 22 e os 51 anos bem como sobre os menores e os adolescentes162, caracterizando globalmente o movimento das admissões no albergue. Como também já foi sublinhado, neste universo mais envelhecido o desfazimento vincado entre o quantitativo de mulheres e de homens admitido patente nos segmentos etários mais jovens apresenta-se mais esbatido e, em alguns anos, chega mesmo a ser invertido. Um primeiro traço a destacar consiste, pois, no peso que o universo feminino teve nos admitidos com mais de 67 anos e, muito particularmente na década de quarenta, para o qual não se encontra paralelo nos restantes grupos de idade.
154Não obstante os livros de entrada nos levem a deduzir que o albergue assumiu, logo nas primeiras décadas do seu funcionamento, uma dimensão gerontógica marcada, nesta fonte, bem como nos restos de dossiers e processos encontrados entre os destroços institucionais163, as referências sobre os percursos de vida e as causas de internamento dos albergados de idades mais avançadas são praticamente inexistentes, dificultando a sua caracterização.
155Restam-nos alguns discursos que o internador transmitia à imprensa (e veiculava nas suas próprias publicações) acerca dos rostos de velhice internados na Mitra, neste período. Neles, a quase ausência de informação sobre o universo feminino conjuga-se com a descrição, convicta, de que o velho mendigo de sessenta ou setenta anos admitido no albergue tinha, «no (seu) passado, a vadiagem da esmola, o vício do vinho e a preguiça para o trabalho»164, isto é, que o mitreiro de idade mais avançada constituía apenas um rosto envelhecido do mendigo-vadio adulto, corporizava o fim de uma vida de ociosidade ou de preguiça para o trabalho, de prolongadas estadias na taberna, do recurso continuado à mendicidade, sem família ou rejeitado por esta.
156A abordagem (possível) dos pontos de comunhão e de divergência entre este universo mais envelhecido e o segmento etário 22-51 anos, retomando os principais critérios utilizados pelo internador na construção da identidade do mitreiro adulto enquanto rebelde a uma determinada ordem social (idealizada), assente sobre três pilares básicos — ancoramento a um domicílio, construção de um modelo de família valorizado e trabalho regular — permite interrogar a concepção oficial sobre a velhice internada no albergue.
157Em primeiro lugar, a análise do estado civil das mulheres admitidas de idade superior a 52 anos mostra que a proporção de viúvas superava, tanto no grupo etário 52-66 (48,9%) como no das com mais de 67 anos (66,3%), a das restantes situações, o que contrasta, desde logo, com a predominância do estado civil de solteira observada no universo feminino adulto de idade inferior aos 51 anos. Por sua vez, no que respeita aos homens entrados com mais de 52 anos, a percentagem de solteiros (50,6%, em média) ultrapassava a das restantes situações no universo de idade entre os 52 e os 67 anos enquanto que, ao invés, nos homens com mais de 67 anos a situação de viúvo (42,5%, em média) era percentualmente a dominante (cf. Quadros 9a e 9b, no ponto 5.3.1.).
158A abordagem do estado civil das mulheres entradas com mais de 52 anos obriga-nos a considerar que a maioria delas havia concretizado um projecto matrimonial, o que as diferencia claramente das mulheres mais novas admitidas. Dir-se-ia também que se, nestas últimas, a fixação a um padrão de vivências maritais instáveis e conflituosas ou o enveredar por uma trajectória de meretriz precederam o seu internamento, nas mulheres mais idosas, o predomínio de viúvas leva a colocar a hipótese de que a perda do marido (e da sua protecção económica) aumentasse a vulnerabilidade ao internamento, mais acentuada, eventualmente, quando os filhos eram inexistentes.
159Não sendo classificadas no tocante à sua situação perante o trabalho (27,5%) ou então sendo registadas como domésticas (67,2%) (cf. Quadro 1 1b), percebe-se melhor que, aquando da morte do marido e/ou na ausência ou indisponibilidade de uma rede de suporte (económico), esta velhice feminina pobre mendigasse por necessidade e/ou encontrasse na Mitra a sua única e última alternativa viável.
160Paralelamente, a análise do estado civil dos homens entrados com mais de 52 e menos de 66 anos anos permite-nos deduzir dois perfis: um, mais próximo do já descrito para o universo adulto, caracterizado pela não-construção de laços neofamiliares, quando não mesmo pela sua recusa manifesta; e um outro, que corresponde ao dos entrados com mais de 67 anos, composto por homens viúvos e casados. Não sendo previsível que estes últimos se tenham casado a partir dos cinquenta anos podemos talvez distinguir um outro padrão biográfico165 ou, pelo menos, uma atitude diferente da do universo masculino adulto, atrás analisado, face ao estabelecimento de laços familiares e de pertença. Fundamentalmente, queremos pôr a hipótese de o indivíduo admitido com mais de 67 anos não corresponder, no seu percurso de vida relacional, ao entrado com idades inferiores, ou seja, de o primeiro não constituir apenas um rosto envelhecido do segundo.
161Ficam, contudo, por esclarecer as vicissitudes que conduziram grande parte destes velhos à mendicidade e, por extensão, ao albergue, na última fase das suas vidas. Com efeito, muito embora a proporção de viúvos nos admitidos com mais de 67 anos fosse relevante, a percentagem de casados, ao contrário do que acontecia nas mulheres da mesma faixa etária, também o era, o que dificulta uma argumentação, em termos durkheimianos, sobre o peso da «anomia» familiar na emergência de comportamentos desviantes. De um outro ângulo, a abordagem da situação destes indivíduos perante o trabalho fornece-nos, talvez, algumas pistas para a compreensão do seu destino de velhice.
162Os livros de entrada entre 1933 e 1938 mostram-nos que o quantitativo de «reformados» entrados com mais de 52 anos era rarefeito e, em simultâneo, que a percentagem dos que não apresentavam profissão definida atingia valores elevados — 41,4% nos de idades entre 52 e 66 anos e 47,8% nos com mais de 67 anos — percentagens muito superiores às encontradas para os admitidos pertencentes às faixas etárias inferiores. Constituindo um facto de repetição, neste mesmo período, a proporção de indivíduos registados como não possuindo uma profissão definida tendia a crescer à medida que a idade do entrado avançava (cf. Quadro 11 a).
163Se exceptuarmos o primeiro quinquénio da década de quarenta, no qual assistimos a um aumento da ausência de informação sobre esta e outras variáveis, o que prejudica a comparação percentual, verificamos que, a partir de 1946, os livros de entrada acusam um retorno parcial ao padrão apurado nos anos trinta, isto é, apresentam percentagens superiores a 30% de entrados com mais de 52 anos registados como não tendo profissão definida.
164Já no que respeita aos admitidos desta faixa etária aos quais foram atribuídas profissões definidas nos livros de entrada, era constante, ao longo do período em estudo, o primado dos profissionais da construção civil (pintores, pedreiros, etc.) (6,8%), seguido de algumas ocupações artesanais — carpinteiros (4,3%), sapateiros (3,7%), etc., — bem como a prática de vendedores ambulantes (3,8%) (cf. Quadro 11a), o que não os diferencia significativamente dos adultos admitidos com idades compreendidas entre os 22 e os 51 anos.
165Num contexto social no qual ter trabalho contínuo e seguro era um privilégio de muito poucos, em que o despedimento era a solução mais frequente em caso de acidente, de doença ou de diminuição da força manual por envelhecimento e em que a protecção social à velhice era nula nos sectores onde se ocupava a maioria do universo em estudo, o trabalhador (da construção civil, da estiva, o marítimo, etc.) à medida que ia envelhecendo via perigar o seu ganha-pão, dificilmente arranjaria um outro emprego estando sujeito a períodos cada vez mais longos de desorganização económica. Rejeitado progressivamente do mercado de trabalho, sem poder competir com a vaga de desempregados mais jovens que enxameavam pela capital, não surpreende que este universo vivesse sobretudo de fretes e de biscates e, na sua inexistência, estendesse a mão à caridade pública ou até mesmo fizesse voluntariamente um pedido de internamento na Mitra (sobretudo na década de quarenta).
166O agravamento da possibilidade de arranjar emprego estável à medida que a idade ia aumentando, as dificuldades em amealhar um pé-de-meia para a velhice num contexto de instabilidade profissional e de baixos salários, as condições limitadíssimas de assistência social na velhice, tudo isto agravado por uma conjuntura da guerra, parecem ter constituído os principais determinantes do internamento destes rostos mais envelhecidos na Mitra.
167Uma razão adjuvante da sua admissão consistiria, cumulativamente, na inexistência ou na indisponibilidade de uma rede familiar de suporte (económico), situação oficialmente prevista na legislação sobre os albergues distritais de mendicidade166, bem como nos testemunhos da polícia deles encarregada. Neste sentido, poder-se-ia pensar que a migração interna para a capital pudesse ser um predisponente relevante do distanciamento de redes familiares e para-familiares de protecção aquando da velhice. Com efeito, os dados da análise estatística que efectuámos indicam valores de proveniência exterior ao distrito de Lisboa constantemente superiores aos apurados para o segmento etário dos 21 aos 52 anos, chegando a atingir o valor máximo de cerca de 69% para o segmento mais idoso admitido nos dois primeiros anos de funcionamento do albergue, isto é, cerca de 10% a mais do que o segmento etário dos 22-36 anos167.
168No entanto, o afastamento do lugar e dos laços de pertença iniciais não justifica cabalmente a carência de redes de protecção na velhice, tanto mais que, nesta fase da vida, estas decorrem sobretudo dos laços de aliança obtidos na adultidade e das relações com os descendentes. Dado que a percentagem de viúvos e casados primava claramente sobre a de solteiros nos homens e mulheres com mais de 67 anos, ao longo de todo este período (1933-1951), podemos colocar a hipótese de o seu internamento se relacionar, ainda, com situações de inexistência de cônjuges e/ou descendentes, de rejeição ou de indisponibilidade financeira por parte daqueles.
169Um outro aspecto subjacente no seu internamento prendia-se, eventualmente, com o facto de que uma porção significativa do universo envelhecido admitido e, sobretudo, o masculino, não possuir uma residência, situação esta que se agravou a partir da década de quarenta168. Vivendo de fretes e biscates, da solidariedade de vizinhos, recorrendo a práticas semi-ilicítas para suprir as necessidades básicas da alimentação, a população idosa teria, certamente, muitas dificuldades em pagar a renda de uma casa ou o aluguer de uma pensão. Entre os numerosos casos de despejos que a P.S.P. relata neste período podemos, porventura, imaginar alguns dos futuros rostos de velhice albergados terminalmente na Mitra.
170Paralelamente, uma última dimensão a não descurar na compreensão da sua admissão no albergue, evocada nas imagens de antigos mitreiros sobre a instituição neste período (conferir ponto 5.7), relacionava este universo envelhecido com a doença mental, com a deficiência física e com a invalidez.
171A caracterização possível do universo admitido de idades mais avançadas a partir de fontes construídas pelo internador contraria alguns dos seus próprios discursos sobre o percurso de vida da velhice albergada. À luz dos livros de entrada, o internado mais idoso não pode ser acusado de recusar a instituição familiar nem ser definido pela inadaptação ao trabalho regular que faria dele um «ocioso» e um «vadio» por natureza. A doença, um acidente de trabalho, o desemprego, as dificuldades económicas, a viuvez no caso da mulher, o desalojamento, etc., conduziam facilmente à mendicidade que surgia como última estratégia para uma velhice urbana sem meios de sobrevivência.
172Que o internador, também ele, não visualizava sempre este destino de velhice como produto de um passado de vadiagem, de ociosidade e de degradação pelo vinho, que distinguia, ao nível das técnicas de regeneração moral, o mendigo envelhecido dos vários rostos do mitreiro adulto é algo que podemos intuir de alguns discursos acerca dos quotidianos intramuros e de várias práticas institucionais. A atribuição ao universo mais velho de algumas funções de vigilância e de serviço nas camaratas, nos refeitórios e balneários do albergue ou, no outro pólo, a infantilização deste universo que transparecia em expressões tais como «apanham sol, têm birras de bebés e manias de velhos»169 indiciam, talvez, um certo grau de tolerância por parte das autoridades policiais face a um destino de velhice, temido mas, apesar de tudo, não excessivamente distante170.
5.3.3. O universo infantil
173Confluindo com um projecto mais amplo de beneficência pública, na segunda metade do século xviii e ao longo do século xix, assistimos ao desenvolvimento de uma corrente de protecção e amparo às crianças desvalidas que se materializou na criação de semi-internatos, asilos, comissões de beneficência paroquiais, etc., iniciativas, todas elas, vocacionadas para o problema da infância desprotegida. Tal preocupação reflectiu-se também ao nível legislativo, sendo acompanhada por uma proliferação de diplomas sobre menores nas primeiras décadas do século xx.
174A construção da categoria jurídica de «menor em perigo moral»171, as tentativas de regulamentação do trabalho de menores172, a legislação sobre os Serviços Tutelares de Menores173, sobre a sua admissão nos estabelecimentos dependentes da Direcção-Geral de Assistência174, a regulamentação da entrada de menores de 15 anos em tabernas175, de menores de 16 anos em casas de toleradas ou de passe, de jogo e clubes176, de menores de 14 anos nas casas de espectáculos públicos177, etc., constituíram alguns expoentes desta preocupação crescente acerca da infância material ou moralmente desprotegida, muito embora tais esforços, na prática, frequentemente não fossem respeitados.
175Também o decreto-lei n.o 30389 de 20 de Abril de 1940, que oficializou a instituição dos albergues da polícia, apesar de frisar que o seu funcionamento em nada iria colidir com as funções repressivas e tutelares de justiça relativas à protecção de menores, previa que os albergues colaborassem neste domínio, definindo que neles fossem também internados «menores de dezasseis anos em perigo moral».
176Sucintamente, e segundo o decreto de 27 de Maio de 1911, consideravam-se «menores em perigo moral», os menores que não tinham domicilio certo nem meios de subsistência (devido à ausência de pais, tutores, parentes, etc., à doença ou prisão dos mesmos), aqueles cujos pais ou tutores fossem reconhecidos como incapazes ou impotentes para cumprirem os seus deveres paternos ou tutelares, bem como os que viviam em companhia de pais ou tutores que desprezassem «gravemente os seus deveres de vigiar e educar os filhos», que tinham «mau comportamento notório e escandaloso», que fossem «conhecidos como sendo habitualmente ociosos, mendigos, vadios, alcoólicos, gatunos, rufiões, toleradas ou outros entes imorais», que privassem habitualmente os filhos de alimentos e outros cuidados indispensáveis à saúde, os maltratassem fisicamente de modo habitual ou excessivo, os excitassem para a «gatunice», mendicidade e prostituição, estivessem empregados em profissões «proibidas, perigosas ou desumanas», e/ou que tinham sido condenados por determinados crimes. Porém, em legislação posterior, abandonou-se o sistema restritivo da enumeração taxativa de 1911 e, em sua substituição, incluiam-se nesta categoria todos aqueles que se encontrassem «em circunstâncias de sofrer uma perturbação ou desvio na sua formação moral» por virtude das mais variadas causas, enfatizando-se particularmente as da vida familiar envolvente.
177A atribuição oficial de competências à P.S.P. no campo da assistência e reeducação de menores «em perigo moral» no mesmo espaço institucional onde internava muitos outros indivíduos ditos «imorais», «incorrigíveis», «delinquentes habituais» e outros afins não pode deixar de suscitar estranheza, tanto mais depois da aprovação da Nova Organização Prisional (decreto-lei n.o 26643 de 28 de Maio de 1936), a qual, embora não pretendesse regular os meios de combater a delinquência dos menores, estabelecia, contudo, vários tipos de estabelecimentos prisionais adequados a várias categorias de deliquentes, reflectia sobre a importância da individualização da pena e dos seus processos, bem como sobre a do princípio de separação na regeneração do delinquente.
178Se a heterogeneidade de internados na Mitra contradizia, em grande parte, o próprio espírito da noção de menor em «perigo moral», já a atribuição de competências à autoridade policial neste campo se inseria na sequência de um conjunto de iniciativas anteriores nas quais também à polícia se encarregava de defender e proteger a infância abandonada ou desamparada que proliferava nas suas rusgas pelas ruas da cidade. Entre elas, temos notícia da criação, por parte de alguns oficiais da polícia, de um albergue, destinado a acolher as crianças abandonadas e perdidas. Instalado em 1899 e admitindo por ano, em média, cerca de 200 crianças, o albergue criava-as ou entregava-as à família ou a pessoas caritativas que as recolhiam178.
179A admissão de menores na Mitra, a partir de 1933, parece, portanto, continuar os propósitos do albergue inaugurado em 1899, apesar de a própria polícia reconhecer como «perigosa a prosmiscuidade destes menores, com muitos outros indivíduos (...) estes últimos de um passado pouco recomendável»179.
180Com efeito, nos dois primeiros anos do seu funcionamento, o albergue distrital de mendicidade de Lisboa, para além internar mendigos e vadios — adultos e velhos, de ambos os sexos — acolheu 41 bebés com menos de 2 anos, 386 crianças entre 3 e 7 anos e 643 garotos de idades compreendidas entre os 8 e os 14 anos. No entanto, muito embora a política restritiva das admissões, accionada entre 1935 e 1938, se tenha traduzido numa diminuição acentuada das entradas de crianças com menos de 7 anos e, de um modo mais suave, num decréscimo dos admitidos de idades entre os 8 e os 14 anos, sabemos que, em 1938, o albergue internava 165 menores.
181O período entre 1939 e 1946, caracterizado por um crescimento considerável dos menores admitidos (particularmente, das crianças entre os 8 e os 14 anos) e, em paralelo, por um aumento do seu peso relativo na totalidade das admissões no albergue (34,6%, em média), mostram-nos que a Mitra assumiu, para além das suas funções de defesa dos «bons costumes» e de repressão da mendicidade e da vadiagem, uma função de assistência à infância e, ainda, que o fez não de forma esporádica mas de um modo relativamente constante no período em foco. Tanto mais que, entre 1947 e até 1951, apesar de se registar novamente uma diminuição na proporção relativa de entrados com idades inferiores a 14 anos (para o valor percentual de 24,3%), o albergue admitia, em média, cerca de 200 crianças por ano (cf. Quadro 5, no ponto 5.2)180.
182Tanto quanto pudemos apurar nos livros de entrada do albergue, e apesar da legislação em vigor colocar os menores «em perigo moral» sob a protecção do Estado através da instituição das Tutorias da Infância (tribunais especiais destinados à guarda, defesa e protecção dos menores em perigo moral, desamparados e delinquentes, os quais, depois de os submeterem a um estudo psicológico e antropológico, os canalizariam para estabelecimentos apropriados de educação e trabalho), a maioria dos menores ditos «em perigo moral» albergados na Mitra não eram sujeitos a um processo jurídico, mas admitidos administrativamente.
183À luz dos discursos politicamente dominantes, o critério major que presidia à atribuição da categoria de «menor em perigo moral» fundava-se na oposição entre um determinado modelo de lar e de família considerado como fonte de «todas as virtudes morais»181 (amor ao trabalho honesto, obediência, dedicação, respeito pelas hierarquias, patriotismo, etc.), por contraste com o mundo da rua, definido pelas suas nocivas e perversoras predisposições à delinquência.
184A degradação da família proveniente, entre outros aspectos, de factores de ordem económica dos quais sobressaía a organização do trabalho imposta pela concentração industrial, colocando os menores sob os efeitos das «más camaradagens da rua»182, dos «piores contactos sociais»183 e, consequentemente, conduzindo-os «aos primeiros degraus na escala do crime»184 constituía uma das vertentes salientadas nos discursos sobre a delinquência infantil:
«Um operário tem três ou quatro filhos. De manhã sai de casa, vai para a fábrica. A mulher, impelida pela dureza da luta pela vida, abandona também o lar e vai para o atelier. Os filhos, para não ficarem em casa a fazer disparates, são postos na rua, quando muito entregues ao cuidado de uma vizinha (...). As crianças fugidas à escola vadiam durante o dia, sujeitas a toda a casta de sugestões e maus exemplos, que partem algumas vezes dos pais. Esfomeados, tentaram a esmola; mas, não conseguindo o suficiente, passaram a furtar. (...). A fábrica destruiu a família, eis o facto inelutável.»185
«A mãe não pode deixar de dar aos seus filhos a indispensável assistência e se a sua falta num lar burguês é um desastre, já foi dito que num lar proletário é uma catástrofe.»186
185Porém, noutros discursos a tónica era colocada em factores endógenos a determinados modelos de família, descritos como «ilegitimamente constituídos», prosmíscuos187e associados sempre à dissolução de costumes, caracterizados pela «má conduta individual ou social» dos progenitores188, pelos seus «vícios e doenças hereditárias»189, «pelo abandono moral»190 e «maus exemplos»191 a que sujeitavam os filhos.
«Muitos menores criminosos são crianças abandonadas ou desamparadas pelas famílias. No Porto, vagueiam pelas ruas, especialmente nos bairros proletários, nas vizinhanças dos mercados, dos quartéis, das estações de caminho-de-ferro, etc. e, em pleno coração da cidade, crianças rotas e famintas que são órfãos, ou que são escorraçadas pela família ou cujos pais entregues, por exemplo, a misteres ambulantes, não os podem conservar sob uma vigilância permanente. Essas crianças estão entregues a mil solicitações perigosas e a todas as acções de um meio deletério.»192
«Também, independentemente da orfandade, a organização familiar ilegalmente constituída, a desmoralização dum ou de ambos os cônjuges, a sua vida escandalosa, as suas acções perversas e deletérias, a sua má conduta individual ou social, o abandono moral dos filhos e todos os actos irregulares, aparentemente insignificantes, têm uma enorme influência pelo exemplo, na criminalidade infantil, constituindo uma das causas da vadiagem e da mendicidade (...).»193
186Desamparados pelas mães que trabalhavam fora de casa, oriundos de lares ditos «viciados» ou desfeitos, tais menores eram precocemente iniciados ao mundo da rua, definido pelas elites salazaristas como um espaço de sedução (pela aventura, divertimentos, luxo, etc.), de conspiração (pela liberdade, pelo sonho, etc.), bem como enquanto lugar privilegiado de corrupção das virtudes morais idealizadas para o «bom português».
«A rua é um laboratório de todos os vícios. Por ela passa tudo o que de bom e de mau possui uma sociedade. Nela se exibem todos os exemplos pervertores, nela se tomam todas as lições, em que a crápula física e a crápula moral figuram como violentos venenos corruptores. Além disso, a rua é ainda uma intensa escola do crime. (...) Arremessados para a rua, com os estomâgos vazios (...), as crianças abandonadas constituem matéria plástica admirável, na qual podem moldar-se e formar-se os maiores criminosos e os mais temíveis bandidos. Toda a noção de vergonha e de pudor se afoga na lama (...). A dignidade não chega sequer a desabrochar-lhes no espírito (...) o amor pelo trabalho não chega sequer a desabrochar nessas almas ulceradas antes do tempo. (...). A aprendizagem da rua conduz quási sempre aos tribunais e ao degredo.»194
187Contudo, para as camadas mais populares, rua e infância não constituíam uma oposição a extremar nem uma conjunção considerada sempre como «perigosa» ou propiciadora de delinquência. Animadoras das ruas da cidade com seus teatros195, iniciadas desde cedo na venda ambulante, «apregoando o carapau fresco, a salpicadinha da costa, as uvas e a hortaliça» ou regateando com as freguesas196, vendendo postais, bilhetes da lotaria, alfinetes, atacadores e outras bugigangas ou engraxando na rua, «pequenos ardinas», vendedores de jornais que, «madrugada ainda», «uns burrifos de água na cara, uma ponta da camisa ou do casaco, servindo de toalha, um café barato»197 se viam a caminho de mais um dia de existência pelos interstícios da cidade, bandos de garotos, sem escola, horrorizados pelas suas casas escuras e desconfortáveis que passavam o dia na rua, divertindo-se com as revistas de cinema, jogando com uma bola de trapos, brigando entre eles, atirando pedras, pendurando-se nos carros eléctricos às escondidas da farda do polícia, etc.198, inclusive muitas crianças que pediam esmola em sítios propícios para compensar as deficiências económicas dos seus lares199, etc., constituíam cenários habituais da vida pública lisboeta.
188Por acréscimo, esta infância flutuante, em contacto permanente com a rua, conhecedora dos seus personagens, ritmos, estratégias, etc., tantas vezes, um pouco irreverente e até acompanhada de actos semi-ilícitos (pequenos furtos, mendicidade, etc.) não era, aos olhos do português comum, sinómimo imediato de criminoso futuro. Como referia, A. Lopes, na sua descrição dos pequenos «ardinas»: uns «perdem-se» mas «há muitos que se salvam, fazendo-se bons cidadãos»200. Por sua vez, a venda ambulante e a mendicidade (avulsas ou acopladas) constituíam práticas tradicionalmente ligadas à infância de uma porção considerável da população portuguesa, sendo activadas com maior intensidade em tempos de crise:
«Verifica-se hoje que a maioria dos mendigos são creanças de todas as idades que os pais lançam nas ruas sob o pretexto de venderem quaisquer bugigangas mas cujo fim é, especialmente, o de recolherem esmolas das pessoas que, massadas pela insistência dos ofertantes (...) e de ouvirem a lamúria da fome (...) acabam por dar a esmola desejada. Sempre que se intensifica um pouco mais a repressão a estes pseudo-vendilhões, que infestam os estabelecimentos e as ruas da baixa é grande a quantidade de menores de ambos os sexos.» (1939)201
189A obsessão familialista do regime (cf. ponto 5.3.1.), acentuando a ligação da menoridade em «perigo moral» às irregularidades da vida familiar que a Primeira República já sublinhara, complementada pela projecção massiva no espaço da rua das raízes dos «maus costumes» (por processos causais de sedução e de contaminação de criaturas de plasticina)202 estiveram subjacentes ao internamento de muitos menores nos albergues da polícia.
190Ensaiemos agora uma caracterização dos seus rostos partindo dos testemunhos de vida daqueles que a Mitra exilou prolongadamente do espaço público, bem como dos livros de entrada da instituição no período em estudo.
191Tratar-se-iam, sobretudo no caso dos mais pequenos, de filhos de mães solteiras em dificuldade, de filhos de meretrizes, de vadias ou mendigas que eram internados com as mães, de crianças simplesmente abandonadas. Os mais velhos, admitidos sozinhos ou acompanhados por familiares (irmãos, pais, tios, avós, etc.) eram, predominantemente, naturais do distrito de Lisboa203 e, tantas vezes, garotos pertencentes a famílias numerosas, cujo rendimento económico atingia níveis muito precários, justificado pelo desemprego ou subemprego dos pais, crianças que raramente frequentavam a escola ou dela haviam desistido para desde cedo trabalharem como engraxadores, vendedores de jornais, vendedores ambulantes (de alfinetes, atacadores, papel de carta, etc.) ou que pediam, em grupo, isoladamente ou com parentes, nas ruas da baixa, junto de estabelecimentos comerciais, hospitais, igrejas, quartéis, etc., compensando, com a esmola recebida, os magros rendimentos familiares. Noutros testemunhos, o alcoolismo do pai, a sua deficiência física, o seu abandono, uma prisão mais demorada, etc., pioravam o quadro ecónomico destas famílias volumosas, reforçando a importância da esmola angariada pelos filhos mais velhos.
192Apesar da predominância da filiação conhecida relativamente a ambos os progenitores nos menores de 14 anos admitidos (81,5% para o grupo etário 0-7 anos e 88,4% para o grupo etário 8-14 anos), 14,1% dos menores de 7 anos e 9,2% das crianças de idade entre os 8 e os 14 anos foram registadas, no tocante ao progenitor masculino, com a expressão «pai incógnito», o que nos leva também a considerar que alguns destes menores pertencessem a famílias monoparentais e, nalguns casos, fossem filhos de meretrizes (cf. Quadro 8).
193Noutras histórias de vida, às carências ecónomicas das suas famílias de orientação eram acrescentados relatos que apontavam para matrizes familiares problemáticas. Pais ou padrastos que se embriagavam e esperavam os filhos com «a chibata» ou com a «correia», fugas de casas em consequência da fome e de maus tratos, alguns casos de desagregação familiar, de desalojamento, etc., constituíam outros motivos que levavam alguns destes garotos a fazer da rua o seu lar e o seu mundo204. Pedindo pela necessidade de «comprar um pão», enveredando por uma vida de expedientes, entrosada tantas vezes com pequenos furtos, as crianças sem lar e sem família constituíam também alguns dos rostos internados no albergue da Mitra.
194Com efeito, se, em muitos casos, as mães apareciam a solicitar a sua «libertação», alegando miséria e falta de trabalho, comovendo a polícia, «nada podendo (...) contra elas», pois, para além dos filhos presos, ainda traziam consigo e/ou deixavam em casa «mais três, quatro ou cinco»205, outros rostos havia, que ninguém reclamava. Entre estes, sublinhem-se os menores atrasados mentais e os deficientes físicos que tiveram um peso importante no universo internado (cf. ponto 5.4.1.), acompanhados de muitas crianças com doenças contagiosas que, paradoxalmente, também davam entrada na Mitra206.
195Figuras familiares e habituais das principais cidades do país, os garotos mal vestidos, esfarrapados, sujos, pedintes, pequenos vagabundos, etc., manchavam o prestígio nacional face ao estrangeiro admirado, envergonhavam as respeitáveis classes médias; potenciais criminosos em formação na aprendizagem da rua, eleita como espaço privilegiado de projecção das angústias do regime, eram concebidos como um «tremendo perigo social»207; afastados dos meios familiares de pertença e das suas nocivas orientações, da rua onde viviam «em estado selvagem», dos olhos do estrangeiro, «extintos» dos lugares públicos, funcionavam como vítimas sacrificiais, de eleição, para o ritual regenerador (e purificador) enfatizado pelo regime (cf. ponto 5.9).
196Descritos, ainda por cima, como «matéria plástica admirável»208, o investimento (optimizante) no seu renascimento (sacrificial) no seio da grande família institucional e/ou da sua colonização à ordem politicamente dominante, dependia «essencialmente da acção pessoal pelo exemplo, pelo trabalho» e de uma «cuidadosa assistência que capt(ass)e a confiança dos educandos e lhes domin(ass)e insensivelmente o espírito.»209 Transformar «crianças infectadas pelo vício» (ou criaturas «em estado selvagem») em «gente que trabalhe e deseje viver honestamente»210 dentro das normas constituía uma máxima (mas também um sonho) do amigo internador (cf. ponto 5.8.).
197Com efeito, e num contexto em que o tempo médio de permanência institucional do universo infantil internado atingia 3.21 anos211, a guia de saída era o motivo apontado em quase metade dos casos (42,5%) que deixavam a Mitra (sempre reclamados por familiares ou tutores), seguido da fuga (24,3%)212. Quer os que tinham família a reclamá-los (numerosos, portanto), quer os que haviam obtido sucesso numa fuga, regressavam frequentemente (e por mais de uma vez) aos portões da Mitra. A necessidade de suas famílias, o subemprego ou os períodos mortos de trabalho, os muitos filhos para alimentar, etc. — já de si situações estruturais mas agravadas por uma conjunctura de guerra — contribuíam para as múltiplas reincidências na mendicidade e para o quantitativo significativo de novos rostos infantis213 admitidos no albergue ao longo do primeiro quinquénio da década de quarenta.
198Com a aprendizagem de um internamento na Mitra, mais prevenidos, os pequenos mendigos ou as crianças da rua, acrescentavam aos seus quotidianos uma maior preocupação com a farda do polícia, que só trajando civilmente conseguia «deitar-lhe a mão»214. O testemunho seguinte relembra-nos esse rosto tão familiar de Lisboa, à época — um garoto esfarrapado e sujo, engraxador de rua, pendurado nos carros eléctricos e praticando pequenos furtos que, quando apanhado, persiste na fuga ansioso de liberdade e de aventura. Fala-nos, depois, do adulto irreverente e rebelde ao projecto regenerador que reincide e volta a esgueirar-se. Introduz-nos a uma velhice que consentiu, por fim, em ficar, apenas porque o corpo doente e limitante lho exige.
«A primeira vez que aqui entrei foi há 57 anos... Foi a polícia que me trouxe por andar atrás dos carros eléctricos (...). Na segunda vez, estive uns meses na camarata-depósito onde estavam os presos que vinham pela polícia por andarem a pedir. (...). Não gostava de cá estar, queria andar à minha vontade e fugi... Fui trabalhar numa garagem na lavagem de carros. Entrei outra vez um ano depois, estava sem dinheiro. Fugi outra vez e fui ganhar a vida como servente de pedreiro... Há uns vinte anos que não vinha cá! Voltei por causa da trombose...»
A..., 67 anos, várias readmissões após fuga, última entrada em 1981
5.4. Alguns rostos do mitreiro
199De acordo com os seus propósitos oficiais e, nomeadamente, de harmonia com as suas funções beneficentes, a Mitra deste período parece assim ter constituído um importante órgão na protecção dos menores «em perigo moral» e na assistência a um determinado tipo de velhice. No entanto, fracassando na sua suposta função de triagem e encaminhamento, acabou por se impor como estabelecimento de internamento mais prolongado (do que o previsto pela legislação) para estes dois grupos.
200Conflitos constantes entre a P.S.P. e a Direcção-Geral de Assistência Pública sobre o destino a dar aos indigentes idosos, inaptos, carenciados a todos os níveis e doentes que a P.S.P. recolhia na rua, estiveram subjacentes ao seu internamento terminal na Mitra. Se, à luz da legislação em vigor, «em caso algum os indigentes» poderiam «continuar a cargo da polícia», devendo esta entregar «à assistência pública oficial os inaptos para o trabalho», que carecessem «de socorros», «competindo tudo o mais à mesma assistência pública» (n.o 5 do art.° 21.° do Regulamento aprovado por decreto-lei n.o 9116 de 8 de Setembro de 1923), esta, por carências várias, negava frequentemente à polícia esse direito215. Excedida a lotação dos calabouços do Comando (onde permaneciam indigentes, entre eles velhos doentes juntamente com loucos e criminosos, em condições «verdadeiramente revoltantes216),» a P.S.P. não possuía outra alternativa senão admiti-los no albergue.
201Por sua vez, o mau funcionamento das Tutorias por falta da possibilidade de internamento dos «menores em perigo moral» em casas de correcção apropriadas217, bem como o fracasso das várias iniciativas tomadas pelas comissões administrativas do albergue da Mitra (ao qual o desinteresse estatal não foi indiferente) no sentido de estabelecer os menores internados numa colónia agrícola à parte, contribuíram para o peso que o universo menor teve na Mitra ao longo das suas primeiras décadas de funcionamento.
«Achando-se recolhidas no Albergue de Mendicidade, a cargo desta Polícia, dezenas de crianças, para ali levadas por viverem em perigo moral, mas tornando-se perigosa a promiscuidade destes menores, com muitos outros indivíduos (...) e não tendo sido possível a este Comando, apesar dos esforços para isso empregados, dar destino conveniente aos ditos menores, como sanatórios, casas de correcção, etc. de modo a torná-los úteis à sociedade, mas desejando o mesmo Comando tentar remediar, na medida do possível, este inconveniente (...) e constando-lhe que na posse da Assistência Nacional aos Tuberculosos existe, desaproveitado, um edíficio em Campolide (...), venho rogar a V. Ex.a se digne envidar os seus bons ofícios junto de sua Ex.a Ministro, no sentido da cedência do referido edifício.» (1935)218
«Aos menores é indispensável preparar-lhes um futuro de trabalho que os afaste da vadiagem e da mandriice (...). As artes e ofícios estão mortos pela máquina; só o trabalho da terra os pode tornar úteis a si e à sociedade. Pensou por isso a Comissão Administrativa do Albergue adquirir uma propriedade onde pudesse criar uma Escola Agrícola, tendo anexa as indústrias que à terra se ligam e na qual, a par do ensino a ministrar aos rapazes e raparigas, depois da instrução primária, se empregassem em trabalhos agrícolas e noutros, (...). A Quinta da Mitra, em Santo Antão, concelho de Loures, património do Estado, reune as condições necessárias para tal fim (...). [A polícia de segurança pública] Solicita pois a cedência pelo Estado a qualquer título, da referida propriedade, convencida (...) de que ela continuará a desempenhar a sua missão de limpeza das ruas da Capital, acrescida depois com a de preparar um futuro de trabalho e de vida honesta a tantos filhos da miséria que por aí andam tirocinando na escola do vício e do crime, de onde é necessário afastá-los.» (1939)219
202Por acréscimo, como veremos de seguida, a Mitra dos anos trinta, quarenta e cinquenta tomou simultaneamente a feição de «estabelecimento para vadios e seus equiparados» (prostitutas de escândalo público ou desobedientes às prescrições policiais, chulos, rufiães, proxenetas, homossexuais, reincidentes, cadastrados, alcoólicos e outros intoxicados, etc.) em cumprimento de medidas de segurança ou admitidos administrativamente, identificando-se portanto com uma das categorias institucionais previstas na Nova Organização Prisional de 1936. Paralelamente, por carência de estabelecimentos especializados e/ou pela sua pura e simples ausência, foi-se assumindo como um equivalente funcional de cinco tipos de instituições, todas elas sob a designação de «Asilo Psiquiátrico», previstas pela lei n.o 2006 de 1945 sobre a Reforma da Assistência Psiquiátrica. Por fim, podemos também avançar que manteve uma função relevante no internamento de doentes tuberculosos «incuráveis».
203Pondo em evidência alguns desfazimentos entre os objectivos oficialmente instituídos pela legislação e a crua realidade, o universo admitido na Mitra, entre 1933 e 1951, contemplava uma amálgama de figuras, as quais, aparentemente distintas, coexistiam porém no mesmo espaço institucional.
5.4.1. O louco
204Numa amostragem de 142 adultos do sexo masculino, albergados no albergue entre 1947 e 1948, sob a designação de «mendigos-vadios», Navarro Soeiro220 detectou cerca de 61% de psicopatias (86 casos); 12,7% de oligofrenias (18 casos); 3,5% de demências senis (5 casos); 2,8% de esquizofrenias (4 casos) e o mesmo valor percentual de epilepsias; 1,4% de parafrenias (2 casos) e, por último, em percentagens menos significativas, outras patologias — isto é, 86,6% (123 casos) de doentes mentais221. Paralelamente, o mesmo autor verificou que metade da população da amostra possuía hábitos alcoólicos (57,7%), de entre os quais 7,8% exibia um quadro intenso e crónico de alcoolismo, informação esta consonante com a confissão dos internados, ou seja, «que grande parte dos seus proventos obtidos na mendicidade ficava na taberna»222.
205Da análise do quadro vivencial dos 142 internados, Navarro Soeiro concluía, ainda, que a doença mental era concomitante, em 20 casos, com o abandono familiar, em 10 casos, com a dissociação da família na infância e adolescência, em 4 casos, com a morte prematura da mãe, em 5 casos, com a existência de uma madrasta «má»; em 31 casos, com comportamentos instáveis, turbulências e fugas desde a juventude; em 25 casos, com o alcoolismo crónico; em 23 casos, com a ausência de um lar próprio, com a não constituição de laços neo-familiares; em 18 casos, com a viuvez (na presença ou não de filhos).
206Outra observação importante tinha a ver com a hereditariedade, averiguada com segurança, nos quadros de mendicidade e vadiagem abordados. Navarro Soeiro notava a posição destacada, nos ascendentes e colaterais, do alcoolismo (em 36 casos), das psicopatias e das psicoses (67 casos) e dos hábitos de vagabundagem e mendicidade, nomadismo periódico e emigração (18 casos)223.
207Simultaneamente, de uma amostra de 50 jovens internados no albergue (situando-se 84% entre os 13 e os 17 anos), o mesmo autor encontrou 30% de «anormais psicopatológicos»; 8% de oligofrénicos e 4% de epilépticos, observando ainda que 44% destes jovens eram órfãos e que 30% foram internados por dissolução familiar224.
208Por último, estendendo a sua abordagem médico-psicológica da vagabundagem e da mendicidade ao caso dos vadios sujeitos a medidas de segurança, apresentava-nos taxas ainda mais elevadas de «anomalias psicopáticas», verificadas em quase 90% dos delinquentes recidivistas225.
209Não é difícil imaginar o albergue de mendicidade de Lisboa, oficialmente centro de triagem e encaminhamento de mendigos e vadios e exercendo apenas provisoriamente uma função assistencial para idosos, doentes e crianças, como um depósito heterogéneo e amorfo de rostos da rejeição e/ou apontados, na época, como «a-sociais» e «anti-sociais», aos quais, se juntavam também muitos doentes mentais.
210A «confusão», o «pandemónio», a «horrível mistura», para a maioria terminal, acompanhada da ausência total de finalidades curativas e do encerramento num espaço policial-carcerário, não podem deixar de lembrar a instituição pré-psiquiátrica do século xviii. Numa pintura impressionista, permitida por um relatório, redigido em 1790 pelo Comité de Mendicité, observava-se que os 3.874 internados na Maison de Bicêtre, em Paris,226 eram «pobres recebidos gratuitamente, pobres pagando uma pensão (...), homens, crianças epilépticas, escrofulosas, paralíticos, insensatos, homens fechados por ordem do rei, por decisão do Parlamento (...), crianças enclausuradas por roubo ou qualquer outro delito, crianças sem vício e sem doença e, enfim, homens e mulheres com mal veneriano.» Para além de «esta casa» ser «simultaneamente hospício, Hotel Dieu, pensionato, casa de força e correcção»227, caracterizava-se por uma «ausência total de tratamento»228, mesmo relativamente aos loucos (os quais, considerados incuráveis, nunca aí chegavam a receber qualquer terapêutica), bem como por arbitariedades e corrupções desenvolvidas pelo sistema administrativo.
211Ora, Bicêtre e Salpetrière da Idade Clássica enclausuravam um universo aparentado ao da Mitra dos anos trinta, quarenta e cinquenta, no qual, como acabámos de ver, também a loucura coexistia com quem estava na posse de razão, a infância com a velhice, o crime e o «vício» com a indigência e onde a ausência de tratamento e algumas formas de arbitrariedade (conferir capítulos seguintes), por parte da administração, se reproduziam.
212Se, como referia Barahona Feandes, «em Portugal não parece ter-se dado aquele ‘encerramento’ em ‘asilos’ (...), em França, sob o reinado de Luís XIV, mediante o qual vagabundos, criminosos, pedintes, prostitutas e outras formas de degradação e desvario social eram ‘encerrados’ juntamente com loucos e outras espécies de marginais sociais»229, a Mitra, nas primeiras décadas do século xx, quer pelo seu universo, quer por alguns traços do seu funcionamento, evocava, num singular anacronismo, a instituição pré-psiquiátrica230 de que fala M. Foucault (1961).
213Muito embora o albergue internasse, até aos princípios da década de quarenta, situações humanas bastante heterogéneas e, entre elas, incluísse a loucura, sem apresentar grandes preocupações de tipificação espacial (com excepção da divisão sexual e da separação entre menores e adultos), com a criação da colónia do Pisão, o seu carácter pré-psiquiátrico modificou-se, em virtude de uma necessidade topológica que começou a desenvolver-se no seu interior (cf. ponto 5.7.).
214Com efeito, uma carta de Outubro de 1949, enviada pelo Dr. Ilharco, na altura director do Centro de Assistência Psiquiátrica da Zona Sul231, ao capitão Godinho, então director da Mitra, elucida-nos sobre a proporção de doentes mentais albergados na colónia do Pisão, bem como sobre o seu relativo isolamento face aos restantes albergados. No seguimento da sua visita à colónia, este observador sublinhava assim a boa impressão que lhe causara «o asseio, o aspecto e a ordem das instalações» e até das ocupadas por cerca «de uma centena de doentes mentais», separados e instalados à parte, num pavilhão próprio — o «Asilo de dementes».
215No entanto, em correspondência posterior (Novembro de 1949), para além de formular o desejo, como responsável do C.A.P. da Zona Sul, de que fossem «tomadas providências para que aos albergados, doentes mentais, fôsse dada uma ocupação», condenava exacerbadamente a inexistência de qualquer assistência e vigilância psiquiátrica232, chegando mesmo a apresentar uma proposta de tratamento por médicos e enfermeiros especializados dos doentes mentais aí internados.
216Não tendo provocado eco visível, Ilharco voltou a insistir, em 1951, na proposta de fornecimento de assistência psiquiátrica e ergoterápica a estes doentes mentais, fazendo-a chegar ao subsecretário de estado da Assistência Social. Aprovada com algumas objecções, essa proposta não chegou, porém a efectivar-se devido a problemas administrativos e técnicos do dispensário de Higiene e Profilaxia Mental de Lisboa, organismo que, segundo a mesma, providenciaria a assistência psiquiátrica ao Pisão233.
217Destas duas fontes, ressalta, portanto, que o albergue, neste período, acolhia um número considerável de doentes mentais mas não lhes proporcionava qualquer vigilância e tratamento psiquiátricos; nelas está ainda latente a impossibilidade de uma solução que passasse pela sua transferência para os hospitais psiquiátricos234; e, por último, põem em evidência que, a partir de meados da década de quarenta — mediante um processo de clivagens espaciais desenvolvido no interior da instituição, baseado em critérios que excediam o do sexo e o da idade — se passou a reconhecer um lugar singular para certos tipos de albergados.
218Neste sentido, um ofício da Direcção-Geral da Assistência de 23 de Fevereiro de 1950 fixava a existência de um pavilhão exclusivo para doentes mentais («o Asilo de Dementes») assim como duas dependências separadas para doentes pulmonares incuráveis no anexo do Pisão, com o propósito, não apenas de separar os «dementes» e os tuberculosos da restante população da colónia e do próprio albergue da Mitra, bem como com o fim de «arranjar novas vagas» na sede:
«(...) o asilo de Dementes na Quinta do Pisão foi improvisado com os recursos de que se dispunha, com o fim não só de separar dementes da restante população de inválidos do asilo e do próprio albergue da Mitra e arranjar novas vagas neste (...) pela mesma razão já para ali foram igualmente ocupar duas dependências separadas, alguns tuberculosos incuráveis.»
219Expostos estão os dados que permitem acrescentar o doente mental à longa série de rostos internados no albergue distrital de mendicidade de Lisboa nas primeiras décadas da sua existência. Apesar deste «facto» não poder ser desligado das contradições e das limitações que marcaram a vida das instituições psiquiátricas portuguesas neste período, a ligação estreita da vadiagem e da mendicidade à alienação mental (e vice-versa) constituía uma constante nos discursos científicos da época.
220Com efeito, a partir de meados do século xix, o vadio e seus afins adquiriram a identidade de fenómeno patológico, nomeadamente, de «tarados», «degenerados», «doentes mentais» (sob as várias versões de «autómato ambulatório», «neurasténico», «histérico», «obsessivo», «psicopata», etc.). Importada para Portugal, a patologização da mendicidade e da vadiagem (extraordinariamente eficaz para afastar qualquer reflexão sobre as causas socioeconómicas de tais práticas) reflectia-se também nos discursos jurídicos, antropológicos, médicos, etc., sobre vadios e mendigos portugueses.
221Uma abordagem (mesmo que não exaustiva) dos autores estrangeiros referenciados entre nós, permite-nos, porventura, uma leitura mais rigorosa das teses reproduzidas em Portugal acerca da (nova) identidade (patológica, hereditária, degerenerada, psiquiátrica) da vadiagem e suas práticas afins (cf. capítulos seguintes).
222Uma das primeiras versões da equação vadio-doente mental foi construída por Charcot em 1888, sob a designação de «automatismo ambulatório», imagem que evocava bem a sintomatologia nuclear desta categoria nosológica: «repetição, monomania, regularidade inconsciente e monótona de gestos e comportamentos»235. Sob a expressão «dromomanie des dégénérés» (Régis, 1895; Pitres, 1896; Dubordieux, 1894) — um vocábulo substitutivo da noção de «automatismo ambulatório» mas condensando a mesma fenomenologia — ou sob a fórmula inicialmente forjada por Charcot, este equacionamento patológico da vadiagem era também reconhecido em Portugal. Por exemplo, L. Cebola, na sua obra sobre Psiquiatria Social (1931), descrevia os vagabundos como «dromómanos por fatalidade orgânica»236, enquanto que M. Simões dos Reis (1940), nos vários capítulos que consagrou às causas e às classificações patológicas (psiquiátricas) da vadiagem, preferia referir-se a um grupo de vadios por «vagabondage impulsif» ou «automatisme ambulatoire», o qual abrangia
«os indivíduos atingidos de imbecilidade doentia, nos quais a debilidade intelectual e da vontade os impede de permanecerem no mesmo lugar, como os vagabundos vulgarmente conhecidos por ‘trimardeurs’, que erram pelos campos, atraídos pela ociosidade, não obstante a sua miséria, no fundo pobres desequilibrados que, sendo geralmente incapazes de cometerem grandes crimes, transformam-se por vezes, arrastados por circunstâncias de ocasião, em verdadeiros bandidos, e os trabalhadores de profissão, capazes de actividade laboriosa, embora temporária, cujos incessantes deslocamentos através das cidades e das officinas, à primeira vista atribuídos a causas económicas e sociais, são devidos, na realidade, à irresistível necessidade que eles têm de beber, de se divertir, de mudar de existência e até de meio.»237
223e podia revestir três formas distintas, a epiléptica, a histérica e a neurasténica238.
224Interligada com a noção de degenerescência, a categoria do «automatismo ambulatório» permeara quase todos os trabalhos surgidos entre finais do século xix e princípios do século xx sobre a (nova) identidade patológica da vadiagem. Também referenciado por M. Simões dos Reis (1940: 47), Pagnier (1906, 1910) dava primazia à causalidade biológica (hereditária, degenerativa) na génese da vadiagem (muito embora fizesse intervir outros factores causais subsequentes de natureza moral, educacional e social propriamente dita), estabelecendo uma classificação patológica da qual ressaltava, como causa comum aos vários tipos, a degenerescência bem como a sintomatologia fundamental do «automatismo ambulatório» (filtrada talvez por conceitos mais psicológicos — a impulsividade, correspondente aos degenerados inferiores e médios, histéricos, etc., e a obsessão, mais própria dos degenerados superiores e dos neurasténicos).
« 1 — les psychoses des dégénérés (inférieurs, moyens, supéríeurs), des traumatisés, des intoxiques et infestés;
2 — les névroses, trois états correspondant d’aprés le caractère, de l'impulsion aux trois stades de la dégénérescence (comitiaux, hystériques et neurasthéniques) — eux-mêmes pris sur la même ligne que les trois catégories de dégénérés;
3 — les neuro-psychoses ou vésanies (manie, mélancolie, mysticisme), type le plus fréquent qui associe les deux états précedents. »239
225Parece ser também a própria sintomatologia do «automatismo ambulatório» que conduz o mesmo autor (1906) a convergir com as teses, adoptadas na época por algumas escolas de antropologia criminal, de que a vadiagem não era «senão uma regressão, um fenómeno de atavismo», «ao estado ancestral», à infância da humanidade (Florian e Cavaglieri, 1895):
« (...) il [vadio] rappelle chez certains individus le besoin de déplacement des hordes primitives, avec cette différence que le gibier dont il est en quête aujourd’hui est le gibier social. »240
226Recusadas por Simões dos Reis em 1940, as explicações atávicas e degenerativas sobre a vadiagem reaparecem acriticamente no trabalho de A. Mendes Correia, intitulado «Mendigos e Criminosos» e incluído na Nova Antropologia Criminal (1931)241. Impressionado pelo paralelismo existente na identidade dos processos determinantes da mendicidade e do crime, bem como pelas afinidades entre mendigos e criminosos, o autor (depois de salvaguardar a existência de diferentes tipos de mendigos) referia-se a um 3.° grupo, particularmente marcado pela «tara» e pela «degeneração»:
«O homicida por impulsão epileptóide não difere fundamentalmente, na estrutura orgânica, do caminheiro, do vagabundo sem eira nem beira, que impelido por uma tara constitucional, por uma nevrose larvada, corre mundo a esmolar. (...) Os dinamarquezes fundaram uma colónia de trabalho (...) para esses nómadas que, como dizia H. Berard, parecem obedecer “ao atavismo, ao remoto instinto que arrastava os povos primitivos através das estepes, das florestas, dos desertos, para povoar a terra (...)”.»242
227Mais citada pelos autores portugueses (cf. Simões dos Reis, 1940: 423; Navarro Soeiro, 1959: 164), a classificação de Marie e Meunier (1908) distinguia: 1. vagabundos acidentais; 2. vagabundos por razões económicas e temperamentais; 3. vagabundos místicos e fantasistas; 4. bem como vagabundos patológicos — nevropatas e psicopatas. Propondo, portanto, uma tipologia mais aberta e não concebendo o mendigo-vadio sempre como um doente mental, também Marie e Meunier não deixavam de sublinhar que uma grande maioria deles era atingida por perturbações mentais, enfatizando simultaneamente a importância do factor hereditário. Relativizada a noção de automatismo ambulatório, esta passou a corresponder apenas a um género particular (de nevropatas, histéricos, neurasténicos, etc.):
« L’automatisme ambulatoire peut être défini comme une impulsion à partir et à aller devant soi, dans un état variable d’obnulation de la conscience et sans but défini. Cet état se présente surtout chez les nevropathes : hystériques, neurasthéniques, épileptiques (...) »243
228Compatível com as noções de degenerescência e de automatismo ambulatório (pela regressão ao estado do puro reflexo, pela premência da actividade automática com perda da vontade voluntária), a história da patologização psiquiátrica da vadiagem privilegiava, ainda, uma outra versão — «doença da vontade». Igualmente referenciadas entre Portugal (explicita ou implicitamente), as teses de Benedikt (1890) e Géhin (1893) (só para citar as mais conhecidas) englobavam todos os tipos de vagabundagem na categoria nosológica de «neurastenia», interpretada como uma fraqueza da vontade.
229Sintonicamente, A. Mendes Correia, no trabalho já citado, (apesar de não utilizar a categoria psiquiátrica) descrevia uma vasta classe de mendigos (muito frequente nos albergues e casas de mendicidade) constituída por «abúlicos e inadaptados», «indiferentes, incapazes de uma iniciativa e de perserverança para ganhar a vida», trabalhando «com numerosas e prolongadas intermitências», «sem continuidade»244. Similarmente, T. Lopes Cardoso (1940), concluía que os menores do sexo masculino e feminino que se entregavam à vadiagem apresentavam déficites da vontade e uma extrema sugestionabilidade (relativamente aos «normais»), afirmando mesmo, no caso das prostitutas menores, a existência de um «amolecimento da vontade»245. Também nas descrições das «personalidades anormais psicopáticas» observadas por Navarro Soeiro numa amostra de 142 mendigos-vadios adultos sobressaíam os «abúlicos», caracterizados por «uma vontade frágil e influenciável» e por uma «inconstância do tónus temperamental em relação ao ambiente», bem como os «instáveis», manifestando desde novos «inquietação ou instabilidade ansiosa que os levava a fugas, a um impulso irreprimível de mudar de poiso»246.
230A evolução dos discursos psiquiátricos ao longo das primeiras décadas do século xx modificou algumas destas assimilações (introduzindo outras, como psicopatia, esquizofrenia, etc.)247. Contudo, o vadio-mendigo, também em Portugal, passara a ser, «sempre em princípio», para psiquiatras (e não só), «um fenómeno biológico, uma manifestação de anormalidade caracterológica ou de doença mental»248. E estamos em 1959...
231Que a doença mental «causasse» a vadiagem e a mendicidade ou que a elas estivessem mais predipostos indivíduos já enfermos de patologia psíquica (Vexliard, 1957: 81) — hipóteses cómodas para denegar outras determinantes socioeconómicas para o fenómeno, para justificar o seu internamento longe das vistas dos estrangeiros, para legitimar os insucessos regeneradores sob o rótulo da incurabilidade, etc. — não nos esclarece, contudo, sobre a admissão e a permanência de um número significativo de doentes mentais numa instituição policial, sem quaisquer preocupações de vigilância psiquiátrica. Outros factores contribuíram para a emergência de uma instituição pré-psiquiátrica no princípio do século em Portugal (cf. ponto 5.5.).
5.4.2. A prostituta e o homossexual
«Oh meu pai, meu querido pai,
Não fui eu só a culpada,
Era nova e não pensei,
Caí em falsa cilada.»249
«(...) foi sujeito à medida de segurança de internamento, por se entregar à vadiagem e à prática de vícios contra a natureza.»250
232Reafirmando a equiparação do mendigo simulador, do proxeneta, do homossexual, do reincidente em crimes dolosos ao vadio, o decreto-lei n.o 35 042, de 1945, estendia-a, ainda, à prostituta de escândalo público ou desobediente às prescrições policiais, aos que mantinham casas de prostituição e subvertiam repetidamente os regulamentos policiais, bem como aos que excitassem habitualmente a depravação e a corrupção de menores ou aos que se dedicassem ao aliciamento da prostituição. Os intermediários na venda de objectos furtados e os condenados «por crimes de associação de malfeitores, quadrilha ou bando organizado» constituíam, de igual modo, novas figuras assimiladas ao vadio. Para todos estes «estados de perigosidade» estabeleciam-se análogas medidas de segurança: caução de boa conduta, liberdade vigiada, internamento em casa de trabalho ou colónia agrícola, estando a sua atribuição dependente dos tribunais de Execução de Penas, criados também em 1945.
233Muito embora a assimilação da prostituição clandestina e/ou subversiva às prescrições policiais à vadiagem datasse, legalmente, de meados dos anos quarenta, as homologias tecidas entre a «mulher pública» e o vadio-mendigo são encontráveis em múltiplos discursos (moralistas, antropológicos, médicos, etc.) produzidos nas décadas anteriores. Traços tais como mobilidade e instabilidade, intimidade com o espaço da rua, ociosidade, impureza moral e contaminação, sacrifício dos valores de honra e vergonha, ligação ao tempo do imediato e à satisfação momentânea do desejo, uso de uma certa teatralidade manipulando a aparência e o truque em seu benefício, que constituíam os critérios principais da construção salazarista do vadio-mendigo como «estado de perigosidade social», enquanto alteridade poluente, nódoa e chaga do corpo social, eram constantemente atribuídos à prostituta (sobretudo à clandestina) pelo menos desde a segunda metade do século xix. Concomitantemente, noutras fontes, a prostituta participava ainda, tal como o vadio-mendigo, de uma certa fraqueza hereditária, partilhava com ele o «estigma da degenerescência» e o diagnóstico de «loucura moral», bem como uma ligação estreita à primitividade selvagem.
234Francisco Ignacio Santos Cruz (1841), num trabalho exaustivo sobre a prostituição na cidade de Lisboa cujo propósito residia na apresentação de medidas para «obstar à propagação» desse «terrível veneno» (vírus venereo), no interior de um capítulo consagrado aos costumes e hábitos das prostitutas, caracterizava-as como «sumamente volúveis e inconstantes», possuindo quer «uma extrema mobilidade de espírito», quer um «carácter volúvel» que «as obriga a estarem sempre a mudar de casa» a passarem a sua «debochada vida» em «contínuas mudanças»251. Ultrapassando em movimento, inconstância e volubilidade as prostitutas (sedentárias) das casas públicas (bem como as próprias donas das casas, também elas ditas muito móveis)252, a clandestina encarnava, por excelência, a mobilidade (não apenas espiritual e relacional como a decorrente do modo como exercia a prostituição, percorrendo, geralmente de noite, algumas das ruas e praças das cidades e lugares) e, nesse sentido, surgia (até formalmente) equiparada à vadiagem quando designada de «vagabunda pela rua»253.
235Não obstante em trabalhos posteriores a dimensão espacial da mobilidade da prostituta nos apareça menos acentuada — para subsequentemente, com o encerramento progressivo das casas de toleradas e proibição de novas inscrições nos registos policiais, ressurgir sob formas mais sofisticadas do que o «racolage sur le trottoir» ou a passagem sazonal pelas feiras e arraiais (cf. Machado Pais, 1985) — no que respeita à sua mobilidade psicológica ou caracterial, os autores acordavam entre si. Por exemplo, A. Tovar de Lemos, em 1908, afirmava lapidarmente: «pode-se resumir o modo de ser psychológico da prostituta, caracterizando-o pela mobilidade e constraste de ideias, sentimentos, afecções, instintos e actos»254. Tal concepção, perdurando no tempo, integrou nomeadamente as várias edições «muito melhoradas» do manual de Egas Moniz, sobre a vida sexual:
«Sob o ponto de vista psico-biológico, as prostitutas apresentam ainda certos caracteres típicos que lhes são comuns e lhes dão uma fisionomia moral que as distingue das outras mulheres. É notável a sua mobilidade de carácter. É quase impossível fazer-lhes seguir um raciocínio, donde lhes vem a inconsciência completa no que diz respeito ao seu futuro.»255
236Tão pujantes como o traço da mobilidade caracterial, a ociosidade, a preguiça e a sedução pelo luxo constituíam uma tríade frequentemente reeditada nos discursos sobre a prostituição. Nas palavras de Santos Cruz (1841), em geral as prostitutas abandonam-se a uma «perpétua ociosidade»256; similarmente, Armando Gião (1891), ao distinguir causas intrínsecas e extrínsecas da prostituição, refere entre as primeiras a preguiça «natural ou adquirida»257; segundo Francisco Pereira d’Azevedo (1864), as causas da prostituição são múltiplas mas, numa recapitulação sucinta, entre outros elementos (como a «miséria» e a «carência de ilustração») lista a «preguiça» e o «luxo»258; também para Angêlo da Fonseca (1902), o «luxo» faz parte do vasto leque de causas da prostituição («vícios extravangantes», «perversão moral», «violações», «pequenos ordenados dos maridos», etc.)259; numa perspectiva mais reducionista, Fernando Schwalback (1912) elege convictamente a «ambição pelo luxo» (e o «vício baixo») como as únicas causas que arrastam «criadinhas» e «costureirinhas» para os «antros do vício» e «da imundície»260; «ociosidade» e «preguiça» emergem igualmente como traços distintivos das prostitutas nos trabalhos de A. Tovar de Lemos (1908) e Egas Moniz (1922). Nas décadas seguintes, reencontramos semelhantes conceptualizações, nomeadamente em estudos sobre a prostituição que se consideram «sérios», «conscienciosos» e «verdadeiros» como o publicado por José Crespo, em 1944: «Não é a miséria que devemos culpar, mas sim a preguiça, o amor do luxo, o desejo de vida fácil.»261
237Indissociável desta mobilidade, ociosidade, preguiça e «desejo de vida fácil», os discursos sobre a psicologia da prostituta acrescentavam ainda a imprevidência, a recusa em pensar o futuro (pela poupança por exemplo), uma gestão dominada pelo primado do princípio do prazer e do agora: «A mentira é frequentíssima, inconsciente muitas vezes. Ávida de sensações e espéctaculos novos, d’uma imprevidência excessiva, para ella tudo se limita a hoje, o amanhã não existe.»262
238Eis-nos, em simultâneo, perante um traço também ele fortemente repetitivo no seio dos discursos sobre a prostituição o qual deixa entrever novos pontos de comunhão entre a meretriz e o vadio (sobretudo na sua faceta de mendigo simulador). As palavras de Santos Cruz em nada se modificam várias décadas passadas: «de ordinário mentirosas», «coléricas» «muito fingidas e dissimuladas»263 em meados do século xix, as prostitutas do princípio deste século continuam a ser descritas como «mentirosas» por natureza, «egoístas», «facilmente encolerizáveis»264. Tal como o mendigo teatral, especialista da ilusão e da metamorfose, contrariava as identidades estabelecidas (transfigurando o novo em velho, o são em doente, o ser completo em estropiado, etc.), a prostituta evocava também, nos discursos da epóca, a consubstancialidade de contrários ou a sua alternância rápida. «Naturalmente contraditória(s)»265, eram referidas «ora ternas e sentimentais, ora bruscas e bulhentas, ora amorosas e excessivamente sensuais»266, ora «carinhosa(s) para os filhos» ora «desmazelada(s), chegando a praticar actos obscenos na sua presença»267 ou a prostituir as próprias filhas268, etc. Por fim, a clandestina, que superava em simulação e astúcia todos os restantes rostos da prostituição, esclarece-nos bem os critérios subjacentes à equiparação à vadiagem.
«A prostituição clandestina admite muitos disfarces, ela se cobre com a capa alegórica de uma infinidade de ocupações que só servem para ocultar os vícios e deboches daquelas pessoas que fingem ao público exercê-las. É assaz curioso ver assim entre nós (...) as astúcias de que usam estas mulheres para encobrir a prostituição clandestina; pois que elas se intitulam parteiras e trazem consigo raparigas a quem chamam suas ajudantes; põem à porta letreiros e se dizem inculcadeiras de criadas; se inculcam mestras de desenho, de bordar, de música, etc.; intitulam-se engomadeiras, lavadeiras, costureiras, etc. (,..).»269
239Errante como um vagabundo, especialista da mentira e da metamorfose identitária como o mendigo profissional, a prostituta clandestina quase excedia o vadio em impureza e contaminação, traços fundamentais na construção do seu estatuto de «estado de perigosidade social». Em primeiro lugar, ela substanciava a ameaça de contágio biológico: a «vagabunda pelas ruas», sem se sujeitar às visitas sanitárias, sendo infectada, constituía o veículo principal da propagação do vírus venéreo pelo seu «coito impuro»270; entre as causas do incremento da sífilis, que atingia números assustadores271 — cerca de 10% da população, 600 000 pessoas em 1940272 — a prostituição que se evadia aos regulamentos policiais e sanitários era identificada como o factor mais nocivo273.
240Contudo, nem só a ameça de contaminação biológica pesava sobre a clandestina. Num tom igualmente obsessivo, ela configurava, paralelamente, a impureza e o poder de contaminação moral do «bom português», de sedução maléfica do outro, ainda são mas «facilmente» corruptível, na direcção da perda da sua identidade, «honesta», «inocente», «inexperiente» ou «honrada». As palavras de Santos Cruz precedem algumas décadas os discursos da polícia de costumes do Estado Novo acerca da acção repressiva sobre a prostituição clandestina — as «vagabundas pelas ruas» (até de dia) «provocam e incitam os homens à devassidão e deboche» e «pelas suas acções indecentes, palavras obscenas e gestos insinuantes seduzem facilmente e excitam à devassidão a mocidade incauta e inexperiente»; para além de escandalizarem «os ouvidos das famílias honradas», da «casada», da «donzela», da «viúva», enfim de «toda a gente decente», «põem em prática, com suas astúcias e insinuantes palavras, a sedução das filhas honestas», «têm causado a perda de muitas donzelas que arrebatam aos mesmos vícios e às mesmas enfermidades; a umas com seus exemplos, e à maior parte com a sedução»274. Entre as suas múltiplas funções, atalhando a prostituição clandestina e «escandalosa», afastando os jovens da «degradação e do vício», o guarda da P.S.P. defendia a «ordem», a «moral pública», os «bons costumes» e limitava «os delitos contra a honra»275.
241Sacrificando os códigos de honra prescritos à mulher pelo projecto sócio-político salazarista — a fixação à terra natal, a casa, a família, as tarefas do lar, o papel de esposa e de mãe, a felicidade pela renúncia, a repressão da sexualidade276 — na medida em que abandonava, tantas vezes, a casa paterna em direcção aos grandes centros urbanos277, não enveredava por um projecto matrimonial e maternal sancionado pelo regime e não mantinha uma ligação de exclusidade com o lar, uma vez que rompia com o princípio da divisão sexual do trabalho278 e, sobretudo, quando usava justamente a sexualidade como um modo de vida encontrando na rua as condições do seu exercício, a clandestina ameaçava, por acréscimo, contaminar a raça portuguesa, manchar a pureza frágil da donzela e da mocidade inexperiente, metamorfosear o homem honrado e cabeça de família num ser debochado e sifilítico. Era, por isso, definida como uma personalidade nociva ou estado de perigosidade, equiparada ao vadio e enclausurada através de um conjunto de medidas consideradas regenerativas e preventivas em estabelecimentos determinados e, nomeadamente, na Mitra.
242Corporizando os «perigos» de contaminação biológica e moral do «bom português», ela evocava, contudo, a própria natureza íntima do feminino, quando não educado no sentimento, na vontade e na moral. As preocupações dos autores da época com a formação da mulher, a ênfase na necessidade da sua educação pela razão e pela norma, pois era tido que a «a donzela se deixa arrastar pelo sentimento»279 e pelo capricho, a importância de «criar-lhe hábitos através de esforços quotidianos»280 de molde a «combater a moleza, a tendência à vida sem dificuldades»281, o controlo da sua sexualidade (apenas permitida em caso de casamento e com o propósito reprodutor), a contenção vigilante dos seus caprichos (pois se a ««menina» fôr deixada ao sabor dos seus caprichos (...) se formarão óptimas amantes, más Esposas e péssimas Mães»282), revelam-nos, em simultâneo, uma imagem da natureza feminina — caprichosa, sentimental, inconstante, mole, preguiçosa, tendente à facilidade, etc., — reproduzida nos discursos sobre o «ser psicológico» da prostituta. No horizonte subjacente a esta representação da mulher reencontramos também a imagem do vadio e do seu homólogo feminino, a meretriz de rua; à série de rituais sacrificiais (purificadores e regeneradores) que o Estado Novo chamou a si, haveria ainda que acrescentar, latententemente, o da própria natureza feminina (potencialmente mais «vagabunda» que a masculina).
243Mas as homologias explícitas ou implícitas entre a prostituta e o vadio não se confinam aos estudos «sociológicos» da época. Uma passagem, ainda que breve, pelos trabalhos de antropologia criminal e de psico-fisiologia comparada da prostituta e da mulher honesta que mais marcaram o discurso sobre a prostituição de algumas elites portuguesas prometem-nos novos pontos de comunhão entre estes dois personagens.
244Tal com o vadio, a prostituta surge, na grande maioria dos discursos psiquiátricos, neurológicos e antropológicos, compreendidos entre finais do século xix e princípios do século xx, como um ser anormal, de hereditariedade mórbida, degenerado, doente mental. A. Corbin (1978) resume bem esta tese, defendida sobretudo pelas escolas de antropologia criminal encabeçadas por Pauline Tarnowsky na Rússia, Ferrigani, Lombroso e Ferrero, na Itália:
« La prostitutée-née est un être incomplet, qui a subi des arrêts dans son développement, qui est victime d’'une hérédité morbide et qui présente des signes de dégénérescence physique e psychique en rapport avec son évolution imparfaite. La prostitution est à la femme ce que le crime est à l’homme : le résultat de la dégénérescence, voire de la régression. Dans le domaine psychique, la prostituée-née, à laquelle correspond dans le monde l'épouse aus adultères multiples ou repetés, est victime d’une « folie morale ». Au total, les stigmates de la dégénérescence font d’elle un être beaucoup plus eloigné de la femme honnête que ne l'est, par exemple, la voleuse. »283
245Por acréscimo, revelando abundantes estigmas de degenerescência nas observações antropométricas, a prostituta era aparentada à mulher selvagem, primitiva, e, por sua vez, (tal como aquela) pensada como mais próxima do macho do que a mulher honesta. Três características essenciais justificavam, aos olhos desta escola, as equiparações anteriores: a) gordura, resultante de um tamanho inferior e de um peso superior às mulheres honestas, e coxas mais grossas; b) uma fisionomia mais viril resultante do desenvolvimento do sistema piloso sobretudo na área dos órgãos sexuais e a frequência de vozes viris em consequência da grossura excessiva das cordas vocais; c) a abundância de tatuagens. Convergentemente, a fisiobiologia corroborava os resultados antropométricos enfatizando novos estigmas de degenerescência, nomeadamente a precocidade da prostituta (na menstruação, na desfloração, etc.). Também do ponto de vista psicológico se «demonstrava» a degenerescência da prostituta, cujo estigma principal residia na sua «falta de pudor» (ao qual se somavam a voracidade, a atracção pela ociosidade, a paixão pela dança, a propensão à mentira, bem como o espírito religioso), falta de pudor esta que constituía o sintoma nuclear do diagnóstico que lhe era dado — «loucura moral»284.
246Também em Portugal, no princípio do século xx, A. Tovar de Lemos, no seu estudo sobre a prostituta portuguesa, inspirado no trabalho de P. Tarnowsky285 e no de Lombroso e Ferrero286 e baseado em medições antropométricas e observações morfológicas de 267 mulheres com mais de 19 anos e com dois anos de matrícula, chegava a conclusões semelhantes, estabelecendo convictamente o primado de uma predisposição temperamental individual (e inata) na génese da prostituição (a disposição especial para ser impressionada pelo mau exemplo, de ser seduzida pelo luxo e pelo descanso, a impassividade perante determinados factos, etc.) predisposição esta que, sob a influência de meios coadjuvantes, levava à conduta prostitucional.
«As filhas das classes pobres, em geral, nascem taradas. De paes alcoólicos, syphiliticos e tuberculosos, esse fructo da má sociedade, traz em si a disposição especial para ser impressionada pela imagem do mau exemplo que a má companhia reflecte. A precocidade no abandono das filhas e convívio na maior promiscuidade em officinas, ateliers, e mais logares, onde a moral não costuma fazer grandes permanencias, as deslocações e as rápidas mudanças de meio, passando d’aquelle onde foram creadas e viviam, para outro, onde a educação é diferente; as seducções e tentações em que a mulher póde ter crença na sua ingenuidade de ignorante, a ambição do luxo e do descanço, uma gravidez, producto d’um instante mal pensado, tudo isto são factores que pódem cortar o fio que rendem a mulher à vida honesta e que afarão cair no fundo do abysmo (...).»287
247Ao encontrar que cerca de 80% das prostitutas observadas possuíam um ou mais estigmas de degenerescência, Tovar de Lemos (1908) «provava» assim que aquelas mulheres tinham um «fundo especial próprio», obedeciam ao fatalismo da hereditariedade, eram prostitutas-natas. Tal como nos trabalhos da escola de antropologia criminal em voga, a «physionomia viril» e as «tatuagens» eram apontados como estigmas de degenerescência, bem como as «práticas lesbias» (degenerativos funcionais), o que nos remetia também para a associação regressiva da prostituta à mulher selvagem, primitiva, (pela sua virilidade, tatuagens, etc.) assim como para aquela «tendência ao retorno atávico para o período do hermafroiditismo» (evocada pela sua masculinidade e «tribadismo»), defendida por Lombroso288. Completando a caracterização da prostituta portuguesa como um ser degenerado, Tovar de Lemos retomava ainda o estereótipo frequentemente utilizado nos discursos (psiquiátricos, neurológicos, antropológicos, etc.) do século xix289, ou seja, o da frequência de alienação mental «num número maior do que se suppõe» entre as prostitutas, atribuindo esse «estado às violentissimas e desenfreadas paixões a que estão sujeitas n’essa vida»290.
248Muito embora os trabalhos da escola antropológica criminal tenham sofrido severas críticas291, as teses de Lombroso e Ferrero e de Tarnowsky continuaram a influenciar entre nós os discursos médicos sobre a prostituta. Egas Moniz (1922), por exemplo, acentuava também a sua dimensão anormal, hereditária, degenerada e de «louca moral»:
«As estatísticas e os factos parecem demonstrar que há prostitutas natas, como há criminosos natos. Esta ideia, que é expressa por Lombroso e Ferrero num dos seus volumes, é uma verdade que deve ser tomada sem exagero. (...). Sei bem que as causas da prostituição são múltiplas e variadas, tais como: a má educação, o contágio do exemplo, os atractivos, a falta de trabalho, a preguiça, a necessidade do luxo, etc. mas não é menos certo que em outros casos a prostituição se nos apresenta como um derivativo da criminalidade e certas prostitutas são degeneradas e loucas morais.»292
249A par de tais discursos, o movimento abolicionista, que se desenvolve mais intensamente entre nós em meados da década de vinte, reunindo organizações moralistas dominadas pela «obsessão da repressão sexual» bem como grupos anarquistas293, e cuja actividade visava reprimir a prostituição (revogando os seus regulamentos, encerrando casas de tolerância, perseguindo os «souteneurs», os «caftens» e as proxenetas, etc.) e, em simultâneo, a tomada de directrizes preventivas (de educação física, moral e intelectual da mulher), dilatava o leque das causas da prostituição em fisiológicas (orgânicas e hereditárias), mesológicas, económicas e sociais. Arnaldo Brazão, em 1928, preocupado com o aumento da prostituição infantil, não obstante equacionasse causas constitucionais e uma «hereditariedade tirana», afirmava serem os factores económicos («má distribuição da riqueza», «má organização do trabalho», «salários de fome», «falta de educação», etc.) as «principais» causas que atiram as crianças para o «vício»294.
250Também A. Tovar de Lemos, mais distante da obsessão biológica e degenerativa de 1908, sublinhando que a passagem do regime regulamentista ao sistema abolicionista295 ao concorrer para a diminuição do número de toleradas pouco influiu na diminuição do quantitativo de prostitutas e, pelo contrário, lançou muitas mulheres para a rua e para a clandestinidade296, salientava o «fundo económico» do problema, indispensável à sua resolução297, bem como as novas estratégias que a vagabunda de rua (ou a tolerada que passou a clandestina) actualizavam para iludir a Polícia de costumes.
«(...) as antigas casas onde as raparigas viviam em comum tendem a desaparecer, a racolage mesmo nas ruas, a mais primitiva, também a polícia de costumes vai extinguindo, mas os bars vão abrindo, com suas frequentadoras certas, desregradas raparigas que se ocultam sob os aspectos mais diversos. Especializadas manicures, salões de modas e alta costura, centros de procura e rendez-vous, salões de chá com dança e sem dança já servem para iniciações irregulares. Já os táxis servem para a caça ao homem, e a modalidade que agora mais está sendo aproveitada é a que o tráfico cada vez maior das estradas dá ensejo a criar, a passagem certa da camioneta, que vem substituir entre nós a mulher que procurava no Borda d’Água as feiras e se deslocava, instalando-se nas várias terras, nesses períodos. (...). A prostituição clandestina sendo um problema social assenta todo ele no fundo económico, e sem melhorar o problema económico pouco se conseguirá sob o aspecto social.»298
251Em meados da década de quarenta, nas vésperas da equiparação legal da meretriz subversiva aos regulamentos policiais ao vadio, e coexistindo com conceptualizações que contrariavam explicita ou implicitamente uma exclusiva causalidade endógena da prostituição, as teses sobre o primado dos factores individuais na génese do meretrício, a sua patologia degenerativa e psiquiátrica continuavam a ser «validadas» nos trabalhos sobre esta temática:
«A prostituição obedece, sobretudo, a um factor individual, com influência evidente de um factor familiar, que actua quási sempre como causa secundária. É um mal social que tem a sua origem não na família nem na sociedade, mas no próprio indivíduo e é sobre a prostituta em primeiro lugar e principalmente que devemos actuar para o combater por uma adequada higiene física, intelectual, moral e espiritual.»299
«(...) vemos que as causas determinantes são sempre dominadas por um factor individual, inerente ao temperamento da prostituta, de natureza psicológica ou psiquiátrica. (...) Toda a prostituta profissional é uma anormal de inteligência, da afectividade ou do carácter. Encontravam-se com frequência estigmas de degenerescência. São atrazadas mentais. O senso moral está obliterado. Não teem o sentimento nem o instinto da maternidade. São quasi sempre estéreis e sexualmente precoces, depravadas ou insensíveis.»300
252Quer no projecto regulamentarista de isolamento, sedentarização e marginalização das prostitutas em «reservas» de fronteiras bem delimitadas onde não provocassem a confusão entre as mulheres «decentes» e as das «má vida», não perturbassem ou contaminassem os «bons costumes», associado à sua purificação vigilante uma vez que se lhes reconhecia uma «função social»301, quer no projecto abolicionista no qual qualquer sexualidade extraconjugal era condenada, qualquer «cópula bestial e realizada ao acaso» (mesmo nas casas de toleradas sujeitas a visitas sanitárias) era combatida como um «grande e terrível flagelo social»302, a prostituta conservava o seu parentesco com o vadio (e assimilados)303. Que sobre ela tivesse recaído, porventura, um tratamento diferenciado ou mais tolerante (pelo menos até 1945) do que aquele instaurado na década de trinta a vadios e mendigos, dever-se-á, eventualmente, ao facto da «função social» da prostituição estar ainda bem enraizada entre as autoridades públicas.
253Já nos quotidianos e representações populares a tolerância para com a prostituição perdurou (aumentando mesmo em tempos de crise), repercutindo-se nomeadamente na falta de solidariedade por parte do público em relação à secção da polícia de costumes. Matrículas de muitas menores, encontrando-se «mesmo raparigas inscritas de 11, 12 e 13 anos de idade»304, «consentimento plácido da polícia» a «megeras» que exageravam o preço dos quartos alugados defendendo-se que «a polícia autoriza aqueles preços porque come metade da importância»305, «multas a torto e a direito para a polícia», «oposição da polícia à regeneração» (de moças que pretendiam retirar a matrícula) por «interesses inconfessáveis», falta de uniformidade nas detenções e nas multas por «conivência da polícia», fechos de olhos interessados, matrículas coercitivas306, etc., constituíam alguns indicadores da insatisfação popular face ao trabalho da polícia de costumes e sanitária.
254Os próprios relatórios da P.S.P. e as entrevistas realizadas com antigos guardas da secção de costumes referiam-se a esta falta de solidariedade do público para com a repressão à prostituição. Se, «em tempos de paz», tantas vezes o passante ou o habitante do bairro onde a meretriz de rua angariava clientes a protegia (escondendo-a na loja, na leitaria, etc.) ou a avisava da proximidade da «Ramona», em situação de agravamento das condições de vida, as detenções de clandestinas (bem como de mendigos) provocavam facilmente «aglomerações, gritos, imprecações»307, cortejos atrás dos detidos até às esquadras ao longo dos quais os comentários sobre a «crueldade policial» ou sobre os «interesses inconfessáveis da polícia» eram uma constante. À solidariedade civil, somava-se também, frequentemente, a de marinheiros e de soldados.
«As clandestinas eram as mais perseguidas pela polícia. As que estavam matriculadas e cumpriam os regulamentos e exames sanitários estavam autorizadas. Havia a polícia de costumes e sanidade que dependia do Comando da P.S.P. e que fazia as fiscalizações às casas (...). As clandestinas trabalhavam na rua onde faziam as suas conquistas e depois levavam-nos para as pensões. Elas exerciam o ofício muitas vezes no próprio bairro ou em ruas onde existiam casas de matriculadas, as chamadas casas de toleradas. (...) As prostitutas não eram seres estranhos em certas zonas da cidade. Eram ruas inteiras, em Alfama, na Mouraria, na Baixa, no Bairro Alto e os seus moradores já sabiam. E quando uma delas pedia ajuda, havia sempre uma porta que se abria, casas particulares, comércios, uma leitaria... Muitos dos que passavam avisavam «Vem aí a Ramona». Outros, isto há trinta, quarenta anos, davam-lhes boleia e deixavam-nas na rua de cima. A uma mulher que pede ajuda não se recusa. E eu até percebo isto. Sou polícia mas também sou homem.»308
«No dia (...) do mês de (...) de 1944, pelas 19.30 horas, de serviço na estação de (...), quando juntamente com o guarda de Segurança n.o(...) procedi à captura de três mulheres que exercem a prostituição clandestina (...) sendo elas (...); depois de as conduzir-mos ao Posto da polícia (...) depois de identificadas, o guarda n.o (...), tomou conta das duas primeiras mencionadas, enquanto eu fiquei com a terceira, apagando as luzes do referido posto e fechando a porta. Como no acto da captura das referidas mulheres se encontrasse no Hall da estação numerosos grupos de soldados, os mesmos combinaram-se todos e quando o referido guarda (...) se dirigia para a 1.a esquadra, com as duas capturadas, logo à saída do posto, deparou com um enorme grupo de soldados, que lhe tentaram tirar uma das capturadas (...) surgiram-lhe mais uns três grupos, que deviam ser mais de 50 soldados (...) que procuraram metê-lo no meio deles e armar a confusão, tendo-se as capturadas posto em fuga (...). Como eu tivesse que ficar um pouco para traz, pelas razões que já atraz me refiro, com a terceira capturada e no meio daquela confusão, perdi de vista o guarda (...), e procurando ver se conseguia descobri-lo (...) a capturada que eu acompanhava, aproveitou a minha distracção e desapareceu-me no meio de outro grupo de soldados (...).»309
255O leque de personagens assimilados à vadiagem em 1945 confronta-nos, ainda, com a figura da proxeneta desobediente repetidamente às prescrições regulamentares e policiais. Sem procurarmos ser exaustivos, também no interior das representações produzidas sobre esta figura quotidiana (a «velha alcoviteira», «dona», «patroa», «tia», etc.) a partir de meados do século xix se estabelecem implicitamente pontos de comunhão com a construção da figura do vadio (e seus afins) enquanto «estados de perigosidade social».
256Em primeiro lugar, entre nós, ao virar do século, a maioria das «donas das casas» haviam sido prostitutas antes de exercerem o seu novo «ofício»310; concomitantemente, a literatura da época insistia em atribuir-lhes traços caracteriais em tudo muito semelhantes aos projectados sobre o vadio e sobre o seu homólogo feminino, a meretriz de rua. Elas eram, assim, similarmente caracterizadas pela sua contínua mobilidade e inconstância311, bem como pela astúcia e pelas artes simulatórias que utilizavam no recrutamento das mulheres312. Ardilosas (como a clandestina ou como o mendigo profissional), surgiam, paralelamente, como um perigo grave para a saúde pública quando geriam casas de toleradas em contravenção com as normas sanitárias e enquanto agentes (movidos pela «avareza» e pelo «cálculo»313) de contaminação moral de muitas moças puras, inocentes ou ingénuas — geralmente «criadas de servir», «vendedoras de alguns géneros pela cidade», «saloias dos arrabaldes», recém-chegadas da província314.
257Por tudo isto, e num contexto de limitação, de encerramento e de maior vigilância sobre as casas de toleradas e suas donas, de sofisticação progressiva das práticas de recrutamento de prostitutas (cf. Machado Pais, 1985: 76-77), de proibição de novas matrículas, também a velha meretriz, feita «alcoviteira» ou «patroa», passou a engrossar as rusgas da polícia, a partilhar com os restantes rostos do vadio (alguns, aliás, seus conhecidos) os espaços institucionais da repressão à mendicidade e à vadiagem.
*
258Considerado e punido como vadio (nos termos do art. 256 do Código Penal) por decreto de 15 de Dezembro de 1894 e pela lei de 20 de Julho de 1912, o «chulo» ou o «rufião», ou seja, todo aquele que vivia «total ou parcialmente a expensas de mulher prostituída», continuou a integrar (de acordo com o art. 22 do decreto n.o 35 042 de 20 de Outubro de 1945) os múltiplos rostos da vadiagem. Modificado com o virar do século (de «marido complacente» e «guarda-costas» para «ocasiões críticas» a explorador intencionado)315, o chulo contradizia todos os valores de honra e vergonha prescritos a um homem, reenfatizados pelo projecto salazarista (o trabalho honesto, o sustento da mulher e dos filhos, uma reputação honrada mantida pela concentração conjugal da mulher e pela pureza das filhas, etc.).
«Aqueles que por qualquer meio fomentassem a prostituição ou vivessem a expensas da exploração do corpo do outro também eram considerados vadios e iam para a Mitra. Ah, mas essa gente, era muito habilidosa. (...). A polícia de costumes, para além de perseguir a meretriz de rua e de escândalo público, os chulos, certas donas, também detinha os homossexuais masculinos. Antigamente, havia aqueles sanitários públicos, os urinóis, no Rossio, no largo da Anunciada, no Cais do Sodré, no Campo Pequeno (...) Eram homens, pederastas, que iam para os mictórios fazer as suas conquistas. Também eram equiparados a vadios e iam para o Pisão.»316
259Tal como a prostituta ou a proxeneta desobedientes às prescrições policiais e sanitárias e como o chulo, o homossexual masculino, isto é, aquele que se entregava a «vícios contra natura» (lei de 20.7.1912), constava também dessa longa lista de figuras assimiladas à vadiagem. De um modo diferente do rufião, o homossexual subvertia igualmente os valores de honra masculinos, confundia as identidades de género, perturbava os códigos que geriam as relações entre os dois sexos, recusava a instituição familiar — pilar do Estado Novo. Todavia, ao contrário da prostituta (concebida como «louca moral», «degenerada», regredida a uma primitividade selvagem), os «actos contra a natureza» do homossexual eram menos, segundo a perspectiva médica, o resultado de uma hereditariedade mórbida mas, sobretudo, o produto de «episódios de educação», de «contágio moral» por «maus exemplos», de «privações de relações sexuais com mulheres», do «temor da gravidez», do «receio da impotência», do «medo das doenças venéreas», etc.317. Passivo ou na versão «arrebenta» (como era habitual dizer-se na gíria), o homossexual punha assim em causa a ordem social e moral preconizada e, nesse sentido, era concebido como um «estado de perigosidade».
260Com efeito, tal como acontecia com a meretriz de rua, a proxeneta desobediente ou com o rufião, temos notícia de que alguns indivíduos registados como homossexuais entravam administrativamente no albergue da Mitra ou, noutros casos, eram internados por sentença do Tribunal de Execução de Penas:
«Este recluso por sentença proferida neste Tribunal, de 15 de Julho de 1949, foi sujeito à medida de segurança de internamento, por se entregar à vadiagem e à prática de vícios contra a natureza.»
Referente a A..., 53 anos, natural da Freguesia de Santa Justa, em Lisboa, empregado de comércio, internado em 1949.
«Trata-se de um pederasta. Segue para a colónia do Pisão para amansar.»
Referente a J..., 37 anos, natural de Coimbra, transferido em 1947 para a Casa de Trabalho do Pisão.
261M..., natural de Viseu, descreve-nos como em 1949, contactou com o universo amontoado na Mitra, em nome da defesa dos bons costumes, pelas rusgas da P.S.P.:
«Estava a falar com um senhor perto das casas de banho do Rossio e ele disse-me para ir a casa dele. Veio a polícia. Ou pagas tanto ou calabouço. Eram os «arrebenta» (...) intimidavam as pessoas quando era a repressão dos costumes. (...) Outra vingança que eles faziam quando nós não pagávamos ou não lhes dávamos o ouro era irem para a terra ou para a família dizer fulano é «isto». Foi isso que me transtornou fisicamente e moralmente. Nunca mais me reconciliei com a família.»
M..., 61 anos, natural de Viseu, internado em 1949.
262Também no que respeitava às actividades das brigadas da polícia de costumes cuja missão era a «perseguição do cada vez maior número de pederastas» que faziam «dos mictórios públicos e de outros locais, campos de acção para as suas conquistas»318, a solidariedade do vulgo surge-nos, pelo menos, como questionável. A ambiguidade que ressalta do testemunho anterior, nomeadamente, sobre quem dramatizaria o papel de «arrebenta» («malfeitores» civis ou alguns membros da própria polícia) reaparece noutras fontes (obviamente desautorizadas ou negadas pela Secção de Costumes):
«Senhor Ministro:
(...)
Como V. Exa. certamente deve saber existe uma Polícia intitulada de costumes a qual é dirigida pelo Sr. Capitão Carlos Alberto Godinho.
Essa Polícia só merecia louvores se a sua missão fôsse cumprida com a noção de bôa justiça e rectidão. Mas, infelizmente, não é assim.
Não sei se quem a dirige disso tem conhecimento, mas o que não resta dúvida é que os factos dão-se.
Senhor Ministro: Posso assegurar a V. Exa que os agentes que compõem essa Polícia são constituídos na sua maior parte, por autênticos malfeitores e escrocs. Roubam, vexam e maltratam barbaramente pessoas de bem, que acusam injustamente de actos que não praticam. E quando não recebem, das suas vitimas, grandes quantias espancam-nas barbaramente, na via pública ou nas escadas, e prendem-nas. Em contra-partida dão o braço a pessoas da pior espécie.»319
«Exmo. Senhor Comandante da Polícia de Segurança Pública
(...)
Já por algumas vezes tenho visto que, na minha escada e nas destas proximidades são barbaramente espancados por indivíduos que depois constatei serem guardas da Polícia que V. Exa comanda, diversos homens velhos e novos.
Porque causam repulsa esses lamentáveis factos, impróprios de uma artéria das mais concorridas, quiz tomar conhecimento das razões que os motivavam. E, por mais de um dos moradores da referida Rua vim a saber que essas pessoas praticavam não sei onde, actos imorais. Mais vim a saber que bastantes pessoas têm sido vexadas, e que algumas delas são dignas de todo o respeito. Ainda mais verifiquei que, quando têm ensejo, esses guardas, recebem quantias avultadas para perdoarem faltas que, muitas vezes, não existem,»320
*
263Nesta acidentada viagem noctuma — da taberna bulhenta ao bordel e ao urinol, transitando pela esquadra mais próxima, pelos calabouços do governo civil, findando ao nascer do dia junto dos portões verdes da Mitra — reencontravam-se «vagabundas», «meretrizes de escândalo público», «rufiões», «chulos», «proxenetas», homossexuais e «arrebentas», outras tantas almas gémeas do mendigo e do vadio. Entre eles, um sólido parentesco: o questionamento dos códigos de honra e vergonha masculinos e femininos, a confusão entre mulheres «decentes» e da «má vida» e das identidades de género, a ameaça de contaminação biológica e ou moral do «bom português», associados geralmente a uma familaridade com o espaço da rua, ao conhecimento dos seus movimentos, dos seus lugares lúdicos, eróticos ou conflituosos.
5.4.3. O reincidente
264Em 1936, com a Nova Organização Prisional, a noção de perigosidade era construída por constatação de um comportamento pluridelinquente (profetizando uma conduta criminal posterior) ou de um comportamento unidelinquente quando tal acto fizesse suspeitar a perigosidade do seu agente. Na primeira categoria cabiam, então, os delinquentes habituais e indisciplinados enquanto que os delinquentes por tendência correspondiam à segunda, sendo ambas as categorias aglutinadas sob a denominação de «delinquentes de difícil correcção». No entanto, impregnada por uma tradição secular321, a prática jurisprudencial, à revelia da legislação de 1936, continuou a equiparar os delinquentes habituais e até ao próprio género — «delinquentes de difícil correcção», à figura do «vadio».
265Com efeito, «entregue ao governo como vadio», sujeito a medidas de segurança, o reincidente constituía um dos rostos habituais do albergue da Mitra nas décadas de 30, 40 e 50 e, muito particularmente, do seu centro de trabalho, na Quinta do Pisão.
«(...) O arguido desde os vinte e poucos anos enveredou pelo caminho da burla e da vida de expedientes. O seu registo policial averba um total de vinte e uma detenções e o criminal cinco condenações (...) com excepção da primeira todas por furto (...). A profissão de barbeiro era apenas utilizada incidentalmente. A sua perigosidade aproxima-se perfeitamente da do anti-social (...). Se o furto de um relógio, de uma corrente de ouro e de um porta-moedas em prata, porque foi ultimamente preso, na companhia do burlão L... tivesse sido apreciado judicialmente, estamos convencidos que hoje estaria declarado “delinquente habitual”.»
Sentença proferida pelo T.E.P., referente a J..., «O José da Varina», 40 anos, divorciado, canalizador, natural de Belmonte.
«(...) a acrescentar que se trata dum indíviduo com 50 prisões por vários delitos entre elas 13 por mendigar com as piores referências a seu respeito, pois é indomável, respondão, desobediente e obsceno.»
Referente a M... internado na Mitra por medida de liberdade vigiada em 1948.
«Trata-se de um delinquente habitual, que não voltou à prática de crimes (...) sendo-lhe concedida a liberdade condicional por 5 anos por sentença desteTribunal.»
Sentença do T.E.P., referente a V..., solteiro, 69 anos, natural da Lapa, albergado na Mitra em 1947.
«Este recluso foi posto ‘à disposição do governo’ na extinta Polícia de Investigação Criminal de Coimbra, pela sentença de 20 de Junho de 1939 (...) pelas infracções de injúrias, ofensas à moral pública e embriaguês. Encontrava-se em liberdade condicional que lhe foi concedida pelo despacho de 15 de Junho de 1942, quando a mesma, por má conduta, lhe veio a ser revogada pelo despacho de 13 de Março de 1944. (...). É um ébrio, cujo passado e comportamento prisional, não autorizam a que se faça um juízo favorável de regeneração (...). Possui, com o total de oito condenações por delitos vários, de desobediência, ofensas corporais, injúrias e embriaguês (...). Por todos os estabelecimentos, por onde tem passado (...) tem tido uma conduta insuportável, revelando-se incorrecto e indisciplinado e tomando atitudes que denunciam que é um indivíduo incapaz de se adaptar a um trabalho estável.»
Referente a L..., 54 anos, solteiro, mecânico de automóveis, natural de Coimbra, internado com medida de segurança em 1946.
«A personalidade do recluso já foi definida, com a possível previsão na sentença lavrada por este tribunal em 1947. Nela se revê que o recluso é um anti-social, por factores predominantemente endógenos em que as penas não produzem qualquer valor intimidativo... É um incorrigível.»
Referente a A..., solteiro, natural do Porto, a cumprir medida de segurança desde 1947.
«Entregue ao governo desde 13 de Agosto de 1934, tendo beneficiado por duas vezes da concessão de liberdade condicional (6/12/1935 e 14/8/1942) por ter sido condenado, por novo crime, em 25 de Março anterior, regressando à sua situação anterior em 15 de Maio do mesmo ano. (...). Como nos termos do art.° 157.° da Reforma Prisional, o recluso em referência atingirá o tempo máximo de internamento (6 anos) em 15 de Maio do corrente ano, nessa altura se efectuará o respectivo estudo, para ver se lhe deve ser concedida liberdade condicional ou se, pelo contrário, (...) deve ser proposta a alteração do seu estado de perigosidade, afim do recluso, se o Tribunal de Execução de Penas assim o entender, passar à situação de preso de difícil correcção.»
Referente a R..., solteiro, 39 anos, natural da Figueira da Foz, internado na Mitra em 1950.
266De acordo com a síntese estatística que construímos a partir de alguns registos antigos do Centro de Trabalho do Pisão (uma amostra de 52 reincidentes declarados «vadios» pelo T.E.P.)322, este rosto do mitreiro era admitido através de uma medida de segurança de internamento e, em quantitativos menores, entrava em cumprimento de uma medida de liberdade vigiada. Findo o tempo da medida de internamento, atingindo frequentemente 6 anos, aliás, limite máximo prescrito pela lei, era proposta a concessão da liberdade condicional que podia permitir duas variantes: «ficar internado no albergue na qualidade de albergado; dedicar-se ao trabalho; submeter-se à disciplina do estabelecimento e acatar as ordens dos que são chefes; não se embriagar nem frequentar tabernas nem casas de má fama; não praticar crimes contra natura e não acompanhar gente suspeita, ou de má conduta»; ou, por outro lado, «fixar residência nesta cidade, em local de que deverá sempre manter informada a entidade fiscalizadora, trabalhar regularmente, ficando sob a vigilância da Associação do Patronato das Prisões».323
267Todavia, convém sublinhar que, no conjunto dos processos encontrados, a primeira situação era deveras a mais comum. Se, pelo contrário, atingindo o tempo máximo de internamento, a medida de liberdade vigiada não lhe fosse concedida (por razões disciplinares, fuga, reincidência, etc.) dever-se-ia seguir a alteração do seu estado de perigosidade.
268Na amostra em foco, a duração da medida de liberdade vigiada oscilava entre 1 e 5 anos, podendo ser prorrogada se os seus propósitos regeneradores não fossem alcançados. Porém, em muitos casos, após a sua cessação, a liberdade definitiva que daí advinha apenas prolongava o internamento na qualidade de albergado.
269No entanto, o reincidente (também designado por «cadastrado») podia ser encerrado nos calabouços do Governo Civil, internado na camarata-depósito (na sede) do albergue de mendicidade de Lisboa e oportunamente transferido para a colónia do Pisão «sem culpa formada» e na ausência de qualquer medida judicial mas simplesmente por «disposição do Comando Geral da Polícia de Segurança Pública», situação deveras anómala face à legislação em vigor.
«(...) encontro-me preso, desde o dia 6 de Julho no calabouço numero 6, do Governo Civil, à ordem do Comando Geral da polícia de segurança Pública de Lisboa, com a acusação de «cadastrado». (...) De facto, conto bastantes prisões por diversos delitos mas (...) estou regenerado e nunca me condenaram porque conserteza não dava motivos para tal. (...) deram-me uma caução para pagar de 800$00, mas eu extremamente pobre não posso pagar essa importancia para sair, e eu como não posso continuar aqui devido à minha doença sifilitica e dormindo no chão há 133 dias e juntamente com presos políticos»324.
«(...) foi preso por ser cadastrado e se entregar à prática de furtos e vadiagem.
Tem 16 prisões: são, 5 para averiguações de furto; 3 por sodomia; 2 por ser conhecido como pederasta; 1 por se tornar suspeito; 1 por insultos; 1 por desordem; 1 por agressão; 1 por vadiagem e outra por ser cadastrado.
Este indivíduo era visto constantemente acompanhado de indivíduos da mais baixa moral, e encontra-se nos calabouços deste Comando, à disposição do Comando Geral da Polícia de Segurança Pública»325.
«O capitão Godinho dirige os serviços de informação, justiça e costumes. Prende indivíduos suspeitos, bem conhecidos da polícia como cadastrados, e a quem priva da liberdade com a sanção do 2.° Comandante da Polícia de Lisboa, numa camarata-depósito do Albergue da Mitra, e que os tribunais absolvem por falta de provas.
Se não fosse assim, a gatunagem da cidade redobrava, e todos nós sabemos o quanto ela tem aumentado neste período da guerra (...)»326.
«Tem 20 prisões. Sendo 1 por insultos ao captor, 1 por tentar dar fuga a um preso, 1 por agressão à polícia, 3 por suspeita de vadiageme 14 por mendigar. É válido Já esteve internado na camarata-depósito da Mitra durante, 60, 90, 120 e 360 dias (...). Novamente preso em 3 de Julho do corrente ano (1944), fugiu da Quinta do Pisão onde cumpria 360 dias de camarata-depósito (...).»
327
«Solteiro, 33 anos, trabalhador rural, natural (...) de Évora (...). Trabalhava em casa do (...), despedindo-se do serviço em 4 de Maio. Dirigiu-se à estação de Monte Novo onde encontrou o ‘Zé do Quisto’, que o convidou para o único roubo que deve ter feito na região. Foi desertor do Exército (...). É indivíduo de má índole e tem várias condenações por furto, além da condenação por desersão (...) Demonstra a sua tendência para o crime a facilidade com que acedeu no assalto feito pelo ‘Zé do Quisto’ (,..)»328.
«(...) casado, agricultor, residente em S. Martinho (...), pai de (...) e sogro de (...), que se encontram presos desde 6 de Maio de 1943, na Polícia de Segurança Pública, na Quinta do Pisão, próximo de Sintra, por crimes de pouca gravidade e talvez sem culpa formada, porque não teem conhecimento, que estejam à ordem de qualquer tribunal, vem muito respeituosamente implorar a V. Ex.a que os mesmos sejam restituídos à liberdade»329.
«(...) o meu marido (...), encontra-se preso na Quinta do Pisão ha ano e meio sem culpa formada, e só por na nossa cabana ser encontrado um objecto que uns meliantes tinham intimado a guardar(,..)»330.
«Há tempos foram entregues ao Comando da Guarda Nacional Republicana, como incorrigíveis, (...) os quais estou informado se encontram incorporados num batalhão de incorrigíveis na Quinta dos Pisões. (...) Como há cerca de um ano estes indivíduos ali se encontram e a situação em relação ao contrabando para Espanha de géneros alimentícios, seu principal delito, se encontra bastante melhorada (...) rogo a V. Ex.a se digne solicitar (...) a liberdade dos citados (…).»331
270Dos extractos apresentados sobressaem já as grandes linhas de equiparação do reincidente ou «cadastrado» à categoria de vadio (e suas subalíneas: vagabundo, mendigo profissional, homossexual, etc.). Em primeiro lugar, apesar dos registos antigos encontrados no Pisão mencionarem, por ordem decrescente, o furto, a agressão, as ofensas corporais, a desobediência, a burla, a embriaguês, a pertença a uma quadrilha de gatunos, como delitos predilectos deste rosto do mitreiro332, constatamos que ele partilhava com as restantes figuras internadas uma ou mais acusações de «vagabundagem», «suspeita de vadiagem», «mendicidade profissional», «pederastia», «sodomia», «ultraje à moral pública», «obscenidade», etc., mas também, por outro lado, que a categoria de «cadastrado» podia incluir a gatunagem ocasional e o contrabando de géneros alimentícios (muito aumentados na conjuntura de guerra), bem como uma deserção, um insulto irreflectido por influência do álcool, etc.
271Somando-se ao leque de acusações patentes nos seus certificados policiais e criminais, os restos (semiardidos) dos processos de internamento respeitantes a reincidentes atribuíam-lhes, invariavelmente, traços idênticos aos projectados nos diversos outros rostos da vadiagem333: ociosidade, incapacidade de adaptação a um trabalho estável334, instabilidade e mobilidade335, simulação e astúcia, propensão à mentira, «deficit moral», incorrigibilidade, capacidade de sedução e contaminação do outro na direcção errada336.
272Paralelamente, poder-se-ia dizer que o «cadastrado» «incorrigível», ultrapassava todos os outros rostos do mitreiro em estigmas de degeneração, atavismo, loucura moral, ou alienação mental. Para a antropologia criminal lombrosiana, afirmava M. Pereira da Silva (1942), «o delinquente habitual (...) apresenta uma debilitação devida ao atavismo dos caracteres sexuais secundários, escasso sentimento materno, existência vagabunda e boémia, simulação, crueldade, hábito de mentir (,..)»337.
273Ao desmoronar das teses lombrosianas sobre o criminoso, também elas criticadas entre nós por médicos e criminologistas, sobreviveu, todavia, uma ideia que lhes era fundamental. Como reconhecia Miguel Bombarda, nas suas «Lições sobre epilepsia e as pseudo-epilepsias» (1895): «O crime não é senão um facto individual, não é senão a fatalidade de um organismo de construção defeituosa.»
274À medida que as concepções lombrosianas perderam pouco a pouco a sua pertinência, a noção de criminoso-nato e a primazia dada à sua especificidade morfológica e degenerativa338 foi substituída pela noção de alienado-criminoso. A epilepsia, o alcoolismo, a psicopatia constitucional, etc., passaram a determinar exclusivamente o acto criminoso; o crime não era mais do que uma «manifestação do estado patológico do seu autor, aliás demonstrado pela presença de outros sinais físicos, psíquicos e hereditários, próprios da entidade mórbida existente»339.
275Reagindo contra tais teses, procurando evitar exclusivismos de tipo biológico ou psiquiátrico, a Nova Antropologia Criminal de A. Mendes Correia não deixou, todavia, de nos legar um outro primado — o do «deficit moral e ético» do criminoso — reforçando a afinidade entre vagabundos, mendigos e criminosos340.
276Personagem de tantos rostos, o mitreiro — na versão do «cadastrado» internado à ordem do Comando da P.S.P ou do reincidente declarado «vadio» por sentença do T.E.P. — remete-nos, mais uma vez, para o hiato que separava o discurso oficial, frisando que o albergue funcionava apenas como um centro de detenção, triagem e encaminhamento de vadios-mendigos, das suas funções reais como estabelecimento de internamento de «delinquentes habituais» e de «difícil correcção» (em cumprimento de medidas de segurança) ou como prisão para a gatunagem desenfreada em períodos de crise socioeconómica.
5.4.4. Outros matizes do mitreiro: o alcoólico e o tuberculoso
« l’amour du vagabondage semble dominer les actes d’un grand nombre d’alcooliques. »341
«o tísico é afectado, desde o início, na sua psique (...) tornando-se um egoísta, amoral e agressivo, sentindo prazer em contaminar, com seus bacilos, as outras pessoas.»342
277À luz das doutrinas psiquiátricas e criminalistas em vigor, o alcoolismo salientava-se como um factor importante na predisposição para os estados «asociais» e «anti-sociais». A par da sua influência criminogénea, constatada por numerosos autores (Alfredo Luis Lopes, 1898; Ramalho Fontes, 1908; Xavier da Silva, 1916; Barbosa Soeiro, 1932; Simões dos Reis, 1940, etc.)343, estabelecia-se, frequentemente, uma relação de identidade entre o alcoolismo (sobretudo o crónico) e a vadiagem:
«A importância do papel do alcoolismo crónico na criminalidade, ressalta notavelmente dos importantes grupos de delinquentes habituais passivos e vadios que manifestam uma criminalidade resultante menos de tendências criminais acentuadas, que, geralmente, não demonstram, do que da sua incapacidade social, motivada na inferioridade mental, nêles verificada numa percentagem de 75%, tanto mais que os delinquentes habituais passivos, os vadios e os alcoólicos são grupos criminais que, na realidade, se não destriçam nitidamente uns dos outros, fundindo-se, mais ou menos completamente, de modo a poderem considerar-se, sem grande inconveniente, como um único grupo (...).»344
278Convergentemente, nos processos antigos dos albergados da Mitra o alcoolismo crónico sobressaía, com acuidade, como factor causal da vadiagem (e suas práticas afins), justificando a medida de segurança de internamento:
«Por decisão proferida por este tribunal de 4 de Janeiro de 1947, e por se encontrar incurso no disposto n.o 1 do art.° 22 do decreto-lei 35.042 de 20 de Outubro de 1945, foi condenado a ficar sujeito à medida de segurança de internamento (...) considerando-se que um dos factores do seu estado de perigosidade senão o principal factor, foi a toxicomania alcoólica.»
Referente a F..., 55 anos, solteiro, natural de Arganil, internado em 1947, por medida de segurança de internamento.
«(...) deverá ficar submetido ao regime do art.° 170.° da Reforma Prisional como alcoólico que é, devendo receber o tratamento adequado e ser proibido de beber.»
Referente a M..., 36 anos, solteiro, natural de Lisboa, internado em 1950 para cumprimento de medida de segurança.
«(...) desde 1933, que juntamente com outros da mesma espécie infestavam a área da Graça em franca vadiagem, frequentando tabernas imundas e alimentando-se de restos de rancho dos quartéis próximos e da cadeia das Mónicas. Era viciado em álcool e frequentemente desobedecia à polícia o que originou a sua entrega ao Governo, pelo então Tribunal dos Pequenos Delitos.»
Referente a N..., solteiro, 35 anos, natural de Lisboa, internado em 1946.
279Contudo, nem só o «viciado no álcool» constituía um dos rostos típicos do albergue da Mitra neste período. Aquele que frequentasse habitualmente certas tabernas mal afamadas e/ou nelas fosse encontrado, múltiplas vezes, em horas suspeitas (horário de trabalho, por exemplo) ou com más companhias345, bem como todo aquele que, por influência do álcool, transgredisse, num impulso irreflectido, a ordem pública e os bons costumes, podia ser acusado de «suspeita de vadiagem», «ultraje ao pudor», «insulto à polícia», etc., e subsequentemente internado no albergue por decisão administrativa.
280Mas o parentesco afirmado entre o alcoolismo e a vadiagem não se resumia apenas à constatação de uma relação causal ou de quase identidade entre estes dois fenómenos — «o alcoólico» «faz-se» «um vagabundo ou um mendigo, ladrão ou delinquente sexual, até cair num estado doentio e incurável»346. A perigosidade social do alcoólico, tal como a do vadio (e seus afins), excedendo em muito a sua predisposição para actos criminosos, era definida, simultaneamente, pela ameaça de contaminação biológica e moral dos respectivos descendentes e, por extensão, da família e da raça portuguesas.
281Fazendo parte da «tríade das pestes contemporâneas» (juntamente com a tuberculose e com a sífilis)347, o alcoolismo era portanto equacionado à doença pestilenta, a um terrível «flagelo social» quer pela «tremenda herança» transmitida biologicamente aos filhos — «infantilismo», «raquitismo, idiotia, monstruosidades, epilepsia», etc.348 — quer pela quase fatal degeneração moral que provocava nos descendentes:
«O descendente do alcoólico tem, em regra, um gosto inato para o álcool, é uma criatura perversa, indecisa e tende para o mal por uma espécie de impulsão irresistível; o alcoolismo dos pais ocasiona quasi sempre a delinquência dos filhos, quer pela alteração do «germe», donde advem uma debilidade congénita da criança pela intoxicação, quer pela criação dum meio favorável à «amoralité» (...).»349
282Por fim, vadios e alcoólicos350podiam ainda ser confundidos entre si pelo porte de «estigmas de degenerescência» (sobretudo funcionais e psíquicos)351, «pela tendência natural, espontânea e inata que teem para o vício»352, pelo primado de um temperamento individual (endógeno) caracterizado por um enfraquecimento da vontade353, pela proximidade e/ou sobreposição da nosologia psiquiátrica que lhes era atribuída.
*
283Apesar da criação da Assistência Nacional aos Tuberculosos no final do século xix, bem como do incremento dos esforços na luta contra esta doença nas primeiras décadas do século xx (através da construção de vários dispensários e sanatórios por todo o país)354, a percentagem de doentes pulmunares internados no albergue da Mitra era, como já foi indiciado, de tal forma significativa que justificou, nos princípios dos anos quarenta, a sua compartimentação em dois pavilhões separados, na colónia agrícola do Pisão.
«Já para ali foram igualmente ocupar duas dependências separadas, alguns tuberculosos incuráveis que arrastam a sua miséria pelas ruas desta cidade e, por isso, tiveram que ser internados noalbergue.»355
284O internamento, no mesmo espaço e regime institucional, de doentes tuberculosos incuráveis e vadios-mendigos, muito embora possa ter sido parcialmente condicionada pela carência de instituições especializadas para tais casos, não deixa, no entanto, de nos remeter para mais um parentesco, mas agora da tuberculose com a vadiagem e a mendicidade (assim como com o alcoolismo e a génese da criminalidade).
285Com efeito, na origem do mal tuberculoso, encontrava-se, nas visões da época, uma vida de excessos — agitada, nocturna, promíscua, com carências alimentares, camufladas pela bebida. Doente, desempregado, incurável, o tuberculoso era facilmente arrastado para a mendicidade, exibindo a sua miséria pelas ruas da cidade, ameaçando o bem-estar público com a sua contagiabilidade. Por acréscimo, parecia «provado» que a doença perturbava, extraordinariamente, o seu fundo moral, tornando-os «impulsivos, vingativos, propensos para a prática de delitos sexuais, do furto e dano, e da vadiagem e mendicidade», atribuindo-se-lhes «parecenças com os alcoólicos», (pela «anomalia constitucional originada pela sua doença») e um certo peso como «causa hereditária da criminalidade»356. Mais, no topo das acusações de imoralidade que lhe eram feitas, erguia-se o prazer perverso «em contaminar, com seus bacilos, outras pessoas»357.
286Pela sua propensão à vadiagem e à mendicidade, pelo seu défice moral e ético, pela ameaça de contaminação que substanciava, assim como pela nódoa vergonhosa que colocava nas ruas da capital do império, o tuberculoso incurável era afinal equiparado (informalmente) a vadio e, nesse sentido, encerrado na Mitra e sujeito ao mesmo regime institucional consagrado a mendigos, vadios e outros «anti-sociais».
5.5. Contradições do dispositivo psiquiátrico: as condições para uma regressão
«Uma boa casa de alienados é um poderoso instrumento de cura e o agente terapêutico mais eficaz contra as afecções mentais.»358
287Demos conta, num ponto anterior, da ligação entre vadios, mendigos, seus equiparados e doentes mentais, companheiros nas décadas de trinta, quarenta e cinquenta de um mesmo espaço e funcionamento institucional, retratando um universo que mais se assemelhava ao dos hospitais gerais e ao dos asilos do século xvii e xviii, descritos por Foucault. Tal facto, só ao nível de uma abordagem histórica da assistência psiquiátrica portuguesa terá uma compreensão mais adequada.
288Não se pense, no entanto, ser nosso propósito fazer deste capítulo algo mais que um apontamento sobre as condições subjacentes e, porventura, elucidativas da presença de um número considerável de doentes mentais internados na Mitra, neste período. A destacar como eixo principal de interrogação está, com efeito, a emergência, em pleno século xx, de um estabelecimento peculiar, uma instituição policial que acolhia doentes mentais sem lhes proporcionar qualquer terapêutica, num contexto histórico em que o alienado já possuía um estatuto de doente e existiam instituições específicas para o seu tratamento.
289Enquanto que em França, em Inglaterra, na Itália, por exemplo, se assistia, no início do século xix, ao nascimento de hospitais específicos para o «tractamento e asylo dos alienados», entre nós, estes continuavam a ser «recebidos em alguns hospitais gerais ou nas cadeias, quando não vagueavam ao desamparo pelas ruas e pelas estradas, completamente abandonados de qualquer género de protecção»359. A sorte daqueles conservados no seio das famílias não era, na sua maioria, muito diferente: «escondaem taes doentes no mais recondito de cada casa, para evitar que sejão observados de estranhos; não se lhes dá ahi huma habitação própria, mas de occultar o que suppõem a vergonha da família. Victimas enfim de hum sem número de prejuizos, estes desgraçados (...) são alvo das maiores privações, do mais rude e deshumano tractamento»360.
290No seguimento do que acontecia lá fora, também em Portugal os valores humanistas passaram a incidir sobre o louco, num esforço para o protegerem da maldade do vulgo e das condições terríveis em que era tratado, na eleição da nação como seu tutor e no prover da sua assistência noutros moldes:
«(...) estes infelizes que, ora desvairados pelos irresistíveis impulsos das tumultuosas paixões que os agitam, ora por falta de sensibilidade e de força intelectual necessárias para ajuizar da realidade das cousas e distinguir o bem do mal d’ellas, vivem impossibilitados de se conduzirem por si sós, e de fugirem aos perigos que por toda a parte os ameaçam (...). A sociedade como tutor nato d’elles deve vigiá-los e obstar à sua divagação e aos deploráveis inconvenientes que podem resultar da sua liberdade (...) e prover à assistência e curativo de taes desgraçados.»361
291Por sua vez, estes valores humanistas eram concomitantes com a crescente penetração dos valores da ciência na sociedade ocidental e, nomeadamente, com a ideia de que não existiam forças misteriosas na base dos fenómenos, o que foi predispondo as elites para aceitarem o facto de que também a loucura era susceptível de uma abordagem científica.
292Esta receptividade reflectiu-se também em Portugal. Efectivamente, a partir de 1824, os alienados «começaram a ser recebidos (nas enfermarias de Santa Eufénia e de S. Theotónio, no Hospital de S. José) em maior escala e a serem tratados já com certas condições de isolamento e cuidados próprios de quem aceitava a noção, já ganha pela ciência, de que o alienado era um doente que precisava de assistência e de cuidados higiénicos, à custa dos quais poderiam curar-se ou melhorar»362.
293Embora inserido num contexto sociocultural propício, este movimento, como transparece nas palavras de A. M. Sena, enraizava-se numa «descoberta científica» da época e, mais especificamente, numa mutação na representação da loucura sob o ângulo da sua curabilidade.
294Na esteira de Pinei defendia-se assim que o alienado conservava uma distância face à sua própria perturbação, um «resto de razão» que, possibilitando a comunicação e a influência do não-louco sobre o alienado, permitia formular o princípio da sua curabilidade363. Em consequência desta descoberta de um «resto de razão» no alienado, da possibilidade de uma comunicação terapêutica com o louco e, consequentemente, do deslocamento deste projecto interindividual para um espaço institucional, formulado só por si instrumento de cura364, doença mental e institucionalização permaneceram ligadas até aos nossos dias.
295Em Portugal, os nossos alienistas, discípulos entusiasmados de Pinei e de Esquirol, partilhavam este clima de euforia curativa. Já nas estatísticas médicas das Enfermarias de Alienados do Hospital de S. José, nos anos de 1835, 1836 e 1837, Bizarro comparava insistentemente os seus resultados no tocante ao índice de «curabilidade» com os de Pinei na Salpetrière e com os de Esquirol em Charenton, chegando a concluir que «apesar de tudo (...) o número dos completamente curados não será n’huma proporção inferior aos curados por Esquirol»365 e ainda que «o tractamento moral e hygiénico he aquelle mais recommendado nestas doenças e o que mais aproveita; todo o outro se pode considerar subsidiário; mas pode dizer-se que este he talvez o único que se emprega nas enfermarias d’alienados do hospital de S. José, e não pode ser outro porque o local não o permite»366.
296Onze anos depois367, por determinação do Marechal Saldanha, criava-se, no antigo convento de Rilhafoles, o primeiro manicómio português, destinado a «asylo, tractamento e curativo dos alienados de ambos os sexos de todo o reino»368, cujo funcionamento importava igualmente os princípios básicos do tratamento moral: o «adequado isolamento dos doentes»; a «classificação, distribuição e colocação dos mesmos»; o «emprego de meios de brandura, persuasão e vigilância»; a «conveniente ocupação, trabalho, instrução e recreio a horas fixas e regulares»; o «sistema de prémios e recompensas, de coacção e de repressão» e o «bem dirigido emprego dos agentes higiénicos, farmacêuticos e morais»369.
297Na linha de Pinei e de Esquirol, também no primeiro manicómio português, se investia na possibilidade da recuperação da razão do alienado pela influência de um meio organizado: «Pelas sensações que produz, pelos affectos que suscita, e pelas ideias que desperta no ânimo do alienado, a mais pequena circunstância que entre na organização dos hospitais pode-se tornar instrumento de vida ou de morte (...) dependendo do adequado ou impróprio regimen de taes estabelecimentos a curabilidade ou incurabilidade do doente»; a disposição «das cousas» e das «pessoas» deveria ser «de modo que o alienado, a qualquer parte que dirigisse o seu olhar incerto e os seus passos vacillantes, encontrasse uma força estranha, que ora auxiliasse a sua fraqueza, ora prendesse a sua attenção», corrigindo «as aberrações de suas faculdades moraes e intellectuaes»370.
298No entanto, este clima de euforia curativa foi de curta duração. Já em 1852, Pulido referia que o estabelecimento tornar-se-ia dentro de pouco tempo um «hospício de incuráveis, em logar de hospital regular de alienados curáveis»371; em 1862, no intuito de satisfazer as insistentes reclamações da opinião pública, a administração do hospital resolveu mesmo nomear uma comissão que reconheceu também a «população demasiada» do estabelecimento, apurando como suas principais causas «a acumulação enorme de restituídos à razão (...) que a autoridade judicial (...) à sua ordem mantinha ali interditos»372 e a escassez de médicos e de pessoal subalterno; múltiplas outras referências a um estado de superpopulação hospitalar podem ser encontradas no relatório do hospital de 1865. Sena resumia, em 1884, esta situação de acumulação e o fracasso da pretensa função curativa do estabelecimento, afirmando:
«o hospital nacional de alienados em Rilhafoles é um depósito desordenado dos desgraçados loucos que não teem meios de subsistência e que a polícia prende e dos que não teem família que os queiram e possam soffrer; no qual nem se presta (...) a assistência humanitária (...) nem se colligem, estudam e aproveitam os elementos scientíficos que possam enriquecer a sciência e servir de base à prophylaxia.»373
299De facto, as estatísticas referentes ao período compreendido entre 1849 e 1889 acusam um aumento considerável da existência média de doentes hospitalizados. No entanto, depois do recrudescimento da população internada que os primeiros dez anos do funcionamento de Rilhafoles consentiram, registou-se uma progressiva estabilização à volta dos 500 internados e, excepcionalmente, entre 1883 e 1892, uma diminuição para valores abaixo deste patamar. Estes números não podem ser objecto de uma simples referência de passagem. A sua compreensão articula-se com várias dimensões do funcionamento hospitalar e, entre eles, com o movimento de admissões e com a taxa de mortalidade374.
300A não ser no período entre 1848 e 1858, no qual o número de admissões se elevou notoriamente (de 118 para 367), nos anos subsequentes e até 1892, os entrados jamais ultrapassaram a cifra dos 300, em consequência de uma política intencionalmente restritiva dos internamentos accionada pela situação praticamente constante de superacumulação hospitalar. É neste contexto que podemos inserir um artigo do Código Administrativo e portarias diversas através dos quais se procurava que os administradores de cada concelho, antes de remeterem alienados para Rilhafoles, se informassem da existência ou não de vagas e, só depois disso, em caso afirmativo, os enviassem.
301Não havendo lugar, o que não era raro, configuravam-se para o alienado três destinos:
«vai para a cadeia na maioria dos casos»; «se é alegre e diverte póde continuar a vida de pária sem juízo; finalmente, nos casos apertados é remettido pela autoridade a Lisboa e ahi abandonado nas ruas para a polícia o prender e resolver o problema como entender!»375
302Face aos primeiros sinais de crise do dispositivo psiquiátrico recém-criado, reemergiam antigas soluções: a cadeia ou a rua e, neste último caso, deslocava-se simplesmente o problema para a alçada da polícia. Tal estratégia, repetida em períodos de superacumulação, inicia-nos a um ciclo repetitivo de conflitos de interesses entre a instituição policial e o dispositivo psiquiátrico.
303Acontecia, em paralelo, que nas primeiras décadas do funcionamento de Rilhafoles a taxa de mortalidade se manteve muito elevada. Conservando sempre uma diferença entre o quantitativo das admissões e o das saídas, a favor das primeiras, pode-se então afirmar que o único manicómio do Estado procurava recuperar da sua situação de superacumulação, sobretudo, por intermédio de uma política restritiva das entradas, acompanhada nos seus efeitos pela circunstância de uma elevada mortalidade.
304Ensaiando uma solução para esta situação crítica, a lei de 4 de Julho de 1889 — Lei Sena — autorizava a construção de quatro novos manicómios e de enfermarias especiais anexas às Penitenciárias, visando a descentralização, a regionalização e a especialização funcional da Assistência Psiquiátrica. Todavia, à sua revelia, Rilhafoles, sob a direcção de Miguel Bombarda, caracterizou-se pela concentração, pelo gigantismo asilar e por uma ideologia de especialização projectada, porém, no meio interno376. Decorrente da ampliação das instalações hospitalares, a existência média subiu bruscamente na gerência de Bombarda, firmando-se na casa dos 700 internados. Tendo-se mantido na casa dos 300 entrados no período anterior, também as admissões se elevaram para a casa das centenas imediatamente superiores, o que foi concomitante com o aumento das altas, atribuídas a taxas consideráveis de «loucura não verificada»377. Por sua vez, as melhorias higiénicas produzidas no estabelecimento afectaram igualmente a taxa de mortalidade que sofreu uma quebra pronunciada.
305Muito embora o manicómio de Lisboa tivesse aumentado a sua capacidade de internamento e, simultaneamente, se tivesse fundado, em 1883, o manicómio do Conde Ferreira, no Porto, a assistência psiquiátrica denotava grandes insuficiências: «quando mesmo supposessemos exacta a cifra de 6600 alienados no território português, (...) não deixaríamos de representar em matéria de assistência, um deplorável e vergonhoso papel. De facto, recolhendo os manicómios de Lisboa e Porto 1200 doentes apenas, Portugal hospitalizaria menos de uma quinta parte dos seus alienados, deixando as quatro partes restantes, ao abandono, como causa de crimes inconscientes, de sobressaltos sociaes e de progressiva degenerescência da raça. (...) E infelizmente, porque a cifra de 6600 alienados não exprime, talvez, senão três quartas partes da realidade, mais sombrio é ainda o quadro da nossa miséria»378.
306Foi neste pano de fundo, agravado pela irrealidade da construção dos quatro manicómios e das enfermarias especiais anexas às Penitenciárias, prescritos pela lei de 1889 — apesar da cobrança de tributos criados por ela para a sua edificação379 — que retornaram, ainda no princípio do século, certas práticas e atitudes face à doença mental e, nomeadamente, a ligação da loucura «agressiva» à instituição prisional e da loucura «mansa» ao espaço da rua, servindo de espectáculo ou atracção, enquanto objecto de troça e de provocação ou como bode expiatório380 para os passantes: «Os alienados que vivem fora dos hospitaes, só os das classes abastadas, em número muito restricto e apenas nas cidades de Lisboa e Porto, teem uma regular assistência médica (...), os pobres, ou vagueiam, mendigando, se são tranquilos ou, se a violência da loucura os toma incompatíveis com a vida colectiva, são lançados nas prisões»381. «Não raro vemos ainda hoje, alguns loucos, que livres percorrem as mas, serem victimas dos insultos e gracejos do povoleo, contra os quais se tomam quase impotentes os esforços da polícia e os conselhos civilizadores e humanitários da imprensa periódica.»382
307Tentando reparar este estado de coisas, a lei de 1911 aprovava a construção de sete novos manicómios, discriminados em vários tipos — manicómios de ensino ou clínicas psiquiátricas e manicómios asilos. Igualmente, autorizava a edificação de dez colónias agrícolas para os doentes crónicos e incuráveis o que, todavia, nunca chegou a efectivar-se.
308No que respeita a Lisboa, podemos afirmar que, com a anexação pedagógica à Faculdade de Medicina e com a passagem do regime asilar ao de clínica psiquiátrica, Rilhafoles (denominado então de manicómio Miguel Bombarda) se tentou assumir como uma instituição eminentemente curativa e recuperadora, pressentindo contudo a necessidade urgente da construção de retaguardas para os seus doentes crónicos. A inexistência de melhorias nas condições materiais foi compensada pela ampliação do quadro clínico. Iniciada em períodos anteriores, a ocupação dos internados (em trabalhos agrícolas e em indústrias caseiras) foi também, doravante, uma das linhas de força do investimento institucional, inserindo-se numa tendência em voga na assistência psiquiátrica da época que preconizava a ruralização da vida no interior dos manicómios. Por tudo isto e pela introdução da proteinoterapia e da malarioterapia assim como pela aplicação bem sucedida da medicação pelo somnifene, os anos vinte em Rilhafoles viram eclodir um surto de euforia curativa.383
309Todavia, com a passagem ao regime de clínica psiquiátrica, um novo salto se deu na existência média hospitalar384. Duas ordens de razões lhe estavam latentes: o combate da mortalidade, por um lado; mas, sobretudo, nas palavras de Sobral Cid, «a natural incerteza de uma administração incipiente e mais rasgada no deferimento dos pedidos de admissão, por não ter ainda a experiência dos recursos do hospital»385. E tanto assim que, «alarmado pelos inconvenientes da crescente acumulação de doentes», Júlio de Matos não tardou a travar «os numerosos pedidos que de Lisboa e da província afluíam à Secretaria do Manicómio»386, recorrendo a uma política intencionalmente restrictiva das admissões, responsável pela desacumulação do hospital, indiciada pela diminuição da existência média que se observou até 1922.
310Que outra lógica se poderá deduzir da publicação de um Regulamento da Polícia Administrativa de Lisboa, datado de 8 de Setembro de 1923 (decreto-lei n.o 9116), e obrigando a receber no hospital todos os alienados que fossem enviados pela referida Polícia, quer houvesse ou não lugares disponíveis387, senão a de uma forte resistência por parte das autoridades policiais face a esta política restritiva das admissões que, para permitir a euforia curativa na clínica psiquiátrica e na ausência de estabelecimentos asilares de retaguarda, sobrecarregava de doentes mentais o Governo Civil e os seus calabouços?
311Inserindo-se num passado de conflitualidade, este episódio deu, pontualmente, algumas vantagens à polícia administrativa da capital. Dominado por uma superpopulação que fazia perigar a sua função curativa, desarmado pela polícia que inviabilizava a prática das suas soluções tradicionais de desacumulação, o manicómio de Lisboa viu-se assim compelido a dilatar o quantitativo das suas admissões, acrescido ainda «por um número considerável de pedidos do Norte do país»388, em consequência das dificuldades experimentadas no hospital do Conde de Ferreira, neste período.
312Num estabelecimento cuja capacidade era, no máximo, de 500 leitos e cuja existência média excedia um milhar de internados, instalou-se, inevitavelmente, um processo acelerado de regressão asilar que a metáfora seguinte não ilude:
«Tem-se a impressão de uma população em êxodo, acossada pela guerra ou fugida de uma epidemia, que de um momento para o outro tivesse sido necessário alojar a trouxe-mouxe num albergue improvisado.»389
313Em primeiro plano, na longa lista de razões conducentes a esta situação calamitosa, Sobral Cid destacava o prolongado desinteresse do Estado pela assistência psiquiátrica390, agudizado pelo aumento assustador do número de pedidos e pelas pressões por parte de múltiplas entidades administrativas, pela acumulação de incuráveis, assim como pelas insuficiências de pessoal e de meios terapêuticos. Procurando soluções, os seus esforços iam no sentido da regionalização da assistência psiquiátrica, evocando a necessidade da criação de pequenos pavilhões psiquiátricos nos principais hospitais de província. Insistia em fundar dispensários psiquiátricos que funcionassem, em simultâneo, como centros activos de profilaxia mental e preconizava a separação dos doentes agudos dos crónicos, ou seja, a dissociação de dois tipos de assistência, reservando as clínicas psiquiátricas situadas nos centros urbanos para os primeiros e remetendo os segundos para asilos rurais ou para colónias agrícolas391 periféricas. Fomentava também a especialização dos serviços hospitalares, propondo divisões internas consoante a nosografia, a criação de serviços especiais de acordo com as terapêuticas, etc., assim como a abreviação da conclusão do novo manicómio de Lisboa, no Campo Grande.
314No entanto, os seus ideais estavam ainda longe de se realizarem e, durante as décadas de trinta e de quarenta, o manicómio Miguel Bombarda manteve-se sob o peso de uma existência média anual superior ao milhar de doentes (tendo como lotação máxima 700 doentes), situação esta responsável pelo aparecimento do termo «asilo» no título do estabelecimento. Pela extrema decadência a que chegou, foi até condenado a uma existência transitória, enquanto não se construísse uma colónia agrícola no Sul do país, sem a qual a anunciada abertura do novo hospital da Faculdade de Medicina não poderia sobreviver.
315Simultaneamente à regressão asilar verificada no manicómio Miguel Bombarda no princípio dos anos trinta, o quantitativo total de alienados no país atingia pelo menos 10000 indivíduos, dos quais apenas 2000 se encontravam hospitalizados. Quanto aos outros (8000!), vagueavam e mendigavam pelas cidades e pelos campos em situação de ambígua coexistência (tantas vezes transformados em «bobos de rua» e em figuras habituais, tantas outras vezes «apupados» ou «corridos à pedrada»)392 ou eram aferrolhados nas prisões de «promiscuidade com os criminosos»393.
316Mas a tolerância popular tinha limites. Era «enorme e confrangedora» a quantidade de loucos percorrendo as ruas de Lisboa, quer jocosos e inofensivos, quer «no estado perigoso de intensos delírios alucinatórios»394. Por exemplo, um artigo de O Século de 13 de Abril de 1931, denominado «O crime de um louco», justificava o acontecido na rua Milton como resultado «da extrema liberdade de que os loucos gozam em Portugal». E, comentava: «o homem que o levou a cabo esteve por largo tempo internado numa casa de saúde. Um dia levantaram-lhe a clausura. Deram-no como curado. Restituíram-no ao usufruto dos seus direitos (...) Meteu-se-lhe uma espingarda na mão (...).» E tudo isto, «por ainda haver nesta terra com os tresloucados de várias categorias uma complacência tal, que só quando eles esbravejam e entram em fúria se recorre, em geral, ao manicómio para os isolar ou curar (...). Vagueiam pelas ruas de Lisboa, há anos, loucos furibundos ou simples maníacos, que passam os dias, ora a deambular, alheios a tudo, pela multidão, ora gesticulando e falando como quem procura levar de vencida uma nuvem perseguidora de espectros (...). Dir-se-ha: são inofensivos esses desgraçados em que a inteligência parcialmente se ofoscou. É possível! Mas até quando durará a sua passividade? Em que momento passará de doido manso a doido furioso (...)? São indigentes, são pobres e desamparados todos os loucos varridos hipoteticamente curados que andam às soltas em quasi todas as terras do país? Não são. (...). Que entraves, que dificuldades ou que interesses se opõem a que as obras do futuro manicómio se concluam o mais depressa possível?»
317Pressionada pela imprensa a agir contra a presença ‘intimidante’ de alienados nas ruas da capital, bem como pelo elevado número de doentes mentais encerrados nos calabouços do Governo Civil (facto que, por sua vez, originava novos protestos), a P.S.P. exigia ao dispositivo psiquiátrico o cumprimento das disposições do decreto-lei n.o 9116, acerca do internamento dos loucos encontrados na via pública «houvesse ou não houvesse vagas». Reagindo, a Direcção do Manicómio Miguel Bombarda — organismo subordinado administrativamente à Direcção-Geral dos Hospitais Civis de Lisboa — respondia, evocando que aquela «havia determinado que o número de doentes, actualmente hospitalizados, não fosse excedido, e que fosse diminuindo, à medida que se produzissem vagas, até chegar à lotação normal, que era de 700 leitos»395. Retorquindo, a P.S.P. afirmava que, embora compreendesse os problemas orçamentais daquela Direcção, estava em total desacordo e achava «deshumano e contraproducente» o facto da atenuação de tais dificuldades passar pelo «prejuízo dos indivíduos que teem a infelicidade de endoidecer». Por fim, reafirmava que o internamento «de doidos nos calabouços, como criminosos», era um acto «deshumanitário», fonte de «protestos» «justificados»396. Em resposta, a Direcção dos Hospitais Civis de Lisboa escudava-se nas contradições das leis, da lei da contabilidade que obrigava «os estabelecimentos do Estado a viver dentro das verbas orçamentais» e o diploma do internamento dos loucos, independentemente de vagas (e de verbas) em estabelecimento adequado397. Os argumentos repetiam-se ciclicamente, sem contudo se chegar a uma solução para o problema dos alienados encontrados na via pública...
318Note-se, para já, esta importante convergência de dados e de factos. À data da criação do albergue da Mitra em 1933 e da emergência no seu interior de um universo «bicetriano», o asilo Miguel Bombarda estava muito próximo da ruptura, com 1055 doentes, altamente carenciado de médicos e enfermeiros, recusando quaisquer novas admissões, sem ensino e com instalações muito degradadas e, em simultâneo, a P.S.P de Lisboa, pressionada pela opinião pública e pelos cidadãos, confrontava-se com um excedente de doentes mentais, desconhecendo que destino lhes atribuir.
319Nos anos seguintes à inauguração do albergue, as dificuldades de hospitalização dos alienados, mesmo dos enviados pelas cadeias, parecia agudizar-se. Em Lisboa, as «poucas vagas que se iam produzindo no Manicómio Bombarda» mal chegavam para «acudir aos casos agudos e de maior necessidade», ao ponto de termos notícia da transferência de alguns alienados para o Manicómio Conde Ferreira, no Porto398. Similarmente, do restante país, os relatórios mensais dos governadores civis repetiam-se entre si na denúncia do número confrangedor de loucos carecidos de hospitalização existente nos respectivos distritos: em Coimbra, multiplicavam-se os casos de lepra e de loucura não internados399, em Leiria contavam-se «aproximadamente 168 loucos em liberdade»400; em Viseu, a sua cifra acercava-se dos quatrocentos sem hospitalização401; no mesmo tom, o governador de Braga enfatizava ser «indispensável internar os loucos» e hospitalizar os tuberculosos»402; do Porto, os relatórios salientavam «dois problemas» graves merecedores da maior atenção do Governo — «o dos loucos e o dos leprosos» — tanto mais que apesar do Manicómio Conde Ferreira possuir ainda capacidade para internar mais 200 doentes, encontravam-se «recolhidos no Aljube dez loucos perigosos (...), tornando-se necessário, por vezes, algemá-los para não se agredirem mutuamente»403.
320Idênticas conclusões se poderiam deduzir do número crescente de referências censuradas nos boletins de registo e justificação de cortes neste período, sobre agressões, desmandos ou desvarios realizados por loucos em liberdade, sobre o interesse oficial na promoção do internamento da doença mental, sobre o seu encerramento em calabouços e prisões, sobre a política restritiva e explusiva dos manicómios através do argumento da inexistência de vagas ou de altas precoces, enfim, sobre qualquer notícia indignada ou reivindicativa de medidas a favor da sua hospitalização404. É justamente neste contexto crítico que temos conhecimento de um novo pico no clima de relacionamento conflitual entre as Direcções da P.S.P. e do dispositivo psiquiátrico:
«(...) tem a polícia presentemente treze loucos a seu cargo sem possibilidade de conseguir tão cedo o seu internamento em manicómio, visto o Sr. Enfermeiro Mor dos Hospitais não autorizar o excesso de lotação de doentes no Manicómio Bombarda, e por este facto vê-se este Comando forçado a assistir a espectáculos confrangedores e indecorosos mesmo. E frequente vêr os alienados nus nos calabouços. Presentemente um deles está completamente nu e neste estado o teem visto muitas pessoas — homens e mulheres — que por ali passam de visita aos presos. Recentemente, completamente nua também, ocupou um calabouço uma louca — uma pobre mulher casada e honesta. (...) E é revoltante que o vulgo atribua à polícia este estado de coisas enquanto os verdadeiros responsáveis se acobertam com o facto da lotação excedida, como se um louco, que se não pode mandar para a rua, não estivesse melhor num hospital, ainda que mal acomodado, do que num calabouço insalubre, e abandonado, como coisa inútil, por todos os cuidados clínicos (...)»405.
321Concomitantemente a esta correspondência revoltada, exigindo urgentes providências para os loucos indigentes recolhidos nas ruas da capital, temos notícia (através da análise de alguns antigos processos) de que, no final dos anos trinta e princípios dos anos quarenta, se estabeleciam, amiúde, permutas entre os doentes crónicos do asilo Miguel Bombarda e os agudos que se encontravam na Mitra, bem como do internamento directo no albergue de muitos doentes mentais recusados pelo mesmo manicómio.
322Dir-se-ia que a inauguração do albergue da polícia proporcionou uma solução à P.S.P. para o gravíssimo problema dos alienados que deambulavam na via pública ou que se acumulavam pelos calabouços e pátios do Governo Civil, suscitando inúmeras críticas a esta corporação. Na ausência de estabelecimentos psiquiátricos de retaguarda, o albergue da Mitra ia, portanto, funcionando, mesmo que informalmente (mas com o conhecimento das autoridades oficiais), como asilo de crónicos e incuráveis, sem qualquer vigilância psiquiátrica.
323Que se tratava de uma solução fruste face à situação mais geral das carências de internamento da alienação mental na capital do império era algo deduzível dos boletins de registo e justificação de cortes dos primeiros anos da década de quarenta, insistindo em censurar qualquer notícia acerca, e ainda, de loucos detidos nos calabouços das esquadras da polícia, de outros que vagueavam dia e noite pelas ruas, quer inquietando o público com «insultos», «impropérios», «agressões», «roubos» e «actos indecorosos», quer «vaiados», «gozados» e «agredidos» pela população «inculta», e tudo isso por «se tratar de mal sem remédio» ou por «ser mal a que o Governo não pod(ia) por enquanto dar remédio»406.
324Poderíamos, no entanto, pensar que com a criação do hospital de Júlio de Matos em 1942 e, mais tarde, com a reestruturação do asilo Miguel Bombarda, o número de doentes mentais mendigando nas ruas de Lisboa e subsequentemente internado no albergue da Mitra diminuísse de modo progressivo. Ora, tal não aconteceu e, ao invés, as observações clínicas de Navarro Soeiro recolhidas em 1947/8 apontavam para a manutenção de tal situação.
325Data de uma importante remodelação no asilo Miguel Bombarda que, desse modo, recuperou as suas antigas funções de hospital psiquiátrico, o ano de 1948 marcou também o fim do período de instalação do hospital de Júlio de Matos, elevando-o a estabelecimento «de primeira grandeza entre os demais na Europa seus congéneres e modelar sob todos os aspectos»407. Todavia, «à casa nova», como referia Flores, «era necessário insuflar um espírito novo também». A descoberta de um «resto de razão» no alienado reaparecia sistematizada nos escritos dos nossos psiquiatras. Era necessário «estimular a parte sã da mentalidade do doente»408, «acordar o homem normal no doente», «apelar energicamente a tudo o que resta ainda saudável na sua personalidade»409. A crença na possibilidade da renovação, da reeducação do alienado através de um meio programado persistiu e, diríamos, que atingiu mesmo o seu apogeu410. Para além do investimento nas condições físicas do ambiente hospitalar, sabemos que se deu grande atenção à formação do pessoal médico e de enfermagem411. A mobilização do alienado num colectivo continuou a constituir um importante vector do dispositivo psiquiátrico e a terapêutica ocupacional conheceu um dos seus períodos mais significativos. O aparecimento de novas orientações terapêuticas e, nomeadamente, a aplicação do tratamento de choque (pela insulina, pelo cardiezol, pelo electrochoque, pela acetilcolina), da piretoterapia, da leucotomia, etc., contribuíam para a emergência de um outro surto de euforia curativa.
326A ilustrar esta vocação, estava o quantitativo das altas anuais — que andava à volta dos 70% a 80% do número das admissões — e a percentagem elevada de consultas externas, nunca alcançada em anos anteriores, merecendo lugar de destaque tanto nos relatórios do Hospital Miguel Bombarda como no de Júlio de Matos.
327O afluxo de doentes mentais à Mitra, neste período, não pode pois ser compreendido em função da decadência e/ou da superacumulação dos hospitais psiquiátricos (como na década de trinta) mas, em consequência, da ausência de estabelecimentos de retaguarda para os doentes de internamento prolongado, imprescindíveis ao implemento de uma directriz eminentemente clínica nos hospitais psiquiátricos.
328Depois de Sobral Cid, também António Flores, Almeida Amaral, Barahona Fernandes, Pedro Polónio sonharam com a construção de tais instituições, libertadoras do peso asilar dos hospitais. No entanto, a introdução de um «novo espírito» curativo e recuperador nos dois hospitais psiquiátricos da capital não se fez acompanhar da criação de um asilo ou de uma colónia agrícola para os seus doentes crónicos e incuráveis.
329Similarmente ao que já acontecera na década de trinta, o albergue da Mitra parece ter funcionado como asilo de um universo excedente ou rejeitado pelos hospitais psiquiátricos. Aliás, tal situação reproduzia, na sua lógica, uma outra. Também nos primeiros anos de instalação do hospital de Júlio de Matos se deu uma importante transferência de «doentes que já ali eram considerados incuráveis»412 para o asilo Miguel Bombarda, o que reforçou, certamente, o seu processo de decadência. Do mesmo modo, a partir de 1948, a reestruturação do asilo Bombarda e a sua equiparação a hospital psiquiátrico, fez-se à custa da transferência (directa ou indirecta) de doentes incuráveis para o albergue da Mitra.
330Não possuindo informações sistemáticas que permitam avaliar o volume destas transferências, restam-nos alguns processos antigos que podem apenas ilustrar o tipo de contactos estabelecidos entre o albergue e as instituições psiquiátricas na conjunctura em estudo:
«Veio do Hospital Miguel Bombarda. É demente.»
«Trata-se de um anormal. Já esteve no Hospital Júlio de Matos. Segue para o Pisão.»
«Foi observado na consulta externa do Hospital Júlio de Matos. Não foi admitido por não haver vagas (...).
Detido por suspeita de vadiagem e mendicidade.»
«Sempre é recapturado por pedir esmola, além de ser doente mental e de ter estado internado no Hospital Miguel Bombarda.»
«Propõe-se o internamento do albergado (...) por permuta com outro doente.»
«Aguarda por falta de vagas o internamento no Hospital Júlio de Matos.»
331Nesta linha, será talvez oportuno efectuar uma análise breve da lei 2.006 de 1945 sobre a reforma da assistência psiquiátrica, focando de um modo particular as vertentes indirectamente relacionadas com a Mitra. Vejamos, antes de mais, que instituições eram prescritas nesta reforma. Da base IV.2, resultava que um hospital psiquiátrico era definido pela soma de uma clínica psiquiátrica e de um asilo psiquiátrico. Se a primeira se destinava ao ensino escolar e estava especificamente vocacionada para o internamento de doentes agudos, o segundo dirigia-se preferencialmente aos crónicos. Contudo esta última designação — «Asilo Psiquiátrico» — compreendia ainda uma série de organismos bem diferenciados (Base X.2) que convém mencionar: a) colónias agrícolas; b) asilos para crianças e adolescentes anormais; c) asilos para anormais perigosos e anti-sociais; d) hospícios e, por fim e) colónias e casas de reeducação para alcoólicos, toxicómanos e afectados de outras anomalias.
332Centremo-nos com detalhe em algumas destas alíneas. Quanto à aliena a) é importante recordar que o projecto de transformar a Quinta do Pisão numa colónia agrícola para doentes mentais se esboça logo nos finais da década de quarenta. O desenvolvimento dos contactos estabelecidos entre o Centro de Assistência da Zona Sul (e, mais tarde, Instituto de Assistência Psiquiátrica) e o albergue da Mitra, bem como os subsequentes acordos firmados entre estas instituições, serão tratados no ponto 5. Importa, desde já, sublinhar que à especificação «colónia agrícola» corresponderá oficialmente, a partir de 1956, um segmento do centro de trabalho do albergue — o Pavilhão Psiquiátrico do Pisão. Continuando a análise da lei de 1945 agora no que respeita à aliena c) e à curiosa designação «asilos para anormais perigosos e anti-sociais», basta referir que no projecto de lei do governo a designação que vigorava era a de «asilo-prisão», tendo o relatório do Parecer da Câmara Corporativa aconselhado a retirar a palavra «prisão». A Mitra de outrora e, muito particularmente, o seu campo de trabalho do Pisão, pela sua natureza eminentemente carcerária pode ser também assimilada a esta categoria. Relativamente às alienas b) e e) da Base X.2., respectivamente, «asilos para crianças e adolescentes anormais» e «colónias e casas de reeducação para alcoólicos...», é de notar que, apesar de se terem criado instituições especializadas nessas áreas, o albergue nunca deixou de internar menores com perturbações mentais e um número muito elevado de alcoólicos, sem contudo lhes proporcionar qualquer assistência psiquiátrica.
333Digamos que, num caso por carência das instituições especializadas, noutros casos pela sua pura e simples ausência, o albergue de mendicidade de Lisboa, nas duas primeiras décadas da sua existência, se foi informalmente transformando num equivalente funcional de várias das categorias institucionais previstas na Base X.2, sob a designação de «Asilo Psiquiátrico», pondo em evidência um outro desfazimento entre os objectivos dos albergues da polícia previstos pela legislação e a sua realidade.
334No entanto, como procurámos salientar, este desfazimento mostrou-se funcional para a assistência psiquiátrica da época, permitindo-lhe sobreviver em períodos de crise de superpopulação hospitalar ou, na década de quarenta, fornecendo-lhe condições básicas para o incremento de novas directrizes. Já do ponto de vista da administração do albergue da Mitra, tal situação não era aceite sem resistências, mais acentuadas quando emergiu o projecto de transformar a Quinta do Pisão numa futura colónia agrícola para doentes mentais, dependente do Centro de Assistência Psiquiátrica da Zona Sul. Como veremos em capítulos seguintes, as dificuldades e as vicissitudes que acompanharam a criação de um pavilhão psiquiátrico no Pisão (apenas um e não cinco como estava previsto) inseriam-se no pano de fundo de conflitualidade quase secular no qual os interesses da gestão da ordem pública, a cargo da polícia, e os da assistência psiquiátrica se opunham entre si.
5.6. «Vadios» e «bons governantes»: a construção de um mito de renovação do Estado
335Neste ponto, propomo-nos olhar para a categoria vadio como uma construção mítica, através do qual o salazarismo pôde conceptualizar e justificar o seu projecto identitário de renovação e ressurgimento integral da Nação. Por outras palavras, e inspirados no insight de Lévi-Strauss de que nas sociedades contemporâneas nada se assemelha mais (ou se substitui) ao pensamento mítico do que a ideologia política413, procuraremos mostrar que a construção da ficção vadio era gerida por um modo de produção simbólico.
336Contudo, e apesar do dispositivo simbólico manipulado nos convidar sobremaneira ao exercício estruturalista, através da acentuação de um sistema rígido de oposições entre «bons» e «maus» portugueses — e da afirmação da sua total irreconciliação (dissolvida apenas por submissão dos segundos à ordem idealizada para os primeiros) — tentaremos salientar que também o discurso radicalmente disjuntivo entre «governantes dos bons-portugueses» e «vadios» encobria, no entanto, uma relação de similitude e a transferência de atributos entre os dois termos.
337Por acréscimo, a tomada de atenção de que a criação da ficção vadio se inseria num processo de construção e renovação identitárias levou-nos a considerá-la como uma estratégia accionada pelo salazarismo, mediante a qual, por intermédio da manipulação de um sistema instável de transformações ternárias, se procurava consolidar uma relação de hierarquia entre um Grande (mítico) e uma pluralidade de Pequenos — ora mitificados positivamente, ora negativamente, ora postos em perigo, ora salvos do que há de pior em outros miticamente construídos, e em si mesmos, ora rebeldes ao bom projecto de salvação, ora convergindo agradecidos para as praças do júbilo colectivo...
*
338Embora conscientes do reconhecimento popular de uma diferença não-excessiva face aos vários rostos do vadio-mendigo (mas denegando a proximidade identitária entre o modo de vida daqueles com o do português comum), as elites da palavra salazaristas414 projectaram determinados atributos sobre certos personagens construindo uma ficção, uma espécie de mito negativo415. O vadio-mendigo e suas almas gémeas foram transformados num tipo irreal, numa essência. Ganharam uma dimensão mitológica profunda.
339Em primeiro lugar, neles foi cristalizado o mito da individualidade, da ausência e/ou a recusa do laço e do contrato social mas, ao contrário do homem «em estado de natureza» ficcionado por Rousseau — errante pelas florestas fecundas, ocioso, próximo do sonho, desejando pouco e facilmente satisfeito, sem grande ligação ao seu semelhante, sem depender dele nem o submeter a si416, num estado de «vagabundagem silenciosa»417 ou utilizando uma linguagem elementar e emocional418 — e mais próximo do fantasma de Hobbes — indiferente às noções de legítimo e ilegítimo, vivendo em estado de guerra original no qual a violência e o truque constituíam virtudes cardinais419 — este «selvagem» era também descrito como possuindo instintos perversos, não hesitando em utilizar a manha e o ardil em seu benefício. Intimamente ligado a esta solidão procurada sobrepunha-se não só o mito de um excesso de relação sobre si, um narcisismo exacerbado420, o primado do princípio do prazer, do agora, do idêntico, como o mito de uma relação excessiva ao outro, capaz de o prejudicar por meios ditos «perversos».
340Indissociável desta «perversidade» original, o mendigo-vadio servia ainda de ecrã privilegiado para a projecção de um outro mito: o da errância, preguiça e ociosidade desejadas, numa espécie de anarquismo e prosmiscuidade permanentes, sem lei nem chefe, sem casamento nem família, sem pátria nem Deus. Nele era assim projectada a recusa de quaisquer papéis complementares regidos por uma relação de domínio-subordinação (patrão-empregado; pai-filho; marido-mulher; chefe-súbdito; etc.).
341Se já não bastasse para lhe conceder profundeza mitológica suficiente, o salazarismo configurou nele alguma angústia produtora do mito da dissolução ou da mistura das identidades. A prostituta de rua suscitava a confusão entre as «mulheres decentes» e as da «má vida», o homossexual e/ou o «arrebenta», com seus «vícios contra natura», confundiam as identidades de género, a masculina com a feminina; o mendigo teatral, especialista da ilusão, jogava com as identidades estabelecidas, transformando uma figura jovem num rosto envelhecido, metamorfoseando um corpo saudável no de um leproso, de um estropiado ou de um epiléptico. Os seus dons de transfiguração identitária recordavam uma angústia antiga de retomo ao indiferenciado, um não-tempo original de conjunções excessivas, um «gosto» actual pelas «confusões intemperadas»421.
342Tal associação não constituía novidade. Como vimos anteriormente, ela permeara (mesmo que de um modo não consciente) o discurso da psiquiatria, da crimininologia e da antropologia física do século xix e inícios do século xx sobre a vadiagem (e práticas homologadas). Degenerado, carregando o peso de uma hereditariedade maligna, fixado em estádios subumanos da evolução, autómato ambulatório, atávico ou regredido a uma primitividade ancestral (de caçador nómada), à infância da humanidade e simultaneamente à criança «em estado selvagem» — o «vadio» dissolvia, sucessivamente, várias oposições. Este tipo irreal consubstanciava a primitividade ancestral na actualidade, a adultidade na infância, a animalidade na humanidade, a excepção flagrante a qualquer regularidade na imagem do autómato, excessivamente cadenciado.
343Se reflectirmos, para já, apenas sobre esta ficcção do «selvagem» preguiçoso, ocioso, miserável, que subsiste dia-a-dia com seus ardis, sem construir um pé-de-meia para o futuro, gastando irreflectidamente os proventos da mendicidade e/ou dos pequenos furtos na taberna, rebelde contra o Estado e suas instituições, questionador dos contornos identitários, constatamos que ela cristalizava sobre si várias facetas atribuídas tradicionalmente a uma «primitividade» (negativizada).
344Também no seio das imagens tecidas sobre o «selvagem» (fortemente influenciadas por um contexto económico, histórico e ideológico mais amplo) predominava a associação da «primitividade» ao nomadismo errante, à instabilidade permanente, a uma economia de miséria (por incapacidade de exploração do meio natural devido ao seu subdesenvolvimento técnico), o que a colocava numa condição quase-animal de subsistência mínima, fome e ameaça de morte. Acoplada a esta imagética do «selvagem» miserável, instável, nómada, mobilizando permanentemente todos os seus esforços com vista à subsistência (vulnerável), acrescentava-se ainda uma ideia, algo contraditória face à anterior — a do «primitivo» preguiçoso, indolente, ocioso, pouco empenhado em trabalhar, permitindo-se lazeres prolongados, fumando na sua cama de rede, adorando-se longamente com pinturas e plumas, sempre pronto para a festa ou para a orgia.
345Depois das analogias evolucionistas entre o modo de vida (e o estado mental) do vadio, da criança e do selvagem terem caído em desuso, não se dizia, não se equiparava verbalmente, mas o vadio (vagabundo, mendigo «profissional», «meretriz de rua» etc.) continuaria a ser caracterizado por traços atribuíveis a um estado, estereotipado, de «selvageria»: errância, miserabilismo, preguiça e ociosidade por natureza, indiferença e inadaptação à lei do trabalho, subsistência no dia-a-dia das ruas e das estradas. Discursos político-sociais e discursos antropológicos reproduziam entre si uma mesma noção de primitividade (negativa).
346Degenerado, carregando o peso de uma má hereditariedade, de taras originárias transmissíveis, ambulatório, atávico de caçador-recolector (e não de agricultor-sedentário), regredido ao estado ancestral, possuindo uma mentalidade de criança como os Gaurani422, partilhando com os Yanomami o desprezo pelo trabalho423, «preguiçoso» como os Índios da América do Sul, «miserável» como os caçadores nómadas dos desertos da Austrália e da África do Sul424, a ficção «vadio» permitia fixar, ainda, outros traços constitutivos da noção de primitividade. Do mesmo modo que, por exemplo, os descobridores europeus do Brasil se referiam aos Tupinambás como «gentes sem fé, sem lei, sem rei»425, os discursos produzidos sobre o mendigo-vadio nas primeiras décadas deste século em Portugal concebiam-no como um indivíduo descrente à Pátria, de «frouxa religiosidade», desobediente por sistema, rebelde aos imperativos categórios do projecto societal politicamente dominante (família, trabalho honesto, respeito e submissão às hierarquias, obediência e gratidão ao amigo da nação e ao seu chefe, etc.).
347A convenção tradicional mas também científica ocidental do valor universal (e «natural» para o salazarismo) das relações de coerção, subordinação e hierarquia — os factos sociais reconhecem-se «pela particularidade de serem susceptíveis de exercer uma influência coerciva sobre as consciências particulares»426 lá dizia Durkheim — entrelaçavam, de novo, as representações sobre alguns primitivos e as projectadas sobre vadios e seus afins.
348Tal como para certos «selvagens» «a ideia de dar uma ordem ou ter de obedecer» (salvo em determinadas circunstâncias) era algo de «totalmente estranho»427, também as imagéticas sobre vadios salientavam a sua criação à margem de todas as normas, conducentes, no estado adulto, a uma desobediência crónica (a Deus, ao chefe de Estado, ao patrão, ao pai), a uma rebeldia a qualquer relação de comando-obediência, de domínio-subordinação.
349A história do pensamento etnológico deve nomeadamente a Sahlins (1972), a Lizot (1973) ou a Clastres (1974), a desconstrução desta noção de primitividade (negativa) e a denúncia da neurose etnocêntrica do ocidental (homo economicus e homo estatal, por excelência, incapaz de olhar para as diferenças, sem as reduzir a si e finalmente as abolir). Num parêntesis breve, a economia da miséria, da subsistência, da precaridade é-nos apresentada, depois do trabalho de Sahlins e Lizot, como uma sociedade de abundância, do lazer, da recusa do sobretrabalho, uma «economia da recusa da economia» quando esta produz heterogeneidade, divisão, desigualdade excessivas; o nomadismo, a instabilidade permanente, outrora assimilados a miserabilismo, constituem, pelo contrário, a condição necessária para o equilíbrio de tal economia. Retomando a questão de Sahlins de outro ângulo, também Clastres questiona a universalidade do laço social coercitivo, do poder político fundado unicamente por relações de comando-obediência. Essas gentes «sem fé, nem lei, nem rei» surgem-nos, depois de «Sociedade contra o Estado», como sistemas sociais de poder não coercitivo e não violento, sem chefes ou com chefias impotentes sem funções coercitivas, escravos da lei da «generosidade», «pacificadores profissionais», sociedades que lutam contra o risco de um poder distanciado dela mesma, «de um poder que lhes escaparia».
350Todavia, a primitividade (negativa) do vadio não se reduzia, como vimos, à errância, à miséria, à preguiça ou à recusa da submissão a um chefe/Estado partilhadas com algumas imagéticas proferidas e requestionadas sobre certos «selvagens». Ele e o «primitivo» condensariam ainda (e pelo menos) o mesmo «gosto natural pelas confusões intemperadas»; vadios e sociedades exóticas podiam ser assimilados entre si por uma mesma «indiferença» ou «insensibilidade» às diferenças428. Evocavam por demais o retorno à babelização....
351Também ao nível das soluções propostas para a extinção deste «primitivo» (próximo, interno e mais perigoso, portanto) se redescobriam curiosos pontos de identificação com o «selvagem». Paralelamente à implementação de uma colonização interior (cf. pontos seguintes), a solução idealizada (e mesmo praticada) por vários sistemas de repressão à vadiagem (e entre eles, pelo português) consistia na transferência de vadios e seus afins para as colónias429. A assimilação entre vadios e indígenas ganha portanto contornos mais nítidos se tomarmos em conta esta identidade, multissecular, do espaço de punição dos primeiros ao espaço «natural» dos segundos, como se se tratassem de dois parentes classificatórios marcados por uma mesma «primitividade», ambos a colonizar, a «assimilar cultural e espitualmente», orientando-os no sentido das concepções morais e sociais «civilizadas»430, a sujeitar ao princípio categórico do trabalho, de molde a «extirpar os defeitos incrustados e os vícios»431 dos primeiros e a natureza «algo paradisíaca, algo pecaminosa»432, dos segundos. A história do degredo é mais complexa. Se o vagabundo (o ocioso, o delinquente e todos aqueles expulsos da mãe-pátria) conheceram a metamorfose do negro, do índio e do colonizado, também eles próprios se fizeram óptimos soldados, marinheiros e colonizadores433.
352Por acréscimo, sobre esta mesma figura do vadio — «reservatório» excessivo de primitividades negativas (desordem, confusão, prosmiscuidade, ausência de regras, recusa das hierarquias «naturais», etc.) — equivalente, num outro plano, à enfatização da «decadência», da «tristeza», do «pessimismo doentio», das guerras e das «lutas intestinas», etc., do sistema político anterior que o discurso ideológico salazarista insistia em dramatizar434 para, num segundo tempo, afirmar a urgência da substituição da (des)ordem «velha» por uma «nova» sociedade, com um «novo espírito e uma mentalidade nova»435, «renascida» e «engrandecida» pela obras regeneratórias de um novo poder político436 — recaiu também uma espécie de «intocabilidade» e um mito sobre os seus «poderes» contaminadores ou poluentes. Sem denegarmos os fundamentos médicos, higienistas, epidemiológicos da contagiabilidade social da sífilis ou da tuberculose, não podemos escamotear o peso ideológico que adquiriu na época a ameaça de contaminação moral projectada sobre vadios e seus assimilados.
353Campo de múltiplas evocações (Sperber, 1974) e símbolo multivocal (Turner, 1967), o vadio que não pertencia a nada nem a ninguém, que era outro constantemente ou, tantas outras vezes, confundia em si determinadas qualidades identitárias que se queriam disjuntas, era, portanto, investido de poderes (quase mágicos) sobre o outro. Sedutor, conhecedor de tantas manhas, exibicionista de delitos e de aventuras sem fim437, ele era a «má companhia» («impura») do «bom-português» descrito como um ser passivo, influenciável, de «pureza» vulnerável e, por isso, facilmente corruptível. Em alguma imprensa oficial, chegava-se mesmo (delirantemente) a afirmar que o seu poder de metamorfose do «puro» em «excremento», do ainda «são» em pústula purulenta, do «vivo» num «cadáver social» era tanto ou mais pestilento que a ameaça da sífilis, da tuberculose, da tara hereditária ou da loucura ‘sagrada’ que ele ameaçava, noutro nível, propagar e perpetuar438.
354Apresentados alguns dos mitemas projectados sobre os vários rostos da vadiagem, podemos, resumidamente, afirmar que o modo de produção simbólico de uma identidade marginal, actuado pelas elites salazaristas, condensava sobre um mesmo personagem, quer a tendência excessiva para o mesmo (leia-se aqui a recusa do laço com o outro/diferente), quer a confusão ou a mistura do mesmo e do outro; contudo, a esta tendência (ficcionada) para o idêntico, ao desejo (projectado) de união dos opostos identitários e/ou de recusa da tensionalidade (complementar ou não) entre eles, a ficção politicamente dominante acrescentou, ainda, a perigosidade (ou o poder subentendido) da contaminação metamórfica do outro, isto é, a capacidade (excessiva) de seduzir o outro na direcção da perda da sua identidade diferenciada.
355Sintetizando agora as principais operações simbólicas manipuladas, podemos concluir que o processo simbólico utilizado implicou a consolidação de uma primeira triangulação virtual, pelo desdobramento do termo vadio. Este desdobramento foi conseguido por intermédio de duas operações que poderíamos designar e definir como uma a) desrealização social do actor vadio, (pela recusa de pensar, nomeadamente, as circunstâncias ambientais [e as tolerâncias sociais] da vadiagem e suas práticas afins) seguida da sua anulação e de uma b) hiper-realização mítica do vadio (alçado ao estatuto de anti-herói) e sua enfatização.
356Assim, a triangulação (condição deste processo simbólico) tendia (mas apenas pontualmente) a configurar-se como uma oposição disjuntiva entre «representantes dos bons-portugueses», por um lado, e uma essência mítica (um anti-herói ficcionado), por outro, (com anulação dos vadios «sociais» e das suas circunstâncias). Por sua vez, como foi referido, este movimento fazia-se acompanhar da criação e da propagação de um «corpus mítico» exemplar sobre os perigos advenientes de uma dinâmica que levaria à babelização, à desordem total, à decadência da raça e da nação portuguesa, da qual o então alçado ao papel de anti-herói (entre outras figuras) seria o principal agente.
357Todavia, quando nos debruçamos mais minuciosamente sobre esta (aparente) oposição mítica, notamos a proximidade excessiva (de atributos e projectos) entre a «cabeça» governante dos bons-portugueses e a essência mítica «vadio» (por ela ficcionada). Esta última conduz-nos talvez ao cerne mais secreto do seu sujeito produtor, revelando-nos a fantasia salazarista de uma sociedade ideal, excessivamente homogénea, intolerante à diferença e ao conflito entre opostos. Por sua vez, anuncia-nos já, sub-repticiamente, um projecto de apoderação do atributo ameaçante mas invejado, projectado no vadio — o poder de metamorfose do outro — garante agora de uma transformação alquímica inversa, agida pelos «bons governantes»: a do «excremento» em «ouro», a do «cadáver putrefacto» em «vida», a da «hereditariedade maligna» numa «natureza nova», renascida; a do «caçador nómada» em «agricultor sedentário», a da «criança selvagem» (perversa polimorfa) no «chefe de família» (viril e honrado) ou na «esposa-mãe-educadora» (dessexualizada), etc. Vadios mitificados e «bons governantes» partilhavam assim a mesma intolerância ao laço social com o outro/diferente, ambos comungavam o desejo (do poder) de transformar o outro em partes e qualidades do mesmo.
358Deste modo, a própria existência de um combate mítico entre especialistas da metamorfose do «ouro» em «excremento», por um lado, e purificadores do «excremento» em «ouro», por outro, exigia (como condição necessária) a dissolução da relação binária e, em sua substituição, a emergência de uma segunda triangulação. Repousando na identidade (ocultada) (de atributos e projectos) entre dois rivais hiper-realizados miticamente e equiparados em poder (ambos activos e detentores de um projecto voluntário de corrupção/educação), esta segunda triangulação implicava, como vimos, a existência de um terceiro termo ocupado pelo actante «povo português» — corruptível, seduzível, influenciável, susceptível de ser moldado (como uma criança) quer pelo herói governante, quer pelo anti-héroi. Numa leitura esquemática, teríamos:
359O movimento seguinte de transformação deste sistema simbólico esvaziava o combate mítico entre «bons governantes» e «vadios», por intermédio da utilização de uma arma poderosa — a da classificação patológica ou criminogénea, capaz de imobilizar o «inimigo» num espaço carcerário e de o afastar, ao mesmo tempo, do terceiro actante, o «bom povo português» de pureza vulnerável. Contudo, logo o discurso simbólico se encarregava de afirmar novas tensionalidades triangulares.
360Como veremos nos capítulos seguintes, entre o herói e o vilão (neste momento já despojado do seu poder de anti-herói), intrometer-se-á um terceiro termo ficcional — o «vilão que quer regenerar-se» — legitimador da intervenção regeneradora do herói. A lógica (sacrificial) da reeducação integrativa intramuros — morte simbólica seguida de um renascimento às mãos da P.S.P. do Estado Novo — permitiria (idealmente) o movimento reconjuntivo: a transformação (sacrificial) do «resto social» em «corpo» renovado da Nação.
361Porém, sob a ameaça do desaparecimento da triangulação, eis que voltará a emergir um novo terceiro termo — o «incorrigível» (indomável, irregenerável, «filho» ingrato, reincidente, crónico, deliquente habitual, etc.), que manterá a tensionalidade triangular, impedindo que tudo retome ao estado do «bom povo português» sem exterioridade interior.
362O modo de produção simbólico da construção da oposição identitária entre governantes e vadios, assentando num sistema de duas oposições (quatro termos) gerido pela clivagem hierarquizante de ambos os pólos (de molde a introduzir a oposição mítico-social «grande» versus «pequeno»), parece insistir numa dinâmica ternária que consecutivamente opera um sistema de transformações, enchendo (miticamente), esvaziando (socialmente), reinscrevendo (patologicamente) etc., um ou mais dos termos do sistema, até que — motivação axiológica do processo simbólico — se consolide uma relação hierárquica entre «governantes» e «bons-portugueses do povo» (pela qual os primeiros podem tratar os segundos como «bons-portugueses pequenos» que precisam de ser educados e purificados por «grandes governantes» regeneradores) e, em simultâneo, o termo enunciante do processo atinja, de forma (desejadamente) estabilizada o estatuto miticamente grandioso de bom governante.
5.7. Do sincretismo à diferenciação marginal: a criação da colónia agrícola do Pisão
363Transparecendo nas memórias individuais, os paradigmas imagéticos do passado institucional produzidos pelo universo de maior tempo de internamento, estruturavam-se à volta da ideia de «depósito» marcado pela heterogeneidade das situações em contacto físico, social e simbólico, bem como da noção de «saco sem fundo» de uma sociedade que se vendia como perfeita, plana, sem conflitos, recusando qualquer troca simbólica com os desvios do seu próprio metabolismo, isto é, com aqueles que contrariavam de algum modo os códigos prescritos, que contaminavam «os bons costumes», que exibiam os seus «vícios» aos visitantes e com todos aqueles que a ideologia científica da época não podia curar e/ou regenerar.
«Dantes havia mil e tal pessoas, mães com filhos, crianças esquecidas, isto era um cais para muitos deles, casais, presos, pessoas doentes, velhos...»
E..., 79 anos, internado em 1944.
«Vinham do Norte, do Alentejo, de todo o país, havia tembém muitos estrangeiros, um polaco, um argentino, alguns espanhóis... e os clandestinos...»
F..., 84 anos, internado em 1948.
«Antes das senhoras (assistentes sociais) cá estarem, isto era uma casa de ladrões, de gajos maus, violentos que roubavam e matavam, doidos, crianças... Vinha cá parar toda a gente. Mulheres da má vida, paneleiros, mas amansavam logo.»
Jr..., 81 anos, internado em 1943.
«Inválidos, deficientes físicos e mentais que não se podiam manter, alguns loucos perigosos e sem tratamento, outros sem condições de vida, que não se orientavam, muitos alcoólicos que se tornavam delinquentes, tuberculosos pulmonares, os que não queriam trabalhar e que praticavam a vadiagem e outros delitos, esses vinham pelo Tribunal de Execução das Penas.»
M..., 77 anos, internado em 1946.
«Eu pensava que isto era um asilo, e afinal quando cá entrei, era uma casa de malucos e maus, com crianças abandonadas, mães com 4 e 5 filhos...»
I..., 76 anos, internada em 1950.
«Estavam cá muitos doentes da cabeça, pessoas idosas, crianças, mulheres de mau porte, mas eu não reparava, não perguntava nada, não queria saber. Não ligava.»
L..., 88 anos, internada em 1945.
«Cheguei cá. Vi pessoas conhecidas de certos sítios. Conhecíamo-nos lá de fora, da rua, das cadeias..., da vida. Estavam cá filhos de muita mãe e de muito pai... Homens da pior espécie... Era a pinga, era a briga, o roubo... (...) De manhã, contavam-se as poucas vergonhas que se passavam à noite. (...) As mulheres eram do piorio, muito ordinárias. (...) Havia 1800 pessoas e 400 e tal crianças. Isto era do outro mundo.»
D..., 71 anos, internado em 1948 por medida de segurança.
364Pela absorção em enxurrada de todos estes personagens na mesma instituição instalava-se a mistura, a confusão, o «pandemónio», o depósito heteróclito, reinstaurava-se a contaminação e a propagação daqueles «estados de perigosidade», porém, no interior de um espaço bem delimitado. Nesse sentido, e depois da primeira grande purificação, sobrepunham-se novas compulsões de limpeza e separação, mas agora no seio do próprio meio intrainstitucional. Na Quinta do Pisão, criou-se uma colónia agrícola e, deste modo, a Mitra dos anos quarenta passou a arrumar cada tipo de situação poluente num lugar específico.
365Para a compreensão desta segunda separação convém voltar a salientar que, no conjunto das estratégias subjacentes à exclusão social destas figuras, se descobria uma ideologia de recuperação ou de regeneração. Procurando «reorganizar e robustecer o país com os princípios da autoridade, da ordem, da tradição nacional, conciliados com aquelas verdades eternas que são felizmente património da humanidade e apanágio da civilização cristã»439, «a obra nacional de renovação» incidia não somente em aspectos económicos e políticos. Pois, para além destes, que representavam «apenas as materialidades a bem dizer inferiores», havia «toda a vida moral deste país a regenerar»440.
366Com efeito, através de um processo de institucionalização, o «mau-português» era localizado, afastado do seu meio de pertença — corrupto ou corruptor — e, acima de tudo, tornava-se abordável, isto é, passível de ser recuperado por um ambiente envolvente pensado como regenerador. O testemunho de um dos directores do albergue, que acumulava ainda a Direcção do Serviço de Repressão à Mendicidade, neste período, é duplamente significativo:
«Isto era um centro para toda a gente, que os ia rebuscando para serem gente (...). O sistema de educação cívica estava e está muito atrasado. As pessoas começam a formar um período de marginalidade, deixam de trabalhar, são fracas psiquicamente, porque isto é uma raça depauperada com o vinho, ficam sem vontade, começam a esmolar, estão desfasadas do ritmo da vida, mas não atingem ainda o grau do punível, mas também possuem condutas morais perturbadoras e não podem ir para os estabelecimentos de assistência normais. Daí a criação de estabelecimentos capazes de recuperação para essas pessoas que ainda não caíram propriamente na marginalidade. Foi essa a minha intenção.»
367Ora, se nos cingirmos ao universo internado administrativamente no albergue verificamos que, para a maioria, o Pisão441 era essencialmente prescrito como castigo (cf. Quadro 12). Esta colónia agrícola, afastada de Alcabideche por um percurso de alguns quilómetros, numa altura em que os meios de transporte eram raros, e rodeada por uma área florestal e de exploração agro-pecuária de cerca de 500 hectares isolava-se naturalmente das vilas mais próximas. Por tudo isto, a transferência para o Pisão implicava, desde logo, um distanciamento punitivo. Por outro lado, e como desenvolveremos nos pontos seguintes, era neste contexto que o ideal de recuperação pelo trabalho agrícola imperava, se reforçava a disciplina policial e se investia com mais dureza nos castigos corporais.
368À «incompatibilidade» com os códigos (idealizados) pelo salazarismo para o «bom-português», que emergia como justificação oficial da segregação inicial (exterior/Mitra), sucedia-se a rebeldia ao pacto de regeneração, que marcava o ritmo da segunda separação (Mitra/Pisão).
369Para o rebelde ao trabalho que se opunha frontalmente à ideologia do seu internador ou para o simulador de invalidez e de outras doenças que o desculpassem de trabalhar, a estadia no Pisão prendia-se, forçosamente, com a aquisição de hábitos de trabalho.
«Deve seguir para a Quinta do Pisão, ficando aí em regime de regeneração como castigo pela sua rebeldia ao trabalho.»
«Vão para o Pisão a fim de criarem hábitos de trabalho. São quatro heróis da Casa dos Rapazes da Cidade. São uns autênticos malandros.»
«E rebelde, vadio e já tem praticado furtos diversos, seja internado no Pisão até dar mostras de querer trabalhar.»
«Andava encostado a um pau e queixava-se da perna esquerda para assim se livrar que o fizessem ir trabalhar.»
«Leva-me a crer que a dor que dizia ter era fingida. Transfira-se para o Pisão para lhe incutir hábitos e disciplina de trabalho.»
370Incidindo desta vez sobre o plano de funcionamento projectado e posto em prática pelo amigo recuperador (cf. ponto seguinte), o desordeiro surgia como figura privilegiada de exclusão. Acreditando-se nas suas vantagens «curativas» e simultânea e contraditoriamente servindo como retaguarda para uma espécie de perigosidade «crónica», o Pisão permitia assim que na sede do albergue se ostentasse uma fachada de harmonioso funcionamento regeneratório.
«(...) por se tratar de um indivíduo com tendências para desordeiro, provocador e em certos momentos tresloucado, segue para o Pisão.»
«Vai para o Centro de Trabalho em virtude de ser um grande desordeiro e muito amigo de agredir aos seus camaradas.»
371Não se abatendo apenas sobre os produtores de caos, a profecia de exílio no Pisão alastrava-se também ao insolente e ao desobediente. O primeiro estrebuchava ao menor ensaio de humilhação narcísica. De resposta pronta e proferida imperiosamente no mesmo tom, não atentava à hierarquia institucional, não permitia que ninguém manchasse a sua virilidade. Resistindo obstinadamente à submissão dava o flanco à pancada do polícia desrespeitado. O que estava assim em jogo, para o insolente, não era a sua relação face às normas mas um confronto homem a homem, na defesa da sua identidade. Nele, reconhecemos o ambiente de certos bairros, ruas, tabernas, casas de jogo, etc., de outrora, lugares onde era, afinal, um habitual.
«O albergado na minha presença foi de uma incorrecção imperdoável, pois, tomou uma atitude arrogante com modos bruscos e provocantes dizendo que, efectivamente; pegou no pau da vassoura no intuito de se defender se fosse atacado, acrescentando que ninguém dentro do albergue estava autorizado a bater-lhe (...). É verdade ter levado algumas bofetadas, mas unicamente para o conter em respeito (...) Foi-lhe atribuído como castigo do seu procedimento a transferência para o Centro de Trabalho do Albergue Distrital da Mitra.»
«Começou a proferir em voz alta as seguintes frases. Você é um bandido que anda aí, gosta muito de molhar a sopa e só quer o mal dos desgraçados mas se me toca eu esfaquei-o todo que há-de ficar marcado no focinho para toda a vida. Em acto contínuo tirou da algibeira da calça uma raspadeira com a qual tentou por várias vezes agredir-me, o que não levou a efeito pela minha rápida anulação dos seus movimentos agressivos, vendo-me para isso forçado a usar da força muscular. Transfira-se para o Pisão.»
«Respondeu-me que todos nós queríamos fazer dêle maluco, mas que mais malucos eramos nós, incluindo o Sr. Capitão. Em virtude de uma insolência desta natureza determinei que o albergado desse entrada no calabouço da Quinta do Pisão, até resolução de V. Ex.a»
«Este internado é uma língua depravada, para ele todos os polícias são ladrões. Segue para a colónia para amansar.»
«(...) não cumpriu a minha ordem e disse ainda que fosse eu a ir buscar a vara. Em face da recusa à minha ordem e ainda à falta de respeito para comigo, peguei-lhe num braço com o fim de o levar a tirar a supracitada cana donde estava, mas o mesmo deitou-se no solo e disse que nem de rastos ia (...) Vendo que mesmo com bons modos era desrespeitado pelo referido albergado, usei da força muscular e auxiliado pelo meu camarada trouxémo-lo juntamente com outros internados indecorosos e proferindo palavras ofensivas à nossa moral.»
372Também no desobediente, a vertente que mais pesava era a insistência em não se subjugar ao plano normativo traçado. Porém, colocado face a um conjunto explícito de normas, subvertia-o sem se envolver, num confronto corpo a corpo, com o internador.
«Participo a V. Ex.a que hoje pelas l0h, quando me encontrava de serviço de vigilância foi por mim apanhado o albergado (...) com uma garrafa com um litro de vinho e outra com 3 decilitros de aguardente (...). O seu possuidor deu entrada no calabouço da Colónia do Pisão.»
«Participo que hoje pelas 18h, o albergado (...) entrava nos Aquartelamentos transportando um embrulho que se tornou suspeito. Revistado, verificou-se que o dito embrulho continha aproximadamente 2 Kg de pontas de cigarros, que se supõe fossem para transacionar com diversos albergados, o que está superiormente proibido.»
«Participo a V. Ex.a, que hoje pelas 16 h, quando me encontrava na cantina a servir fregueses, ali passou o albergado (...), o qual, aproveitando a minha distracção, furtou cerca de 250 gramas de acúcar de dentro de um saco para o bolso (...) facto que é useiro e veseiro. Segue para o Pisão.»
«Segue por determinação superior. Este albergado tem de pagar ao albergue a quantia de 150$, proveniente de uma camisola que de lá extraviou. É um perigoso gatuno.»
«(...) punido com cinco dias de calabouço, no Pisão, por transacionar pontas de cigarros dentro das camaratas, o que é contrário à boa disciplina do albergue.»
373Um outro traço do rebelde ao projecto do amigo recuperador dizia respeito não apenas à inobservância das regras, da hierarquia e da ordem institucional mas residia na traição da confiança depositada pelo internador. O reincidente demonstrava, pela sua prática repetidamente marginal, pela sua delinquência crónica, a ineficácia do projecto regenerador. Consequentemente, era transferido para a Quinta do Pisão:
«Regressa a essa colónia de onde havia saído, por ter sido preso por andar amendigar.»
«Deve aí ser castigado em 15 dias sem tabaco em virtude de ter sido encontrado na rua completamente ébrio.»
«A este indivíduo havia sido concedida licença por essa colónia afim de ir à sua terra assistir ao funeral da mãe. Foi preso nesta cidade por andar a esmolar. Regressa à situação anterior.»
374Por último, o evadido integrava um dos graus mais elevados na hierarquia dos que se opunham ao pacto regenerador. Tanto no caso do reincidente como no do evadido, a sua «ineducabilidade» trazia-os, sempre, de volta ao Pisão.
«Este pardal é um evadido dessa quinta e também já se evadiu da camioneta que o conduziu para aí, tem já 6 fugas e, logo que possível, fará o mesmo.»
«Este indivíduo é um evadido dessa Quinta. Devia cumprir 8 dias de calabouço na Mitra, por ordem do nosso capitão. Mas como segue para aí, deve cumprir o mesmo castigo nessa quinta.»
«Este melro é um evadido dessa quinta, segue por ordem superior. É muito manhoso.»
375Acantonado nesta colónia, estava ainda um outro grupo de personagens. Enquanto que anteriormente a oposição (passiva ou activa) às regras de funcionamento do albergue estava subjacente à prescrição do castigo, neste grupo impunham-se novas ordens de justificação. Logo à partida, este conjunto aparecia investido de uma espécie de cronicidade, que contrariava o optimismo regenerador da instituição.
376Era integrado, em primeiro lugar, pelo homossexual, cuja prática manchava a moral institucional mas, acima de tudo, porque esta figura evocava poderosas fantasias de contaminação. Para a ameaça que dele emanava, prescrevia-se também a transferência para o Pisão, muito embora tal facto possuísse algo de contraditório. A concentração de albergados do sexo masculino, que mantinham práticas homossexuais, num mesmo espaço fechado, deixou resquícios ainda hoje visíveis no CASP (ex-anexo do Pisão), nomeadamente, no maior número de práticas homossexuais oficialmente conhecidas, em comparação com o verificado no CASL.
«(...) por se encontrarem nos lavabos da respectiva camarata a provocarem actos imorais, deram entrada no calabouço do Centro do Pisão.»
«O internado (...) havia praticado actos imorais nas retretes, com o também albergado (...) na ocasião em que ali fora satisfazer uma necessidade fisiológica, praticando-lhe uma hemorragia anal. Transfiram-se para o Pisão.»
«Prática de actos imorais. Segue por determinação superior.»
«É de acentuar que o albergado (...) é homem falho de moral, pois é voz. corrente que ele persegue os outros albergados para fins desonestos, sem que contudo se tenha conseguido apanhá-lo em flagrante, motivo porque é de aconselhar a sua transferência para o Pisão.»
377Aparentados, pela sua «incurabilidade», a vários rostos transferidos para a Quinta do Pisão, os doentes mentais inseriam-se também neste grupo. «Tresloucados», «tarados», «anormais», «loucos perigosos», «dementes», fosse qual fosse o referente de tais significantes, em todos eles repousava uma forma de estar disruptiva face ao funcionamento institucional. Considerando o modo com eram descritos — pela «fúria» e pela «bestialidade», pelo delírio e pela incomunicabilidade, pelo desajustamento e pela imprevisibilidade — operavam, por um lado, como geradores de desordem, confusão, crise, caos. Por outro lado, ingressavam no domínio do irrecuperável, do incolonizável. Fracassando no seu projecto de regeneração institucional (no qual não estava presente a assistência psiquiátrica), o internador procedia apenas à evacuação dos doentes mentais para o Pisão.
«É um tarado que nada faz a não ser obrigado. Não é do meu conhecimento darem-lhe ataques mas é bem visível a sua taradice. (...) Recusa-se a trabalhar.»
«Parece ser anormal. De início, nada fazia, mas depois de muito insistir com ele, tem ido com os grupos de inválidos que se vão entretendo a britar pedra.»
«(...) e após breve troca de palavras entre ambos, o (...), munindo-se de um pau, vibrou-lhe várias pancadas no corpo e no braço. Averiguei que não há nada que justifique tal agressão, a não ser que o agressor é um atrasado mental.»
«Segue para a colónia. (...). É um louco perigoso. Não deve ser muito contrariado.»
378Em jeito de síntese, o testemunho do director do albergue na altura revela-nos uma tipologia das figuras envolvidas na dissociação interna da instituição — Sede/Pisão — que confirma o ensaio de quantificação traduzido nos quadros 12 e 13, bem como a construção que temos vindo a apresentar.
«No Pisão, estavam os elementos delinquentes, mais perturbadores (...). O sistema de recuperação prisional é muito fraco. Só o que tem família é que consegue. Aqueles indivíduos que acumulavam penas, que já não tinham condições para ganhar a vida, incapazes, muito desligados, normalmente homossexuais que depois contaminavam os novos, também iam para o Pisão. Depois, iam as grandes deficiências físicas, os desmandos de comportamento (...). Os altamente contagiosos (os tuberculosos) e os alcoólicos, também eram transferidos para a colónia.»
379Todavia, depois da alusão à «malandrice» e à «maluquice», da menção da reincidência e da perversão, da impureza permanente e da poluição moral, como semióticas justificativas desta separação no interior do albergue, o testemunho anterior enriquece, ainda, este leque de figuras, somando-lhe o alcoólico e o tuberculoso «altamente contagioso». Podemos, aliás, afirmar que a acusação de «desordeiro», «insolente», «tresloucado», «doido» se socorria, por vezes, do alcoolismo incorrigível como quadro explicativo dos comportamentos disruptivos destes personagens. É também neste contexto que o alcoólico passou a constituir uma figura quantitativamente relevante no grupo das figuras da irrecuperabilidade.
«(...) por motivos pessoais se insultavam (...) tendo o (...) pegado num pau e descarregado para cima do (...). A origem da agressão foi o álcool que os dois tinham ingerido.»
«São os dois alcoólicos. Seguem para o Centro de Trabalho mas o (...) é pior. Fica castigado com um mês sem tabaco.»
380De outro género, mas assimilado pela sua incurabilidade e pelo risco de contaminação que veiculava, o tuberculoso era evacuado para o Pisão e, como já vimos, isolado num pavilhão à parte.
381Na arrumação a que procedemos para apresentar as figuras desta segunda segregação (Sede/Pisão) é importante constatar um outro grupo de albergados. De facto, a construção das diversas instalações realizadas no albergue distrital de mendicidade de Lisboa esteve quase exclusivamente dependente do trabalho dos seus internados, sob vigilância dos guardas da P.S.P.. Era neste quadro institucional que, nas transferências para o Pisão e nos regressos à Sede, encontrávamos um outro personagem — o trabalhador relativamente especializado (contrastando com o discurso, veiculado para o exterior, da perpétua ociosidade do vadio-mendigo), canalizado ao sabor das necessidades correntes entre a sede e o Pisão:
«Segue para o Pisão. Este internado parece que percebe de construção de carroças.»
«Segue por determinação do capitão. É carpinteiro.»
«Em requisição de serviços. É pedreiro.»
382Como acabámos de ver, a transferência para a colónia do Pisão não comportava sempre uma natureza punitiva explícita, muito embora a possuísse no caso de certos «poluentes» e dos «inimigos» do «pacto regenerador». O Pisão funcionava, complementarmente, como uma retaguarda escondida para as várias figuras da irrecuperabilidade e, ao mesmo tempo, como um espaço de aproveitamento da força de trabalho daqueles albergados mais qualificados.
383Como se verifica no quadro 12, outras variáveis eram ainda responsáveis pelo quantitativo de transferências da Mitra (Sede) para o Pisão, neste período. Todavia, não as devemos homogeneizar com as primeiras. Esta asserção vale particularmente para a categoria «albergados regressados» e para a de «albergados curados». O que estava em jogo nos primeiros era, ora uma ida de licença, ora uma deslocação à sede para tratarem de assuntos diversos (serviço militar, tribunal, etc.). Nos finais da década de quarenta, o fluxo de «albergados curados» resultava de idas à sede no propósito de receberem tratamento médico. Contudo, tais fluxos só terão um peso considerável nos anos posteriores do funcionamento do albergue e serão tratados em pontos posteriores.
384Na sequência de uma tradição secular que equiparava os delinquentes habituais e até os de difícil correcção ao vadio, o internado a cumprir medida de segurança (atribuída pelos Tribunais de Execução de Penas) ou o «cadastrado» à ordem da P.S.P. constituíam outros rostos habituais do Pisão, neste período. «Entregues ao Governo como vadios» ou simplesmente «à disposição do Comando Geral da Polícia de Segurança Pública», «presidários» e «cadastrados», como eram denominados, preenchiam algumas das vagas deste estabelecimento polimorfo e de capacidade quase ilimitada.
385À cumplicidade que unia estes personagens com o albergado insolente, com o desordeiro ou com o desobediente, somava-se ainda um longo passado criminal e policial, a sabedoria acerca dos quotidianos institucionais e, nomeadamente, das suas estratégias informais, o sucesso «como mestres dos mais novos», «menos viciados», características que os investiam como opositores privilegiados do «pacto de regeneração». Para eles, prescrevia-se igualmente o distanciamento punitivo, a obrigação de trabalhar e, clarificando o seu estatuto de presidiários e cadastrados, o endurecimento do regime policial-carcerário, o estigma de uma farda diferente e «aquartelamentos» distintos.
«Deve ser aí castigado em 15 dias sem tabaco, por ter vendido os sapatos.»
«Este pardal roubou um paralítico dos Inválidos, onde foi faxina, a quantia de 500$, importância que deve pagar com o corpazil que tem, a trabalhar.»
«Este indivíduo costuma parar poucos meses nessa quinta, chegado aqui, passa-lhe logo a doença, diz que não pode trabalhar, apenas comer.»
«Este macacão deu agora em D. João conquistador, razão por que é enviado a essa colónia a fim de aperfeiçoar o seu sistema de conquista com alguma cabra que por aí se encontre desejosa de amor.»
«Trata-se de um pederasta. Segue para amansar.»
«Segue por falta de respeito a um superior. Este Cavalheiro tem a mania de fazer-se engraçadinho.»
386Por fim, o testemunho de um dos guardas que prestava serviços na colónia do Pisão, à época, chama-nos a atenção para um outro grupo — as brigadas de trabalho, compostas por presos de penas curtas:
«Isto dantes era só mato. Não havia albergados suficientes para surribar (...). No meu tempo, vieram uns 60 presos, uma brigada de trabalho, que com alguns internados fizeram isto tudo. (...). Há colegas mais antigos que falam em 300. Andávamos com metralhadoras, se eles fugissem, os responsáveis erámos nós; éramos autênticos guardas de cadeia. (...). Outros, vinham dos tribunais de Penas, ladrões, conflituosos, gente de grande lábia, manhosos (...), depois, eram vadios e mendigos, apanhados nas rusgas. Pró Pisão só mandavam os ‘bons-rapazes’...»
387De acordo com os Quadros 12 e 13, em 1945442, a percentagem de presos entrados no Pisão superava em larga medida a de albergados e presidiários também para lá transferidos. Todavia, três anos mais tarde, esta situação foi completamente invertida. O quantitativo de presos esbateu-se até à anulação e afigurava-se um recrudescimento nítido do número de albergados, seguido do de presidiários, ligeiramente inferior. Entre estes dois últimos grupos — transferidos em percentagens relativamente semelhantes, no ano de 1948 — a diferença quantitativa acentuar-se-á cada vez mais. Com efeito, nos finais da década de quarenta, a transferência de presidiários sofreu uma baixa notável, ao invés da de albergados que continuou sempre crescente.
388Como temos vindo a salientar, com a criação da colónia do Pisão estabeleceu-se uma segunda dissociação Sede/Pisão. Marcada no interior do próprio albergue, reproduziu, na sua lógica, a primeira — sistema social global/Mitra — e, simultaneamente, recobriu outras ordens de razão, baseadas nas dicotomias confiança/traição; regeneração/irrecuperabilidade; louco/são; contaminador/não contaminador; albergado/presidiário.
389Na sede do albergue, em Lisboa, permaneciam então os velhos e os inválidos, as crianças e as mulheres — mesmo as rebeldes ou as loucas — e, grosso modo, todos os convertidos ao projecto regenerador. Para além de se fundamentar nas oposições anteriores, a clivagem Pisão/Sede assentava, portanto, em várias outras binarizações: homem versus mulher; válido (apto para o trabalho) versus inválido (inapto); criança e velho versus adulto.
390Como vimos, esta fronteira tornava-se permeável no sentido inverso (Pisão/Sede) apenas por doença, pelo término de uma pena ou de uma medida de segurança, por uma ida ao tribunal, pela necessidade de regulamentar a situação militar e, nos finais de quarenta, pela concessão de uma licença (cf. Quadro 14). A evasão bem sucedida e a reconversão ao projecto recuperador (esta última mesmo que servindo somente como estratégia) constituíam duas outras alternativas com vista à obtenção da liberdade e de uma guia de transferência, respectivamente. Os relatos de algumas destas situações nas participações dos guardas e nas cartas dos albergados dão disso testemunho:
«Participo a V. Ex.a que hoje pelas 13 horas, quando me encontrava de serviço de vigilância a um grupo de 42 internados (...) que andava a surribar, após termos tomado a segunda refeição e quando todos se encontravam nos seus lugares para recomeçar os trabalhos, os albergados n.o (...) e n.o (...) puzeram-se numa correria desordenada em direcção a Atrozela, não podendo ir em sua perseguição para não deixar fugir os restantes.»
«Foi nessa altura que o actual Senhor Fiscal, conhecendo o meu trabalho, e vendo a minha conduta, me levou para a sua barbearia onde trabalhei cerca de 8 meses, sempre com zelo e assiduidade, tendo-me ausentado, o que foi asneira, pois estava ali muito bem. Agora reconheço que fiz mal, e estou deveras arrependido. (...). Com estas palavras, não quero que julguem que eu quero voltar para o mesmo lugar, não, quero sim, pôr V. Ex.a ao corrente de toda a clareza da questão, e que me seja feita inteira justiça, o que julgo merecer, ou seja, a transferência para a Mitra (sede). Desejo continuar no albergue, embora trabalhando (...)».
Quadro 14 — Motivos de regresso à sede do albergue (1945-1946)
Motivos de regresso à sede do albergue | 1945 | 1946 |
Por ter terminado a pena | 78,7 | 62,3 |
Por motivo de doença | 11,6 | 17,8 |
Por ordem superior | 5,0 | 1,4 |
Por ter terminado a pena e ficado como voluntário | 1,2 | 10,3 |
Para cumprir serviço militar | 1,0 | 1,4 |
Para ter uma licença | 0,4 | — |
Para ser enviado à terra | 1,6 | 6,0 |
Para ser enviado à família | 0,4 | 0,4 |
Por ter sido expulso | — | 0,4 |
Fonte: Guias de Transferência Sede-Pisão encontradas nas lixeiras da ex-colónia agrícola.
5.8. A ideologia do amigo regenerador
391A caracterização de alguns rostos albergados transferidos para a colónia do Pisão por castigo é, deste logo, esclarecedora sobre todos aqueles objectivos visados pela ideologia do internador. Se o «insolente», «arrogante», «língua depravada» e, com ele, o desobediente «espertalhão» e o desordeiro «agressivo» se definiam, como acabámos de ver, pela ruptura com o projecto institucional, permitem também entrever, respectivamente, a humildade, a submissão e a ordem e, em última análise, a inibição da agressividade e do narcisismo, como exigências necessárias ao pacto de regeneração.
392Com efeito, conseguimos delinear um outro grupo de internados, comparativamente distinto, tanto pelas características que lhe eram atribuídas como pelas sanções que lhe eram aplicadas, revelando-nos simultaneamente alguns dos objectivos do modelo institucional.
«Tem demonstrado, portanto, indícios de regeneração além de humilde e respeitador.»
«Quanto à sua conduta pode considerar-se boa; é muito respeitador não só com os seus superiores como também com os seus camaradas.»
393Por outro lado, o rebelde ao trabalho, transferido para o Pisão ou dando entrada nos calabouços, punha em evidência a importância atribuída ao trabalho — sobretudo rural e/ou artesanal — como fonte principal de recuperação, de moralização ou de regeneração:
«Tem demonstrado gosto pelo trabalho, com bom comportamento.»
«(...) quando o referido albergado aqui deu entrada em 31 de Agosto de 1946, chamei-o à minha presença e aconselhei-o a modificar aqueles defeitos e a regenerar-se o que o mesmo me prometeu. Com espanto, tenho verificado que este albergado durante os três anos que aqui se encontra, apenas tem bebido o copo de vinho que lhe é dado à refeição aos domingos e feriados e tem-se dedicado com assiduidade a qualquer dos trabalhos que lhe são distribuídos, normalmente trabalhos agrícolas, nunca tendo dado motivo a qualquer reparo.»
394Também o reincidente e o evadido, duramente punidos, deixavam transparecer, pela negativa, outros objectivos regeneradores: a culpa, o remorso, o arrependimento, a gratidão e a vinculação. Conhecedores de tais valores, alguns internados mais astuciosos adoptavam uma postura propositadamente arrependida e grata, quase sempre no intuito de obterem vantagens institucionais (uma saída, menor vigilância, vinho a certas refeições, etc.). Nesse sentido, por exemplo na correspondência dirigida ao director do albergue, para além de utilizarem formas de tratamento muito elogiosas, evocavam com acuidade, directa ou indirectamente, o seu remorso e a sua gratidão, que funcionavam como indicadores de regeneração e, por corolário, enquanto catalizadores de uma resposta positiva aos pedidos formulados.
«Eu, J... (...), venho mui respeituosamente implorar de Vossa Excelência o seguinte: (...), sabedor que Vossa Excelência possui um espírito recto e leal, porque o que eu desejo é obter dois dias de licença, e não o ir-me embora de vez, porque como já tive ocasião de dizer a Vossa Excelência, encontro-me há dois anos albergado, não tendo a menor repreensão, nem pensando já em ausentar-me, porque sou um inválido e considero-me já regenerado. E agora para terminar mais uma vez apelando para o coração bondoso de Vossa excelência, pedia a fineza, para que me fosse concedida a aceitação desta minha petição (...).»
«Não tenho a súbita honra de conhecer Vossa Excelência, embora de nome conheça muito bem, começo por pedir imensa desculpa do atrevimento que tomo em lhe dirigir o que faço confiado na sua bondade e levado por um sentimento de caridade. (...). Oxalá, que Vossa Excelência me possa valer, mais uma vez peço desculpa de ser tão inopurtuno, subscrevo-me com o máximo respeito.»
395Por acréscimo, a inibição da sexualidade era outra importante directriz deste projecto de regeneração. Resta dizer, que todos aqueles que não controlavam as suas pulsões estavam sujeitos à transferência para o Pisão e/ou a uma estadia mais ou menos longa nos calabouços do albergue.
«O senhor guarda deu-me duas estaladas uma vez. Era proibido falar com as mulheres. Eu estava só a dar um recado (...).»
«(...) o albergado, viciado na vida imprópria que trazia lá de fora, aliada à astúcia com que inventa enredos, segundo verifiquei, já tem desafiado outros internados à prática de actos imorais e, ainda no passado dia (...) foi visto por dois albergados (...) a masturbar um dos cães aqui existentes (...). (...) ordenei que desse entrada no calabouço até resolução superior.»
«Participo a V. Ex.a que hoje pelas 7 h, quando saí do serviço, ao chegar a casa, fui informado por minha mulher, (...), que ontem cerca das 13 h, ao dirigir-se à capoeira a fim de tratar das galinhas deparou com o presidiário das Cadeias Centrais de Lisboa (...), com uma galinha entre as pernas e com o membro viril fora das calças (...). Intimidado por mim a acompanhar-me ao Senhor Chefe de Serviços, recusou-se terminantemente, tentando agredir-me e agarrando-se-me ao cassetete danificando-lhe o fiador, tendo eu que lhe dar algumas cassetadas para assim o manter em respeito e conduzir à presença daquele senhor, que determinou que o mesmo desse entrada no calabouço.»
396Para inculcar os objectivos acima enunciados, ou seja, a submissão, a obediência e a humildade, a disciplina e o autocontrolo dos impulsos «maus» e da agressividade, os hábitos de trabalho, a culpa e a gratidão, o internador desenvolvia várias técnicas de regeneração, aplicadas quase uniformemente às figuras internadas (sofrendo apenas algumas nuances no caso dos menores). E isto porque, segundo o amigo recuperador, «todas as vidas» do mitreiro ou as suas «próprias reacções» se pareciam, uma vez que derivavam «da mesma fonte — o vício»443.
397Em lugar de destaque no processo de purificação regeneratória dos albergados estava a sua segregação num meio físico descrito como ordenado, «branco, lavado, limpo e alegre»444. O «admirável ambiente de limpeza e de arrumação», («impressionando o mais exigente» e podendo «causar inveja ao mais categorizado hotel»), com «amplos e arejados refeitórios»445 e camaratas «brancas e alegres, rigorosamente limpas e arrumadas»446, o clima onde «não era possível encontrar-se mais ordem, nem mais asseio, tudo nos seus lugares e como devia ser»447, «asseado e espelhado», primando por uma higiene, ordem e disciplina «insuperáveis»448 era portanto indispensável para disciplinar, branquear, purificar e modelar os espíritos e os corpos dos «protegidos» da Mitra, cuja «média de pecados», como se dizia na imprensa449, superava a média geral dos «bons-portugueses».
398Tão fundamental como a aquisição de hábitos de higiene (física e moral) e como a interiorização do amor (alegre) pela ordem, a obrigação generalizada ao trabalho surgia como um dos eixos mais enfatizados por este projecto regenerador. O trabalho, e sobretudo o agrícola, dizia também o amigo recuperador, era o «que mais eficientemente» contribuía «para disciplinar e regenerar»450 «criminosos», «mandriões e «viciados no álcool», vadios e mendigos profissionais, bem como menores que roubem, esmolem, ou levem «uma vida libertina», «seguindo o exemplo e o trilho dos seus progenitores»451.
399O próprio espírito da criação da colónia agrícola do Pisão, também chamada de Centro ou Casa de Trabalho, nas Quintas do Pisão e Porto Covo (recobrindo uma área de terreno de cerca de 300 hectares), bem como, posteriormente, a construção de «secções agrícolas» de «regeneração e adaptação ao trabalho» nos vários albergues distritais de mendicidade dispersos pelo país (através da aquisição de propriedades agrícolas na proximidade das respectivas «secções urbanas»)452 traduzem bem a importância que a ideologia do trabalho rural como fonte de regeneração moral tinha na «Obra dos Albergues Distritais».
«A necessidade de fazer trabalhar muitos homens válidos, mandriões e viciados do álcool, que pelas ruas da cidade lamuriam a falta de ocupação honesta para justificarem a sua vida de mendigos e vadios levou a Comissão Administrativa do Albergue da Mitra a adquirir uma propriedade agrícola, onde empregar esses braços, que nada produziam de útil, fora ou dentro das prisões. (...) No seguimento da obra social de amparo à velhice e à invalidez que já é hoje, (o albergue) há-de ser amanhã uma escola de reeducação de mandriões e vadios, assim como uma escola de trabalho rural para rapazes e raparigas para quem a vida da cidade (...) é ruína e miséria.»453
400Retomando aquela directriz do salazarismo que fazia a apologia do regresso ao campo e o elogio da família aldeã, os discursos do internador (produzidos para o exterior) explicavam a (suposta) eficácia do trabalho rural no renascimento moral dos albergados, mesmo dos mais incorrigíveis, como uma resultante da sua descoberta apaixonada dos encantos e mistérios da terra-mãe, da felicidade da vida ao ar livre em intimidade com a natureza, do reencontro com as suas raízes mais profundas de filhos dedicados à matriz original, recalcadas pela vida decadente e corruptora das cidades.
São «farrapos de homens que se salvam porque trabalham a terra e se apaixonam pelos seus encantos e pelo mistério da semente que germina em trigo e das árvores que florescem»454.
«Os homens que vêm da cidade se agradam, geralmente, da vida rural, que lhes oferece coisas novas e, sobretudo, a descoberta da vida ao ar livre. Nato e criado em Lisboa, vadio desde o dia em que nasceu, sem eira nem beira, vivendo de recursos ilícitos e mostrando uma aversão total pelo trabalho, chegou aos 23 anos com a tabuleta de «incorrigível» pregada nas costas. A P.S.P. acabou por enviá-lo para a Quinta do Pisão, como faz a tantos outros. Um ano passou e, hoje, o Jofre é outro. Agradou-se do campo da lavoura, do entardecer sobre a serra de Sintra, dos silêncios, das plantas que semeia e vê crescer, dos pássaros que buscam reservas alimentares entre as patas dos bois e o sulco da charrua, do luar, das estrelas que as luzes da cidade não deixam ver bem, da natureza, enfim. É hoje um dos melhores trabalhadores rurais da Quinta do Pisão (...) um rapaz que encontrou na terra as suas raízes e a elas se prende voluntariamente.»455
401Sobrepondo-se àquele doce «despertar» pelo «Amor ao trabalho»456 rural e seus mistérios, a prescrição de castigos (inclusive corporais) constituía uma outra técnica do projecto regenerador.
«Isto era uma casa onde se batia muito. Às vezes, os polícias tinham razão. Muitas vezes exageravam. (...). Trabalhei muito cá. Fui capataz alguns anos. Tinha 108 homens a meu cargo (...), homens de toda a espécie. Era a pinga. Era a briga.»
«Não percebo para que é que é preciso tanta gente aqui a trabalhar... e tantos albergados sem fazerem nada, à boa vida... dantes isto não era nada assim, todos trabalhavam e, é o que deveria ser... até os malucos faziam alguma coisa; essa pedras pequenas que para ali estão, eram eles que as partiam... toca a trabalhar ou as coisas não andavam bem... tigela voltada... e eles percebiam, aí não!» (guarda)
«Isto foi tudo feito por nós, os balneários, o refeitório... eu trabalhei muito debaixo de chuva. O guarda dizia: ‘Não vão almoçar enquanto isto não tiver feito...’ e batiam, aí se batiam... Havia um deles que era de gancho, quando apanhava algum a descansar ia por trás das costas e era bordoada que até fazia tremer.»
402No Quadro 15, elaborado a partir de uma folha de castigos referente a albergados e a presidiários internados na Quinta do Pisão, no mês de Junho de 1945, ensaia-se uma classificação e uma quantificação de algumas das práticas que, segundo o internador, mereciam ser punidas. Muito embora se definissem sempre pela ruptura com o pacto de regeneração e pela criação de desordem — podemos talvez agrupá-las nas seguintes temáticas: perturbação na relação com os objectos (43,8%); perturbação na relação com o internador (29,5%); perturbação na relação com os pares (5,7%); comportamentos na área da desordem corporal (2,9%) e perturbações na relação com os animais (1,9%).
403As primeiras, numericamente dominantes, remetiam-nos sobretudo para a perda de certas peças da farda dos internados — o lenço, o bivaque, o capote, os tamancos (61% do total de castigos eram atribuídos a este item); para acções como «partir», «escangalhar», «destruir» determinados objectos e infra-estruturas (26%); e, finalmente, para o «descuido» ou para «a não-protecção» de alguns instrumentos e meios de trabalho (13%).
404Outros comportamentos, situados agora na relação directa ou indirecta com o amigo recuperador — insolência, confronto corpo a corpo e desobediência — subjaziam a cerca de 30% dos castigos prescritos neste período. Intimamente entrosado com este grupo, estavam as condutas perturbadoras na relação com o trabalho, nomeadamente o «pouco rendimento», a «recusa», a «evitação», o «abandono», etc., que prefaziam uma percentagem de 16,2%. Embora relevante, o somatório destes dois últimos itens firmava-se, contudo, abaixo do quantitativo de castigos apurado para as perturbações no domínio dos objectos materiais.
405Da análise do Quadro 15, resulta, ainda, que a agressão física dos pares e dos animais se afigurava uma componente essencial das condutas perturbadoras da relação horizontal e da relação com o mundo não humano.
406Acarretando uma outra significação, as restantes práticas não foram distribuídas pelos grupos já estabelecidos. O facto de em todas elas existir uma referência ao corpo e a determinadas modalidades do seu funcionamento, mais particularmente, ao urinar e ao defecar, levou-nos a incluí-las num grupo autónomo a que denominámos de comportamentos na área da desordem corporal.
407Não nos sendo possível construir um sistema de correspondências, exaustivo e quantificado, entre as práticas punidas e os tipos de castigos aplicados (para o que a conservação dos arquivos institucionais teria constituído uma condição necessária), a folha de castigos em análise permite-nos, contudo, deduzir algo sobre a sua lógica intrínseca, ao acrescentar apenas aos seguintes itens a punição atribuída: «15 dias de calabouço por ter respondido inconvenientemente a um guarda»; «15 dias de calabouço por vender lenços do albergue»; «30 dias de calabouço por ter-se evadido e ter sido recapturado»; «15 dias de calabouço por estar a dormir no posto»; «5 dias de calabouço por ter batido num suíno»; «60 dias de calabouço por ter batido numa cabra»; «30 dias de calabouço por ter agredido o companheiro»; «15 dias no calabouço por não ter cumprido as ordens do capataz e do faxina da camarata.»
408Se a prescrição de 30 dias de calabouço por evasão e do mesmo número de dias por venda de lenços do albergue ou, ainda, a de 15 dias de calabouço tanto por insolência a um guarda como até por desobediência a um capataz e a um faxina (internados) podiam ser justificadas pelo internador, na medida em que punham em causa a sua autoridade e o seu papel recuperador e/ou correspondiam, em maior ou menor grau, a subversões da ordem institucional, não deixa de ser estranho que punições da mesma ordem de grandeza fossem aplicadas a perturbações na relação com os outros internados hierarquicamente homólogos, ou seja, com o extremo mais afastado da chefia e, inclusivamente, a distúrbios na relação com o mundo animal. A lógica deste sistema de castigos cresce em enigmas se pensarmos que entre os 60 dias no calabouço por bater numa cabra e os 30 dias no mesmo calabouço por evasão se estabelecia uma enorme desproporção, ou seja, que a punição da descarga agressiva sobre os animais duplicava de intensidade relativamente à punição de uma «agressão» ao todo institucional por fuga.
409No tocante aos restantes itens, despojados de qualquer informação acerca da punição adoptada restam-nos apenas algumas hipóteses extrapoladas dos dossiers sobre o universo internado, nos quais, a práticas semelhantes eram aplicados castigos como: o aumento de vigilância, a restrição nas doses de tabaco distribuídas semanalmente, a intensificação do regime de trabalho, etc., sanções estas que, com base numa ponderação intuitiva e face à prescrição de um número de dias no calabouço (com uma única refeição diária), considerámos como mais leves.
410Por outro lado, os itens onde não se faz menção a uma punição em dias de calabouço, sobressaindo pela sua importância numérica, correspondem em grande parte (cerca de metade dos castigos prescritos num mês) a perturbações na relação com os objectos o que nos leva a pensar que se tratava não só de uma área de reatibilidade e de conflitualidade face ao sistema, utilizada frequentemente pelo universo albergado mas também, em relação à qual, o internador esboçava alguma tolerância quando a punia de modo menos severo.
411Finalmente, em relação ao conjunto de práticas esquematicamente apresentadas, destacamos com certa perplexidade a ausência de castigos associados a condutas perturbadoras no domínio da sexualidade. Embora não sejam referidas nesta folha de castigo, temos conhecimento (através de testemunhos e processos deste período) que comportavam punições graves.
412Reportando-se a uma informação escassa e tantas vezes enigmática, o Quadro 16 procura reconstruir a lógica do sistema de castigos em três eixos. Num eixo vertical, cujos limites superior e inferior são assinalados, respectivamente, pela insolência para com os hierarcas e pela agressividade para com os animais, são localizadas várias outras práticas desviantes relacionadas com a autoridade, com o mundo material e com os pares, reunidas pela emergência de um esquema comportamental comum a que chamámos de adaptação revoltada. No eixo horizontal, situámos certas práticas informais, tais como, vender objectos pertencentes ao albergue, fazer dinheiro a transacionar pontas de cigarro ou aguardente, jogar o dominó a dinheiro, etc., e, no outro extremo, as tentativas de evasão ou de recapturação da liberdade que parecem traduzir, ao contrário do esquema anterior, uma necessidade de recuperação da autonomia, quer no interior do albergue (pela reprodução de certos valores do mundo externo e, nomeadamente, a autonomia económica) quer, de um modo mais explícito, pela fuga para o exterior.
413No ponto de intersepção entre estes dois eixos localizámos as práticas perturbadoras na relação com os objectos, suficientemente afastadas das relações inter-humanas — tanto com guardas como com outros albergados (ou seja, dos binómios submissão/revolta e passividade/agressividade) — e possuindo uma certa dose de ambiguidade que lhes permitia estabelecer pontos de continuidade com os dois limites laterais. Com efeito, e sobretudo no que respeitava à perda de certos objectos, nem sempre era fácil descortinar se se tratava de um acto involuntário ou se fazia parte de uma estratégia intencional (de venda, por exemplo, a concretizar dentro ou fora da instituição) com vista à obtenção de vantagens económicas; ou, por outro lado, se o desaparecimento de certos objectos não estava, por vezes, estreitamente articulado com um projecto de fuga. Ao poderem evocar o acto involuntário e, por isso, relativamente desculpável, ao jogarem com a tal dose de ambiguidade, constituíam uma espécie de área de neutralização, sobre a qual o protesto ou a revolta dos internados se exprimia, de um modo indirecto que não chegava, por vezes, a ser interpretado como tal pelo próprio ou pelo seu internador. O mundo material parecia assim configurar um campo relativamente mais vantajoso de canalização e de escape da agressividade dos albergados e, talvez, por isso, ocupasse um estatuto maioritário na folha de castigos em causa.
414Ao invés, as infracções situadas nos extremos destes dois eixos eram duramente punidas (com vários dias de calabouço — de 2 a 60 dias, na folha de castigos em análise), na medida em que consubstanciavam áreas de exacerbação da recusa ou da subversão do projecto institucional de recuperação. Com efeito, as tentativas de obtenção da autonomia no interior do estabelecimento entravam em contradição com a lógica de protecção e desvinculação grata de seres supostamente desvalidos ou incapazes; fenómeno tanto mais grave, quanto no primeiro caso, estava em jogo a criação de um poder e de uma autonomia económica obtidos através do comércio informal e de expedientes marginais (isto é, não institucionalmente previstos nem controlados) e não pelo único método tido como digno e regenerador — o trabalho.
415Mais gravosa ainda, a evasão (sobretudo quando persistentemente almejada) representava uma contestação duplamente perigosa para a instituição. Não só punha em crise os seus fundamentos regeneradores, no sentido em que o evadido evidenciava uma capacidade de autonomia e a crença na possibilidade de uma sobrevivência não tutelada, assim como demonstrava a inexistência de vínculos de afecto e gratidão, pressupostos pelo clima recuperador. Se tal acontecia nos casos menos graves (por exemplo, numa ida de licença a que não se seguia o retomo voluntário à instituição), no caso de uma evasão mais activa (com ludíbrio das sentinelas, em cumplicidade com outros internados, da camioneta que os transportava à sede, etc.), era ainda posta em causa a capacidade de vigilância dos guardas e a sua perícia em surpreender algumas condutas informais dos albergados.
416Paralelamente, a agressão verbal ou o gesto insolente face a um guarda, culminando por vezes num confronto corpo a corpo, e a agressão de companheiros e de animais surgiam como infracções merecedoras de um quantitativo elevado de dias no calabouço já que nelas se exprimiam frontalmente e sem qualquer camuflagem os impulsos agressivos dos albergados que se pretendiam inibidos. Possuindo quase sempre como alvo a instituição e o seu funcionamento quotidiano podiam manifestar-se, directamente, pela insolência ou pela desobediência aos guardas ou, indirectamente, através de uma descarga lateral sobre os outros internados mas, ainda, de um modo, por vezes, descontrolado e brutal sobre os animais existentes no albergue.
417Por outro lado, práticas que ferissem o narcisismo do internador ou que envolvessem algum risco de confronto físico eram punidas pela atribuição de um certo número de dias no calabouço e acompanhadas, frequentemente, pela agressão corporal do albergado pelo guarda em causa. O relato de algumas destas situações nas participações dos guardas e nas memórias dos antigos mitreiros dão disso testemunho:
«Ao adverti-lo, recebeu-me com atitudes e palavras menos respeituosas (...). Insistindo a que ele se retirasse dali para pôr termo à questão, respondeu-me que nada tinha a retirar-se pelo que, para o fazer cumprir a minha ordem, fiz uso da força muscular. Nesta ocasião revoltaram-se contra mim quase todos os internados que se encontravam presentes (...) os quais, soltavam em voz alta e em atitudes de agitação as seguintes frases: «Estes bandidos escravizam aqui a gente ao ‘máximo’. Pelo que pegando num pau, dirigi-me ao (...), um dos principais conspiradores e quando pretendia dar-lhe umas pauladas, atirou-se brusco e agressivamente sobre mim (...) pelo que auxiliado pelo meu colega (...), fiz uso do citado pau para o dominar.» (participação)
«Este malandro está assim inutilizado, foi da porrada... era malandro.» (antigo albergado)
«Batiam, se batiam,... uma vez, eu vi uma albergada com o polícia na barraca verde da porta, onde ficavam os vigias, mas não disse nada a ninguém... Ele soube e deu-me um enxerto de porrada tão grande que me partiu o braço com uma vassourada... e eu para não estragar a vida do homem, que ia ser promovido, escondia o braço...depois fui obrigado a contar e ele ficou-me com um ódio tão grande.» (antigo albergado)
«Os guardas chegavam-se a um internado e diziam: ‘Vamos dar um passeio’. Iam para o pinhal e batiam. Ainda há bem pouco tempo era assim...»457
418Enquanto que nos dois eixos referidos se increveram algumas condutas proibidas, construídas a partir de uma folha de castigos mensal, outros materiais autorizam a esquematização de um terceiro eixo. Comparativamente com as anteriores, as práticas punidas concentravam-se agora no mundo mais afastado da hierarquia458, ou seja, nas relações entre pares e nas relações com os animais e tinham a ver com os impulsos e práticas erótico-sexuais dos internados.
419Uma vez que o comportamento sexual não estava previsto no projecto regenerador, que assim assimilava o albergado de qualquer idade a um ser assexuado, este emergia ou no exterior (aquando de uma licença, o que era raro), ou surgia clandestinamente no seu interior, sob a forma da heterossexualidade, homossexualidade, exibicionismo e zoofilia, correspondendo quer a formas de aliança afectiva (mais difíceis de detectar, uma vez que se situam num espaço de cumplicidade), quer a formas de dominação agressiva (que iam até à violação homossexual), quer ainda a formas de troca vantajosa, obtenção de favores, regalias, dinheiro (neste caso, constituindo mais um tipo de «comércio» intra-institucional).
420Enquanto que, tal como todas as outras práticas contra-institucionais já analisadas, a sexualidade com outros (internados de ambos os sexos, hierarcas e animais) era punida com calabouço ou com a transferência para o Pisão, também neste eixo, encontramos uma área de relativa neutralização, constituída pelas práticas auto-eróticas, desde que relativamente discretas. Já a masturbação entre pares ou exibicionista era situada no grupo das infracções mais graves.
«(...) informo V. Ex.a, que tendo ouvido o albergado em referência, este diz que há aproximadamente um mês, pouco antes do recolher, dirigiu-se ao capataz das camaratas (...), pedindo-lhe ‘uma corôa’, dizendo-lhe que era para comprar um quarto de pão. O capataz disseIhe para irem aos mictórios gerais e ali o albergado masturbou-o com a mão.»
«Acerca do assunto de que trata a participação junta do guarda n.o..., na qual dá conhecimento de ter encontrado o presidiário das Cadeias Centrais Civis de Lisboa, a meter o pénis no ânus de uma galinha. (...) Interrogado por mim, apenas respondeu que era o resultado da sua longa prisão, privado de mulheres. Em face da gravidade da falta cometida, tanto mais que o foi em lugar onde facilmente podia ser visto, não só por mulheres como por crianças que ali habitam, ordenei que desse entrada no calabouço até resolução superior.»
«Participo a V.Ex.a, que ontem cerca das 17,30h, quando a minha mulher passava junto da estrada dos pilrinhos, encontrava-se ali o presidiário com o n.o..., à ordem das Cadeias Centrais de Lisboa (...). Como ela passasse e não olhasse para ele, este chamou-a a atenção e mostrando-lhe o membro veril (sic). (...) ao procurar-lhe qual era o motivo porque tinha feito aquela obsenidade (sic), respondeu-me o seguinte, ‘ISTO AQUI É PARA HOMENS E NÃO PARA MULHERES’. Mais informo a V. Ex.a, que o referido presidiário é a 2.a vez que comete a mesma proeza. (...) Puno com 6 dias a pão e água, com intervalo de 1 dia, aos primeiros 3 dias, acrescido de 30 dias de calabouço.»
«Puno com 60 dias de calabouço, sendo seis a pão e água com interregno ao 4.° dia, o recluso n.o..., porque intencionalmente e junto da Secretaria, deitou para fora das calças, o pénis e testículos, o que foi presenciado por uma senhora. Tem a agravante de ser a 3.a vez que comete tal falta, nos mesmos termos e atenuante de ser aparentemente doente espiritual (sic).»
«Participo que (...) o albergado (...) havia praticado actos imorais nas retretes do sanatório, com o também albergado (...).»
«Os dois acusados (...) foram ter com o ofendido, que alcunhavam de pederasta e, quando o (...) lhe segurava as pernas, pretendendo puxar-lhe as calças para baixo, o (...), colocado em cima dele, com o pénis de fora das calças, pretendia meter-lho na boca. (...). Ouvidos, os acusados negam a acusação e afirmam tratar-se de, por brincadeira, lhe pretenderem fazer uma «amostra», isto é, tirarem-lhe o membro viril para fora das calças para se divertirem, o que é corroborado pela maioria dos presidiários que ali se encontravam, que afirmam ser natural o gesto da «amostra» e, que aquilo era para todos se divertirem. Não é de admirar ocultarem a verdade, visto tratar-se de indivíduos com fracos sentimentos morais, e ainda por já serem bem conhecidos os seus métodos de defesa e a união que entre eles existe, para esse fim. (...). É de acentuar que o presidiário (...), é homem falho de moral.»
421Como se pode ver pelas participações dos guardas, acima referidas, que recobrem apenas uma parte do mundo da sexualidade realmente existente na instituição (isto é, aquele conjunto de práticas que era detectado, participado e punido), os actos de índole sexual apresentavam-se aliados ao primeiro eixo analisado, na medida em que correspondiam muitas vezes a formas de agressão simbólica à autoridade (no caso da exibição do orgão genital à mulher do guarda, por exemplo) ou a formas de reprodução da hierarquia dentro do espaço reservado aos albergados (como no caso do relacionamento sexual do capataz com um jovem internado de 15 anos ou no caso do último testemunho). Já a ligação ao segundo eixo surge com menos aparato pois, ao emergir em alguns casos em que a sexualidade era utilizada como moeda de troca para a obtenção de certos ganhos, implica o estabelecimento de uma relação de cumplicidade mínima.
422É de sublinhar, ainda, que o «atraso mental», a «doença espiritual», a «taradice», etc., eram, por vezes, apontados como atenuantes e justificações para certas práticas sexuais, tal como a existência de hábitos alcoólicos marcados surgia anexada à exteriorização explosiva e descontrolada dos impulsos agressivos dos albergados.
423Finalmente, o conjunto de materiais que foi exposto mostra como a reincidência em qualquer dos tipos de infracção analisados sobredeterminava a intensidade da punição atribuída. Como já foi salientado, pela sua «delinquência crónica», o reincidente punha por demais em evidência a ineficácia do projecto regenerador.
424À inculcação de higiene moral (por intermédio do isolamento num meio limpo, branco, excessivamente ordenado e alegre), à aquisição de hábitos e de amor pelo trabalho honesto (através da sua imposição quase generalizada), à aplicação de castigos em caso de rebeldia ao «pacto regenerador», acrescentava-se ainda uma outra ideologia recuperadora. Transposta da estrutura base para os vários níveis do social (escola, local de trabalho, pátria, etc.), a semiótica familialista integrava também o discurso institucional afirmado:
«Entreguei-me de alma e coração. Isto era a minha outra família. Prejudiquei a minha vida particular. Mas Deus recompensou-me... Fiz muitos sacrifícios.»459
«Quando se destacava alguém para administrar os albergues distritais, geralmente escolhia-se uma pessoa de bom carácter moral (...), com uma esposa carinhosa que gostasse de crianças para que o albergado sentisse que fazia parte duma verdadeira família.»460
«Os albergues eram uma espécie de lares artificiais onde se fizeram muitos homens úteis e boas mães (...)»461
425No sistema ideológico vigente, cujos principais patamares eram o cosmos, a pátria, o mundo do trabalho e a família — considerada como célula modelar da totalidade do corpo sócio-cosmogónico — cada um destes níveis se homologava, em certa medida, a todos os outros. Deste modo, o pai estava para o filho, como o patrão para o trabalhador, o educador para o aluno, o chefe de Estado para a nação e Deus para o cosmos. Entre estes expoentes e nos vários patamares reproduziam-se, por extensão, certos padrões e as expectativas de comportamento entre pais e filhos. Os actantes «pais», educadores e artistas, detinham o direito e o dever de moldar (em consonância com os modelos valorizados) os actantes «filhos», concebidos como matéria plástica admirável ou «esboços imperfeitos»462 os quais, por sua vez, deveriam aceitar passiva e agradecidamente a actuação dos pais de «educar, modelar, limpar»463. Dos primeiros esperava-se, ainda, protecção, dedicação e sacrifício pelos segundos e, por parte destes últimos, a obediência, a gratidão, a veneração, o auxílio na velhice e até o perdão no caso daqueles «pais» que incorriam em «vícios»464.
426No seguimento da importação desta semiótica familialista para dentro da própria instituição policial, o guarda cívico do Estado Novo deveria assumir «uma função humanitária e paternal», fechando «os olhos às pequenas transgressões tantas vezes filhas da miséria ou da ignorância», abrindo-os «para o sofrimento do povo», «de quem deve ser o guia, o conselheiro, o educador benévolo, o amparo material e moral nas horas de provação»465, o «Amigo» parental466 dos filhos «pobres», «desamparados», «doentes», «feridos», «loucos» ou «em perigo moral»467.
427Convergentemente, o mesmo padrão familialista norteava a sua acção nos albergues beneficientes e regeneradores, isto é, o guarda da P.S.P. deveria agir como um «bom-pai» internador, oferecendo ao filho-albergado (rebelde, pervertido ou simplesmente carenciado) exemplos de virtude, autoridade moderada e dedicação ilimitada. Por sua vez, a relação do filho-albergado com o pai-internador implicava, como vimos atrás, a identificação obediente e submissa, a vinculação, a gratidão e a dívida. As relações entre pares, segundo a mesma lógica, deveriam ser marcadas pela fraternidade, pelo companheirismo e pela igualdade.
428Excedendo as expectativas de comportamento recíproco, a mesma ficção familialista estruturava (pelo menos na visão oficial) as formas de tratamento (familiares) entre internadores e albergados. Nos seus apontamentos para uma história da Polícia de Segurança Pública, A. Lapa (1944), ao descrever por exemplo as suas impressões de uma visita ao albergue de Coimbra, oferecia-nos uma imagem idílica deste clima familialista. Extractos como «No dia em que visitámos todas as suas dependências, na companhia do «pai-capitão» (...)» ou «o «pai-capitão» foi recebido com alvoroço por todos os moradores da Quinta do Albergue»468 contrastavam com outras memórias sobre a linguagem institucional cheia de referências a capatazes, faxinas, senhores fiscais, aquartelamentos, parada, plantões, etc., de óbvia fonte de inspiração.
429Eis-nos, porém, face a um aparente paradoxo. Muito embora a semiótica familialista, concentrada no refrão conhecido — «a família é a célula da sociedade» — suportasse o discurso institucional manifesto, a segregação dos albergados num espaço fechado e vedado ao exterior ditando, por corolário, a sua desfamiliarização, constituía a condição necessária do sucesso da «instituição recuperadora». Seria redundante retomar aqui que a desfamiliarização e a descontextualização iniciais do «mau-português» visavam, entre outros objectivos, evitar a contaminação, a propagação ou a hereditariedade das identidades tidas com «imorais», «viciadas», «defeituosas»; separá-los dos seus grupos de referência, «enfraquecê-los» ou «isolá-los» das «más influências»; prevenir a poluição moral dos ainda «sãos» mas facilmente corruptíveis, etc..
430Explicitemos, todavia, que a estratégia do amigo recuperador não se cingia, apenas, à reprodução intra-institucional dos papéis e das expectativas de conduta entre pais e filhos mas que, mais do que isso, consistia numa tentativa de refamiliarização do internado, com usurpação das funções paternas originais, interpretadas como maléficas: ali, os internados encontravam «a sua casa»469, mas uma casa «arrumada, limpa, decentíssima»470 e uma «verdadeira família» que lhes proporcionava um mito de felicidade: «ordem, disciplina, recreio, trabalho honrado, legalidade, conforto físico e ausência de pânico pelo futuro»471.
431Como convinha, este projecto refamiliarizante atravessava e dominava unicamente as relações entre o amigo internador e os albergados. Pelo contrário, a formação de grupos de internados, os laços entre gerações diferentes, as ligações entre sexos, a emergência de hierarquias entre albergados, etc., eram duramente combatidos e punidos.
432Por acréscimo, e apoiado neste semiótica refamiliarizante, o amigo internador podia conceber a sua conduta como cuidadosa, protectora, sacrificial e, em simultâneo, justificar com total garantia de imunidade a prescrição de castigos, mesmo os mais violentos e brutais, pois estes existiam sempre para o «bem» (para a regeneração) dos filhos rebeldes. Destes, era apenas esperado a aceitação da punição, o perdão, o arrependimento e, por fim, a gratidão e a dívida.
433«E como a preparação para a vida não é perfeita sem se apoiar na ideia de Deus»472 afirmava por fim o bom pai-recuperador para os filhos «de frouxa religiosidade»473, «tendes também quem vos eduque nos princípios religiosos.»474 Na sua «notabilíssima missão cristã»475, o albergue da Mitra fazia ainda depender o processo regeneratório dos albergados da sua cristianização intramuros, para o que lhes oferecia um capelão, missas e «uma linda capela com imagens do Coração de Jesus, Nossa Senhora e Santo António»476.
434No processo de metamorfose de «crianças infestadas pelo vício»477 em «homens de amanhã, úteis e fortes» e «prestantes mulheres, sadias e boas mães»478, aos bons «exemplos e lições de maneiras de viver e conviver»479 for-necidos pelo amigo regenerador somavam-se ainda a instrução primária oficial, orientada «segundo os princípios educativos da moral cristã», bem como o ensino, para o sexo feminino, «de todo o serviço doméstico», «corte e costura» e, «para o sexo masculino», a «aprendizagem de artes e ofícios (...), noções de agricultura e agro-pecuária»480. A Mocidade Portuguesa aperfeiçoaria o processo de reeducação da juventude internada no amor de Deus, da Pátria e da Família, ao mesmo tempo que lhe ensinaria «olhares sorridentes, satisfeitos» e «saudações legionárias»481, causadoras de agradável impacto aquando das visitas oficiais realizadas periodicamente à «Obra» do amigo regenerador.
435Aos objectivos e às técnicas de regeneração que temos vindo a abordar subjaziam múltiplas semióticas e, entre elas, uma fantasia ascensional do animal para o humano. Nas palavras de um antigo director, o albergue «era um centro que os ia rebuscando para serem gente». Concomitantemente, adentro de tal lógica — visando rebuscá-los do reino da animalidade e recuperá-los para a humanidade — todos aqueles que subvertiam este projecto reumanizante eram, de novo, remetidos, e agora pelo próprio internador, para o reino da bestialidade. De facto, na linguagem forjada pelo amigo recuperador para caracterizar o rebelde ao «pacto de regeneração», proliferavam as metáforas animalizantes: «pardal», «melro», «macacão», «fera», etc..
436Retenha-se, por outro lado, que as apelações de «melro», «pardal» se sobrepunham quase sempre às de «engraçadinho», «manhoso», «espertalhão», «simulador», «héroi» e se aplicavam a albergados que, por intermédio de estratégias informais, tentavam boicotar o plano de funcionamento institucional, em seu benefício. Por sua vez, certas metáforas, tais como «macacão», «grande macaco» apareciam, em muitos casos, associadas à desinibição sexual, à zoofilia ou à homossexualidade, enquanto que a denominação de «fera» vinha, com acuidade, no seguimento de condutas em que a agressão predominava.
437A uma tal fantasia reumanizante anexavam-se duas outras semióticas, nomeadamente, a da decadência do homem moderno (letrado) face a um homem «primitivo», «primário», bem como a da decadência do mundo urbano relativamente ao mundo agrícola, rural e natural.
«Há princípios que são imutáveis (...). Eu sou um homem primário, primitivo. Considero importante o castigo corporal. (...) O maior instrumento de recuperação é a agricultura e o tratar dos animais. Tentei sempre ter uma quinta adstrita aos albergues de mendicidade.»482
438Nestas últimas semióticas, bem como no padrão familialista exaltado como modelo do relacionamento entre internados e internadores, o amigo recuperador justificava as suas principais práxis regeneradoras, mesmo a prescrição de castigos (inclusivamente físicos).
439Como sublinharam Foucault483 e os seus continuadores, a partir do século xix, confrontamo-nos com a aplicação omnipresente de certas categorias médicas e, mais particularmente, as de são e de mórbido, ao funcionamento social dos grupos e das instituições. Também desta crescente medicalização do discurso sobre a vida dos grupos e das sociedades se ressentia a ideologia afirmada do amigo regenerador, ao somar à função refamiliarizante da instituição, uma função de «Banco social», ou seja, comparando-a a um serviço de urgência hospitalar:
«Era como a urgência de S. José. Era o meu Banco social... iam para lá todos os casos.»484
Conta-nos, ainda, a memória institucional, caricaturando esta usurpação das funções médicas, que:
«Um dia entrou uma mulher com uma grande barriga. O Sr. Capitão falava sempre com os que entravam (...). Ele queria à força que a mulher tivésse uma doença qualquer e a mulher só estava grávida. Tinha manias. Julgava-se mais do que o médico.»485
440Procurámos dar conta dos principais objectivos, das técnicas e das semióticas latentes à ideologia do internador. Em linhas gerais, podemos resumir que o seu projecto regenerador assentava: a) numa hierarquização espacial do desvio no interior da instituição, marcada por múltiplas dissociações; b) no culto do trabalho rural e do castigo como fontes mais importantes de regeneração; c) na aspiração a um clima recuperador, baseado na ressociabilização refamiliarizante e ruralizante dos internados e d) na ideia de que a própria segregação do indivíduo dito desviante num espaço fechado (higiénico, branco e alegre) o poderia influenciar na capturação de certos atributos (ausentes ou perdidos), isto é, o podia regenerar.
5.9. Ritual e controlo social
«Penso que só assim, parindo e gemendo, tecendo e lavrando, a nossa balança comercial se equilibra e podemos continuar a vida como nação independente.»486
«(...) o mestre, quando inicia o seu aluno, coloca-o, tal como um feto, no interior do seu corpo. E durante as três noites (que dura a iniciação), ele trá-lo no seu ventre.»487
441A ligação entre ritual e controlo social tem vindo a ser enfatizada na literatura produzida por cientistas sociais, quer em trabalhos que pretendem mostrar como os rituais constituem formas de controlo social (mais ou menos explícitas), quer em abordagens que procuram salientar como os instrumentos de controlo social tomam a forma de ritualizações.
442O modelo durkheimiano do ritual parece ter constituído o ponto de partida para o desenvolvimento de um conjunto de hipóteses sobre a relação entre ritual e controlo social (cf. Bell, 1992). Para os defensores da tese da solidariedade social, o ritual «controla» através da produção ou da promoção do consenso colectivo; alterando um pouco esta perspectiva, Evans-Pritchard (1940, 1956) e Max Gluckman (1962, 1963) acentuam que o ritual exprime e permite a resolução de conflitos sociais, assegurando deste modo a continuidade e o equilíbrio da estrutura social; também para um autor como E. Leach, que criticou fortemente os postulados funcionalistas de Evans-Pritchard e Radcliffe-Brown, o ritual não só toma explícito o sistema de relações socialmente aprovadas e idealizadas entre indivíduos e grupos, como constitui uma espécie de mecanismo eficaz para «evitar a anarquia», lembrando de tempos a tempos aos grupos que «existe uma ordem subjacente» orientadora das suas actividades sociais488. Numa perspectiva paralela, os trabalhos de C. Geertz (1973, 1980),T. Turner (1977, 1984), M. Douglas (1960, 1973), entre vários outros, tendem a conceber o ritual como uma modelação simbólica da realidade social. Sob uma óptica de diferente fonte de inspiração, mas que similarmente sublinha a ligação entre ritual e controlo social, as teses de René Girard (1972) e de Walter Burket (1983) salientam que o ritual e, mais especificamente, o ritual sacrificial «controla», através do deslocamento, e/ou da repressão dos impulsos agressivos humanos ou da «violência natural», ameaçadores da vida em sociedade.
443De outro ângulo, focalizando os mecanismos de controlo social encontrados nas sociedades europeias e procurando perspectivar o modo como através deles o poder se exerce, M. Foucault elege também a nomenclatura do ritual para descrever as práticas e as estratégias do poder e, em particular, aquelas que incidem sobre o corpo, pensado como o nível básico e fundamental de inscrição das relações de poder.
444Subjacente a algumas destas teses, encontra-se uma definição de ritual que se afasta das suas aplicações mais clássicas. Há quarenta anos atrás, Max Gluckman, ao fazer a distinção entre ritualização das relações sociais e ritualismo, extendeu a noção de ritual a contextos diversos dos das instituições religiosas489,inspirando um conjunto de reflexões posteriores e, nomeadamente, a de M. Edelman em Politics as Symbolic Action490 ou a de C. Lane em Rires of Rulers: Ritual in Industrial Society491. Também E. Leach nos propõe uma formulação que dilata consideravelmente o âmbito dos comportamentos rituais. Para este autor, o que caracteriza o acto ritual é o facto de este consistir num enunciado simbólico que «serve para exprimir o estatuto do indivíduo enquanto pessoa social no sistema estrutural no seio do qual se encontra momentaneamente»492; convergentemente, ao pressupor que a aspiração ao poder constitui o fundamento último e mais geral das motivações individuais, a actividade ritualizante passa a ser equacionada não só como uma explicitação da distribuição do poder num determinado contexto social mas ainda como uma estratégia manipulada pelos indivíduos e grupos com vista à aquisição de poder. Comum a múltiplas perspectivas mais recentes, igualmente amplificadores do conceito de ritual, é também esta conceptualização do ritual como uma estratégia que procura definir, exprimir, enfatizar relações e valores idealizados e/ou promover a legitimação e internalização de tais relações e valores.
445Mais do que impor limites ou redefinições à actividade ritualizante, interessou-nos pensar de que modo os actos humanos são diferenciados entre si por sujeitos que manipulam essa diferença para atingir certos objectivos identitários. Nesta perspectiva, utilizámos o conceito de ritual e a nomenclatura a este associada para marcar o modo como determinados comportamentos se distinguem de outros (mesmo que fenomenologicamente muito semelhantes). Concretamente, neste capítulo, ao equacionarmos algumas técnicas de recuperação do «mau-português» e centralmente a obrigação ao trabalho agrícola a um ritual, fazêmo-lo no sentido em que o acto de trabalhar a terra a que era forçado o vadio e seus equiparados possuía um valor diferencial que o distinguia das actividades agrícolas regulares concretizadas por uma porção significativa da população portuguesa. Todavia, não se pense que este valor diferencial residia exclusivamente na sua obrigatoriedade (e na consequente punição atribuída ao rebelde ao trabalho).
446O seu estatuto diferencial advinha-lhe da dimensão simbólica que nele era investida, dimensão esta que definimos como a possibilidade de transposição do sentido de um comportamento de uns eixos semânticos para outros, de tal modo que, permanecendo diferenciados, os sentidos de um mesmo comportamento estejam virtualmente associados; deste modo, o acto de trabalhar a terra é constituído como um enunciado simbólico no momento em que o seu sentido pode ser, como veremos, num eixo semântico que convencionalmente designaríamos de religioso, o de mimar a morte e o renascimento do «mau-português»; ou, cuja significação, tendo em conta outro eixo semântico a que chamariamos de fantasmático, consiste num retomo ao útero e numa nova gestação no corpo feminino da terra-mãe, etc.; por outras palavras, trata-se de um acto simbólico na medida em que, consoante o eixo semântico perspectivado, possui vários significados, reforçando a sua eficácia pelo recurso à multivocalidade (Turner, 1967; 1969) própria da linguagem simbólica.
447Por acréscimo, tentaremos salientar como o ritual de regeneração do «mau-português» se inseria numa lógica sacrificial, utilizando mecanismos simbólicos estruturalmente similares aos desenvolvidos por outras tradições que atribuem ao sacrifício um lugar preponderante. Partimos, em grande parte, da reflexão comparativa de Mauss e Hubert (1899), em Essai sur la nature et la fonction du sacrifice e, nomeadamente, da hipótese que o ritual sacrificial constitui um trabalho de transformação identitária do personagem (individual ou colectivo) que ocupa a posição de sacrificante, conseguido por intermédio de um deslocamento simbólico: a introdução de um personagem-vítima sacrificial (substituto, duplo, parte, etc., do sacrificante) sobre o qual é agida uma dose de violência pensada como catalizadora da metamorfose identitária desejada.
448Aplicando esta hipótese interpretativa às estratégias de ritualização que delimitámos entre internadores e vadios, procuraremos mostrar como a posição de sacrificante era, neste cenário sacrificial, ocupada por um conjunto de devotos ao projecto salazarista movidos pelo desejo de regeneração identitária do todo português em crise que elegeram o vadio e seus afins como vítimas sacrificiais privilegiadas e sobre eles agiram uma dose de violência, concebida como simbolicamente mortal mas, em simultâneo, formulada como uma gestação renovadora. Como veremos também, a visada transformação identitária da vítima sacrificial não constituía o objectivo último deste projecto (até porque pelo menos os internadores directos possuíam indicadores vários da sua quase total ineficácia); por outras palavras, as ideologias e as práticas sacrificiais que inspiravam o funcionamento dos albergues de mendicidade e vadiagem estavam sobretudo ao serviço da auto-representação, reforço e valorização identitários do grupo que as produzia e procurava dramatizar.
449Distanciámo-nos, contudo, de Mauss e Hubert quando analisámos o simbolismo sacrificial. Refira-se, aliás, que os dois autores, no ensaio referenciado, se preocuparam sobretudo com a construção de um esquema processual universal das práticas sacrificiais e estavam menos interessados na análise dos códigos simbólicos que nelas emergiam. Todavia, nas últimas décadas, em vários contextos etnográficos, alguns autores (Biardeau, 1988; Heusch, 1986; Shulman, 1980, 1986; Malamoud, 1989; Carthry, 1989; Bastos, 1992, 1993; etc.) têm chamado a atenção para a recorrência do simbolismo corporal e microfamiliar (alimentar, sexual, gestante, parturiente, etc.), nos rituais de sacrifício. Ora, também no contexto estudado, tentaremos salientar que a construção salazarista dos albergues de mendicidade e vadiagem como dispositivos (sacrificiais) de metamorfose identitária dos «maus-portugueses» se fazia acompanhar de um manejo retórico-fantasmático de posições e dramáticas corporais e microfamiliares.
450Tal grelha analítica, sem mais referências metodológicas, poderia evocar a hipótese de que a utilização da violência nos sistemas punitivos judiciais teria a sua fonte original nos antigos sistemas sacrificiais. Neste sentido, alguns autores salientam, por exemplo, que na ideologia da trifuncionalidade indo-europeia, estudada por Dumézil, o modo como a vítima sacrificial era morta mantinha uma relação de correspondência com as forças particulares que o sacrifício procurava propiciar, aplacar ou renovar, para, de seguida, tentarem evidenciar correlações e afinidades entre o tipo de castigo aplicado nos sistemas punitivos posteriores e as modalidades arcaicas da morte sacrificial493. Afastando-nos desta perspectiva historicista das origens sacrificiais da violência judicial nas civilizações indo-europeias, gostaríamos, ao invés, de argumentar que a lógica sacrificial constitui uma estrutura simbólica muito mais universal reeditada por diferentes sociedades para conceptualizar a sua origem ou a sua renovação social, para justificar a fundação de um novo sistema político, para introduzir relações assimétricas e hierárquicas entre grupos sociais ou para promover consubstancialidade e equivalência entre diferentes, etc.. É, sob esta perspectiva, que procuraremos reanalisar o modelo institucional exaltado pelo amigo regenerador.
*
451Como vimos em pontos anteriores, na construção mítica do «mau-português»-vadio e na sua equiparação a «perigo» identitário nacional, o salazarismo utilizou recorrentemente um símbolo corporal de crise identitária — o Portugal velho e moribundo. O mal-estar identitário, apontado frequentemente ao regime anterior, coincidia no essencial com uma imagem da nação «decadente», «em ruínas materiais e morais», «sem alegria de viver», «pessimista» e que «parecia a muitos não ter mesmo já possibilidade de salvar-se». Por acréscimo, a esta metáfora necrófila da mátria somava-se, como vimos, uma imagem de sujidade, pestilência, putrefacção, sobretudo na capital do Império (ao ponto de alguns nacionais, vexados, a assimilarem a uma qualquer aldeia marroquina).
«(...) nem tudo o que se há-de fazer está feito, nem podia tê-lo sido sôbre as ruínas materiais e morais dum povo que perdera a alegria de viver e parecia a muitos não ter mesmo já possibilidade de salvar-se.»494
«(...) mal desperta do seu torpor, soerguendo-se a custo de doentio pessimismo (...).495
452Alguns vectores simbólicos eram manejados como explicações deste estado terminal em que se encontrava o velho Portugal. Por um lado, a confusão identitária e a descaracterização mimética causada, no geral, por um dos maiores «defeitos» do «carácter nacional» — a tendência para uma «doentia preferência pelo interesse estrangeiro»496.
«É pois necessário o defender a unidade nacional, e defender também aquele atributo a que (...) chamei personalidade. A personalidade afirma-se por qualidades próprias, por vocações decididas, por serviços marcantes, pela forma inconfundível de pensar, de sentir, de actuar na colectividade internacional (...). A personalidade não receia o estrangeiro ou o importado, porque não o copia nem se lhe escraviza, tudo fazendo passar por ser cadinho misterioso que é a alma de um povo; (...) Se ter literatura, arte, ciência, forma de indústria, costumes e modos de ser, prisma ou luz própria para ver e interpretar os factos, sentir o mundo regular ou viver a vida, não é suficiente para garantir a independência política, devemos pensar que sermos em tudo nós e não outros é a primeira condição para não nos confundirmos.»497
453Por outro lado, o perigo de confusão identitária era também projectado sobre os vários rostos da vadiagem e atribuído aos seus poderes contaminadores sobre o «bom povo português», ainda são mas concebido como vulnerável e muito influenciável: a prostituta de rua gerava a confusão entre as mulheres decentes e as da má vida, o homossexual misturava as identidades de género, o mendigo teatral e astucioso jogava com as identidades estabelecidas, o vadio dizia-se desempregado para iludir a sua ociosidade, o «pseudo-pedinte» exibicionista de mazelas falsas era «mobilizado pelo reviralho para mostrar ao público o fracasso das medidas de assistência do Estado Novo», etc..
454Igualmente importante na construção simbólica do corpo moribundo da mátria, Salazar sublinhava ainda a sua desagregação interna, resultado das «lutas» e das «guerras» «intestinas», «mesquinhas», da anarquia, da «criação do caos» apontadas aos representantes da Primeira República e aos críticos e opositores ao Regime, caracterizados pejorativamente como «infantis».
«(...) Tenho trabalhado por substituir à tristeza da decadência, ao espírito das lutas intestinas, às guerras do ‘alecrim e da manjerona’, o amor da terra e da gente, a alegria da vida sã, o ideal do progresso pátrio, do brio português, da grandeza da nação.»498
«Não deixemos aviltar na mesquinhez das lutas intestinas este povo tam dócil, tão bom e sempre tam sacrificado às insuficiências e desvarios do seu escol dirigente.»499
«(...) as pequenas conspirações de passeio, os planos de revolucionários desempregados, os projectos que dão felicidade e a abastança quando forem publicados no «Diário» (...) e a criação do caos donde sairão depois, espontâneas, a ordem e a luz, (...) não passam em geral de jogos infantis, de pequeninas tragédias familiares, sob o olhar vigilante dos pais.»500
455À renovação ou à regeneração (material, social, económica, moral e espiritual) da «nação moribunda» e à consolidação de um (novo) Estado que suplantasse o velho, decadente, confuso e fragmentado, estavam subjacentes outros manejos simbólico-fantasmáticos de posições e dramáticas microfamiliares: a) a definição e a localização de um inimigo identitário — os «maus»-filhos portugueses — no caso analisado, os vários rostos da vadiagem «arruaceira»501; b) a caracterização desrealizante dos «bons portugueses do povo» como criaturas de pureza vulnerável, seduzíveis, corruptíveis, infantis, moldáveis (pelos «maus portugueses» e pelos «maus costumes» do estrangeiro); e a necessidade, fundada nesse mesmo esvaziamento desrealizante, de permanecerem colocados sob o «olhar vigilante» de «boas» figuras parentais, protectoras, educadoras, purificadoras; c) a identificação simbólica do Estado a uma figura feminina dedicada e sacrificada pelos «bons»-filhos e a um corpo materno (sacrificial) capaz de se constituir como a matriz da metamorfose dos «maus rebentos»; e d), consequentemente, a criação de dispositivos institucionais geridos oficialmente por uma lógica sacrificial, no interior dos quais se dramatizava simbolicamente a morte dos «maus» rebentos e o seu renascimento em filhos pródigos, devotos ao Portugal-mátria renovado e regenerador.
456Encerrado em tais dispositivos sacrificiais, o vadio-mendigo era inicialmente submetido a várias austeridades, preparatórias da grande metamorfose do «excremento social» em «rebento fecundo» apaixonado pela terra-mãe-nação. Só depois de lhe terem cortado os cabelos e as barbas, de o desinfectarem de micróbios e de outros parasitas, de o submeterem a um banho asseptizante, de lhe queimarem algumas roupas, de o afastarem dos seus bens pessoais (guardados em armazém até ao fim do ritual), de lhe vestirem uma farda (sempre igual), de o evacuarem de qualquer sistema de parentesco e de o desinserirem da família original, em suma, só depois de lhe retirarem tudo o que o poderia individualizar, poderia ser transformado numa espécie de «embrião», passivo, submisso, infantilizado, assexual, em condições de ser moldado pelo internador e de, subsequentemente, renascer das suas artes renovadoras.
«A polícia mandava tudo para aqui (...). Estive dois meses na camarata-depósito (...). Lá havia de tudo, homens novos e velhos, presos e mendigos, gatunos e assassinos. Comíamos e dormíamos lá dentro. Não se podia sair... Estávamos ali fechados à chave... Era mais uma prisão.»
«Todos os albergados tinham farda. Era obrigatório. As roupas própias iam para a arrecadação e quando fazíamos o pedido de saída ao fiscal e ele assinava, íamos com ele levantar a roupa civil.»
«O fiscal fazia a ronda de manhã e à noite... Quando ele apitava, ficava tudo de pé, a fazer a continência (...). Dantes formava tudo. Era como na tropa.»
«Havia mais disciplina, palmatoadas, cabelo cortado à escovinha, tanto para os homens como para as mulheres, as fardas, os horários, os castigos...»
«Não se podia falar nos refeitórios. Os guardas só queriam ouvir os talheres e as moscas. (...) Tratavam-nos como bestas, como brutos.»
«Por irmos à fruta ou por falarmos à mesa, éramos castigados. Às vezes, era a ‘roda muda’, outras vezes, as réguadas ou as ‘caritas’, ou então o calabouço.»
«Havia uma disciplina louca. O capitão Cascais entrava e ia ver todas as secções mais de uma vez ao dia. Estava tudo sob controlo.»
«Era muita gente junta... Mil e tal pessoas, gente de toda a espécie, zaragateiros, malucos, bêbedos, ladrões... Alguns pareciam bichos. Fazia-me muita impressão. O meu mundo era outro...»
457Depois de o sujeitar a um intenso «processo de mortificação do eu» (Goffmam, 1962) no interior da instituição regeneradora, o internador, como um artífice, podia agora dar forma ao «esboço imperfeito», amadurecê-lo, trabalhá-lo até à perfeição, através de várias técnicas. Entre elas, estava, como vimos, a obrigação ao trabalho agrícola, eleita como força motriz do processo de regeneração moral do vadio-mendigo.
458Dir-se-ia que o retorno à mãe-terra, a intimidade fusionai com a matriz-natureza (primordial), a descoberta da sua fecundação cíclica pelas sementes, das suas violações sazonais pelo arado e pelas chuvas, das suas gestações e germinações (cf. ponto 5.8.), ao mesmo tempo que eram apresentados como meios ideais para atingir o ressurgimento moral do «vadio-mendigo», simbolizavam o próprio processo de uterinização, gestação e renascimento por que este passava, guiado pelo internador.
459Tal como Salazar elegia o trabalho feminino-materno no doce lar familiar como modelo de governo do Estado (ao ponto de se auto-identificar a qualquer boa mãe de família e dona de casa)502, também o internador, na sua esteira, se apropriava da metáfora do funcionamento do corpo da terra (fecundado, gestante, parturiente) para conceptualizar e sobretudo para exaltar a eficácia do ritual (sacrificial) de renovação moral do «mau-português». Como se não lhe bastasse o «roubo» simbólico das funções paternas, o «pai-capitão» — já de si descrito como protector, exemplo de virtude e de autoridade moderada, etc., — elegia também o modelo do corpo feminino-materno (dessexualizado, renunciante, sacrificado) para caracterizar o seu trabalho regenerador.
460Um manejo simbólico particular era assim dado ao binómio mãe-filho, eleito quer como paradigma (oficial) da regeneração do(s) corpo(s) «moribundos» ou «vagabundos» da nação, quer como força motriz do percurso individual do «bom português» e da continuidade histórica da «raça» e do carácter nacional. Diluída no interior deste «Portugal-familialista», desta semiótica da «nação-lar» e do Estado-materno, qualquer figura masculina paterna era, portanto, irradicada ou substituída pelas imagens atenuadas do «irmão» ou do «amigo»503.
461É à luz deste cenário monoparental que podemos reler o ideal de felicidade social proposto pelo salazarismo. Com efeito, a renovação identitária da velha (nação) moribunda não procurava apenas introduzir diferenciações familialistas e hierarquias «naturais» (porque assentes no modelo familiar); era preciso que o corpo social rejuvenescido, muito embora sem «pai», fosse um todo diferenciado (do estrangeiro) e composto por partes diferentes (evitando a confusão das identidades internas), mas em que cada um dos elementos participasse parcialmente da natureza do outro, como irmãos mais velhos e mais novos, solidários, vivendo harmoniosamente, trabalhando para a obra de engrandecimento do Portugal-mátria.
462Neste quadro familialista, a diferença «perigosa» de alguns «irmãos» — da «leviana» e «ingrata opinião pública», dos «comodistas», do «estudante individualista», do «conspirador político», do «arruaceiro», do «pechisbeque de café», dos «maus maridos e maus pais» que passavam o tempo nas «tabernas» e nos «alcouces da praça pública», dos «vadios», dos «ciganos» e outros «vendilhões» ou de vários outros «loucos» — não era permitida por um irmão (mais velho), renunciante aos seus interesses individuais, sacrificado em nome dos irmãos mais novos a uma dedicação (incestuosa) à mãe-família-nacional.
«Este aspecto leviano da opinião pública tem conduzido a Nação tantas vezes a êrros, ingratidões e loucuras, a crimes, tragédias e vergonhas da história, tam irremediáveis e depressivos para a dignidade nacional, que somos obrigados a não a poder considerar como imperativo categórico. (...) Somos um povo de ingratos, a quem Deus tem posto a mão por baixo.»504
«(...) A outra Nação, a comodista, que vive regalada em suas quintas e palácios, essa, espera apenas que Salazar lhe guarde a porta, aplaudindo-o das janelas, cautelosamente detraz dos vidros, não vá haver chuva nas ruas... e não é capaz de sair cá fora, de varapau nas unhas para o ajudar a varrer a feira de todos os ciganos e vendilhões, de todos os saltimbancos e pilha-postas que rondam as tabernas, os cafés e alcouces da praça-pública portuguesa.»505
«Mas, cumprindo o que se pediu, e ainda no caminho de promessas a realisar, levantam-se vozes de loucos, em estúrdia de serenata, não para pedir mais e melhor, mas para gritar que o bom já não é bom, porque não é óptimo, e então preferem o péssimo. (...) Não ignoram por certo os deturpadores e malsins, que Salazar, para defender os dinheiros da Nação, não precisa das lições de moral e patriotismo de qualquer pechisbeque de café.»506
Notes de bas de page
1 «A Mitra», Revista da Polícia Portuguesa, n.o 7, 1938, págs 6-7.
2 Os livros de entrada apresentam-nos espaços específicos para o registo do número de albergado, da data de entrada, do sexo e da idade, da filiação, da profissão, da naturalidade, da residência, do captor e um espaço para observações que frequentemente contém referências sobre o motivo e a data de saída dos internados. Na ausência dos processos, as informações sobre os albergados, registadas na coluna das observações, foram, sempre que possível, codificadas e quantificadas. A análise das saídas (bem como dos seus motivos) resulta deste procedimento. O facto de não existir um lugar próprio para o registo destas informações pode colocar algumas problemas à sua avaliação e, nomeadamente, levantar a questão da subestimação dos dados apresentados.
3 O ano de 1936, no qual o quantitativo de internados presente na Mitra «mediava entre os 1200 e os 1300», constitui um exemplo extremado desta estratégia restritiva, nele se registando apenas 198 admissões.
4 O número sete da Revista Polícia Portuguesa, de 1938, acerca-se deste problema, chegando mesmo a referir que «A Mitra está cheia e ainda há muito quem necessite vir para cá.» (p. 8)
5 Com excepção do ano de 1941 e do ano de 1944, respectivamente, com 311 e 319 entra-
6 Conferir M. Simões dos Reis, (1940), A Vadiagem e a Mendicidade em Portugal, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, p. 592.
7 Conferir F. Rosas, (1990), Portugal entre a Paz e a Guerra (1939-1945), Estampa, Imp. Univ., n.o 83, pp. 343-347.
8 Os quadros 2, 3 e 4 foram construídos a partir de codificação e informatização dos livros de entrada do albergue distrital de mendicidade de Lisboa. Para uma análise mais exaustiva destas variáveis, veja-se S. Pereira Bastos (1992).
9 Fundo de Assistência à Mendicidade. Relatório e Contas da Comissão Gerente referentes ao exercício findo em 28.2.1935, (1935), Lisboa, Pap. Fernandes, p. 11.
10 «A Mitra», Revista da Polícia Portuguesa, n.o 7, 1938, pp. 7.
11 Fundo de Assistência à Mendicidade...., op. cit., p. 11.
12 Armando Vitorino Ribeiro, (1945), «Os conventos Lisboetas de S. Francisco da Cidade e de Santa Joana», Revista da Polícia Portuguesa, n.o 51, 1945, p. 21.
13 Por outro lado, nas duas últimas subfases, isto é, no período 1939-1946 e 1947-1951, a sobremasculinidade, muito embora continue a caracterizar globalmente as admissões, apresenta uma excepção. Com efeito, no universo admitido com mais de 67 anos, a proporção de mulheres supera a dos homens (cf. Quadro 6).
14 Esta predominância não é surpreendente uma vez que, desde 1928, se encontrava em funcionamento uma ‘Mitra’ no norte do país: o albergue da polícia do Porto.
15 Preâmbulo do decreto-lei n.o 30.389, de 20 de Abril de 1940.
16 M. Simões dos Reis, (1940), A Vadiagem e a Mendicidade em Portugal, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, p. 376.
17 Idem, pp. 376 e 377.
18 Diário de Lisboa, de 21 de Setembro de 1929 (entrevista ao ministro do Comércio).
19 Conferir, neste sentido, M. Simões dos Reis, op. cit., pp. 318 e 319.
20 P. Descamps, (1935), Le Portugal: La vie sociale actuelle, Paris, p. 457.
21 M. Simões dos Reis, op. cit., pp. 376 e 377.
22 P. Descamps, op. cit., p. 141. Conferir, também, pp. 158 e 457.
23 Idem, p. 161.
24 Idem, p. 457.
25 Idem, p. 457.
26 Conferir, por exemplo, Oliveira Salazar, (1935), Discursos 1928-1934, Coimbra Editora, pp. 21, 29-33, 78, 94, 123, etc., onde a política do sacrifício surge como condição necessária para o projecto de salvamento, de revolução social e moral dos portugueses.
27 «Fugimos a alimentar os pobres de ilusões, mas queremos a todo o transe perservar da onda que cresce no mundo a simplicidade da vida, a pureza dos costumes, a doçura dos sentimentos, o equilíbrio das relações sociais, esse ar familiar, modesto mas digno da vida portuguesa (...)» in Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas, 1935-1937, Coimbra, Coimbra Editora, II, p. 277.
28 Conferir páginas seguintes.
29 Descamps, op. cit., p. 95.
30 M. Lamas, (1948), As mulheres do meu país, Lisboa, Actuális Ltda, (1.a edição), p. 18
31 P. Descamps, op. cit., pp. 194 e 216.
32 ANTT-AGMI, Relatório do governador civil da Guarda, referente ao mês de Outubro de 1937.
33 M. Lamas, op. cit., p. 18.
34 Idem, p. 40.
35 Idem, p. 50.
36 Idem, p. 115.
37 Idem, p. 183.
38 Idem, p. 185.
39 Veja-se, neste sentido, o trabalho de L. Meersschaert, (1986), «Alguns contributos para o estudo da identidade das empregadas domésticas em Portugal», Análise Social, vol. XXII, 92-93, pp. 633-642 e o de Ana Nunes Almeida, (1985), «Trabalho feminino e estratégias familiares», Análise Social, vol. XXI, pp. 7-74.
40 No período entre 1933 e 1951, a situação de «pai incógnito» era registada em 7,2% e em 5% dos admitidos cuja idade de entrada se situava nos grupos etários 22-36 anos e 37-51 anos, respectivamente; a situação de «enjeitado» (ou de «exposto») alcançava, nos mesmos segmentos etários, percentagens muito reduzidas (cf. Quadro 8). De acordo com os livros de entrada no albergue, o quantitativo de órfãos era nulo. Uma vez que nas histórias de vida recolhidas esta situação foi, por vezes, mencionada, podemos talvez supor que o registo «órfão» não se utilizava nas fichas de admissão. A destruição de grande parte dos arquivos institucionais não nos permite verificar se esse registo era ou não realizado nos processos sociais dos internados. No entanto, os testemunhos dos velhos mitreiros, ainda hoje internados no CASL e no CASP, parecem convergir com outros dados quantitativos da época e, nomeadamente, com as estatísticas sobre os vadios entrados na Cadeia Penitenciária de Lisboa, no período compreendido entre 1890 e 1936, nas quais se verificava que cerca de 17% eram órfãos de um ou dos dois progenitores; paralelamente, os boletins médico-psicológicos dos restantes vadios admitidos no mesmo período deixavam entrever, em muitos casos, abandonos precoces e conflitos familiares graves.
41 J. Sousa Gomes, (1937), Lisboa, da sua Vida e da sua Beleza, Lisboa, Ed. patrocinada pelo Grupo «Amigos de Lisboa», p. 51.
42 «A actividade da P.I.C. de Lisboa», Revista da Polícia Portuguesa, n.o 21, Set/Out, 1940, p. 7.
43 «A Mouraria», Revista da Polícia Portuguesa, n.o 20, Julho/Agosto, 1940, pp. 6-10.
44 J. Sousa Gomes, op. cit., pp. 15-19.
45 Idem, pp. 16 e 17.
46 Idem, p. 19.
47 E. de Noronha, (1939), Alfama, Gente do Mar, Porto, Livraria Civilização, pp. 7, 18, 26, 119, 131, 313, 315.
48 J. Sousa Gomes, op. cit., pp. 25-27.
49 M. Simões dos Reis, op. cit., p. 304.
50 Conferir J. Sousa Gomes, op. cit. e A. Vieira da Silva, (1930), Os Bairros de Lisboa, Lisboa, Separata de Arqueologia e História, Imp. Lucas.
51 Avelino de Sousa, (1944), Bairro Alto, Romance de costumes populares, Lisboa, Livraria Popular de F. Franco, p. 138.
52 J. Sousa Gomes, op. cit., pp. 94-95.
53 M. Costa, (1950), Feiras e outros divertimentos populares de Lisboa, Lisboa, p. 163.
54 Conferir, por exemplo, A. de Oliveira, (1929), Criminalidade Infantil. Protecção Moral e Jurídica à Infância, Lisboa, p. 41.
55 A. Pimentel, (1901), Espelho dos Portugueses, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, vol. I, pp. 153 a 156.
56 Esta constância é corroborada por diversas estatísticas da época sobre vadiagem e mendicidade; conferir M. Simões dos Reis, op. cit., pp. 318 e 319.
57 L. A. Vicente Baptista, (1986), «Valores e Imagens da família em Portugal nos anos 30 — O quadro normativo», em A mulher na Sociedade Portuguesa — visão histórica e perspectivas actuais, Actas do Colóquio, Coimbra, 20 a 22 de Março de 1985, Instituto de Histórica Económica e Social, Faculdade de Letras, vol I, p. 194.
58 Oliveira Salazar, (1935), Discursos 1928-1934, op. cit., p. 85.
59 Oliveira Salazar, (1959), Discursos e notas políticas (1938-1943), Coimbra Editora, (2a edição), vol. III, p. 357.
60 J. de Araújo, (1940), «A Família — Sua origem e Fundamentos», em A Família, conferências promovidas pela Acção Católica da Madeira e realizadas no Teatro Municipal do Funchal entre 21 e 28 de Outubro de 1939, Colecção Ocidente, Câmara Municipal do Funchal, p. 39.
61 Conferir, por exemplo, A. J. Rodrigues, «Virtudes e Defeitos da Família», (1939), Em Defesa da Família, Discursos pronunciados na Semana da Campanha da Família, no Porto, de 19 a 26 de Março de 1939, Ed. da Junta Diocesana da A. C. do Porto, p. 27.
62 J. de Araújo, op. cit., p. 14.
63 A. Esteves, (1932), A Família, Coimbra, Oficinas Atlântida, p. 56.
64 Citado por A. Esteves, op. cit., p. 73.
65 Oliveira Salazar, (1935), Discursos 1928-1934, op. cit., p. 201.
66 J. A. Pestana de Vasconcelos, (1933), O conceito do Lar e da Família no Estado Novo, Coimbra, Imprensa da Universidade, p. 38.
67 Conferir para as noções de carácter e personalidade nacional Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas (1938-1943), op. cit., págs 337-338 e 403.
68 Conferir A. A. L. de Oliveira, (1939), «A Instituição Divina da Família», em Em Defesa da Família, op. cit.
69 J. de Araújo, op. cit., p. 25.
70 B. Machado, (1940), «A Família e a Educação» em A Família, op. cit., p. 95.
71 P. Gomes, (1940), «A Família e a Acção Católica», em A Família, op. cit., p. 223.
72 E. Gonçalves, (1940), «A Família e o Estado», em A Família, op. cit., p. 73.
73 P. Gomes, op. cit., p. 223.
74 E. Gonçalves, op. cit., p. 73.
75 Já em 1936 tinha podido proclamar em Braga as bases primárias do novo humanisno português: «Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a pátria e a sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever». Recolhido em Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas (1951-1958), Coimbra, Coimbra Editora, vol. V, 1959, p. 55.
76 Conferir, por exemplo, J. de Araújo, op. cit., p. 12; A. J. Rodrigues, op. cit., p. 31; E. A. Vieira de Castro, «Deveres Mútuos dos Cônjuges», Em Defesa da Família, op. cit., p. 155.
77 Veja, em jeito de síntese, L. A. Vicente Baptista, op. cit., pp. 196-214.
78 M. Simões dos Reis, op. cit., p. 222.
79 A. de Lemos Peixoto, «A Família e o Estado na Educação da Criança», Em Defesa da Família, op. cit., p. 198.
80 A. de Lemos Peixoto, op. cit., p. 196
81 Idem, p. 197.
82 Idem, p. 198.
83 Oliveira Salazar, (1937), Discursos e Notas Políticas (1935-1937), op. cit., p. 134
84 M. Ferreira da Silva, «Virtudes familiares», Em Defesa da Família, op. cit., p. 179.
85 B. Machado, op. cit., pp. 83 e 84.
86 J. G. de Sá Carneiro, «A Família em face do Estado», Em Defesa da Família, op. cit., p. 58.
87 M. Simões dos Reis, op. cit., p. 49.
88 Juventude Católica Feminina, A Família — estudo doutrinário, 1938-39, Braga, 1939, p. 148.
89 J. G. de Sá Carneiro, op. cit., p. 58.
90 M. Lamas, (1948), op. cit., p. 46.
91 J. Cutileiro, (1971), «Honra, vergonha e amigos», prefácio de J. G. Peristiany (1988/2.a ed.), Honra e Vergonha: Valores das Sociedades Mediterrâneas, (edição inglesa de 1965), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, p. XVII.
92 L. Chaves, (1922), O Amor português: O Namoro, o Casamento, a Família, Lisboa, Livraria Clássica Editora, p. 97.
93 No caso do chamado «rufião» ou «aquele que vivia à custa de mulher prostituída», equiparado ao vadio pela legislação em vigor, a aproximação a posteriori aos seus códigos de honra/vergonha vê-se dificultada pelo facto de, na amostra entrevistada (internados do CASL e CASP com maior tempo de internamento), não termos encontrado nenhum utente encerrado por tal motivo. Uma outra pesquisa, diferentemente elaborada, seria necessária para pensar os códigos de honra/vergonha dos «rufiões» de outrora.
94 Conferir, por exemplo, M. Lamas, op. cit., pp. 62 e 83.
95 «O trabalho da mulher fora do lar desagrega êste, separa os membros da família, torna-os um pouco estranhos uns aos outros. Desaparece a vida em comum, sofre a acção educativa das crianças, diminue o número destas; e com o mau funcionamento da economia doméstica, no arranjo da casa, no preparo da alimentação e do vestuário, verifica-se uma perda importante, raro materialmente compensada pelo salário recebido. (...). Assim temos como lógico na vida social e como útil à economia a existência regular da família do trabalhador; temos como fundamental que seja o trabalhador que a sustente; defendemos que o trabalho da mulher casada e geralmente até o da mulher solteira, integrada na família e sem a responsabilidade da mesma, não deve ser fomentado: nunca houve nenhuma boa dona de casa que não tivesse imenso que fazer.» Em Oliveira Salazar, (1935), Discursos, op. cit., p. 201.
96 E. Willems, (1955), «A família portuguesa contemporânea», Sociologia, n.o 17, S. Paulo, p. 6.
97 M. Lamas, op. cit., p. 458. Conferir, na mesma obra, p. 448.
98 Idem, pp. 458 e 278.
99 Idem, p. 44.
100 Idem, p. 102 e 103.
101 «Comparando as habitações dos camponeses alentejanos com os casebres que predominam no Alto Minho, Trás-os-Montes, Douro e Beira, nota-se um contraste absoluto entre o asseio e arranjo das primeiras e o desconforto, a miséria dos segundos. Pode dizer-se que a limpeza e adorno da casa constitui, para a aldeã alentejana, a sua constante preocupação», Idem, p. 231; para os hábitos de limpeza das mulheres algarvias conferir pp. 261 e 273.
102 Idem, p. 166.
103 L. A. da Silveira e Sousa, «Higiene e conforto do lar», Em Defesa da Família, op. cit., p. 138.
104 M. Lamas, op. cit.. pp. 141-142, 125 e 219 respectivamente.
105 J. Constante da Rocha, «Constituição da família», Em Defesa da Família, op. cit., p. 74 e 75.
106 M. Lamas, op. cit. p. 40.
107 Idem p. 120.
108 Idem p. 18.
109 Idem p. 143.
110 Idem p. 195.
111 Idem p. 250.
112 Idem p. 286.
113 L. da Cunha Gonçalves, (1922), A Vida Rural no Alentejo, Coimbra, p. 57.
114 E. Willems, op. cit., p. 12.
115 J. P. Freire, (1948), O Saloio, Porto, p. 95.
116 J. da Silva Picão, (1947), Através dos Campos: Usos e Costumes Agrícolas Alentejanos, Lisboa, p. 144.
117 M. Lamas, op. cit., p. 18.
118 J. Cutileiro, op. cit., p. XIX-XX.
119 E. Willems, op. cit., p. 28 e seguintes.
120 ANTT-AGMI, Ofício da Câmara Municipal de Mafra, de 26 de Fevereiro de 1941.
121 P. Descamps, op. cit., p. 213.
122 M. Lamas, op. cit., p. 147
123 Idem, p. 225.
124 L. A. da Silveira e Sousa, op. cit., p. 139.
125 Conferir M. Lamas, op. cit., pp. 8, 18, 31, 39, 40, 106, 188, 204, 223, 248, 328, 341, 371, etc.
126 Idem, pp. 128 e 334, por exemplo.
127 L. Mégevand, (1958), Le Vrai Salazar, Paris, Nouvelles Éditions Latines, p. 70.
128 M. Lamas, op. cit., p. 40.
129 Um parêntesis metodológico se impõe. Não convém esquecer que muitos dos materiais em análise se compõem exclusivamente de testemunhos orais fornecidos por internados e internadas com um longo tempo de permanência em instituição total (cf. pontos seguintes) e de idades avançadas, o que pode alterar as suas visões do mundo e das suas próprias histórias de vida, ficando portanto por observar os gestos, as linguagens e as práticas a que se referem. Como já tivemos ocasião de salientar, a orientação que demos a este trabalho dirige-se preferencialmente para uma análise (em tensão) dos discursos ou das visões do mundo dos vários actores sociais envolvidos no processo de construção de uma identidade marginal e na justificação do encerramento de certos personagens em instituições fechadas.
130 A moralização da sociedade portuguesa em tomo do valor do trabalho intensificou-se ao longo do Estado Novo. Por exemplo, o decreto 36.448 de 1 de Agosto de 1947, estabelecendo e pondo em execução medidas contra a mendicidade, reafirmava «como sendo certo que o homem robusto não tem o direito a viver sem trabalhar» e, por acréscimo, que não basta proibir e punir a mendicidade, «sendo mister arrancar o homem à ociosidade e às suas perniciosas consequências».
131 A apresentação global dos dados escamoteia a existência de algumas variações no tocante ao preenchimento do item profissão, neste período. Com efeito, enquanto que no segmento admitido entre 1933 e 1938, a ausência de profissão bem como a inexistência de informação sobre esta variável registavam valores reduzidos e a situação de profissão indefinida era a dominante (com um valor médio superior a 30%), os livros de entrada dos primeiros anos da década de quarenta confrontam-nos com uma alteração brusca deste padrão. Entre 1939 e 1946, a ausência de informação sobre a profissão dos homens entrados neste grupo de idade elevou-se consideravelmente (atingindo a percentagem média de 39,6%) e, em paralelo, a da ocorrência «sem profissão definida» decresceu significativamente (11,5%), observando-se um ligeiro aumento dos «sem profissão» (7%). Contudo, entre 1947 e 1951, as proporções de inexistência de informação e de admitidos «sem profissão definida» tendiam a igualar-se, alcançando em média, respectivamente, 28,2% e os 25,4% e os entrados «sem profissão» voltaram a diminuir (3,4%). Uma vez que o aumento da ausência de informação sobre a ocupação dos entrados se fazia sempre acompanhar de uma diminuição dos registados com profissão indefinida, podemos apenas pôr a hipótese de ter ocorrido, no início dos anos quarenta, uma alteração no padrão institucional de preenchimento dos livros de entrada, ou seja, que, em grande parte dos casos, a ausência de registo passe a corresponder e a ser lida como inexistência de uma profissão definida.
132 As percentagens (médias) apresentadas foram calculadas a partir dos livros de entrada da Mitra, nos quais está previsto (mas nem sempre prenchido) o item «profissão». Na codificação das diferentes ocorrências utilizaram-se os códigos da classificação nacional de profissões. Convém também sublinhar que, no período 1933-1951, se verificam variações ligeiras nas percentagens das diferentes profissões dos entrados as quais, em grande parte, podem ser pensadas, quer como decorrentes de efeitos estatísticos (por exemplo, a amostra reduz-se consideravelmente entre 1935 e 1946, em função de uma política restritiva do movimento das admissões), quer como resultantes do não preenchimento desta variável, particularmente nos livros de entrada da década de quarenta. Estas duas razões inibiram-nos de interpretar as pequenas diferenças percentuais entre as profissões dos entrados ao longo deste período.
133 Augusto de Oliveira, (1929), Criminalidade Infantil Protecção Moral e Jurídica à Infância, op. cit., pp. 61-67 e 69-80.
134 Idem, p. 73.
135 A. Lopes, (1944), «Vendedores Ambulantes», Olisipo, vol. VI, n.o 26 e 27, Lisboa.
136 Idem, pag. 107.
137 ldem, pag. 107.
138 Idem, pag. 107.
139 ANTT-AGMI, Informação da P.S.P de Lisboa, datada de 11 de Julho de 1944.
140 ANTT-AGMI, Carta ao ministro do Interior de J..., internado na Mitra, 32 anos, casado, natural de Loulé, datada de 10 de Julho de 1944.
141 ANTT-AGMI, Carta ao ministro do Interior de A..., internado da Mitra, 35 anos, solteiro, natural de Castelo Branco, datada de 10 de Julho de 1944.
142 ANTT-AGMI, O Problema das Construções Clandestinas: Elementos Estatísticos do Relatório da Polícia Municipal, referente a 1944, datado de 15 de Março de 1945.
143 Augusto de Oliveira, op. cit., p. 62.
144 Afrâmio Peixoto, (1933), Criminologia, (2.a ed.), Rio de Janeiro, p. 214. Homologadas, pelos perigos a que estavam sujeitas, acrescentavam-se também as empregadas de comércio, as cabeleireiras, as manicures, as arrumadeiras, etc.
145 Augusto de Oliveira, op. cit., p. 74
146 Idem, p. 73.
147 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 21, 1940, p. 7.
148 Cf. ANTT-AGMI.
149 F. Rosas, (1990), Portugal entre a paz e a guerra. Estudo do impacte da II Guerra Mundial na economia e na sociedade portuguesas, (1939-1945), Lisboa, Editorial Estampa, n.o 83, p. 353.
150 Idem, p. 353.
151 I Congresso Nacional da Marinha Mercante, Lisboa, 1951, vol. III, p. 143.
152 Idem, p. 151.
153 Idem, p. 200.
154 Conferir M. Simões dos Reis, op. cit., p. 60: «O vadio (...) tem asco ao trabalho, que para ele representa um grande sofrimento, pior do que a detenção ou a prisão mais severa; a luz, o sol e a liberdade alegram-no, como a todo o ser humano, mas o trabalho gela-o de pavôr, causa-lhe calafrios de ódio, tortura-o horrosamente (...)».
155 Idem, p. 252.
156 ANTT-AGMI, Correspondência enviada ao ministro do Interior (Março 531).
157 ANTT-AGMI, Particular.
158 Conferir M. Simões dos Reis, op. cit., pp. 291-292;
159 Tal era, nas palavras (quase delirantes) de F. Macedo, o «ultrajante» poder de metamorfose dos mendigos profissionais: «(...) sem excepção, os adultos todos tinham o aspecto de velhos trôpegos, aquebrantados por enfermidades, aleijados, chagados, enfim, pareciam todos entes inutilisados para o movimento, para a acção, para a alegria e para o folguedo!... Pois bem, perto do pouso, a mudança era instantânea e completa em grande número d’elles: os velhos volviam-se em rapazes (...), tiravam os alforges dos hombros e os levavam n’um dos braços, correndo desembaraçados, assobiando ou cantando, lançando ao longe grossas fumaradas de cigarros, gritando pelas mulheres e filhas ou pelas concubinas (...). Se eram mulheres, cada qual tirava o filho da anca e o lenço da cabeça, dava com os dedos uma volta o cabelo e quási todas ellas, de velhas tortas e trémulas, se transfiguravam em raparigas elegantes (...), risonhas, graciosas e quási esbeltas (...).» (F. Macedo, (1903), Os Mendigos Criminosos, Lisboa, Typ. da P. P. Palhares, pp. 38-39)
160 Cf. Oliveira Salazar, Discursos, (1928-1934), op. cit., pp. 10, 24-29, 194, etc., bem como Discursos e Notas Políticas (1938-1943), op. cit., p. 197.
161 Os quadros 7, 8, 9, 10 e 11 foram construídos a partir da codificação e informatização dos livros de entrada do albergue distrital de mendicidade de Lisboa — Mitra. Para uma análise mais segmentada das variáveis naturalidade, residência e profissão veja-se S. Pereira Bastos (1992).
162 Com a única excepção do ano de 1942, em que os valores praticamente se invertem, predominando a admissão de menores (45%) sobre a de indivíduos com mais de 52 anos (32%).
163 Este vazio de informação sobre os albergados mais idosos deve-se ao facto de os materiais que resistiram aos incêndios dos arquivos institucionais respeitarem apenas ao CASP (exanexo da Mitra), não restando qualquer resíduo, deste período, no CASL. Ora, como veremos em pontos seguintes, a transferência para a colónia agrícola do Pisão ou centro de trabalho do albergue fazia-se mediante critérios específicos. Aqui, importa apenas referir que as mulheres, os homens mais velhos (com algumas excepções) e os menores de 14 anos ficavam na sede.
164 Conferir artigo de O Século, de 25 de Março de 1949, intitulado «Os Clandestinos da vida» e o artigo da Revista da Polícia Portuguesa «O ‘albergue da Mitra’ foi visitado por um redactor do jornal ‘O Século’ », n.o 72, Março Abril de 1949, pp. 10-12.
165 No que respeita ao seu padrão biográfico não deixa de ser curioso notar que, enquanto que a situação de «pai incógnito» diminuía consideravelmente nos entrados com idades mais avançadas, no segmento etário dos com mais de 67 anos, a situação de «exposto» atingia, comparativamente com os outros grupos de idade, percentagens mais elevadas (5,3%). E ainda interessante verificar que nas mulheres entradas com mais de 52 anos, a situação de «exposto» quase duplicava a encontrada para os homens da mesma faixa etária (cf. Quadro 8).
166 «Na criação dos albergues de mendicidade distritais têm-se presente a distinção entre os que esmolam por virtude de reconhecido estado de necessidade e os que o fazem por vício (...). Poderão permanecer com mais alguma demora tam só os reconhecidamente pobres, sem família ou qualquer amparo, incapazes de angariar meios de subsistência» (preâmbulo do decreto-lei 30389 de 20 de Abril de 1940).
167 No período 1933-1934, a percentagem (cerca de 28%) de naturais da região centro (Coimbra, Aveiro, Viseu e Guarda) aproxima-se da dos nascidos no distrito de Lisboa (30,7%), na faixa etária dos mais idosos (mais de 67 anos), seguindo-se a dos naturais da região do Vale do Tejo (Santarém, Leiria, Portalegre, Castelo Branco) com cerca de 21%. Até 1951, a tendência, para a mesma faixa etária, vai no sentido de um aumento de cinco a oito pontos das percentagens dos naturais do distrito de Lisboa e de um decréscimo concomitante de 9 a 11 pontos da proporção de naturais da região centro, mantendo os nascidos no Vale do Tejo valores relativamente constantes (cf. Quadro 7).
168 Artigo já citado «Os Clandestinos da vida», publicado em O Século, de 25 de Março de 1949.
169 Artigo já citado «Os Clandestinos da vida», publicado em O Século, de 25 de Março de 1949.
170 Temos notícia, através dos livros de entrada, que a Mitra internou também alguns guardas da P.S.P. no período em estudo.
171 Conferir decreto de 27 de Maio de 1911 e decreto-lei n.o 10767 de 15 de Maio de 1925.
172 Conferir, por exemplo, decreto-lei n.o 14498 de 29 de Outubro de 1927, Estatuto do Trabalho Nacional de 1933, decretos-leis n.o 24402 de 24 de Agosto de 1934 e n.o 26917 de 24 de Agosto de 1936.
173 Conferir decreto-lei n.o 20431 de 24 de Outubro de 1931.
174 Conferir decreto-lei n.o 18404 de 31 de Maio de 1930.
175 Conferir art. 3.° da lei n.o 1547 de 25 de Fevereiro de 1924, art. 2.° do decreto-lei n.o 12708 de 22 de Novembro de 1926, decreto-lei n.o 15602 de 18 de Junho de 1928.
176 Conferir decreto-lei n.o 20431 de 24 de Outubro de 1931.
177 Conferir decreto-lei n.o 13564 de 6 de Maio de 1927 e lei 1974 de 16 de Fevereiro de 1939.
178 Conferir V. Ribeiro, (1907), História da Beneficência Pública em Portugal, Coimbra, Imp. da Universidade.
179 ANTT-AGMI, Correspondência da P.S.P. de Lisboa ao ministro do Interior, datada de 22 de Fevereiro de 1935.
180 Não deixa de ser peculiar que, também no universo infantil, existisse uma desproporção sensível entre entrados do sexo feminino e do masculino, quer no segmento de admitidos com idade inferior aos 7 anos, quer no dos entrados na faixa etária 8-14 (cf. Quadro 6, no ponto 5.2).
181 A. Esteves, (1932), A Família, Coimbra, Oficinas Atlântida, p. 56
182 A. de Oliveira, (1929), Criminalidade Infantil. Protecção Moral e Jurídica à Infância, Lisboa, p. 83.
183 Idem, p. 61
184 Idem, pp. 83 e 84.
185 Idem, pp. 6 e 13.
186 Mendes Correia, (1915), Crianças Delinquentes, citado em Ary dos Santos, (1938), Como nascem, como vivem e como morrem os criminosos, Lisboa, p. 72.
187 ANTT-AGMI, Cópia da Correspondência da P.S.P. de Lisboa/Albergue da Mendicidade ao director-geral da Fazenda Pública, de 22 de Maio de 1939.
188 M. Simões dos Reis, (1940), A Vadiagem e a Mendicidade em Portugal, Lisboa, Imp. Libânio da Silva, p. 222.
189 O Século, de 26 de Fevereiro de 1932.
190 M. Simões dos Reis, op. cit., p. 222.
191 A. de Oliveira, op. cit., p. 6.
192 Mendes Correia, (1914), Os Criminosos Portugueses, Coimbra, 2.a ed., p. 96.
193 M. Simões dos Reis, op. cit., p. 222.
194 O Século, de 10 de Outubro de 1932.
195 Acerca dos «teatrinhos» que as crianças faziam outrora, conferir A. Lopes, (1944), «Vendedores Ambulantes», Olisipo, vol. VI, n.o 26 e 27, Lisboa, p. 104.
196 Idem, p. 104.
197 Idem, p. 112.
198 A Escola Portuguesa, de 10 de Março de 1935.
199 A. Almeida, (1985), «Trabalho feminino e estratégias familiares», Análise Social, vol. XXI, pp. 22 a 25.
200 A. Lopes, op. cit., p. 112.
201 ANTT-AGMI, Cópia da Correspondência da P.S.P. de Lisboa/Albergue da Mendicidade ao director-geral da Fazenda Pública, de 22 de Maio de 1939.
202 Nos discursos da época, a criança é frequentemente concebida como um ser passivo, um objecto moldável, transformável quer no «bom cidadão português de amanhã», quer no «maior criminoso». Conferir, por exemplo, L. de Pina, (1939), «Defesa da Criança», Em Defesa da Família, Discursos pronunciados na Semana da Campanha da Família no Porto, de 19 a 26 de Março de 1939, Ed. Junta Diocesana da A. C. do Porto.
203 De acordo com os livros de entrada, 74,3% dos menores entrados com menos de 14 anos eram naturais do distrito de Lisboa, particularmente do concelho de Lisboa (cf. Quadro 7) e, em percentagens muito reduzidas, originários dos distritos de Setúbal (3%), Santarém (2,6%), Viseu (2,1%), Castelo Branco (1,7%) e Leiria (1,9%).
204 Temos ainda notícia que um número significativo destes menores foi registado como não possuindo residência e que tal quantitativo foi aumentando ao longo do período em estudo (cf. Quadro 10). Com efeito, enquanto que nos dois primeiros anos de funcionamento do albergue 4,9% dos menores de 14 anos do sexo masculino e 5,8% do sexo feminino foram registados como não tendo residência, nos últimos anos da década de trinta verifíca-se um aumento desta percentagem, particularmente no sexo feminino (18,3%-F; 9,7%-M). Nos entrados na década de quarenta, as percentagens de menores de 7 anos «sem residência» ultrapassam geralmente os 30% (sobretudo no sexo feminino) e os valores apurados para os entrados do sexo feminino e masculino de idade entre os 8 e os 14 anos, na mesma situação, atingem, em média, 22,3% e 16,8%, respectivamente.
205 ANTT-AGMI, Cópia da Correspondência da P.S.P. de Lisboa/Albergue da Mendicidade ao director-geral da Fazenda Pública, de 22 de Maio de 1939.
206 O Século, de 24 de Março de 1949, artigo intitulado «Os Clandestinos da Vida».
207 O Século, de 10 de Outubro de 1932.
208 Idem.
209 A. de Oliveira, op. cit., p. 24.
210 O Século, de 24 de Março de 1949.
211 A análise das fichas dos admitidos com menos de 14 anos, no período entre 1933 e 1951, permite-nos afirmar que em 3,7% dos casos não foi registada uma data de saída, que em 76% dos casos o tempo de permanência na instituição era igual ou inferior a cinco anos e que nos restantes o intervalo de permanência mais frequente era entre 6 e 10 anos (13,1%).
212 A guia de transferência atingia percentagens mais reduzidas (15,1%) bem como o falecimento (3,5%).
213 Curiosamente, neste período, o movimento de admissões no albergue caracterizou-se por um quantitativo muito reduzido de entrados de idades compreendidas entre os 15 e os 21 anos, raramente ultrapassando os 6% da totalidade do universo admitido. Podemos até avançar que, à excepção de alguns anos da história recente da instituição em que se converteu a Mitra, a percentagem de entrados nesta faixa etária nunca alcançou valores tão diminutos. A reduzida admissão de jovens entre os 15 e os 21 anos (muito vincada em determinados anos) levou-nos a não construir um capítulo específico sobre os dados quantitativos apurados a partir dos livros de entrada.
214 ANTT-AGMI. Cópia da Correspondência da P.S.P. de Lisboa/Albergue da Mendicidade ao director-geral da Fazenda Pública, de 22 de Maio de 1939.
215 Cf. ANTT-AGMI, Correspondência da Polícia de Segurança Pública de Lisboa ao ministro do Interior, de 29 de Agosto de 1936.
216 Idem.
217 Conferir, nomeadamente J. Gonçalves, (1927), «Criminalidade Infantil», em A Medecina Contemporânea, pp. 98-100 e ANTT-AGMI, Relatório de carácter político-social (do continente) da P.S.P, de 1 de Abril de 1941.
218 ANTT-AGMI, Correspondência do Comando da P.S.P. de Lisboa ao ministro do Interior, de 22 de Fevereiro de 1935.
219 ANTT-AGMI, Correspondência do Comando da P.S.P. de Lisboa ao ministro do Interior, de 23 de Maio de 1939.
220 L. Navarro Soeiro, (1959), «A Vagabundagem e a Mendicidade, problema biopsicossocial», in Anais Portugueses de Psiquiatria, ano XI, Dezembro, pp. 152-176.
221 Os livros de entrada no albergue, desde 1933 até 1951, fazem referência à doença mental em 58 indivíduos. Este quantitativo é inferior ao número de casos de doença mental ventilado por Navarro Soeiro apenas numa amostra de internados na Mitra em 1947 e 1948 e, consequentemente, não parece ser representativo do peso da doença mental no albergue, neste período.
222 L. Navarro Soeiro, op. cit., p. 170. A análise da variável invalidez física, isolada ou acompanhada de outros diagnósticos, revelava-se também pertinente, fazendo sobressair nos 35 casos (24,7%) em que esta se exprimia, quase 50% de vítimas de reumatismo crónico, em percentagens mais diminutas, a asma brônquica (3%), as úlceras varicosas (2,1%) bem típicas dos vagabundos e, ainda, as deficiências sensoriais (3%) e a senilidade sem demência (3%).
223 A caracterização dos 142 indivíduos internados na Mitra em 1947 e 1948 completava-se: cerca de 65% possuía mais de 50 anos; eram, na sua maioria, analfabetos (74%); aproximadamente 30% não tinha profissão definida, seguindo-se-lhes, por ordem decrescente, os trabalhadores rurais (12,6%), os carroceiros (6,3%), os operários (4,9%), estando os restantes ligados à construção civil, à serventia, ao pequeno comércio e a uma lista variada de profissões de caráter artesanal. (Muito embora, os valores apresentados não se afastem, grosso modo, dos que apurámos nos livros de entrada do albergue, surpreendem-nos pela proporção elevada de trabalhadores rurais. Na fonte que utilizámos, a percentagem de ocupações relacionadas com a agricultura — trabalhadores rurais, criadores de animais, etc. — atingia percentagens abaixo dos 2%). De sublinhar, ainda, era a proporção relativamente diminuta da delinquência (15,5%), correspondendo cerca de metade a delitos de pouca gravidade (pequenos furtos, desobediência às autoridades, etc.) e o restante a delitos sexuais (exibicionismo, homossexualidade, pederastia, etc.). Tal observação pode estar relacionada com o facto de Navarro Soeiro ter seleccionado os elementos da sua amostra de entre os internados na Mitra-sede. No artigo referido, menciona que abordará, num outro trabalho, o caso dos vadios perigosos e delinquentes em cumprimento de medidas de segurança, internados nas colónias penais e em determinados estabelecimentos, dando como exemplo, o Pisão. Na medida em que os internados entrados no albergue com medida de segurança eram, na sua maioria, transferidos para o anexo na Quinta do Pisão, não é de admirar que este estudo estatístico de Navarro Soeiro não acuse percentagens elevadas de delinquência.
224 L. Navarro Soeiro, (1958), «Vagabondage Juvénile», Boletim do Instituto A. A. da Costa Ferreira, n.o 2, Lisboa, pp. 617-625.
225 L. Navarro Soeiro, (1958), «Higiene mental e Delinquência», Separata do jornal O Médico, XXXVI, pp. 557-60.
226 O mesmo se verificava na Maison de Salpetrière, sendo aqui a maioria dos 6704 dos internados do sexo feminino.
227 La Rochefoucault Liancourt — Rapport fait au nom du Comité de Mendicité des visites faites dans divers hospitaux, hospices et maisons de charité de Paris — 1790, citado por F. Pereira, «Mendigos, marginais e loucos (visões aristocráticas, visões burguesas)», Análise Psicológica, 3, (1), 1981, pp. 377-8.
228 F. Pereira, op. cit., p. 378.
229 P. Pichot, Barahona Femandes, (1984), Um século de Psiquiatria e a Psiquiatria em Portugal, Lisboa, Roche, p. 329.
230 É mesmo de considerar a hipótese do seu universo ter reencarnado aquele que, um século atrás, havia coexistido nos asilos de mendicidade (e, entre eles, no dos Capuchos e no de Xabregas).
231 Organismo que então supervisionava as instituições psiquiátricas de Lisboa, vindo mais tarde a confluir no Instituto de Assistência Psiquiátrica, o qual teve um «importante embora discutido papel de coordenação, organizando desde os anos quarenta (...) dispensários ambulatórios e assistência periférica em vários pontos do país.» (Em P. Pichot e Barahona Fernandes, op. cit., p. 308.)
232 «Não posso propor nem perfilhar para o caso da colónia de trabalho da Quinta do Pisão outra solução que não seja a de entregar os alienados ali internados à vigilância e tratamento de médicos e enfermeiros especializados (Carta do Dr. Ilharco ao Capitão Godinho, em Novembro de 1949).
233 Oportunamente, referiremos outras propostas e algumas resistências que precederam a introdução de assistência psiquiátrica na colónia do Pisão, a partir de 1956.
234 A função do albergue como centro de triagem e encaminhamento para instituições específicas e, nomeadamente, para os hospitais psiquiátricos é referida por Navarro Soeiro: «Criam-se (...) albergues, casas ou centros de trabalho para os recolher transitoriamente, no objectivo duma «triagem» pois muitos deles devem ser internados nos hospitais gerais ou especiais (psiquiátricos), hospícios ou asilos» (em «A Vagabundagem e a Mendicidade — problema biopsicossocial», op. cit., p. 166). O fracasso da função de triagem da Mitra, também no que respeitava a doentes mentais, prendia-se com aspectos do funcionamento das instituições psiquiátricas na época, que serão abordados num capítulo próximo.
235 Cf. J-Cl. Beaune, (1983), Le vagabond et la machine, Champ Vallon, p. 16.
236 L. Cebola, (1931), Psiquiatria Social, Lisboa, p. 48. Conferir também p. 167.
237 M. Simões dos Reis, (1940), A Vadiagem e a Mendicidade em Portugal, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, pp. 437-438.
238 Idem, p. 438.
239 J-Cl Beaune, op. cit., p. 193.
240 Pagnier, (1906), Du vagabondage et des vagabonds, Thèse, Lyon, citado por Simões dos Reis, op. cit. p. 47.
241 Capítulo esse que, segundo um dos seus comentadores, constituiria a «parte menos cuidada» de toda a criminologia portuguesa de Mendes Correia. Cf. Quintiliano Saldanha, (1933), La Nouvelle Anthropologie Criminelle, Porto, p. 6.
242 A. Mendes Correia, (1931), A Nova Antropologia Criminal, Porto, p. 179.
243 Marie (Dr), Meunier (R.), (1908), Les vagabonds, Paris, Girad et Brière, p. 121, recolhido em J-Cl. Beaune, op. cit, p. 197.
244 A. Mendes Correia, (1931), op. cit., pp. 179-180.
245 T. Lopes Cardoso, (1940), «Alguns aspectos da criminalidade infantil em Portugal à face da Estatística», Congresso do Mundo Português, vol. XVIII, pp. 509 a 513.
246 L. Navarro Soeiro, (1959), «A Vagabundagem e a Mendicidade...», op. cit., pp. 167 e 168.
247 Cf. A. Vexliard (1957), Le clochard: Étude de psychologie sociale, Desclée, p. 81.
248 L. Navarro Soeiro, (1959), op. cit., p. 163.
249 Mote de um fado de Ribeirinho recolhido em P. de Carvalho, História do Fado, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, p. 212.
250 Sentença do Tribunal de Execução das Penas (recolhida do processo de um internado transferido para a Colónia do Pisão em 1948).
251 F. I. dos Santos Cruz, (1841), Da prostituição na Cidade de Lisboa, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, p. 110.
252 ldem, p. 126.
253 ldem, p. 74 e seguintes.
254 A. Tovar de Lemos, (1908), A Prostituição. Estudo anthropológico da prostituta portugueza, Lisboa, Centro Typographico Colonial, p. 71.
255 Egas Moniz, (1922), A Vida Sexual. Fisiologia e Patologia, (5.a edição, actualizada e revista pelo autor, muito melhorada), Livraria Editora Casa Ventura Abrantes, p. 364.
256 Santos Cruz, op. cit., p. 11.
257 A. Gião, (1891), Contribuição para o Estudo da Prostituição em Lisboa, Lisboa, p. 35.
258 F. Pereira d’Azevedo, (1864), História da prostituição e polícia sanitária no Porto (seguida de um ensaio estatístico dos dois últimos anos, tabelas comparativas, etc.), Porto, p. 31.
259 Cf. A. da Fonseca, (1902), Da Prostituição em Portugal, Porto, pp. 53-71.
260 F. Schwalback, (1912), O Vício em Lisboa, Lisboa, pp. 12-13.
261 J. Crespo, (1944), Contribuição para o Estudo do Lenocínio em Portugal, Coimbra, Liv. Académica, p. 10.
262 A. Tovar de Lemos, (1908), op. cit., p. 71.
263 Santos Cruz, op. cit., pp. 110 e 132.
264 Egas Moniz, op. cit., pp. 364 e 369.
265 Idem, p. 370.
266 Idem, p. 368.
267 Idem, p. 370.
268 A. Tovar de Lemos, op. cit., p. 68.
269 Santos Cruz, op. cit., pp. 81 e 82.
270 Idem, pp. 147, 155, etc.
271 Cf. A. Tovar de Lemos, (1937), Para Extinguir a Sífilis Criemos Dispensários, Lisboa.
272 A. Lessa, «Sobre a sífilis feminina em Portugal», Separata de A Medecina Contemporânea, n.o s 35 e 36 de 1 e 8 de Setembro de 1940, Centro Tipográfico Colonial, 1941 p. 4.
273 Cf., por exemplo, os múltiplos artigos surgidos sobre esta temática nos números da revista «A Medecina Contemporânea — Hebdomadario Portuguez de Sciencias Médicas», desde 1883.
274 Santos Cruz, op. cit. pp. 75, 76 e 77.
275 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 4, Novembro/Dezembro, 1936, pp. 34 e 35.
276 A imagética da mulher «fada do lar», com sua casita muito limpa e florida, hospitaleira, alegre e harmoniosa nas formas, exercendo funções de esposa, de mãe, de educadora, de defensora da solidez da família e sempre submissa ao marido, subjazia uma postura renunciante que, em última análise, eliminava a sua existência sexualizada. Como afirmava lapidarmente Salazar: «As mulheres não compreendem que não se atinge a felicidade pelo prazer mas pela renúncia». In A. Oliveira Salazar, Como se levanta um Estado, citado por M. Belo, A. P. Alão, I. N. Cabral, «O Estado Novo e as Mulheres» em O Estado Novo — Das Origens ao Fim da Autarcia, 1926-1959, Lisboa, Fragmentos, p. 266.
277 A serem significativos, os testemunhos de antigas internadas da Mitra outrora rotuladas como meretrizes de escândalo público ou desobedientes às prescrições policiais são suficientes para evidenciar dois trajectos de vida: aquelas que, possuindo uma infância e uma adolescência rurais migraram para Lisboa, no intuito de se empregarem como serviçais; e aquelas que se referenciavam a matrizes urbanas, caracterizadas por gentes e estilos de vida interpretados na época como «imorais». Convergindo com estes dados, Lopes Cardoso afirmava que no Porto, em 1940, 82% das menores detidas por prostituição eram naturais de zonas rurais, tendo rompido com os seus meios de pertença no propósito de se empregarem como criadas de servir (cf. «Alguns aspectos da criminalidade infantil em Portugal face à estatística», Actas do Congresso do Mundo Português, Lisboa, vol. XVIII, pp. 514-515).
278 A existência de deveres completamente diferentes, consoante o sexo dos indivíduos era afirmada na lei n.o 1904 de 21 de Maio de 1935 e no decreto 25 946 de 15 de Outubro do mesmo ano.
279 Cf. Juventude Católica Feminina, A Família — estudo doutrinário, 1938/1939, p. 196.
280 Idem, p. 199.
281 Idem, p. 198.
282 A. Esteves, (1932), A Família, Coimbra, p. 94.
283 A. Corbin, (1978), Les filles de noce, Paris, Flammarion (1982), p. 441.
284 Cf. A. Corbin, op. cit., págs 438-452. Em França, o trabalho de Octave Simonot (1911) marca o culminar do discurso antropológico sobre a prostituta-nata, degenerada, louca («folie de génération»), fixada no seu desenvolvimento em fases inferiores (no estado dos «batráquios e dos pássaros»!) e evocando a «justaposição da ociosidade e da orgia que se encontra nos selvagens». (Cf. J-CL. Beaune, Le vagabond et la machine, Champ Vallon, 1983, pp. 89-90, 134; Corbin, op. cit. pp. 446-448.)
285 Pauline Tarnowsky (1889), Études anthropometriques sur les prostitués et voleuses.
286 Lombroso e Ferrero, (1896), La femme criminelle et la prostituée.
287 A. Tovar de Lemos, (1908), op. cit., pp. 28 e 29.
288 Lombroso, op. cit., p. 409.
289 Cf. A. Corbin, op. cit., pp. 437 e seguintes.
290 A. Tovar de Lemos, (1908), op. cit., capítulo IV.
291 Cf. A. Corbin, op. cit., p. 441. Também entre nós se encontram alguns pontos de vista críticos às explicações degenerativas e atávicas mesmo antes do virar do século. Cf., por exemplo, A. Cardoso Pereira, «Degenerados», em A Medecina Contemporânea, 1894.
292 Egas Moniz, op. cit., pp. 362 e 371. Embora em trabalhos posteriores (cf. A Nova Antropologia Criminal, (1931)) critique as teses lombrosianas sobre a deliquência, também A. Mendes Correia em Os Criminosos Portugueses (1913) inclui a prostituta numa categoria antropológica e social vizinha do criminoso, afirmando nela serem frequentes (tal como entre os criminosos) as estigmatizações de degenerescência, as nevroses, psicoses, loucura moral, histeria e debilidade mental (cf. pp. 240 e seguintes e 75 e seguintes).
293 Cf. J. Machado Pais, (1985), A Prostituição e a Lisboa Boémia do Século XIX aos Inícios do Século XX, Lisboa, Querco, p. 39.
294 A. Brazão, (1928), A Prostituição Infantil em Lisboa, (tese apresentada no Congresso Internacional Abolicionista de 1927, Anvers/Bélgica), Lisboa, Tip. da Cooperativa Militar, pp. 6 e 7.
295 O exercício da prostituição estava regulado pela disposição do Regulamento Policial das Meretrizes na cidade de Lisboa, de 28 de Agosto de 1900, no qual se definia a categoria de tolerada e se estabeleciam as competências do serviço especial da polícia sanitária e várias disposições sobre as casas de toleradas. Depois da queda da 1.a República, um Edital do Governo Civil de Lisboa, de 23 de Abril de 1930, extinguia as casas de toleradas e de passe a que se referia o art. 33.° do Regulamento de 1900 e cessava alguns alvarás de licença. Em sua substituição, criou uma classe de estabelecimentos de permanência transitória denominada «quartos mobilidados». No ano seguinte, um outro Edital do Governo Civil de Lisboa (de 17 de Outubro de 1932) estabelecia que a venda de livretes, termos de responsabilidade, receitas das licenças de quartos mobilados, etc., constituíam um fundo especial administrado pelo Comando da PSP. A partir de Outubro de 1947, (de acordo com o Edital de 17 de Setembro, publicado no D. G, 2.a série, de 25 de Setembro de 1947), era proibida a exploração da «indústria de quartos mobilados» em vários arruamentos e praças. Pela lei n.o 2.036, de 9 de Agosto de 1949, foram proibidas novas matrículas de prostitutas, a abertura de novas casas de toleradas, o encerramento das já existentes quando se verificasse que as mesmas funcionavam em contravenção das normas policiais e sanitárias e, simultaneamente, preconizavam-se algumas regras de profilaxia para evitar as doenças venéreas.
296 A. Tovar de Lemos, (1953), Inquérito acerca da prostituição e doenças venéreas em Portugal, Lisboa, pp. 71 e 72.
297 Cf. A. Tovar de Lemos, Relatório dos serviços referentes à prostituição, (vários anos), Serviço de Inspecção de Toleradas em 1934, (Lisboa, Imprensa Nacional) e Inquérito acerca da prostituição (1953), op. cit.
298 A. Tovar de Lemos, (1953), op. cit., pp. 78 e 85.
299 J. Crespo, op. cit., p. 8.
300 Idem, p. 9.
301 A tolerância e a protecção da prostituta regulamentada era justificada (nas posições regulamentaristas) pela sua função social de defesa da família. Nas palavras de Santos Cruz, obviava «a sedução e a violação da inocência, os adultérios e outros horrendos crimes».
302 Cf. A. Brazão, (1929), O Direito de ser Mãe. Abolição da revista sanitária das meretrizes (tese apresentada ao 2.° Congresso Nacional Abolicionista).
303 M. Simões dos Reis (1940: 334), citando Aschaffenbourg, explicita bem esta ligação: «não temos que procurar o equivalente masculino da prostituta no ladrão, no salteador ou no falsário, mas simplesmente no mendigo e no vagabundo».
304 «Em 194 casos cujo estudo foi feito em 1941 num dispensário de mulheres matriculadas verificou-se que 43 por cento se tinham inscrito ainda menores: 1 com 19; 3 com 15; 4 com 16; 7 com 17; 17 com 18; 27 com 19; 25 com 20. Em estatísticas anteriores (1933-1934-1935) encontram-se mesmo raparigas inscritas com 11, 12 e 13 anos de idade!» (Em A. Tovar de Lemos, O Serviço de Inspecção de Toleradas em 1941, Lisboa.)
305 Cf. ANTT-AGMI, Correspondência ao comandante da P.S.P. e ministro do Interior, s/d: «Excelências! Indiquei hontem a um espanhol amigo de passagem em Lisboa (...) uma casa (...) onde podia alugar um quarto e passar um rato com uma amiga que tem em Lisboa. Horas depois sou procurado por esse amigo que me conta o seguinte: Ali fui, onde estive cerca de uma hora num quarto acanhado e sem condições e paguei a barbara quantia de 50$00 (...) E quando reclamei, foi-me dito que a polícia autoriza aqueles preços porque come metade da importância. A alegação foi que, eu pagava 25$00 e a minha amiga outros 25$00. Fornecendo elas as mulheres, o preço é de 100$00 e a mulher recebe apenas 45$00 (...). Isto seria imoral se não fosse criminoso. Autentica escravatura Branca com o consentimento placido da polícia e do Governo (...)».
306 Cf. ANTT-AGMI, Relatório da Polícia de Segurança Pública do Porto, datado de 13 de Março de 1940, enviado ao Comando Geral da P.S.P. de Lisboa.
307 Cf. ANTT-AGMI, Ofício confidencial da P.S.P. do Porto, de 23 de Abril de 1942.
308 Extracto de uma entrevista a guarda que prestava serviço na Secção de Costumes da P.S.P. de Lisboa na década de quarenta.
309 Cf. ANTT-AGMI, Participação da 1.a Esquadra da P.S.P. do Porto, datada de 23 de Outubro de 1944.
310 Santos Cruz, op. cit., pp. 258 e 259.
311 Idem, pp. 126 e 274.
312 Idem, pp. 262 e 263.
313 Idem, p. 275.
314 A. Gião, op. cit., pp. 36-37.
315 Cf. J. Machado Pais, op. cit., pp. 78-79.
316 Extracto de outra entrevista a guarda que prestava serviço na Secção de Costumes da P.S.P. de Lisboa.
317 Egas Moniz, op. cit., pp. 455 a 469.
318 Cf. ANTT-AGM1, Informação da P.S.P. de Lisboa, Secção de Costumes, de 7 de Outubro de 1944.
319 Cf. ANTT-AGMI, Correspondência ao ministro do Interior, (1944?).
320 Cf. ANTT-AGMI, Correspondência ao comandante da Polícia de Segurança Pública, de 4 de Agosto de 1944.
321 Cf. B. Sá Nogueira, (1977), «O art. 67.° do Código Penal», Revista da ordem dos Advogados, Janeiro/Abril.
322 Os dados que se apresentam foram construídos a partir dos únicos registos encontrados no Pisão sobre este rosto do vadio.
323 Retirado dos antigos processos do Colónia do Pisão, (depositados no Centro de Apoio Social do Pisão).
324 ANTT-AGMI, Correspondência ao ministro do Interior, datada de ?/?/1936.
325 ANTT-AGMI, Informação do Comando da P.S.P de Lisboa, de 18 de Novembro de 1936.
326 ANTT-AGMI, Informação do Comando da P.S.P de Lisboa, de 26 de Outubro de 1944.
327 ANTT-AGMI, Informação do Comando da P.S.P de Lisboa, de 18 de Março de 1944.
328 ANTT-AGMI, Informação do Comando da P.S.P de Lisboa, de 9 de Junho de 1944.
329 ANTT-AGMI, Correspondência ao ministro do Interior, datada de 7 de Novembro de 1944.
330 ANTT-AGMI, Correspondência ao ministro do Interior, datada de ?/11/1944.
331 ANTT-AGMI, Correspondência do presidente da Câmara Municipal de Vila Viçosa ao Ministro do Interior, datada de 9 de Outubro de 1944.
332 Convergentes com os resultados da nossa amostra observada no Pisão, nas estatísticas das Cadeias Centrais de Lisboa apurava-se que em cerca de um quarto dos vadios entrados entre 1890 e 1936, a acusação de vadiagem vinha acoplada ao furto (15,7%), a crimes ignorados (2,6%), à burla (1,1%), a crimes diversos (0,9%), a ofensas corporais (0,8%), à desobediência (0,4%), possuindo o arrombamento, a embriaguês e a associação de malfeitores, entre outros itens, percentagens mais reduzidas. (Cf. M. Simões dos Reis, A Vadiagem e a Mendicidade em Portugal, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1940, pp. 344 e 345.) Por acréscimo, na Colónia Penal de Sintra, o rótulo simples de vadio concentrava-se apenas em 17,1% dos admitidos no período compreendido entre 1915 e 1916, ultrapassado por situações mistas de acusação de vadiagem juntamente com furto (42,1%) e com ofensas corporais (18,7%). (Simões dos Reis, op. cit., p. 347.)
333 Conferir antigos processos dos colonos do Pisão (depositados no Centro de Apoio Social do Pisão).
334 Dos 52 reincidentes declarados vadios por sentença do Tribunal de Execução de Penas e transferidos para a colónia de trabalho do Pisão, de Maio a Agosto de 1946, 36,5% possuíam idades compreendidas entre os 21 e os 30 anos, seguindo-se-lhes os pertencentes aos grupos etários 41-50 e 31-40 anos com percentagens de 30,8% e de 28,9%, respectivamente. A sua distribuição por ocupações mostra que eram predominantemente trabalhadores indiferenciados (25%), empregados comerciais (7,7%), sapateiros (7,7%), marítimos (5,8%), marceneiros (5,8%), descarregadores (3,8%), pedreiros (3,8%), vendedores ambulantes (3,8%), padeiros (3,8%) e que, por fim, preenchiam um conjunto heterogéneo de profissões. Dir-se-á, como já assinalámos para os outros rostos do vadio e do mendigo, que o reincidente não era um ocioso mas vivia, sobretudo, de expedientes e de fretes ou se ocupava em algumas profissões consideradas na época como «de risco», pelas condições do seu exercício.
335 A associação do reincidente ao vagabundo errante surgia frequentemente nos estudos criminalistas de finais do século XIX. Cf. nomeadamente A. L. Lopes, (1897), Estudo da criminalidade em Portugal nos anos de 1891 a 1895, Lisboa, Imprensa Nacional.
336 Sobre os poderes de sedução e contaminação moral do reincidente conferir também os relatórios de Tude de Martins de Sousa sobre a Colónia Penal de Sintra.
337 M. Pereira da Silva, (1942), Criminalóides (Estudo de investigação científica), Lisboa, p. 13.
338 A. Mendes Correia em A Nova Antropologia Criminal (1931) e em L’Étude du Criminei en Portugal (1932) resume bem os vários trabalhos, surgidos entre nós, contra as concepções lombrosianas sobre o delinquente.
339 F. Ilharco, (1942), «Os Estudos Italianos de Morfologia Humana (Da Antropologia Criminal de Lombroso à Biotipologia de Pende)», Separata da Medecina, n.o 52, ano VI, Outubro, p. 11.
340 Cf. A. Mendes Correia, (1931), A Nova Antropologia Criminal, Porto, capítulos VII e X.
341 B. A. Morei, (1856-57), Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de l'espèce humaine, citado por M. Simões dos Reis, (1940), «Delinquência e Alcoolismo de adultos em Portugal», Congresso do Mundo Português, vol. XVIII, p. 619.
342 M. Simões dos Reis, (1940), A Vadiagem e a Mendicidade em Portugal, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, p. 176.
343 Cf. A. L. Lopes, (1898), Estudo da criminalidade em Portugal nos anos de 1891 a 1895, Lisboa; A. C. Ramalho Fontes, (1908), O alcoolismo, sucintas considerações sobre o seu papel em Nosologia e Sociologia; elementos para o estudo do alcoolismo em Portugal, Porto, X. da Silva, (1916), Os reclusos de 1914. Estudo Estatístico e antropológico, Lisboa; M. B. Barbosa Soeiro, (1932), As bebidas alcoólicas na alimentação, Lisboa; M. Simões dos Reis, (1940), «Delinquência e Alcoolismo de adultos em Portugal», op. cit.
344 M. Simões dos Reis, (1940), «Delinquência e Alcoolismo de adultos em Portugal», op. cit., pp. 617-18.
345 Retirado das entrevistas realizadas com guardas reformados da P.S.P.
346 M. Simões dos Reis, (1940), «Delinquência e Alcoolismo de adultos em Portugal», op. cit., p. 618.
347 Cf. artigo «A prophylaxia das doenças venéreas», em A Medecina Contemporânea, ano de 1899, p. 836.
348 M. Damas Mora, (1931), «Tuberculose, sífilis e alcoolismo, flagelos da nossa terra», Conferência pronunciada durante a «Semana Portuguesa da Higiene» na Universidade Popular de Lisboa, publicada em A Medecina Contemporânea, p. 442.
349 M. Simões dos Reis, (1940), «Delinquência e Alcoolismo de adultos em Portugal», op. cit., p. 623.
350 Parente classificatório do alcoólico e submetido a idênticas medidas de segurança, o toxicómano-vadio, não obstante em quantitativos mais reduzidos, encarnava também um dos múltiplos rostos do mitreiro:
«Por decisão proferida na extinta Directoria da polícia de Investigação criminal de Lisboa, como vadio foi condenado nos termos da lei de Julho de 1912 e posto à disposição do Governo, em 5 de Abril de 1933 (...). O recluso foi um toxicómano, que foi buscar inebriantes, parece que à cocaína primeiro, e depois ao álcool (...). Acabou em vadio, que esmolava para beber.» (Referente a L..., 48 anos, solteiro, natural de Tomar, internado em 1946, para cumprir medida de liberdade vigiada.)
351 Cf. F. Ferraz de Macedo, (1899), Degeneração e Degenerados na Sociedade, Lisboa, I vol.
352 Cf. V. Fontes, «O Alcoolismo», Conferência pronunciada na Universidade Popular de Lisboa, em 23 de Novembro de 1934.
353 Cf. M. Damas Mora, (1931), op. cit., p. 441.
354 Cf. nomeadamente ANTT-AGMI, Documento intitulado ‘Desenvolvimento do armamento anti-tuberculoso da Assistência Nacional aos Tuberculosos desde do advento do Estado Novo’ (1929-1940), datado de Fevereiro de 1940.
355 Ofício da Direcção Geral de Assistência de 23 de Fevereiro de 1950.
356 M. Simões dos Reis, (1940), A Vadiagem e a Mendicidade em Portugal, op. cit., p. 176.
357 Idem, p. 176.
358 Cf. Esquirol, (1819), Des établissemens des aliénés en France et des moyens d’améliorer le sort des infortunés. Paris, (apresentado ao ministro do Interior em 1818).
359 A. M. Sena, (1883-84), «Os Alienados em Portugal», A Medicina Contemporânea, p. 247.
360 A. A. Gomes, (1844), «Memória histórica sobre os alienados», Jornal da Sociedade de Ciências Médicas, XIX, 1.° semest. p. 210. Não abordamos aqui o tratamento dos loucos em Portugal nos primeiros séculos da nacionalidade. Todavia, a sua hospitalização visando a «cura» parece ter sido iniciada pelo menos no século XVI, de acordo com um documento datado de 20 de Fevereiro de 1539, no qual, D. João III, escrevendo ao padre João de S. Tiago e Provedor do Hospital Real de Todos-os-Santos, ordenava: «Por ser informado do saber e da experiência que Pero Fernandes Gouveia, meu capelão, tem de curar pessoas que estão fora do siso e que podereis nesse hospital muito aproveitar na cura de tais doentes, hei por bem e me apraz que ele cure no dito hospital os doentes da dita enfermidade que nele venham a ser recebidos.» (A. S. Carvalho, 1949, Crónica do Hospital de Todos-os-Santos, Lisboa Imprensa Lucas e C.a, p. 205). No período posterior ao terramoto de 1755, os loucos do Hospital Real de Todos-os-Santos foram transferidos provisoriamente para as cabanas do Rossio e para as Cocheiras do Conde Melhor. Já em 1755, temos notícia do seu internamento nas enfermarias 13.a e 19.a do Hospital de S. José.
361 F. M. Pulido, (1952), Organização do Hospital de Alienados, Lisboa, pp. 11-12.
362 A. M. Sena, citado em «Algumas efemérides referentes à assistência dos alienados em Portugal», Boletim da Assistência Social, Hospital Júlio de Matos, n.o 2, Abril, 1943, p. 63.
363 À luz da nova teoria pineliana sobre a natureza mental, a loucura foi deslocada do cérebro e do registo das faculdades intelectuais para ser alojada no corpo e situada, sobretudo, no registo das faculdades morais — «(...) posso assegurar (...) que quase todos os factos que pude obter sobre a mania delirante, um grande número de resultados de abertura de corpos, comparados aos seus sintomas, provam que este tipo de doença é quase sempre uma doença nervosa (...) que não é em nada o produto de qualquer mudança física, de qualquer irritação geral ou parcial, de qualquer vício orgânico da substância do cérebro»; «(...) existem alienados cujas faculdades intelectuais estão íntegras e perfeitas (...) mas não existem alienados nos quais as faculdades morais não estejam alteradas, desordenadas, pervertidas»; «(...) a intemperança, o orgulho, o ódio, a cólera, a inveja (...) levados demasiado longe produzem normalmente a loucura»; «as paixões pertencem à vida orgânica; as suas impressões fazem sentir na região epigástrica.» (Pinei, cit. em M. Gauchet e G. Swain, 1980, La pratique de l'esprit humain. Paris, Gallimard, pp. 319, 336, 307, 330, respectivamente.)
364 Da transposição para a prática da nova concepção teórica sobre a natureza da doença mental resultou uma nova orientação terapêutica — o tratamento moral. Interpretado usualmente como mais humano e tendendo a minimizar a coerção física, organizava-se em duas vertentes: uma interindividual que recobria a acção directa sobre o paciente na qual o médico, através de um estímulo à restante razão sã, procurava que o alienado dominasse as suas paixões ou favorecesse as que mais contribuíam para o seu equilíbrio passional; a outra colectiva, partindo da formulação do meio de pertença do alienado como importante causa do desequilíbrio das paixões, consistia no seu afastamento de qualquer fonte de patogenia (ambiental, familiar, etc.) e, seguidamente, no fornecimento de um novo meio, pensado como indutor e auxiliar da recapturação das forças da razão. As caraterísticas e o funcionamento destes meios institucionais concebidos só por si como instrumentos de cura foram, por nós, abordados num outro trabalho. («Da cidade e dos seus loucos — inclusões/exclusões», 1990, Cadernos do C.E.J./Ministério do Justiça II, pp. 69-116.)
365 P. A. Bizarro, (1837), «Estatística Médica das Enfermarias de Alienados de ambos os sexos no Hospital de S. José de Lisboa de 6 de Julho de 1835 a 5 de Julho de 1837», Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa, V, 1.° semest., p. 216.
366 Idem, pp. 223-224.
367 Antes disso, temos notícia da apresentação de vários projectos de um novo hospital, elaborados nomeadamente por Abranches Bizarro e Bernardino Gomes. Contudo, tais tentativas malograram-se.
368 Regulamento do Hospital de Alienados estabelecido no Edifício de Rilhafoles, (1851), Lisboa, Imprensa Nacional, p. 3.
369 F. M. Pulido, op. cit., p. 16.
370 Idem, p. 18.
371 Idem, p. 15.
372 A. M. Sena, op. cit., p. 330.
373 Idem, p. 29.
374 Na abordagem destas variáveis utilizámos o diagrama sobre o movimento das entradas e saídas por décadas (de 1848 a 1948), o quadro de falecimentos e da existência média anual por quinquénios (de 1848 a 1948), (Centenário do Hospital Miguel Bombarda 1848-1948) e, paralelamente, servimo-nos da análise de Sobral Cid, no artigo «A Clínica Psiquiátrica de Lisboa (1925)», em Obras Completas, vol. II, Lisboa, F. G., 1984, pp. 24-61.
375 A. M. Sena, op. cit., p. 82.
376 A mudança de orientação na conceptualização das causas e da natureza da doença mental (pela derrota dos defensores da causalidade psíquica e pelo triunfo do organicismo), bem como «a reorganização sanitária, nosocomial, disciplinar, policial e administrativa» do projecto da gerência de Miguel Bombarda são desenvolvidos no artigo já referido «Da cidade e dos seus loucos...». Outros elementos interessantes sobre este período podem ser encontrados em Sobral Cid, (1915), O Professor Miguel Bombarda e a sua Obra de Alienista, Lisboa e em J. Reis de Oliveira, (1983), Rilhafoles e a Acção do Professor Miguel Bombarda, Lisboa.
377 Vejam-se, nomeadamente, os valores apresentados por Sobral Cid que impressionam pela sua elevação em «A Clínica Psiquiátrica de Lisboa», op. cit., p. 31.
378 Organização de Manicómios e Colónias Agrícolas para Alienados, decreto-lei de 11 de Maio de 1911, Lisboa, Imprensa Nacional, 1911.
379 Tal facto foi destacado na imprensa da epóca. Por exemplo, num artigo de O Século de 12 de Dezembro de 1905 afirmava-se o seguinte: «os sete mil de então, os doze mil de hoje matam gente, morrem incuráveis, transmittem a loucura, enquanto o povo, pacientemente, generosamente, pontualmente continua a pagar, sempre a pagar, serviço que não se faz (...).»
380 Cf. nomeadamente Sousa Bastos, (1947), Lisboa Velha, sessenta anos de recordações 1850 a 1910, Lisboa, pp. 48 e seguintes.
381 Júlio de Matos, recolhido em V. Ribeiro, (1907), História da Beneficiência Pública em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, p. 310.
382 V. Ribeiro, op. cit., p. 325.
383 Este entusiasmo encontra-se bem patente nas citações seguintes: «(...) como quer que seja, a Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina de Lisboa é o único recurso terapêutico aos doentes afectados das Psicoses Metasifilíticas, outrora consideradas como o protótipo das doenças mentais incuráveis. Na terapêutica das formas agitadas (...) além dos meios comumente usados, introduzimos com vantagem a medicação pelo somnifene, que a Clínica Psiquiátrica de Lisboa foi também a primeira a pôr em prática»; «Os resultados animadores e por vezes verdadeiramente surpreendentes alcançados pela malarioterapia em muitos casos de Paralisia geral e noutras afecções (...) do sistema nervoso central, impõem a necessidade de criar um serviço especial para estas aplicações terapêuticas.» (Sobral Cid, op. cit., pp. 43 e 53.)
384 Apesar de sofrer uma ligeira quebra entre 1916 e 1921 (período no qual atingia sempre valores acima dos 800), no ano seguinte, começou a ganhar dimensão uma tendência ascensional que, em 1925, culminou num milhar de doentes internados. A curva das admissões acompanhava estas flutuações da existência média hospitalizada, elevando-se marcadamente entre 1911 e 1913, para apresentar uma quebra também pronunciada a partir de 1913 e para voltar a ascender em 1922 e alcançar as quatro centenas de entrados em finais da década de vinte. O incremento suave das percentagens das altas sobre as admissões (com pequenas oscilações) e a diminuição significativa da mortalidade caracterizaram, ainda, o período de vigência da clínica psiquiátrica.
385 Sobral Cid, op. cit., p. 29.
386 Idem, p. 29.
387 «(...) compete à Polícia Administrativa submeter ao exame médico os indivíduos que derem indícios de loucura, e lhe forem entregues pelas autoridades policiais que exerçam as suas funções na cidade em que tenha jurisdição a competente Repartição de Polícia Administrativa, fazendo-os entregar em seguida nos manicómios (...) e a cargo destes manicómios ficarão os doentes, haja ou não vaga para serem hospitalizados, pois em caso algum podem os loucos continuar a cargo da polícia administrativa, por não ter lugar onde os possa conservar, e assim cessam as providências da polícia administrativa, a respeito de loucos, logo que os mesmos sejam presentes nos manicómios.»
388 Sobral Cid, op. cit., p. 29.
389 Sobral Cid, op. cit., p. 29.
390 Reforma e Actualização da Assistência Psiquiátrica em Portugal, 1927/8, em Obras Completas, op. cit., p. 70.
391 «A colónia agrícola é, sem dúvida, o órgão de eleição para a assistência pelo trabalho do psicopata crónico (...). Com efeito, possuindo o Estado como possui alguns domínios rústicos disponíveis, nem sequer seria necessário adquirir propriedade para esse fim. Os primeiros turnos de psicopatas enviados para a colónia poderiam ser empregados na construção dos primeiros pavilhões, de traça despretenciosa e simples; e, uma vez, posto a funcionar o estabelecimento, a breve trecho começaria a viver, em grande parte sobre si, das mensalidades dos pensionistas e do produto da exploração agrícola (...)». (Sobral Cid, 1927/8, op. cit., pp. 1056.) Como veremos adiante, este projecto de Sobral Cid tornar-se-á realidade, muitos anos depois, não num domínio disponível do Estado mas na Quinta do Pisão, um donativo feito ao albergue da polícia da Mitra, e a sua concretização assinalará um outro episódio do secular conflito de interesses entre o dispositivo psiquiátrico e a polícia.
392 Cf. L. Cebola, (1931), Psiquiatria Social, Lisboa, pp. 164 e seguintes.
393 Cf. entrevista publicada no Diário de Notícias de 26.11.1925 e de 21.10.1926.
394 Cf. L. Cebola, op. cit., p. 2.
395 ANTT-AGMI, Correspondência da Direcção do Manicómio Bombarda ao ministro do Interior, de 18 de Julho de 1932.
396 ANTT-AGMI, Correspondência da Direcção-Geral de Segurança Pública à Direcção do Manicómio Bombarda, de 18 de Julho de 1932.
397 ANTT-AGMI, Correspondência da Direcção-Geral dos Hospitais Civis de Lisboa ao ministro do Interior, de 5 de Agosto de 1932.
398 ANTT-AGMI, Correspondência da Direcção do Manicómio Bombarda ao ministro do Interior, datada de 26 de Julho de 1934.
399 Cf. ANTT-AGMI, Relatórios mensais do governador civil de Coimbra, referentes aos meses de Junho e Julho de 1935.
400 Cf. ANTT-AGMI. Relatórios mensais do governador civil de Leiria, referentes aos meses de Junho e Julho de 1935
401 Cf. ANTT-AGMI, Relatórios mensais do governador civil de Viseu, referentes aos meses de Junho e Julho de 1935.
402 Cf. ANTT-AGMI, Relatório mensal do governador civil de Braga, referente ao mês de Julho de 1935.
403 Cf. ANTT-AGMI, Relatório mensal do governador civil do Porto, de 5 de Maio de 1935. «No hospital do Conde Ferreira seria possível internar uns 200, mas a Santa Casa da Misericórdia pede 10$00 diários por cada doente, exigindo ainda o compromisso do seu internamento não ser a curto prazo, visto as despezas de instalação que ele acarreta serem consideráveis.»
404 Conferir, por exemplo, Diário de Notícias de 23.12.1935 (em Boletim de Registo e Justificação de Cortes, Direcção dos Serviços de Censura de 23.12.1935); Século de 23.12.1935, 24.12.1935 e 28.12.1935 (BRJC/DSC de 23.12.1935, 24.12.1935 e 28.12.1935), Primeiro de Janeiro de 30.12.1935 (BRJC/DSC de 31.12.1935); Comércio do Porto de 31.12.1935 (BRJC/DSC de 2.1.1936); Diário de Notícias de 22.4.1936 (BRJC/DSC de 11.4.1936); Jornal de Notícias de 20.5.1936 (BRJC/DSC de 21.5.1936); Voz de 23.5.1936 (BRJC/DSC de 23.5.1936); Diário de Notícias de 25.5.1936 (BRJC/DSC de 25.5.1936); Jornal de Notícias de 25.5.1936 (BRJC/DSC de 26.5.1936); Ideia livre de 2.6.1936 (BRJC/DSC de 4.6.1936); Primeiro de Janeiro de 9.6.1936 (BRJC/DSC de 11.6.1936); Voz de 1.8.1936 (BRJC/DSC de 1.8.1936); República de 6.9.1936 (BRJC/DSC de 7.9.1936); Primeiro de Janeiro de 18.11.1936 (BRJC/DSC de 19.11.1936).
405 ANTT-AGMI, Correspondência da P.S.P de Lisboa ao ministro do Interior, datada de 29 de Agosto de 1936.
406 Conferir ANTT-AGMI, Boletins de Registo e Justificação de Cortes/Direcção dos Serviços da Censura, nomeadamente, Jornal de Notícias de 6.1.1942.; O Século de 12.1.1945; República de 17.1.1945 e de 14.6.1945; A Tarde de 20.2.1945, 24.5.1945 e de 9.7.1945; Diário Popular de 29.7.1945; Novidades de 8.4.1945.
407 Hospital Júlio de Matos, Estabelecimento de Assistência a Doentes Nervosos e Mentais, (1949), Lisboa, Hospital Júlio de Matos, p. 9.
408 Almeida Amaral, (1946), Relatório do Asilo Psiquiátrico Miguel Bombarda 1945/6, Lisboa, p. 47.
409 Barahona Fernandes e Seabra Dinis, (1954), La Thérapeutique Occupationnelle en Psychiatrie, Paris, Hermann e Cte Éditeurs, pp. 28 e 13.
410 A tónica era posta «num ambiente especialmente estruturado para prever e para reprimir as exteriorizações (...) da doença» (Barahona e Dinis, op. cit., p. 19), num meio «que os influencie, que os remodele de novo» (Amaral, op. cit., p. 8), num «espírito geral de reeducação e aperfeiçoamento humano» (Hospital Júlio de Matos, op. cit., p. 21). Através de uma «acção pedagógica», de «uma verdadeira psicoterapia colectiva», sintetizada enquanto «acção colectiva de neutralização das tendências mórbidas e da estimulação das funções normais conservadas pela criação de um ambiente especial», procurava-se «a correcção da doença, a cura, o bem estar dos doentes, a saída do hospital, o retomo à família, à comunidade». (Barahona e Dinis, op. cit., p. 21.)
411 Desde a sua inauguração, funcionava no Hospital de Júlio de Matos uma escola de enfermagem e, para tal, foram contratados enfermeiros e enfermeiras suíços que, nos primeiros quatro anos, organizaram os cursos técnicos e teóricos.
412 Almeida Amaral, op. cit., p. 22.
413 Cf. Lévi-Strauss, (1955), La structure des mythes, em Anthropologie Structurale, Paris, Plon.
414 Entendemos por elites da palavra salazaristas um conjunto de grupos, instituições etc., implicados (directa ou indirectamente) com a questão da vadiagem e da mendicidade que produziram discursos sobre esta temática ao longo do período em estudo (cf. L. Vicente Baptista, 1985).
415 Demos conta, em capítulos anteriores, do desfazimento existente entre certos discursos oficiais produzidos sobre «vadios e seus afins» e as histórias, os trajectos, as circunstâncias de vida dos actores sociais rotulados de «vadiagem» que reconstruímos com base em diferentes fontes, bem como do próprio reconhecimento, por parte de alguns expoentes salazaristas, da dimensão delirante de determinadas ideologias sobre a vadiagem.
416 Cf. J-J. Rousseau, (1971), Discours sur l'origine et les fondements de l'inegalité parmi les hommes, Paris, Garnier-Flammarion, pp. 201-202.
417 Cf. J. Starobinski, (1971), Jean-Jacques Rousseau: la transparence et l’obstacle, suivi de sept essais sur Rousseau, Paris, Gallimard, pp. 361 e seguintes.
418 Cf. J-J. Rousseau, (1981), Ensaio sobre a origem das línguas, Lisboa, Estampa.
419 T. Hobbes, (1971), Léviathan. Traité de la matière, de la forme, et du pouvoir de la république ecclésiastique et civile, (traduzido do inglês por François Tricaud), Paris, Sirey.
420 Como vimos em capítulos anteriores, segundo as representações oficiais da época, o projecto de vida do mitreiro (familiar, profissional, relacional, etc.) era situado do lado do tempo imediato, do desejo momentâneo, não orientado a longo prazo e era descrito essencialmente como narcísico (centrado no indivíduo), por oposição ao tempo histórico e nacional adoptado pela concepção salazarista do social, na qual os interesses nacionais dominavam os dos indivíduos e os dos grupos que o compunham. Ao acrescentar aos seus atributos «anti-sociais» a fórmula de «antinacional», o regime reforçava ainda o rótulo de perigosidade social projectado no vadio.
421 Referindo-se à lógica do pensamento religioso, Durkheim afirmava que o que melhor parece caracterizá-la «é um gosto natural pelas confusões intemperadas» (bem como pelos «contrastes excessivos»), Cf. E. Durkheim, (1960), Les formes élémentaires de la vie religieuse, Paris, PUF, p. 342.
422 Cf. L. Baudin (1962), Une Theocratie Socialiste: L'État Jésuiste du Paraguay, (Paris, Génin, p. 14), citado em P. Clastres, (1979), A Sociedade contra o Estado, Lisboa, Afrontamento, p. 49.
423 Cf. J. Lizot, (1973), « Économie ou Societé ? Quelques thèmes à propos de l’étude d’une communauté d’Amérindiens », Journal de la Societé des Américanistes, 9, pp. 147-175.
424 Cf. o prefácio de P. Clastres e o 1.° capítulo de M. Sahlins (1976), em Âge de Pierre, âge d’abondance: L’économie des societés primitives (Paris, Gallimard),
425 P. Clastres, op. cit., p. 13
426 Cf. E. Durkheim, (1980), As regras do método sociológico, Lisboa, Presença, p. 21.
427 P. Clastres, op. cit., p. 10.
428 J. C. Gomes da Silva, (1989), L'Identité voleé. Essais d'Anthropologie Sociale, Bruxelles, Éditions de Université de Bruxelles, p. 23. Tal «ficção» tem sido questionada relativamente às «sociedades selvagens» (Lévi-Strauss, 1962; Héritier, 1979; Gomes da Silva, 1989).
429 Só para citar alguns exemplos, a determinação de 16 de Julho de 1579 mandava-os «embarcar para o Brasil ou em galés»; similarmente em 1638, no contexto da partida de uma armada para o Brasil, a Câmara insistia com os governadores das províncias para que nela enviassem os solteiros ociosos. Como já acontecera em 1559, ordenava-se, em 1641, a sua relegação para a índia. Também a lei de 21 de Abril de 1892 determinava a sua relegação (juntamente com a dos recidivistas) para as colónias, bem como a lei de 20 de Julho de 1912, segundo a qual o Governo podia deportar para qualquer prisão das províncias ultramarinas vadios e equiparados internados que se mostrassem incorrigíveis ou cuja presença se tornasse perigosa no estabelecimento. Também nas primeiras décadas do Estado Novo, vadios incorrigíveis mas sobretudo delinquentes políticos — se misturavam nas cólonias penais do ultramar.
430 Cf. R. Pereira, (1987), «O desenvolvimento da ciência antropológica na empresa colonial do Estado Novo», em O Estado Novo: Das Origens ao Fim da Autarcia, Fragmentos, Lisboa, Vol. II, p. 97.
431 J. Ploncard d’Assac, (1965), Doctrines du Nationalisme, Paris, Ed. du Fuseau. p. 207.
432 R. Pereira, op. cit., p. 97.
433 Cf. J. Gomes Fatela, (1984), Le sang et la rue : l'espace du crime au Portugal, 1926-1946, thèse pour le doctorat de 3ème cycle d’ethnologie.
434 Cf. Oliveira Salazar, (1935), Discursos, (1928-1934), Coimbra Editora, pp. 222, 242 e 316.
435 Cf. Oliveira Salazar, (1935), Discursos, op. cit., p. 38.
436 Conferir, respectivamente, Oliveira Salazar, Discursos, op. cit., vol. III, p. 248; vol. I, p. 145 e vol. II, p. 37; e vol. II, p. 9.
437 Cf. Tude de Martins de Sousa, (1922), Relatório dos Diversos Serviços da Colónia Penal de Sintra 1/1/1918 a 31/12/1920, pp. 12-15.
438 Cf. por exemplo, Diário da Manhã de 4 de Março de 1940. («A miséria moral é mais contagiosa do que qualquer doença pestilenta...»)
439 Oliveira Salazar, (1935), Discursos 1928-1934, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 334-335.
440 Oliveira Salazar, exposição feita ao Diário de Notícias em 2.2.1929. Também o valor atribuído pelo regime a este projecto de regeneração moral era exaltado em alguns cartazes de propaganda política e nomeadamente naquele que afirmava: «Lembrai-vos que os factores morais, multiplicando a força conseguem operar milagres.» (Em Cartazes de Propaganda Política do Estado Novo 1933-1949, Lisboa, Biblioteca Nacional. 1988, p. 43.)
441 Situado num vale da Serra de Sintra era atravessado por um ribeiro, havendo vestígios de moinhos de água que se destinavam outrora a moer os cereais. Também, segundo consta, junto ao ribeiro, localizar-se-iam dois mecanismos destinados a pisoar os panos (de linho ou de lã, dos rebanhos existentes) chamados «pisões», donde derivaria a denominação da quinta.
442 Uma pedra situada à entrada do estabelecimento central do C.A.S.P. (ex-anexo do Pisão) revela-nos, talvez, a data da sua criação: ?/?/1941. Temos ainda notícia de um «Regulamento do Pessoal de Serviço nas Quintas do Pisão e de Porto Covo», aprovado em 12/7/1942. No entanto, a já referida destruição dos arquivos institucionais apenas nos permite controlar estas variáveis a partir de 1945.
443 Cf. O Século de 26 de Março de 1949.
444 Revista da Polícia Portuguesa, artigo «A Mitra», n.o 7, Maio/Junho, 1938, p. 7.
445 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, Maio/Junho, 1954, pp. 3 e 4.
446 Revista da Polícia Portuguesa, artigo «A Mitra», op. cit., p. 7.
447 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 91, Maio/Junho, 1952, p. 4.
448 Cf. Jornal do Fundão, «Por Castelo Branco — O Albergue Distrital de Mendicidade e a sua Acção social — Impressões dum encontro com o Sr. Comandante da P.S.P», de 19 de Outubro de 1952.
449 Cf. O Século de 26 de Março de 1949: «A Mitra é uma instituição onde os seus protegidos têm uma média de pecados um pouco superior à média geral».
450 Cf. A. de Oliveira, (1929), Criminalidade Infantil. Protecção moral e jurídica à infância, Lisboa, p. 28.
451 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 53, Janeiro/Fevereiro, 1946, p. 3.
452 A própria linguagem institucional dava conta da dissociação, falando de «serviços urbanos» (para o recolhimento de velhos indigentes e menores de ambos os sexos) e de «serviços rurais» (para internamento de vadios e indivíduos sujeitos a medida de segurança). Conferir, por exemplo, Revista da Polícia Portuguesa, n.o 60, Março/Abril, 1947. O número 56 da mesma publicação (referente a Julho/Agosto de 1946) referia a concessão e deliberação de numerosas verbas por parte do Governo com vista à aquisição de terrenos para a montagem das suas secções agrícolas.
453 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 41, Janeiro/Fevereiro, 1944.
454 Título do artigo publicado no jornal O Século, em 26.3.1949.
455 Afirmações do então director da Mitra (capitão Godinho) recolhidas em O Século de 26.3.1949.
456 Cf. discurso do capitão E. Barros, membro da Comissão administrativa do albergue distrital de Viseu entre 1948 e 1954, em Revista da Polícia Portuguesa, n.o 103, Maio/Junho, 1954.
457 Extracto de entrevista realizada à directora do Centro de Apoio Social do Pisão em 1988.
458 Muito embora se manifestassem privilegiadamente nas relações entre pares e entre internados e animais, como vimos num testemunho anterior, as práticas sexuais podiam subverter a compartimentação hierárquica.
459 Extracto de entrevista com o Coronel Cascais, antigo director da Mitra e dos Serviços de Repressão à Mendicidade.
460 Extracto de entrevista com guarda da P.S.P que prestou serviços na Mitra (sede).
461 Extracto de entrevista com antigo guarda da PSP (reformado).
462 Cf. Agostinho Cardoso, (1940), «A Família sob o ponto de vista médico-biológico», em A Família, Conferências promovidas pela Acção Católica da Madeira, Funchal, p. 168.
463 Cf. Luís de Pina, (1939), «Defesa da Criança», Em Defesa da Família, Discursos pronunciados na Semana da Campanha da Família no Porto, de 19 a 26 de Março de 1939, Ed. da Junta Diocesana da A. C. do Porto, p. 225.
464 Cf. Juventude Católica Feminina, (1938/9), A Família — Estudo Doutrinário, Braga, 1938, pp. 184-185, pp. 189 e 190.
465 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 52, Novembro/Dezembro, 1945, pp. 16 e 17.
466 Cf. a expressão «amigo» (da ordem, dos pobres, etc.) em Monografia da P.S.P. da Guarda, 1939, p. 114.
467 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 52, op. cit., p. 16.
468 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 44, Julho/Agosto, 1944, p. 25.
469 Cf. Revista da Polícia Portuguesa. n.o 82, Novembro/Dezembro, 1950, p. 13
470 Cf. O Século de 24 de Março de 1949.
471 Idem.
472 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 103, Maio/Junho, 1954.
473 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 21, Setembro/Outubro, 1940, p. 7.
474 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 103, Maio/Junho, 1954.
475 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 87, Setembro/Outubro, 1951, p. 12.
476 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, artigo «A Mitra», op. cit.
477 Cf. O Século de 24 de Março de 1949.
478 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 103, Maio/Junho, 1954.
479 Cf. O Século de 24 de Março de 1949.
480 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 56, Julho/Agosto, 1946, p. 14 e n.o 60, Março/Abril, 1947, p. 16.
481 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, artigo «A Mitra», op. cit.
482 Extracto de entrevista com o Coronel Cascais, antigo director da Mitra e dos Serviços de Repressão à Mendicidade.
483 Cf. M. Foucault, (1972), Histoire de la Clinique, Paris, PUF.
484 Extracto de entrevista com o Coronel Cascais, antigo director da Mitra e dos Serviços de Repressão à Mendicidade.
485 Extracto de entrevista com a directora do Centro de Apoio Social de Lisboa em 1987.
486 Raul Brandão, (1923), Os pescadores (reportagem), citado em M. Belo, A. Alão, I. Neves Cabral, (1987), «O Estado Novo e as Mulheres», em O Estado Novo: das origens ao fim da autarcia 1926-1959, vol. II, Lisboa, Fragmentos, p. 263.
487 C. Malamoud, (1989), Cuire le monde, rite et pensée dans l’Inde ancienne, Paris, Éditions de la Découverte, p. 82.
488 E. Leach, (1972), Les systèmes politiques des hautes terres de Birmanie, Paris, Maspero, p. 38-39.
489 M. Gluckman, (1962), Essays on the ritual of social relations, Manchester, Manchester University, p. 20.
490 M. Edelman, (1971), Politics as Symbolic Action, Chicago, Markham Publishing Company.
491 C. Lane, (1981), The rites of rulers: ritual in Industrial Society — The Soviet Case, Cambridge, Cambridge University Press.
492 E. Leach, op. cit., p. 33.
493 V. Das e A. Nandy, (1985), «Violence, victimhood and the language of silence» em V. Das, (ed), The Word and the World: fantasy, Symbol and record, New Delhi/London/Beverly Hills, Sage Publications, pp. 177-195 e D. Ward, (1970), «The three-fold death: an Indo-European tri-functional sacrifice?» em A. Puhuel, (ed.), Indo-European myth and law, California, Univ. of Califormia press, pp. 124-140.
494 Oliveira Salazar, (1935), Discursos, 1928-1934, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 222-223.
495 Idem, p. 316.
496 Oliveira Salazar, (1959; 2.a ed.), Discursos e Notas Políticas, 1938-1943, vol III, Coimbra, Coimbra Editora, p. XIII
497 Idem, III, pp. 337-338.
498 Oliveira Salazar, (1935), op. cit., p. 242.
499 Idem, p. 96.
500 Idem, p. 320.
501 A definição deste inimigo identitário, ao equipar frequentemente o vadio ao opositor político (e vice-versa) indiciava sintomaticamente a ampliação deste sistema ideológico-fantasmático e denunciava o seu principal foco retórico — o rebaixamento estatutário do opositor político por assimilação ao «mau-português» vadio.
502 Cf. Oliveira Salazar, (1935), Discursos 1928-1934, Coimbra, Coimbra Editora, p. 11; L. Mégevand, (1958), Le Vrai Salazar, Paris, Nouvelles Éditions Latines, p. 70; M. Belo, A. Alão, I. Neves Cabral, (1987), «O Estado Novo e as Mulheres», op. cit., pp. 263-279.
503 Cf. Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas, 1938-1943, (vol. III), op. cit., p. 131.
504 Cf. ANTT-AGMI, Relatório do Governador Civil de Vila Real, referente a 1939, p. 11-12.
505 Idem, p. 79.
506 Idem, p. 33.
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