Conclusão. A organização comunitária entre a unidade e a fragmentação
p. 335-342
Texte intégral
1Começámos por dizer na introdução a este livro que ele não partia da formulação de um paradigma teórico proposto como quadro de interpretação ou como contraponto de uma tese a demonstrar. Por isso ele apresenta-se, na ordem da enunciação, com o sentido de uma busca de indícios e de pistas no esforço de identificação de questões que acompanham uma aparente desconstrução do objecto no próprio ensaio da sua construção. Também daí resulta a tensão interna que o atravessa, pois a delimitação daquilo que, em cada uma das partes em que se divide, se afirma e propõe, não se projecta num corpo de questões pré-definido e estabelecendo as fronteiras da interpretação.
2A aldeia de Rio de Onor apresenta-se, como vimos, como campo de análise dificultada pelo seu excesso de biografia, nos dois planos que no decurso da nossa investigação tivemos de interrogar: o estudo detalhado de que já havia sido objecto e o complexo e difuso envolvimento que a foi remetendo para um estatuto de extrema singularidade. Inerente a esta, esteve sempre a sua localização e contiguidade com a aldeia espanhola sua homónima, sobre uma linha de demarcação fronteiriça que, para ultrapassar o obstáculo metodológico em que se tem constituído por uma insuficiente problematização, neste trabalho procurámos restituir não apenas como factor de diferenciação entre Rio de Onor e Rihonor de Castilla, mas também como recurso local gerido e manipulado na definição de estratégias identitárias e de reprodução social. Fomos ainda encontrar na situação de fronteira e de internacionalidade da aldeia (das aldeias) condições que contribuíram para a permanência no tempo das formas de organização comunitária, permanência essa que, em época mais recente, foi favorecida pelo processo de produção e incorporação local de imagens e representações com soluções práticas que designámos por «efeito Rio de Onor».
3Mas estas especificidades da aldeia que, forçosamente, tiveram de ser contempladas na análise, não poderiam esgotar a compreensão e aproximação ao conhecimento da sua história mais recente e condições de reprodução, o que redundaria no logro insistente da sua suposta raridade. Daí o esforço metodológico em inseri-la num quadro comparativo de semelhanças, tanto por referência a um espaço regional em que estas se manifestam — particularmente configuradas nas aldeias do norte do concelho de Bragança —, como pelo recurso à vasta literatura etnológica que abordou aldeias similares no património comunal que detêm, nos constrangimentos inerentes à sua exploração e fruição, nos princípios de organização e partilha que criam o amplo espaço das trocas e interdependência entre os vizinhos. Com este esforço comparativo pretendemos que o nível de formulação ou de simples indicação das questões possa ter um valor operatório — teórico e metodológico — mais amplo.
4Um dos eixos que estrutura a nossa análise é também uma das conclusões para que aponta: uma aldeia onde se produzem e reproduzem modelos e formas organizativas — de que Rio de Onor é apenas um exemplo concreto — como os que procurámos descrever e interpretar constitui-se em totalidade, por referência a si própria, como universo confinado àqueles que, perfeitamente identificados e igualmente detentores do estatuto do vizinho, dela fazem parte. Esta totalidade que é a aldeia, constrói-se sobre a existência de um território que lhe é próprio e por onde se distribuem os vastos e diversificados recursos comunais que detém. É a gestão destes que a manifesta enquanto colectivo organizado e actualizado na assembleia de vizinhos, simultaneamente órgão de acção prática e espaço de representação. Os constrangimentos que decorrem da regulamentação do acesso à diversidade dos recursos modelizam o calendário e um tempo igualmente colectivo pela sazonalidade do calendário, a simultaneidade dos ritmos da actividade agro-pastoril, a imposição de determinadas datas fixas para certas operações, a ritualidade que acompanha os dias marcados e um quotidiano de repetição de gestos comuns. Uma outra dimensão desta totalidade — ou seja da sua individualidade de forma social — é a memória colectiva que a restitui à espessura temporal da sua identidade (mesmo que perturbada pela lembrança de dificuldades, fomes e conflitos passados que os processos de amnésia social se encarregam de corrigir).
5Para se produzir como totalidade de partes ou unidades sociais que a compõem, a aldeia tem, permanentemente, que expelir para o seu exterior parte da população que produz. Num quadro demográfico de Antigo Regime é isto «facilitado» pela sua história biológica retratada nas altas taxas de mortalidade, na baixa esperança média de vida dos adultos, epidemias, enfermidades e incapacidades. Mas também se produzem elementos excedentários que, como os celibatários, continuam confinados ao espaço social da aldeia, mas ficam fora da competição e partilha dos recursos comunais, distribuídos pelas casas que são as verdadeiras unidades de conta na sua fruição.
6É também, enquanto totalidade, que a aldeia se relaciona com o exterior no contexto geral de dependências em que se insere. Podem estas ser consequência da titularidade de direitos que lhe são próprios (mesmo que pela juridicidade produzida segundo os usos e costumes locais) e correspondentes deveres. Pagamentos de contribuições, em particular daquelas que recaem sob o património de que detém a posse efectiva, como são os lameiros comunais ou os bens dos Santos, solicitação, contactos e empenhamento colectivo para a consecussão de melhoramentos, tais como estradas e caminhos rurais, ou o telefone, sob a forma de técnicos, máquinas ou dinheiro, são exemplos de situações em que a aldeia é um todo, sujeito activo de relações com os poderes instituídos exteriores. Podemos analisar com particular detalhe como a presença deste sujeito colectivo se descobre na forma de organização do registo das matrizes prediais onde, entre outros aspectos então referidos, a aldeia se protege do risco de se ver substituída pela entidade que, legalmente, a deveria representar, mas a que se não reconhecem os poderes de exercício dessa representação e, localmente, aparece esvaziada de sentido e espaço de intervenção: a Junta de Freguesia (anteriormente Junta de Paróquia). Este relacionamento do todo que é a aldeia com o exterior participa das condições de reprodução da sua relativa coesão interna e, por referência e em oposição a esse mesmo exterior, facilita a unidade e as representações locais que se projectam acerca da homologia de todos os vizinhos. Em contextos precisos de oposição mais marcada e de confrontação com o espaço exterior, aquela coesão pode sair reforçada, como se viu ao descrevermos a conjuntura da intervenção dos Serviços Florestais nos baldios e a necessidade de proteger o espaço comunal que havia o risco de perder. E o mesmo se passou em tantos e tantos casos (com exemplos sobretudo no país vizinho) em que, com a aplicação das leis de desamortização, é a aldeia que adquire o território de que detém a posse e que vê na eminência de ser alienado, para outros.
7Mas, o permanente cruzamento dos dois ângulos de abordagem que, metodologicamente, balizam este estudo — a aldeia e as suas casas — conduziu-nos às formas de estruturação interna de uma totalidade composta de unidades que se diferenciam pela dimensão e valor relativos do património (próprio) que possuem e que, simultaneamente, ocupam um lugar idêntico como detentores de direitos ao acesso e fruição dos recursos comunais que são, eles próprios, a condição de viabilidade económica e possibilidade de reprodução de cada uma delas. Cada casa (o lugar que cada vizinho ocupa, um termo no outro se confundindo em relação de sinonímia) é uma unidade de conta na partilha desses recursos e de todos os direitos e deveres inerentes à sua condição de partes constitutivas, em cada momento presente (e, como modelo, num tempo em devir), da totalidade que é a aldeia. E se há formas instantâneas em que a partilha se processa — como acontece com os trabalhos colectivos dos grupos instituídos e todas e cada uma das reuniões do conselho, ou acontece ainda na ajuda por todos dada para extinguir um incêndio, no velório de um serão na casa em luto ou na celebração e na festa — esta é conseguida num continuum de trocas, com base em princípios que a visam e a regulam, segundo modelos que refreiam a desigualdade da distribuição.
8A identificação destes princípios de organização e partilha constituiu-se igualmente num dos eixos orientadores da nossa investigação e que, formalmente, se reflectiu na organização interna deste livro. De entre eles sobressai a rotatividade, pela sua recorrência, pelo seu dinamismo adaptativo. Mas, sobretudo, porque nele se projecta a aldeia como forma social em permanente construção e reprodução enquanto totalidade de partes com iguais direitos. O modelo simples que permite o seu funcionamento — a ordem que as casas ocupam na povoação —, a permanente circulação das tarefas a cumprir e da quota parte dos recursos pela totalidade (ou a maioria) das casas, a equidistância em que se encontram por referência a um centro que é a aldeia (sendo a sua totalidade a própria aldeia), produzem um efeito de estruturação espacial, social e ideológica que define um universo político. E, todavia, esta topologia igualitária de um espaço de trocas generalizadas diferidas no tempo não se produz como resultado de erráticos valores de suposta equidade, interiorizados pelos vizinhos, que trariam com eles a solidariedade, a reciprocidade, a entreajuda. De facto, constantemente deparamos com processos de avaliação de perdas e ganhos, vigilâncias suspeitosas e contabilidades sociais, por vezes situando-nos no limiar das tensões e do conflito mas que, também, elas próprias ajudam a conter no jogo das solidariedades necessárias.
9Daqueles princípios de organização, os sorteios permitiram-nos um outro ângulo de aproximação à aldeia como totalidade, revelando formas de fruição dos recursos comunais e, ao mesmo tempo, a reprodução do todo como um universo confinado de partes que, no caso dos sorteios para atribuição definitiva de parcelas em propriedades privadas, são redefinidas e recontadas, sempre sob a presença das contabilidades sociais de que falámos. É nesta transição dos sorteios temporários para os sorteios definitivos que mais próximo estamos da relação de não coincidência entre o conjunto concreto das casas que, em determinado momento, compõem a aldeia e esta mesma enquanto estrutura aberta, no seu devir, àqueles que (no passado) fizeram e (no futuro) farão parte dela. E em cada conjuntura precisa da vida na aldeia o que pode ser observado são as diversidades relativas que as casas apresentam, as dificuldades e carências que levam parte delas a viver crises, mais ou menos longas, de subsistência e que também a aldeia pode parcialmente suprir através dos fundos disponíveis em terra, géneros e dinheiro constituídos comunalmente (sobretudo pela activação dos leilões) e de que os vizinhos se socorrem. Seja qual for o seu valor é de uma dívida que se trata, mas a relação contratual que a estabelece, sendo embora um acto que obriga individualmente o seu sujeito passivo, tem por credor o todo de que ele faz parte. A aldeia apresenta-se, ainda aqui, como espaço possível de segurança para quem nela habita.
10É então claro que, com o nosso procedimento analítico e a metodologia seguida (que também definiu a estrutura final do trabalho), deslocámos o campo da discussão sobre a igualdade ou desigualdade na pequena aldeia comunitária, que pode encontrar-se condicionada, à partida, pelo ângulo da abordagem que privilegia a aldeia na sua unidade e em todos os processos integradores que nela se produzem — o que tenderá a sobrevalorizar a igualdade entre os seus habitantes e a ocultar as diferenciações que os distinguem — ou as unidades que a constituem e a habitam, na sua individualidade — o que nos leva a defrontar-nos, inequivocamente, com as diferenças que apresentam, minimizando eventualmente o quadro aldeão onde se compõem e recompõem e que dispõe de recursos materiais e simbólicos que as amortecem ou as impedem de se constituir em níveis de estratificação. Percebe-se que as unidades de exploração da aldeia que estudámos não podem ver contabilizado o seu valor pela avaliação exclusiva do património privado em que se fundam. São os diversificados recursos que a aldeia possui — de entre todos, os lameiros comunais — que as complementam e as viabilizam. Para tal, cada casa é uma unidade de conta numa relação de dependência da aldeia e, pelos modelos e princípios de organização e partilha e de controlo sobre os próprios recursos comunais, encontra-se interdependente de todas as outras. Mas, diferentemente daquela, a casa não é uma estrutura estável e é tendo em atenção as conjunturas que atravessa o ciclo de vida do grupo doméstico e os acidentes e aleatório que marcam a sua existência concreta que se percebe o real significado que em cada corte temporal pode ter a diferenciação que apresentam em função dos bens que cada uma pode produzir, da riqueza que pode reproduzir e do seu desafogo relativo. A multiplicidade de factores que podem conjugar e combinar na optimização das condições da sua reprodução, introduziram-nos à densa tecitura de relações no interior da aldeia, à redução dos universos restritos da família com as alianças matrimoniais a realizarem-se no campo oferecido pelos primos (carnais e segundos) — o que significa a criação de uma distância no espaço social de maior proximidade — aos casamentos «por troca», à residência separada dos cônjuges. E todos estes fragmentos de estratégia redundam num universo de competição na busca de um lugar, condição topológica de pertença total à aldeia e plena participação no que ela pode oferecer. Por isso, também a tensão e o conflito, neste espaço delimitado onde tudo se contabiliza, são categorias explicativas da própria organização comunitária que permanece, também, pelo controlo colectivo que resulta das avaliações que cada um faz, do que perde ou ganha (em função do que um seu vizinho pode ganhar). É esse conflito, como vimos, que mantém suspensa qualquer decisão sobre a eventual alienação dos lameiros comunais (apesar de muitos dizerem desejá-la), sem terem condições para controlar ou prever o seu desfecho a partir do momento em que, pelo direito positivo do ordenamento jurídico vigente, eles foram registados em nome particular.
11Depreende-se, com tudo o que dissemos ao longo deste livro e nesta reflexão conclusiva, que a historicidade da aldeia se produz — para além de todos os factores e processos que dela participam — sobre duas ordens de temporalidade distintas. Se a aldeia, pelos seus modelos de organização económica e social e princípios que regulam e permanentemente distribuem direitos e deveres, se define num quadro de permanência com a continuada fabricação do presente que incorpora parte do passado (que o legitima) e de um devir que é também presente antecipado, a casa, diferentemente, vive o permanente esforço de construção do seu futuro, nunca certo, e do qual fará parte a expulsão de alguns dos que lhe pertencem. Ou seja, entre a unidade que corresponde àquela temporalidade recorrente e estruturalmente estável e a latência da fragmentação projectada na tensão e conflitos que opõem as casas, nas conjunturas que atravessam e nos acertos e arranjos das estratégias da sua reprodução.
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