4. A propósito de um sentimento de estranheza...
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Texte intégral
«É à luz da estrêla que nos guia, que vamos rejuvenescendo para provarmos que em nossos corações apenas existe nobreza, lealdade e sacrifício.»1
1No início da década de trinta, a Polícia de Segurança Pública desempenhou uma função relevante na mediação e na gestão da relação entre o público caridoso e todos aqueles que exerciam a mendicidade pública, independentemente de serem classificados como mendigos «indignos», «profissionais» ou pobres «verdadeiros» merecedores de socorro e de beneficência. Esta situação, como acabámos de mostrar, provocou antipatia junto da maioria da população, reflectiu-se numa falta de solidariedade e colaboração do público face ao trabalho da P.S.P. e, em particular, no respeitante à detenção dos mendigos.
2Paralelamente, temos notícia que as novas competências beneficentes da P.S.P. chocaram também certas elites e que havia mesmo «quem defendesse que tal função (e particularmente a da assistência aos «bons pobres») não deveria competir à Polícia»2. Entre nós, não surpreende que este facto tenha suscitado estranheza e, em primeiro lugar, dado o papel multissecular que as instituições religiosas e as misericórdias ocupavam na administração da caridade social.
3Com efeito, desde tempos primevos, existia o costume de a maior parte dos legados aos mosteiros e aos conventos serem feitos com a obrigação de neles se socorrerem os indigentes, os mendigos e os miseráveis. Concomitantemente, por ocasião da morte de monarcas, de pessoas com avultados bens, etc., legados volumosos eram deixados a instituições religiosas com o mesmo encargo de serem distribuídos sob a forma de esmola aos pobres da região. Ainda no princípio do século xx, o Diário de Notícias (de 1/10/1904) mencionava a ocorrência de um legado muito antigo em Abade de Neiva (Barcelos), segundo o qual era distribuída num domingo de Outubro uma fatia de pão e uma sardinha a todos os pobres que, no adro da igreja e em frente à cruz paroquial, rezassem um padre nosso pela alma daquele que instituíra tal legado.
4Muito embora se dirigissem frequentemente para instituições da Igreja, a partir do século xvi, temos conhecimento que muitos legados eram encaminhados para as Misericórdias. Por exemplo, uma crónica do Comércio do Porto (de 29/1/1905) referia que o benemérito D. Lopo de Almeida havia legado muitos bens à Misericórdia do Porto para a fundação de um hospital, bem como instituído um legado de cinco missas e um jantar a cinco pobres (no dia de aniversário do seu falecimento), cerimónia que à época se continuava a realizar anualmente na respectiva Santa Casa.
5Ao modelo de caridade assente no papel mediador dos organismos religiosos (dos conventos, das sés catedrais, dos paços dos bispos, etc.) sobrepõe-se, a partir do século xvi, um outro pelo qual a caridade passa a ser, em parte, regulada e tutelada pelo Estado. A criação dos primeiros Hospitais Gerais e das Misericórdias, por intervenção régia, substanciam já um aumento da responsabilidade do Estado face à questão da assistência social aos desvalidos.
6Todavia, apesar de administrados por funcionários de nomeação régia, a presença do clero na gestão destas instituições possuiu, durante muito tempo, um peso relevante, como aconteceu por exemplo no Hospital Real de Todos-os-Santos, cuja direcção foi primeiramente entregue a provedores e enfermeiros-mores, passando depois para as mãos da Congregação de S. João Evangelista à qual este hospital se manteve vinculado por um longo período. Paralelamente, se tais instituições e, nomeadamente as Misericórdias, prosseguiam as suas acções de distribuição de esmolas, as igrejas, os mosteiros e as ruas continuavam a constituir lugares privilegiados de caridade.
7No século xvi, à porta dos conventos e a hora certa era distribuída a ‘sopa dos pobres’; «às 200, 500, 1000, por quanto mais sopas distribuíssem, mais deveres de caridade praticavam essas casas religiosas e esse gesto fazia subir de conceito altruísta perante os seus superiores e até no Poder Real»3. Em simultâneo, existiam permanentemente em Lisboa inúmeras confrarias invocando Santos, grupos de pessoas que pediam para a Bula da Cruzada, para a Real Casa de S. António, para os Lázaros, para os Cativos, para os Resgates, para os presos do Limoeiro, etc., bem como muitos peditórios privativos realizados pela Misericórdia.
8O que caracterizou, portanto, este período não foi tanto uma laicização da assistência aos desvalidos pela qual as instituições religiosas tenham sido desapossadas das suas funções tradicionais mas um recrudescimento da iniciativa do Estado (sobretudo através das Misericórdias), bem como das intervenções particulares no domínio da beneficência social. O mesmo se poderia dizer das autoridades públicas.
9Por exemplo, a Câmara de Lisboa, assustada com o aumento exponencial de mendigos e vadios que acompanhara a expansão marítima, tomou várias providências. Para além das licenças para o exercício da mendicidade passadas aos pobres inválidos e dos subsídios repartidos pelos indigentes e mendigos que enxameavam as ruas da cidade, propunha repetidamente que os vadios e os solteiros ociosos fossem relegados para as possessões ultramarinas «porque na guerra pod(ia)m dar óptimos soldados» ou que os mandassem «servir nas galés». A mesma Câmara chegou mesmo a sugerir a criação de uma espécie de ‘Mitra’ em pleno século xvii, isto é, a construção de uma instituição na Quinta dos Prazeres, onde os vadios e os falsos mendigos seriam aproveitados em vários ofícios e onde lhes seria ministrada a religião, «lembrando que os arcebispos e bispos do reino auxiliassem esta obra pia com esmola e até a Universidade de Coimbra»4.
10Todavia, e apesar de neste período se terem intensificado as disposições legais contra a vadiagem, o mendigo continuava a possuir um lugar na organização do social. A. Lapa, num trabalho intitulado, O mendigo e a sua história, afirma mesmo que os mendigos chegaram a ser «reconhecidos como uma classe social qualquer»5, organizados em estruturas que apresentariam analogias com as de muitas corporações artesanais. A criação de duas confrarias de mendigos em Lisboa — a de Jesus e a de Santo Aleixo, seu patrono — bem como a existência de uma procissão anual em honra deste último, ao mesmo tempo que ilustram os valores morais em vigor, inscreviam a actividade ‘profissional’ do mendigo no domínio do sagrado, para o que a procissão, enquanto meio tradicional de adquirir a graça divina, também contribuía.
11Como tem sido salientado, em Portugal, não assistimos à criação de estruturas homólogas às «workhouses» inglesas ou às casas carcerárias holandesas ou alemãs, que visavam punir e educar vadios, ociosos, mendigos válidos, etc., através da obrigação ao trabalho, nem ao internamento forçado nos Hospitais Gerais dos «bons» e dos «maus» pobres, como ocorrera na França católica dos séculos xvii e xviii. Características do contexto social e cultural português permitem, porventura, compreender a inexistência de tais instituições e a incipiente implantação das doutrinas que lhe estavam subjacentes, entre nós.
12Neste sentido, alguns historiadores têm vindo a afirmar que a elaboração desta política social teria como fundamento e condição a moral protestante, salientando o desfazimento temporal e a desproporção entre o momento de criação e o número de casas de trabalho registado nos países católicos face aos protestantes. Contudo, como argumenta B. Geremek (1987), este método de combate à mendicidade e à vadiagem foi reconhecido pelo Papado, no século xvi nos seus projectos para solucionar a situação em Roma e, posteriormente, impregnou as doutrinas e as iniciativas sociais tecidas nos meios católicos. Deste ângulo de vista, vários autores têm vindo a sublinhar que a particularidade de tais instituições residia numa afirmação do «ethos do trabalho», emergente em quase todas as sociedades, quer católicas, quer protestantes, caracterizadas por um desenvolvimento industrial intenso (em relação ao qual os valores protestantes se adaptariam melhor, o que permitiria explicar a sua extensão em certos países)6.
13De acordo com esta perspectiva, a debilidade e o atraso do processo de industrialização português poderão ter contribuído (entre outros factores) para a ausência de uma política de «grand renfermement»7 dos indigentes ou para a precaridade da implementação da tese «punição e reeducação pelo trabalho» (com rentabilidade económica) que dominaram as doutrinas sociais dos séculos xvii e xviii, nas zonas economicamente mais evoluídas da Europa.
14Com efeito, entre nós, os primeiros expoentes deste sistema de repressão e regeneração moral dos mendigos e dos vadios datam dos finais do século xviii e marcam pontualmente o século xix. Fundada pelo Intendente Pina Manique, a Casa Pia (inaugurada em 3/7/1780) procurava, inicialmente, regenerar pelo trabalho os vadios adultos de ambos os sexos e internava crianças abandonadas ou desvalidas que, sob a influência de certos meios envolventes, se poderiam transformar mais tarde em «perigosos malfeitores»8. Após ter sofrido um processo de decadência (para o qual contribuíram a morte de Pina Manique e as Invasões Francesas), foi reinaugurada (no Convento do Desterro) em 31 de Agosto de 1811, mas as suas competências cingiam-se agora à assistência e educação de menores desamparados. Meio século mais tarde, temos notícia que também o Asilo D. Maria Pia (criado pelo decreto de 14/3/1867), para além de receber internados inválidos e velhos, acolhia menores «para lhes dar educação nas suas aulas e officinas, numa casa de detenção e correcção»9. Voltaremos a encontrar a tese da regeneração pelo trabalho ligada à criação de uma nova instituição para menores em 1871. Tratava-se da Casa de Correcção, estabelecida no extinto convento das Mónicas e que começara por internar três dezenas de menores de 18 anos vindos do Limoeiro. Nove anos depois, sabemos também que o Governo instituiu, no concelho de Eivas (através da lei de 22/6/1880), a Escola Agrícola da Reforma, «destinada a receber vadios e indivíduos presos por culpas leves (...) procurando-se obter a sua regeneração pelo trabalho» (agrícola)10. Os exemplos institucionais que encontrámos na literatura disponível não são numerosos e circunscreviam-se, sobretudo, ao universo dos menores abandonados ou «vítimas das solicitações de meios viciosos»11, situação que é, aliás, compreensível no contexto de uma corrente (florescente já em finais do século xviii e muito ampliada no século xix) de iniciativas visando proteger, amparar e educar as crianças desvalidas.
15Simultaneamente à implantação (muito limitada) de instituições que enfatizavam o trabalho como técnica de regeneração moral, entrecruzando uma vertente carcerária com motivações caritativas, confrontamos-nos com a criação de um novo instrumento de caridade. Herdeiro do recolhimento como este o fora do hospício, o asilo destinava-se particularmente para pobres velhos, inválidos, entrevados ou incuráveis; para cegos e surdos-mudos, para indigentes e mendigos inaptos, bem como para a infância desvalida.
16Administrados pelas Misericórdias, os asilos de velhice, sucedâneos dos anexos dos grandes hospitais (conhecidos por hospitais do Amparo) difundiram-se por várias cidades do país. Em Lisboa, ergueram-se nos Arcos do Rossio, em enfermarias especiais do hospital de Todos-os-Santos, no Poço do Chão, em S. Roque, etc.; similarmente, e sobretudo a partir de 1834, data da fundação da Associação das Casas de Asilo da Infância Desvalida, começaram a proliferar os internatos ou semi-internatos, sustentados por particulares, pelos municípios ou pelas misericórdias que procuravam fornecer protecção e educação a crianças pobres de idade inferior aos sete anos; em simultâneo, pelos decretos de 6/4/1836 e 14/4/1836, inaugurava-se no ex-convento de Santo António dos Capuchos, o Asilo de Mendicidade de Lisboa, consagrado à detenção e recolhimento de mendigos e indigentes, de qualquer idade e de ambos os sexos, residentes há mais de dois anos na cidade, criando-se paralelamente um Conselho Geral de Beneficência em Lisboa e comissões filiais nas capitais de distrito e ilhas no intuito de atenuar a mendicidade.
17Apesar dos asilos de mendicidade se terem instalado posteriormente em várias cidades — no Porto (1846), em Viseu (1855), em Coimbra (1859), etc., — o internamento nestas instituições não era forçado ou involuntário, as corporações policiais que antecederam a P.S.P. não desempenhavam funções oficiais nas detenções, nas admissões nem na administração de tais estabelecimentos, o próprio regime asilar (não obstante a quase completa ausência de informação sobre este tema) não se assemelharia ao que vigorava na Salpetrière, em Bicêtre, na Savonnerie, etc., onde a obrigação de trabalhar, a disciplina e o cumprimento dos deveres religiosos eram conseguidos à custa de ameaças violentas e castigos corporais12.
18Paralelamente a tais instituições asilares, o século xix caracterizou-se por um aumento do número de irmandades, de comissões de beneficência paroquiais e municipais, de grupos particulares exercendo a caridade em áreas circunscritas, o que nos remete, em simultâneo, para uma aceitação generalizada dos indigentes e dos mendigos nas malhas do social, para um maior empenhamento por parte das autoridades públicas e privadas na administração de uma modalidade de assistência social que não exigia o internamento dos desvalidos em espaços fechados nem utilizava práticas de tipo repressivo e carcerário.
19Só para citar um exemplo, em Lisboa, multiplicavam-se as comissões de beneficência paroquiais que exerciam a caridade nas suas próprias paróquias13 (na freguesia de Santa Catarina, de Santa Justa e Rufina, do Socorro, dos Anjos, à Lapa, etc.); a par com elas, achavam-se as irmandades das freguesias (a de S. Nicolau, a de S. Mamede, a da Encarnação, etc.)14; concomitantemente, criara-se a Beneficência Municipal, a cargo da Misericórdia, que organizava e distribuía socorro e esmolas a diversos géneros de desvalidos no concelho de Lisboa; proliferavam também as associações de beneficência de carácter particular (o Grupo de Beneficência da Lapa, a Sociedade de Beneficência da freguesia de Santa Isabel, o Pão de Santo António, a Sociedade do Bem, etc.), bem como os grupos de índole caritativa criados pela iniciativa de senhoras religiosas (o da Nossa Senhora Consoladora dos Aflitos, o das Damas de Caridade, etc.); por acréscimo, os indigentes contavam ainda com o Albergue Nocturno do Intendente (inaugurado em 13/11/1881) onde além de dormidas se forneciam muitas refeições, com os «bodos aos pobres» realizados pelas várias Irmandades15 em determinadas festas, dias santos ou comemorações ou com a «sopa de caridade» instituída pela Misericórdia16 em 1888, bem como com as várias intervenções da imprensa lisboeta (as do Diário de Notícias, por exemplo) na recolha e distribuição de esmolas aos que se encontrassem munidos de um atestado de indigência.
20O século xix e os primeiros anos deste século caracterizaram-se assim por certa descentralização das iniciativas caritativas nas quais o papel da Igreja, das Misericórdias e da iniciativa particular ganhou relevância, pela conservação de uma atitude (tradicional) de solidariedade e compaixão no que respeitava à pobreza (e situações afins), com aceitação do indigente nos interstícios do tecido social, bem como por uma quase ausência de instituições que aliassem os aspectos repressivo-carcerários com os caritativos. Em suma, reconhecia-se um lugar público ao indigente e a própria mendicidade era, não apenas tolerada, como legítima se desenrolada através de uma licença passada pelas autoridades administrativas.
21Apesar de muitas destas práticas de beneficência pública terem continuado a existir ao longo da Primeira República e até posteriormente, no princípio do século intensificou-se, no seio das elites nacionais, uma necessidade urgente de remodelar a assistência social, dada a sua «falta absoluta de racional e conveniente organização»17, consolidando-se paralelamente uma conceptualização da beneficência pública na qual a vertente repressiva e regeneradora adquiria cada vez mais dimensão. Como referia um dos oradores do primeiro Congresso de Beneficência Pública, realizado no Porto, em 1905:
«O papel da beneficência no estado actual das sociedades cultas é prestar auxílio carinhoso aos que d’ella carecem para poderem caminhar na lucta da vida, é amparar com affecto os infantes, os orfãos, os aleijados, os doentes, os alienados, os velhos, os inválidos (...). Mas não é só isto: tem de educar e moralizar, de reprimir a vadiagem, a ociosidade, o vício, de exercer uma acção social de primeira importância na regeneração da raça, tutelando-a, moralizando e educando as gerações novas (...). Tudo quanto não obedeça a estes princípios é pseudo-caridade, deprimente, improfícua, inútil, senão mesmo perniciosa e nefasta.»18
22É neste campo de convergência ideológica entre as conceptualizações sobre a dupla vertente (assistencial e regeneradora) da beneficência social e as doutrinas criminológicas sobre a vadiagem — as quais, influenciadas pela escola positivista desde os finais do século xix, começam a considerar a vadiagem e certas situações afins como estados de «perigosidade social» (e não como crimes) exigindo a aplicação de medidas tidas como reeducativas e preventivas — que podemos compreender a publicação da Lei de 1912 (cf. ponto anterior), inaugurando entre nós um período mais repressivo na história das disposições e das práticas contra a vadiagem e a mendicidade.
23Embora este diploma tenha criado várias instituições para o internamento regenerador dos vadios e seus equiparados (entre eles, achavam-se os mendigos profissionais) e, nomeadamente, a Colónia Agrícola Penal de Sintra19, a dimensão projectada da beneficência pública (repressiva, institucionalizante e regeneradora) não possuiu, desde logo, consequências visíveis.
24A gestão da assistência continuou a cargo das Misericórdias, de múltiplas obras assistenciais desenvolvidas por particulares e de vários tipos de associações religiosas com actividade beneficente — irmandades, congregações (de S. Vicente de Paulo, de S. José de Clunny, etc.), núcleos paroquiais — Dezenas — organizados e difundidos pela Liga da Acção Social Cristã (fundada em 1907), bem como por parte de numerosas «obras de piedade, caridade e beneficência» de feição católica (Apostolado da Oração, Conferências Vicentinas, União Noelista, Obra de protecção às raparigas, etc.)20.
25Neste movimento de intervenção católica, baseado na Liga de Acção Social Cristã, ampliado e modificado com a constituição da Acção Católica Portuguesa (ACP) em 1933, que conjugava o propósito de evangelização da sociedade com a promoção, sobretudo, daquelas associações «que têm em vista os princípios e as normas da justiça social e da caridade evangélica»21, não se vislumbrava, contudo, qualquer proposta de afastamento repressivo do indigente-mendigo do tecido social. Pelo contrário, da descrição da sua organização, instituições e primeiros passos, realizada por J. M. Felix, em 1937, sobressaía que a directriz geral do movimento consistia justamente numa aproximação entre as classes mais desfavorecidas e as «superiores», «segundo as normas da justiça e da caridade»22.
26Similarmente, as iniciativas tomadas pelos governos civis para atenuar a mendicidade nas ruas (subsidiadas por esmolas e cotizações mensais dos subscritores, por taxas adicionais lançadas pelas Câmaras sobre a água consumida, por reduzidos fundos estatais, etc.) caracterizavam-se por serem acções desenvolvidas dentro da comunidade, isto é, não exigiam a ruptura do mendigo do seu meio de pertença nem a sua institucionalização num contexto repressivo-regenerador. Por exemplo, o extracto seguinte, no qual se avaliam os frutos conseguidos pela «cruzada contra a mendicidade», fundada em 1926, por iniciativa do Governo Civil de Vizeu, evidencia um projecto assistencial bem distinto do que vingou com a criação da Casa dos Pobres em 1928 (no Porto) e da Mitra, em 1933: «Chegou a conseguir que o mendigo deixasse de esmolar de porta em porta pois levava a esmola à porta do mendigo. Subsidiava normal e semanalmente cerca de 200 indigentes com dinheiro, géneros, agasalhos, medicamentos e rendas de casa»23.
27Também, à luz do discurso policial, temos conhecimento de que o mendigo continuava a fruir um estatuto privilegiado em todo o país. Em 1890, temos notícia de que era, ainda, etiquetado nos Comandos da Polícia (de Lisboa) e autorizado oficialmente a mendigar neste ou noutro lugar e sabemos que no período imediatamente anterior ao vinte oito de Maio, apesar das intervenções da polícia terem aumentado, a sua acção se cingia a uma captura (e apenas no caso de se tratar de um «profissional»), ao acréscimo de mais uma prisão no cadastro, a uns tantos dias nos calabouços do Governo Civil e depois... novamente ao reencontro com a rua24.
28A estranheza que suscitou a postura da P.S.P., enquanto instituição mediadora entre o Estado e a sociedade civil na assistência ao indigente inválido, velho, ou desempregado, bem como ao menor abandonado ou em «perigo moral» era tanto mais compreensível na medida em que, paralelamente, o Estado Novo havia atribuído a organismos não estatais e, em particular, às instituições da Igreja Católica um papel predominante na gestão do social no domínio das relações de reprodução e, nomeadamente, na implementação de formas de protecção e assistência social e na orientação da política social.
29O «carácter supletório» das iniciativas estatais no domínio da gestão directa do social — fundado na família, sua célula base — era claramente explicitado, por exemplo, no diploma de 1935 sobre a defesa da família25: «toda a acção do Estado, das autarquias ou das instituições particulares, em ordem à defesa da família, visará cooperar com a própria família, e não substituí-la; a facilitar o cumprimento dos seus deveres e não a amortecer a sua responsabilidade económica e social e, pelo que respeita à assistência directa às famílias, ao Estado incumbe, de preferência a exercê-la, «promover e auxiliar» a formação dos organismos de solidariedade que a deverão prestar. A função dos organismos oficiais, exemplar e orientadora, deverá conservar, quanto à satisfação directa das necessidades, um carácter supletório.»
30No entanto, entre tais organismos de solidariedade, o Estado Novo privilegiará, oficialmente, as instituições da Igreja Católica, constituindo-as como seus principais interlocutores no domínio da assistência social: «a Constituição de 1933 com a clarividência com que hoje a podemos apreciar arrancou o Estado Português à tentação de omnipotência e da irresponsabilidade moral e permitiu atribuir à Igreja na constituição dos lares e na formação da juventude aquela parcela de mistério e infinito que só por arremedos vis poderíamos substituir»26. «Compete ao Estado promover e impôr mesmo coactivamente o dever social da Assistência, à Igreja está confiada a missão de estimular o preceito religioso da caridade. Só da justa harmonia e cumprimento dos dois deveres pode resultar a melhor assistência social.»27
31Tal descentralização de responsabilidades estatais no domínio das formas de assistência social visualizava-se também no próprio diploma28 que criou o Regime Geral de Previdência: «concentrar no Estado os cuidados e as responsabilidades da administração das instituições de previdência seria um erro duplamente funesto: erro económico porque a burocratização de tais serviços é sempre cara e de precário rendimento; erro político e social porque iria concorrer para diminuir a já débil capacidade de iniciativa privada, tão pronta nos tempos que vão correndo a fugir ao cumprimento dos seus deveres e entregar tudo ao Estado».
32A metáfora da sociedade civil-corpo humano (com sua cabeça pensante e seu corpo sensível, sentimental, passional, etc.), evocada frequentemente para explicar o «bom-coração» do português e as suas formas espontâneas, desordenadas e contraproducentes de caridade social, é agora reeditada como uma valência positiva a ser aproveitada pela cabeça pensante do corpo social, porém, de um modo organizado e sob a sua mediação inteligente:
«Façamos a revolução! É um erro supôr-se que tenha o Estado obrigação de prôver a todas as necessidades sociais da Nação. As da assistência, por exemplo, que falam mais ao coração do que ao cérebro, tocam particularmente a sensibilidade privada, pelo que deve o Estado confiá-las ao seu disvelo e iniciativas especiais. Se o Estado é a cabeça pensante e o indivíduo é o nervo sensível da Pátria não há dúvida que é aos indivíduos especialmente organizados pelo coração que competem as soluções chamadas de caridade, proque elas trazem consigo estímulos de solidarismo, de humanidade e contentamento, fundamentos preduráveis de uma felicidade tam cristã que se aninha mais nos corações do que nas inteligências. (...). Assim se está fazendo em Portugal, sob os olhares complacentes de um dos mais amorosos Chefes de Estado e sob a bussúla magnética de uma dos mais bondosos Chefes de Governo (...).29
33Todavia, e apesar da assumpção, por parte do Estado Novo, da sua demissão parcial do campo da solidariedade social, nos chamados anos áureos do regime, assistimos à institucionalização de práticas e à assumpção de funções «novas» pela P.S.P., decorrentes de iniciativas particulares desenvolvidas pelos Comandos Gerais das principais cidades do país, as quais, dir-se-ia, contradiziam, de alguma maneira, o discurso governamental.
34Como referia a Comissão Administrativa do Albergue de Mendicidade da Mitra, em 1935, a Polícia (primeiramente no Porto, de seguida em Lisboa e anos depois em Coimbra), «sem o dever, mas com o desejo de o fazer», acumulou a administração dos albergues de mendicidade com as suas «funções próprias, o que quere dizer que tomou voluntariamente para si um excesso de trabalho e responsabilidades que não lhe competem»30. Conscientes, pois, da linha de demarcação entre os domínios que competem ao Estado (e aos seus organismos) e os que cabem a outras instituições, bem como do «excesso» de competências inerente a tais actuações relativamente às funções específicas esperadas de uma polícia de segurança pública, os Comandos Gerais da P.S.P. ousaram, no entanto, intervir activamente no domínio da assistência pública.
35Se, num certo sentido, a criação dos albergues da polícia se constituiu à revelia da complementaridade proposta na década de trinta pelo projecto salazarista de cingir a intervenção do Estado à gestão do político e do económico, reservando a administração da beneficência social à igreja e à iniciativa particular, nas referências acerca das motivações que guiaram a P.S.P. na assumpção «excessiva» de determinadas funções salientava-se, com acuidade, que estas faziam parte, se harmonizavam ou mesmo se impunham como necessárias à constituição de uma Polícia Nova à altura da doutrina do Estado Novo. Acompanhando tal discurso, justificava-se, ainda, a acção da polícia, em função das carências assistenciais, conjunturais, verificadas em determinados domínios (cf. pontos seguintes):
«Há quem defenda o princípio de que tal função não devia competir à Polícia. (...) Não quero furtar-me, no entanto, a justificar (...) porque se criou e ainda perdura essa função. É que a Polícia de hoje é a Polícia do Estado Novo. Além das suas funções e deveres cominados nas Leis e Regulamentos, que lhe cumpre velar e observar, cumpre-lhe mais alguma coisa: — Cumpre-lhe exceder-se a si própria, fazer tudo que em suas fôrças cabe para que os métodos, os princípios e a doutrina do Estado Novo não sofram dano por via de certas lacunas ainda existentes, aliás, pela comezinha razão de que nem tudo pode ser realizado ao mesmo tempo.»31
36Deparamo-nos, pois, com uma curiosa coincidência de datas e de factos. Concomitante à criação do Serviço Social (1935) sob o patrocínio da Acção Católica Portuguesa, ao seu entendimento como uma profissão «predominantemente feminina e elitista», prescrevendo «como exigência do exercício profissional a vocação e a boa formação moral» e cuja acção, durante os primeiros tempos do regime, tomou um «carácter de apostolado social»32, em estreita ligação com as instituições e as dinâmicas da Igreja Católica, assistimos à emergência de um outro género de apostolado, mas agora masculino e policial, prescrevendo similarmente vocação e autoridade moral (conquistada através de uma boa formação moral)33 e guiado, pelo menos oficialmente, pelos princípios de solidariedade e moral cristã34; no entanto, como veremos adiante, nas suas missões «filantrópicas». Polícia de Segurança Pública e Serviço Social, permanecerão dissociados até ao final da década de cinquenta.
37Não podemos, contudo, escamotear que esta dimensão de apostolado social, inerente a determinadas funções da Polícia de Segurança Pública actualizadas na década de trinta, constituía menos uma inovação do Estado Novo mas, sobretudo, uma retomada de antigos princípios, compatíveis e/ou convergentes com o contexto salazarista de ressurgimento global da nação.
38Com efeito, depois do fracasso da organização dos Quadrilheiros d’el-Rei D. Fernando, da extinção da Intendência Geral da Polícia da Corte e do Reino35, da dissolução da Guarda Real da Polícia (fundada por Pina Manique), e após a divulgação do ‘Relatório — Plano de Segurança Pública’ (em 3/12/1822) no qual se afirmava, ainda, ser o objectivo da «instituição de um Corpo de Polícia, conservar a segurança Pública e manter a povoação em socego», cujo «serviço não deve jamais ser outro» e «por conseguinte, além de patrulhas, sentinelas, guardas, rondas, etc. que são objecto da Guarda de Segurança Pública, espéctaculos, grandes ajuntamentos, feiras, mercados, o mais, não é objecto de serviço da polícia»36, as competências da polícia cívica nunca mais cessaram de aumentar.
39Com efeito, no relatório que precede o decreto-lei que cria a Polícia Civil (datado de 2/Julho de 1867) salienta-se já que à «polícia cumpre fazer cessar toda a perturbação na economia da sociedade organizada e constituída» e, mais adiante, que a sua actividade toma um carácter de abnegação e sacrifício porque «é de todas as horas», sendo exigido aos agentes da polícia «moralidade, honestidade e prudência» de modo a chamarem sobre si «a simpatia do público».
40Indo mais longe e evocando (trinta anos atrás) quase todas as definições, princípios, prescrições e imagens idealizadas para o guarda de segurança pública do Estado Novo, uma circular, cópia de um artigo da ordem (de 30 de Maio de 1897) do Corpo da Polícia Civil de Lisboa insistia, pela primeira vez, «que a missão da polícia é essencialmente benéfica e protectora», sendo preciso convencer «as praças de que o melhor guarda não é o que apresenta maior número de prisões» mas aquele «que, pela sua diligência e prudência, consegue evitar que se dê motivos para elas». E continuando, referia: «A missão policial é toda de paz. A polícia foi creada para manter a ordem e proteger a vida e os haveres dos bons e dos fracos».
41Constatamos já algumas das novas directrizes em que se empenhará a P.S.P. dos anos trinta: a dimensão repressiva e carcerária da polícia é (teoricamente) atenuada e, em sua substituição, enfatiza-se a sua vertente preventiva, beneficente e protectora, investida particularmente no auxílio, pronto e compreensivo, dos mais desfavorecidos: «Devem (...) usar de todo o carinho e bondade para com os enfermos, creanças e velhos que precisem do seu apoio; e quando tenham que tratar com loucos, ébrios, devem fazê-lo tendo em vista que são uns desgraçados privados permanente ou momentaneamente da razão (...), devem deligenciar a empregar a força de maneira mais a defender-se de qualquer provável e imerecida agressão, do que agredi-los propositadamente». Por acréscimo, também a intervenção da Polícia em qualquer outra ocorrência «deve ser feita com cordura e delicadeza, sem repelões nem modos bruscos escusados», procurando «conciliar, harmonizar os desavindos»; e só naquelas situações onde reconheça que «a prudência, paciência e delicadeza é ineficaz e que, por qualquer forma lhe faltem ao respeito, deve proceder sempre sem hesitação e com toda a energia. (...) Não desculparei praça alguma (...) que empregue a força sem motivo justificado.»
42Dedicado, conciliador, paciente, delicado, altruísta e sacrificando-se pelo bem-estar do outro, o guarda da polícia poderá assim contribuir para o desaparecimento do antagonismo conhecido do público em relação à corporação policial, permitindo que este a veja como «sua principal defensora e, em cada um dos seus membros, o amigo que vela ao sol, à chuva e ao frio, prejudicando a sua saúde e arriscando a sua vida» para que este «viva descansado de cuidados na sua pessoa e haveres»37.
43Muito embora tal circular fosse reconhecida pela própria polícia como actual, oportuna e de perfeita aplicação ao guarda da P.S.P. do Estado Novo, o discurso sobre a sua antecessora visava, sobretudo, marcar um divórcio absoluto e, em contrapartida, sublinhar a renovação de valores apoiada numa tradição secular:
«A Polícia que se dizia de Segurança Pública era vilipendiada, desarmada e espancada em plena rua»38 e a situação do país «era das mais tristes, em que pode dizer-se, reinava a desordem e o desprestígio»39; «Apareceu então o milagre do ‘28 de Maio’, um movimento nacional se operou em Portugal, restituindo-o aos seus quadros tradicionais e foi um altíssimo renascimento adentro dos moldes dos antigos guerreiros lusitanos. (...) A Polícia Portuguesa, consubstanciando todas as virtudes máximas do sacrifício, plena de dinamismo adoptou, como lema ‘Limpar e vencer a desordem embora morrendo’»40.
44À figura caricatural do polícia dos últimos anos da Monarquia e dos primeiros da República, «mal amanhado, de ventre saliente e agressivo»41, «geralmente mal encarado, com o sistema piloso extremamente desenvolvido, tufos de pêlos agressivos a carregarem-lhe os sobrolhos, a sairem do nariz, das orelhas, dos pulsos»42, com «façanhudos bigodes e espadalhão à cinta» e dando «calinadas mal abria a boca»43, sucedera-se um polícia «totalmente outro. Novo, desembaraçado, bem lavado e escanhoado, de farda irrepreensível, marchando com garbo e obedecendo com previsão matemática a todas as vozes do Comando»44.
45Para além das metamorfoses evocadas na sua figura e postura física, o novo agente de segurança pública, à luz do discurso do Comando da P.S.P., precisava de ser um exemplo de «aprumo e ética moral»45 conseguido «pela moderação das paixões, a prática de virtudes e a renúncia aos vícios»46, bem como pela eliminação não apenas de alguns «defeitos da (...) condição humana», mas ainda daqueles que porventura foram adquiridos nos seus meios ambientes de pertença47; e, finalmente, pela «submissão voluntária e consciente à vontade de quem manda, como condição moral para impor a sua a quem obedece»48.
46Por sua vez, «nesta hora de renovação de ideias e de costumes»49, e paralelamente ao cumprimento das suas funções de mantenedor da ordem e das instituições políticas50, de «velador da moral pública» («atalhando o escândalo de meretrizes e o desbragamento da linguagem (...) proibindo colóquios amorosos em lugares escusos», limitando «os delitos contra a honra», afastando os menores da «degradação e do vício»51, vigiando os indivíduos de «maus costumes» e impedindo-os de arrastarem outros que ainda «dêem garantia de emenda»,52 etc.), de «penhor da paz dos cidadãos, da integridade dos seus haveres, (...) da segurança do seu lar», cabia ainda ao guarda da P.S.P. ser
«o primeiro socorro no perigo, o primeiro auxílio na doença, o primeiro conselho no infortúnio; a mão que se estende ao velho para o conduzir, à miséria para a proteger, à infância para a salvar do perigo moral, a primeira linha de assistência, enquanto o ferido não chega aos hospitais, o desamparado ao albergue, o faminto à sopa dos pobres, a criança perdida à casa paterna.»53
47Eis-nos, por excelência, perante um dos múltiplos discursos, forjados no interior da instituição policial, que lhe concedem um primado em domínios variados da assistência social (à velhice, à menoridade, à doença, à loucura54, etc.), primado esse, dir-se-ia quase delirante, dada a crise de efectivos da P.S.P. e a ampliação progressiva das suas competências oficiais no contexto da crise mais ampla causada pelo deflagrar da segunda guerra mundial. Tal como a trabalhadora social ou o apóstolo enviado por Cristo, num espírito de bem-servir o próximo, a Pátria e Deus, a missão (ainda por cima «ingrata»)55 do «abnegado» guarda da P.S.P. «exig(ia) trabalho sem tréguas e sacrifícios sem conta»56.
48Num contexto sócio-histórico em que a administração da beneficência social continuava a cargo das Misericórdias, das iniciativas particulares e da Igreja Católica, em que o próprio projecto societal salazarista desinvestira oficialmente o Estado (e os seus organismos) dos domínios da protecção e assistência social, a actuação do «desejo»57 da P.S.P. de intervir no campo assistencial (apesar do pleno reconhecimento de que este não lhe competia) torna-se enigmática se não tivermos em conta várias ordens de motivação. As carências de instituições assistenciais para as diversas situações humanas encontradas na rua pela P.S.P, as «vergonhas» das elites governamentais face ao estrangeiro visitante (mais prementes nas vésperas das comemorações nacionais), etc., constituindo alguns desses factores, ocupar-nos-ão ao longo deste trabalho. Por agora gostaríamos apenas de salientar que a instituição dos albergues da polícia, no final dos anos vinte e princípios da década de trinta, se articulava intimamente com a dimensão beneficente e filantropia que a P.S.P. procurou chamar a si neste período.
49Não podemos deixar também de referir que esta tentativa de renovação da imagem (viril e agressiva) do polícia («homem que prende, que multa, homem temido»58, apenas considerado como «agente da autoridade» e «instrumento de repressão»59) se fez através de uma usurpação (curiosa) das funções e tarefas tradicionalmente atribuídas aos «corações femininos» — a esses, «sobretudo», que «sabem muito bem como podem fazer-se esmolas à miséria moral (...) consolando os que sofrem, dando carinho aos que, perseguidos pela sorte, teem sede de afecto, dando esperança e força aos que cairam em desâmino»60 — e, em simultâneo, se realizou através de uma assimilação das competências do Serviço Social, uma profissão predominantemente feminina, criada no mesmo período.
50Poder-se-ia ainda sublinhar que a nova face idealizada para o polícia de segurança pública se construiu com base numa identificação com o familialismo social do regime, traduzindo-se no campo policial pela ênfase dada à conotação paternal (ou eventualmente maternal) da função do polícia61 e, consequentemente, a um ideal de familaridade com a população, no seio do qual, todos pudesssem afirmar «O polícia é o nosso melhor amigo»62 ou liricamente acreditar63:
«Hoje conhecemos o guarda na rua onde moramos. E vemo-lo aprumado e composto, na sua farda azul escura (...) Lisboa gosta dos seus polícias. É ver o ar familiar com que todos nos dirigimos: — Olhe, Senhor guarda... (...) O Cívico de Lisboa atende sempre a chamada duma janela para uma aflição, encaminha os velhos, os cegos e as crianças. Nunca é duro, mas familiar.»
51Já na década de quarenta, as perturbações ou as anomalias ventiladas na organização corporativa, responsabilizadas frequentemente pela passividade da inciativa privada mas, acima de tudo, legíveis à luz da situação crítica que atravessou todo o país no período da segunda guerra mundial, justificaram um papel mais activo e interventor do Estado na implementação e administração de diversas formas de protecção social.
52É na sequência deste movimento de intervenção estatal que podemos entender — a par com a criação do Fundo de Socorro Social (e, por corolário, dos numerosos subsídios concedidos aos governos civis e às juntas de freguesia para auxílio de indigentes, aos asilos e instituições de caridade privada, aos albergues nocturnos, às Juntas Provinciais, à Caritas, etc.) e junta mente com a proliferação das Sopas dos Pobres, das Cozinhas Económicas, dos subsídios à «pobreza envergonhada», dos Socorros de Inverno, dos «de Natal e Ano Bom» etc., — a expansão das actividades beneficentes da polícia através da construção e gestão dos Albergues de Mendicidade em todas as capitais de distrito (subsidiados parcialmente pelo Estado) e do seu papel activo na administração das Sopas dos Pobres e outros estabelecimentos e iniciativas caritativas.
53A intervenção assistencial da P.S.P (acoplada à sua vertente regeneradora) que, de um certo ângulo de vista, contrariava inicialmente os pressupostos do regime, foi, a partir da década de quarenta, não só legalizada (pela criação de vários diplomas) como elevada a estandarte da política social do Estado Novo. Posição que o ministro do Interior exprimia, de forma lapidar, ao afirmar em 1944:
«A contribuição educativa e moralizadora da P.S.P., de premente assistência aos que necessitam de socorro e correcção, constituirá uma poderosa alavanca para o desenvolvimento da força necessária à acção social em que o Governo anda empenhado. É que a par das suas atribuições normais, a P.S.P, serve de valioso entreposto do vício para a regeneração, da miséria para a revalorização.»64
54Três anos mais tarde, encontrando-se já a ‘Obra’ dos albergues distritais em pleno funcionamento por todo o país, a Polícia de Segurança Pública65 inseria-a claramente no movimento de reforço do papel interventor do Estado nos domínios da assistência e da recuperação moral, atribuindo a tais instituições
«funções de assistência directa da mais alta utilidade social e cristã, em obediência com o pensamento governamental, tantas vezes manifestado, que traçou a directriz de uma mais larga assistência aos necessitados e de recuperação real e séria daqueles elementos da sociedade que por terem caminhado até agora por motivos transviados, sejam por tal motivo de difícil adaptação, são para a mesma sociedade um peso morto e inútil.»
55Apesar de todo um conjunto de circunstâncias contrariantes — entre as quais sublinhámos a existência de uma longa tradição de beneficência pública a cargo da Igreja, das Misericórdias e da iniciativa particular, o incipiente desenvolvimento, entre nós, de um modelo institucional que aliasse as vertentes caritativas com as repressivas, a ausência, com algumas excepções66, de intervenções policiais no campo da protecção social e a própria impopularidade do trabalho da P.S.P, agravada pela grave crise que ameaçava o prestígio desta instituição — o início da década de trinta confrontou-nos com a instauração de um novo modelo institucional, aparentemente contraditório com o movimento inicial de retracção do Estado perante os encargos e a gestão assistencial mas, como veremos doravante, gerido e justificado por princípios, objectivos e métodos inspirados inequivocamente nos pilares doutrinários do Estado Novo.
Notes de bas de page
1 Monografia da Polícia de Segurança Pública da Guarda desde 1884 até 31 de Dezembro de 1939, (1939), Celorico da Beira, Tipografia Mondego, p. 114.
2 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 16, Novembro/Dezembro, 1939, p. 15.
3 Albino Lapa, (1953), O mendigo e a sua história, Lisboa, p. 27.
4 A. Lapa, op. cit., p. 42 e anteriores.
5 A. Lapa, op. cit., p. 27.
6 Bronislaw Geremek, (1987), La Potence ou la Pitié — L’Europe et les Pauvres du Moyen Age à nos Jours, Paris, Gallimard.
7 M. Foucault, (1961), Histoire de la Folie à l’âge classique, Paris, Librairie Plon, coll. 10/18, p. 55-81.
8 V. Ribeiro, (1907), História da Beneficência Pública em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, p. 116.
9 V. Ribeiro, op. cit., p. 144.
10 Idem, p. 123.
11 Idem. p. 121.
12 B. Geremek, op. cit., pp. 228-284.
13 Através de quotizações, esmolas e donativos diversos, as Comissões de Beneficência Paroquiais assistiam os seus paroquianos desvalidos, distribuindo-lhes medicamentos, géneros, camas, roupas, etc., e protegiam os órfãos bem como as vítimas de quaisquer desastres com esmolas pecuniárias (cf. V. Ribeiro, op. cit., p. 270).
14 Similarmente, as Irmandades, na posse de diversos fundos (legados, por exemplo), socorriam os paroquianos doentes, as viúvas, os velhos e ministravam o ensino aos órfãos (cf. V. Ribeiro, op. cit., p. 270).
15 Por exemplo, na freguesia de Santa Isabel, pelo Santo António, a Irmandade de Nossa Senhora dos Milagres oferecia três pães e almoços preparados pelas irmãs; no Loreto, davase, pelo Santo António, um pão de meio quilo a cada pobre; também na Mercês se distribuía esmola, no mesmo dia, a 13 indigentes e, na Encarnação, o pão de Santo António todas as terças-feiras (cf. V. Ribeiro, op. cit., p. 361).
16 Tratava-se, inicialmente, de um serviço de distribuição diária de 200 rações, suportado pela Misericórdia de Lisboa. Continuando este gesto, a Duquesa de Palmeia fundou a sociedade das cozinhas económicas (1893), criando cinco cozinhas económicas na cidade de Lis-
17 V. Ribeiro, op. cit., p. 429.
18 Idem, p. 427.
19 Inaugurada em 21 de Agosto de 1915, a Colónia Penal Agrícola António Macieira de Sintra destinava-se ao internamento de vadios e seus equiparados. Admitia, contudo, elementos muito heterogéneos: «o abandonado da família», «o incipiente rural ou provinciano em começo de vida irregular», os «caídos sob o jugo das leis por acidentes passionais», «por negação brusca ao respeito pela autoridade, pelas influências do álcool», «o vadio por constituição orgânica», «indivíduo mole, sem energia e vontade, desapegado de toda a noção de brilho pela conquista do pão de cada dia, confiando nos acasos da sorte, com o seu furto à mistura», mas também «o grande viciado, incorrigível e mau» «calejado» com «numerosas prisões e condenações e o curso completo de uma longa correria por esquadras e cadeias.» (cf. M. Simões dos Reis, op. cit., p. 721.)
20 J. M. Félix, (1937), A Acção Católica Portuguesa: nascimento e primeiros passos, Vila Nova de Famalicão, Grandes Ateliers Gráficos Minerva, pp. 41 e 42.
21 J. M. Félix, op. cit., p. 109.
22 Idem, p. 35.
23 ANTT-AGMI, Diversos, 1944.
24 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 16, Novembro/Dezembro, 1939, p. 15.
25 Decreto-lei n.o 29936 de 12 de Outubro de 1935.
26 Discurso proferido na Assembleia Nacional em 25 de Maio de 1940, em Salazar, Discursos, vol III, Coimbra, Coimbra Editora, 1959, p. 237, recolhido em A. Carvalho e H. Mouro, (1987), Serviço Social no Estado Novo, Lisboa, Centelha, p. 74.
27 Decreto-Lei n.o 32225 de 12 de Setembro de 1942.
28 Lei n.o 1884 de 16 de Março de 1935.
29 ANTT-AGMI, Discurso do governador civil de Vila Real, publicado em Ordem Nova (Orgão Nacional do Distrito), n.o 215 de 26 de Janeiro de 1936.
30 ANTT-AGMI, Comissão Administrativa do Albergue de Mendicidade, Relatório e Contas da Comissão Gerente referentes ao exercício findo em 28 de Fevereiro de 1935, Lisboa, Papelaria Fernandes, 1935, p. 3.
31 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 16, Novembro/Dezembro, 1939, p. 15.
32 A. Carvalho e H. Mouro, op. cit., p. 70.
33 Revista da Polícia Portuguesa, «Prelecções (Actualização daquelas que foram feitas ao pessoal da P.S.P. nos anos de 1935 a 1939)», n.o 68, Julho/Agosto, 1948, p. 25
34 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 54, Julho/Agosto, 1946, p. 17.
35 A Intendência Geral da Polícia da Côrte e do Reino, criada pelo Marquês de Pombal para manter a Segurança Pública, foi remodelada por D. Maria I, colocando-lhe à frente Pina Manique. Entre as suas numerosas intervenções destacam-se: o recolhimento de crianças abandonadas no colégio, criado no Castelo de S. Jorge, em 1780; a expulsão dos mendigos e vagabundos estrangeiros e o retomo à terra de origem dos nacionais; as rusgas aos bairros «mal afamados» da capital, a inspecção sanitária obrigatória das meretrizes e a criação da Guarda Real da polícia.
36 Monografia da Polícia de Segurança Pública..., op. cit., p. 15
37 Cf. Revista da Polícia Portuguesa, «Páginas retrospectivas: Uma antiga circular da polícia de Lisboa», n.o 64, Novembro/Dezembro, 1947, pp. 26-27.
38 Revista da Polícia Portuguesa, «Obreiros da Defesa do Estado (Paradoxo entre duas épocas policiais)», n.o 91, Maio/Junho, 1952, p. 10.
39 Monografia da Polícia de Segurança Pública..., op. cit., p. 49.
40 Revista da Polícia Portuguesa, «Obreiros da Defesa do Estado...», op. cit., p. 10 e 11.
41 Diário da Manhã, «Como se faz um Polícia», de 28 de Julho de 1943.
42 Novidades de 25 de Maio de 1953.
43 Diário da Manhã, 28/7/1943.
44 Novidades, 25/5/1953.
45 Conferir, nomeadamente, o discurso do ministro do Interior de 29 de Julho de 1948, aquando da tomada de posse dos novos comandantes da P.S.P e da Corporação de Lisboa: «Um oficial da polícia deve ser — tem de ser — um modelo de qualidades militares: brio, noção do dever e da honra, espírito de dedicação e sacrifício, valentia e decisão, disciplina e lealdade. E também um exemplo de aprumo pessoal, de sobriedade na vida, de austeridade no procedimento e nas atitudes (...) um oficial da polícia precisa de estar revestido da autoridade moral da sua própria maneira de ser e de agir escrupulosa e sã» (Revista da Polícia Portuguesa, n.o 68, Julho/Agosto, 1948, p. 20).
46 Revista da Polícia Portuguesa, «Prelecções...», op. cit., p. 25.
47 Conferir, por exemplo, o discurso do Capitão Godinho (então director do Albergue de Mendicidade da Mitra), em 23 de Setembro de 1947, no Dia da P.S.P.: «Incumbe-nos a segurança pública (...) e o dever de manter a disciplina e a ordem nas ruas. Mas lembrai-vos de que para impor a disciplina e a ordem nos outros, temos de começar por a impor a nós próprios (...) Procuremos por isso eliminar alguns defeitos que por vezes desfeiam a nossa actuação. Afastemos completamente a ideia de vingança contra os que nos agridem ou insultam nas ruas, não indo além da energia indispensável e oportuna para manter o prestígio da autoridade (...) não abusemos da autoridade, antes nos sirva ela para sermos moderados, conciliadores, cordatos, respeitadores dos direitos de todos, seja qual fôr a sua condição»; temos de fazer «desaparecer não só os defeitos da nossa condição humana, mas ainda aqueles que porventura adquirimos no meio ambiente em que fomos nados e criados.» (cf. Revista da Polícia Portuguesa, n.o 63, Setembro/Outubro, 1947, pp. 2 a 4.)
48 Revista da Polícia Portuguesa, «Prelecções...», op. cit., p. 25.
49 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 68, Julho/Agosto, 1948, p. 6.
50 «Anotando as reuniões de aspecto clandestino (...) defenderá a ordem e as instituições políticas», Revista da Polícia Portuguesa, n.o 4, Novembro/Dezembro, 1937, p. 35.
51 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 4, Novembro/Dezembro, 1937, p. 34.
52 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 2, Julho/Agosto, 1937, p. 27.
53 Revista da Polícia Portuguesa, «Tradição Militar», n.o 52, Novembro/Dezembro, p. 16.
54 O guarda cívico, para além de «combater os inimigos da ordem», tem de socorrer «os feridos, os doentes, os alienados», «tomar previdências ou acompanhar as crianças abandonadas ou perdidas» (em Revista da Polícia Portuguesa, «Quem é o Polícia», n.o 43, Maio/Junho, 1944, p. 9).
55 Conferir, por exemplo, a entrevista do ministro do Interior ao Diário de Notícias de 1 de Setembro de 1945 (dias antes de entrar em vigor o decreto-lei n.o 34 882 de 4/9/1945, sobre a reorganização da P.S.P.), onde se salienta a necessidade de que o público «compreenda o dever que lhe incumbe em colaborar e não contrariar o exercício da espinhosa missão dos abnegados manutensores da ordem.»
56 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 63, Setembro/Outubro, 1947.
57 ANTT-AGMI, Comissão Administrativa do Albergue de Mendicidade, Relatório e Contas da Comissão Gerente..., op. cit., p. 3.
58 «(...) para a maioria das pessoas (...) o guarda da polícia não é o homem de bem que vela dia e noite pela tranquilidade dos lares, pela segurança das suas propriedades, não é o homem que ampara o humilde, que defende a mulher ultrajada, etc., vêem nele apenas o homem que prende, que multa, o homem temido.» (Discurso do Comandante Geral da Polícia de Segurança Pública publicado na Revista da Polícia Portuguesa, n.o 61, Maio/Junho, 1947, pp. 6 e 7.)
59 «O povo não tem, de ordinário, pela P.S.P. a simpatia que essa honrada corporação merece. (...) E não a tem porque nunca o ensinaram a ver, no guarda cívico, senão o agente da autoridade, o instrumento da repressão, o homem que prende, que multa que, por vezes, trata com aspereza os humildes, e que, tornando-se em geral temido, dificilmente pode ser estimado. Sim, haverá guardas assim, há de tudo mesmo nas mais acreditadas corporações.» (Recolhido de uma Crónica do Comércio do Porto e citado em Revista da Polícia Portuguesa, n.o 52, Novembro/Dezembro, 1945, pp. 15 e 16.)
60 Augusto de Oliveira, (1929), Criminalidade Infantil. Protecção Moral e Jurídica à Infância, Lisboa, p. 25.
61 Conferir capítulo 5.9.
62 Revista da Polícia Portuguesa, n.o 3, Setembro/Outubro, 1937, p. 25.
63 Revista da Polícia Portuguesa, «Os últimos líricos de Lisboa», n.o 99, Setembro/Outubro, 1953, p. 19.
64 Discurso do ministro do Interior em 8.11.1944 publicado na Revista da Polícia Portuguesa, n.o 104, Julho/Agosto, 1954, p. 19.
65 Revista da Polícia Portuguesa, «Uma obra notável de grande alcance social», n.o 60, Março/Abril, 1947, p. 13.
66 Referimo-nos, por exemplo, à instalação do Albergue das Crianças Abandonadas, em 1899, que acolhia e dava destino às crianças achadas nas rusgas da P.S.P.
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