Capítulo 7. Os leilões: a homogeneidade com diferenciação
p. 259-293
Texte intégral
1Na identificação que temos vindo a fazer do que designámos como princípios de organização e partilha, falámos sucessivamente dos colectivos instituídos à escala aldeã — com o conselho como instituição de cúpula —, da rotatividade e das suas propriedades dinâmicas e efeitos de estruturação da aldeia e, por fim, dos sorteios. Em todos eles se projecta, de múltiplas formas, a aldeia como totalidade de cuja reprodução social participam como factores preponderantes (senão dominantes). Também neles, com a evidência que procurámos destacar, se espelham modelos de equidade que, no jogo das relações sociais — entretecidas de alianças, conflitualidades e cuidadas contabilidades sociais —, de forma mais ou menos conseguida, se efectivam no quotidiano da aldeia. Tornou-se claro que os princípios enunciados não excluem a diferenciação entre as casas e vimos que, no seu funcionamento, tanto podem pressupô-la e permitir a sua reprodução, como conduzem a evitá-la ou a minimizar e amortecer os seus efeitos. É exactamente para a realidade das diferenças entre as unidades constitutivas da aldeia — as casas ou unidades de exploração dos respectivos vizinhos — que aponta um último princípio de organização e partilha que nos falta analisar: os leilões.
2De facto, apesar do que os leilões revelam quanto a essa diversidade, temos de os pôr em paralelo com os modelos organizativos já identificados, pois também eles são uma produção social da aldeia como universo que reúne o conjunto dos vizinhos (e, simultaneamente, está para além da existência concreta destes), é em função deles que encontram a sua pertinência e é a aldeia o principal protagonista do seu complexo funcionamento. É esta que detém, canaliza ou directamente produz os bens levados a leilão, que determina os momentos em que se efectuam e que gere o dinheiro conseguido.
3Os leilões podem mesmo surgir como intermutáveis com outros princípios de organização — maxime a rotatividade — para a atribuição e desempenho de funções ou cargos de interesse comunal. São inúmeras as informações contidas na literatura etnográfica que se debruçam sobre formas de organização comunitária, similares à que encontramos em Rio de Onor, onde se refere a adjudicação pública de cargos de pastor, guarda rural, concessionário da taberna ou do talho do conselho, para referir alguns dos exemplos mais recorrentes1. Também em Rio de Onor, como vimos, a responsabilidade pela guarda e tratamento do touro comunal foi atribuída por leilão até 1976, ano em que se optou pela distribuição desta tarefa «à roda» entre os vizinhos do conselho. A alteração do sistema revelou aliás, como referimos, as avaliações então feitas de ganhos e perdas relativos ou, num quadro mais geral, da sua mais igual ou desigual distribuição conseguida por cada um dos princípios utilizados. Excluída esta situação de desempenho de uma função por meio da sua adjudicação em hasta pública — a única que conhecemos para o último meio século da vida da aldeia — fica-nos um vasto conjunto de leilões que em Rio de Onor se efectuam, com uma recorrência, diversidade e complexidade que nos obriga a uma análise que tenha em conta a origem e a natureza dos bens leiloados, os seus arrematantes e os preços alcançados, o destino do capital conseguido; e que permita identificar, na profusa circulação de bens e dinheiro que originam, as funções sociais que são chamados a preencher. São estas que nos levam, igualmente, a ressituar este facto formalmente público de mercado livre e competitivo, na discussão dos princípios de organização e partilha, tendo também ele que ser interpretado no quadro aldeão em que se produz e nos modos como revela a aldeia na sua unidade e na sua diferenciação interna.
4Para a caracterização dos leilões que se realizam em Rio de Onor podemos dispor da contabilidade cerrada e mantida a partir dos anos 30 pelos mordomos dos Santos em livros que passam de mão em mão, segundo a ordem dos turnos por que esta função é desempenhada. Estes registos fornecem-nos uma profundidade temporal e uma massa de informação onde é possível ler permanências, variações e mutações que a simples observação de terreno dificilmente permite descobrir. Por outro lado, eles tornam patente uma vertente já referida da organização económica, social e política da aldeia: através do conselho e da multiplicidade de formas da sua intervenção na vida da comunidade, a aldeia conseguiu manter o controlo sobre a gestão de um domínio que, noutros locais, foi sendo incorporado à paróquia sob a vigilância do pároco. De facto, é sobre os bens de que os Santos locais são titulares que incide o maior número de leilões que se efectuam, e esses bens, pela sua natureza, podem ser agrupados em três conjuntos: Propriedades: O Santo é proprietário de uma pequena casa térrea de uma só divisão, edificada com os materiais e segundo as técnicas da construção local (feita de xisto e coberta de grandes placas de lousa). Durante o último meio século ela serviu durante alguns anos para guardar outros bens de sua propriedade como a batata que resultou de cultivos colectivos efectuados em terras de que igualmente é proprietário. No entanto, na maioria do tempo, ela tem sido alugada (por arrematação em leilão) e aí habitaram, por exemplo, pastores, guardas-fiscais e, num período mais longo, de cerca de 15 anos, (entre 1960 e 1975) um pedreiro natural do Minho que, vindo à aldeia oferecer os seus serviços, aí permaneceu até à sua morte. Em 76 seria um vizinho da aldeia habitando numa casa contígua que a tomou de renda (sempre em leilão) como anexo servindo de loja. O Santo é igualmente proprietário de terras de pão, lameiros e chãos que são anualmente arrendadas por arrematação.
5Produções: Certas propriedades do Santo estão sob administração directa do conselho que assim se encarrega do seu cultivo e das respectivas colheitas. Aquela que sempre se manteve neste sistema de exploração (desde os anos 30 pelo menos) é a «vinha do Santo» que dá lugar, como vimos, à realização de vários conselhos em cada ano — para fazer cava, descava, abaixa, poda, plantios de bacelo, enxertias e vindima — sendo as uvas arrematadas em leilão logo após serem vindimadas. Outra das produções que se fazem até meados dos anos 60 são as batatas semeadas e colhidas pelo conselho em parcelas a isso destinadas e por este escolhidas de entre as que o Santo possui; tanto podem ser leiloadas por pequenos lotes, como distribuídas pela totalidade dos vizinhos com base num preço estipulado pelo conselho2. Um outro género ou produção que também é, em certos anos, objecto de leilão é o feno das «sortes» de lameiro que, no passado, foram atribuídas ao Santo e integram os coutos. Finalmente, é também leiloado centeio (que pode ter sido produzido nas terras de pão de que o Santo é proprietário, o que acontece mais raramente), pois aquele é normalmente guardado na «tulha do santo» como fundo de empréstimo para aqueles que ao longo do ano dele carecem3.
6Dádivas ou «esmolas» dos vizinhos: Estas são recebidas por colectas efectuadas nos moldes já analisados ao estudarmos as rodas, por vezes no próprio dia da realização do leilão. Dos registos aqui tomados como fonte descobre-se o mesmo modelo igualitário que está subjacente aos princípios de organização e partilha antes identificados: os mordomos percorrem todas as casas (todas estando obrigadas a dar esmola ao Santo), e constatamos a tendência a darem todas a mesma coisa em igual quantidade ou valor — podemos, por exemplo, calcular para alguns anos o número de vizinhos pela quantidade de ovos oferecidos —, para além das situações em que o valor da «esmola» foi estipulado (como acontece com o alqueire de centeio que cada um dá a N.a Sr.a de Fátima, nos anos 50). Podemos acrescentar que, para pagar os músicos e os foguetes nos dias de festa, procede-se igualmente a uma divisão dos custos por partes iguais entre todas as casas. Estas dádivas, em certos casos ligadas a situações extraordinárias de perigo para os animais e que originam promessas individuais — a oferta de um porco ou leitão, a St. António sobretudo, que posteriormente será leiloado —, produzem, forçosamente, uma diferenciação entre as casas que, no entanto, na sucessão dos anos acaba por se traduzir numa circulação generalizada deste tipo de dávida, pois todas elas, num momento ou noutro a fizeram.
7Torna-se necessário ver como estes bens se distribuem, ao longo do ano, pelos leilões que se efectuam. Estes diferenciam-se, desde logo, pela sua periodicidade e modos como se articulam com o calendário: em data fixa, marcados pelo rito e pela celebração; sazonais, decorrendo do calendário agro-pastoril; sem essa obrigatoriedade mas com uma recorrência estatística no mesmo período do ano; e também de carácter eventual.
Leilões em data fixa
8No dia 1 de Novembro, os rapazes solteiros da aldeia, (os moços) inauguram o longo ciclo do Inverno em que vão desempenhar competências rituais que investem o espaço social aldeão. É nesse dia que, com os carros, vacas e jugos tomados de empréstimo, se dirigem ao monte para arrancar as cepas de urze, regressando ao cair da tarde com os carros carregados. São esperados por toda a população e, logo que chegam, procedem ao leilão das «cepas das almas». Este é conduzido por um dos rapazes — ou por um vizinho que publicamente se reconhece ter mais habilidade para o efeito — que se empoleira nas cepas depois das vacas terem sido desaparelhadas, pondo em arrematação a carga de cada carro em bloco. O dinheiro é destinado a mandar rezar missas pela alma de todos os mortos da aldeia, descontada a parte que os moços necessitam para pagar despesas que tenham feito ou venham a fazer (sobretudo em vinho) com a refeição que nesse dia fazem em conjunto. Este leilão não aparece nos documentos consultados pois a circulação do dinheiro, faz-se directamente entre o vizinho arrematante das cepas (que as compra como lenha para uso doméstico) e os moços, e entre estes e o pároco que o recebe para rezar as missas encomendadas. Com a rarefacção do número de rapazes solteiros da aldeia e o enfraquecimento da coesão própria da especificidade organizativa desta classe etária, têm participado no arranque e transporte das «cepas das almas» muitos dos vizinhos da aldeia (casados), mantendo-se assim uma prática local que apesar de ter tido como actores privilegiados os moços, diz respeito à aldeia na reafirmação e celebração do universo mais amplo em que pode figurar-se e que, ciclicamente, reúne a comunidade dos vivos presentes aos seus antepassados e, por mediação destes, a todos os que se encontram ausentes da aldeia.
9No dia 6 de Janeiro os mesmos moços fazem a sua principal festa — «festa dos Reis» ou «festa dos rapazes» — em que alguns deles se transformam com as máscaras e se transfiguram, recolhendo chouriças de todas as casas da aldeia e realizando desde a véspera refeições em conjunto de que outras pessoas estão excluídas. Neste mesmo dia, as raparigas solteiras fazem um peditório também por todas as casas recebendo igualmente chouriças que, com outros géneros que compram na taberna (uma garrafa de brandy, tabletes de chocolate, etc.) e bolos que elas próprias fazem, penduram com cuidados ornamentais nos galhos de um ramo de árvore que vai ser objecto do leilão. Este «ramo» ou «ramo dos reis» é conduzido em cortejo e com o acompanhamento de todos os habitantes para a igreja onde é celebrada a missa, sendo leiloado à saída, no adro4.
10No dia de S. Sebastião (20 de Janeiro), efectua-se o leilão da «esmola dos Santos» que resultou do peditório efectuado nesse mesmo dia pelos mordomos, percorrendo todas as casas da aldeia. É este — como já foi referido ao analisarmos o princípio da rotatividade — o sistema actual depois de um percurso de transformações/adaptações havidas ao longo das últimas décadas, tanto no processamento da recolha das esmolas, como no desempenho dos cargos de mordomos dos Santos. A «esmola» consta de orelheira e pés de porco salgados e fumados (dávida praticamente comum, na actualidade, a todas as casas), ovos e linho já devidamente preparado para ser fiado. Este produto cuja cultura foi progressivamente abandonada a partir dos anos 40 e hoje já ninguém faz, desaparece dos registos nos anos 60, continuando, no entanto, a serem oferecidos ovos mas sempre em pequenas quantidades. Tendo em consideração todo o período coberto pelos livros (e com o que sabemos das transformações ocorridas de que já falámos) ressalta que todos os Santos representados na aldeia recebem esmolas e os registos que dão conta destas revelam os traços e os acidentes da sua biografia local. S. Braz e St. António, aparecem perfeitamente individualizados até aos anos 50 ao lado de S. João Batista: as missas que lhes são dedicadas encontram-se discriminadas; os mordomos respectivos são distintos, as esmolas são identificadas pelo nome do Santo que as recebe; há o cuidado explícito em não confundir o rendimento e as despesas de uns e outros. Esta especificação permite mesmo descobrir relações negociais que entre eles se estabelecem traduzidas em pedidos de empréstimos, na partilha de uma oferenda (dada a S. Sebastião e a St. António, por exemplo) e, consequentemente do dinheiro que resultou da sua venda em leilão, etc. No entanto, a partir dos finais dos anos 50, St. António e S. Braz perdem pouco a pouco a sua individualidade, deixando de ter missas que explicitamente a eles sejam dedicadas. O seu nome quase desaparece dos registos, absorvidos e postos na sombra, por um lado, por S. Sebastião, cuja data e prática ritual que a marca reforçam a sua própria identidade e, por outro lado, por S. João, o santo patrono da aldeia que se festeja no dia 24 de Junho e que, desde logo, se veio a tornar no único verdadeiro proprietário de entre os Santos, com a sua presença formal no cadastro de 1975 onde figura como titular de direitos, tal como os vizinhos proprietários e a Junta de Freguesia5.
11Um último leilão com data fixa é o que se realiza a 13 de Maio e que, durante um período constou essencialmente da arrematação do «pão da Santa». Cerca de 1948/49 — no decurso de uma estratégia de investimento ideológico de todo o território nacional por parte da Igreja Católica e no quadro favorável e interessado do Estado Novo de Salazar contra a heterogeneidade e heterodoxia do culto local dos Santos6 — Nossa Sr.a de Fátima chegou à aldeia. Para a inserção local e manutenção do seu culto (do qual importa ressaltar a sua celebração) criaram-se fundos próprios e designaram-se os mordomos disso responsáveis: os mordomos da Santa. A Virgem começa por receber — a partir de 50/51, quando tal acontece pela primeira vez — sobretudo centeio dado por todas as casas da aldeia, aquando da debulha (Agosto/Setembro) e que irá ser posto em leilão no dia da sua festa, a 13 de Maio — para além de algum dinheiro sempre em diminuta quantidade. Este cereal é arrematado por vizinhos que naquela época do ano já esgotaram as reservas da sua própria colheita, o que revela a importância social e económica de um leilão como este, aspecto sobre que voltaremos a debruçar-nos. Na história da existência local da N.a Sr.a de Fátima ressaltam duas fases que vão seguir-se a um período de uma quinzena de anos a que corresponde a caracterização anterior. Cerca de fins dos anos 60 — já com a saída dos primeiros emigrantes para França e Alemanha — ela já só recebe ofertas em dinheiro; são, portanto, anos em que este leilão não se realiza. Entre 76/78 esboça-se na aldeia um movimento não explicitamente assumido como tal no seu início, em que os mais novos desempenham um papel activo no sentido de investir mais na festa do 13 de Maio em relação à do Santo Padroeiro, a 24 de Junho. Este facto, tem como principal causa a grande intensidade de trabalho que mobiliza os habitantes por altura do S. João (ocupados em pleno com a segada do feno, a que vai seguir-se sem interrupção, a do centeio), situação idêntica à das aldeias da região de onde dificilmente podem vir os forasteiros tão desejados para a projecção social da festa. A promoção progressiva da festa de Maio no sentido de atrair visitantes e num mês mais desafogado para a sua organização conduziu ao aumento de despesas — música, foguetes, propaganda — com recurso simultâneo a novas receitas7. Um dos meios mais utilizados foi a realização de um leilão que, diferentemente de todos os outros, não põe em circulação coisas produzidas na aldeia e que nela permanecerão, pois com eles são sobretudo os forasteiros os visados e o que se pretende é o mais alto preço possível dos lances (que deixam de ter parâmetros sociais relativamente estáveis que os limitem)8. Foi pensando neles que a data de realização da Festa veio a ser deslocada (em 1980) para o domingo mais próximo do 13 de Maio; festa que era designada «o treze» para não ser confundida com o S. João — equiparadas que estavam no começo dos anos 70 — e que hoje tende a corresponder muito simplesmente à expresssão «A Festa» que designou no passado o 24 de Junho. A N.a Sr.a de Fátima, enquanto recém-chegada à aldeia e à míngua de outros suportes ancorados na vida da comunidade, identificou-se mais proximamente com a igreja, enquanto espaço mais da esfera de influência e sob a vigilância do pároco. Tendo sido claramente incorporada pelas linguagens sociais locais na teia das sociabilidades e reciprocidades aldeãs, não deixa, no entanto, de ser um lugar estratégico em que o pároco (como o actual) se sente mais à vontade para intervir — e que portanto se transforma em canal de inovação — sem a perturbação de relações complexas que ligam as casas em torno das propriedades do Santo sob a gestão do conselho9.
Leilões de recorrência sazonal
12Os chãos dos Santos, terrenos irrigados onde se cultivam legumes, ou batata em rotação com cereal para forragem verde (ferranha), são postos em leilão em Abril (quase sem excepção ao longo de quatro décadas), momento em que se encerra o seu ciclo de rotação anual com o corte da ferranha. Para esta periocidade bastante estável é determinante o facto de eles se distribuírem pelas duas áreas constituídas por pequenas parcelas de regadio, propriedade de todas as casas da aldeia — Faceira e os Hortos — que estão sujeitas, no seu conjunto, a uma regulamentação muito cerrada por parte do conselho e que hoje continua a ser observada mas apenas em relação à Faceira. O conselho estabelece o dia em que todas as produções têm de estar colhidas, para então se permitir o acesso dos animais de trabalho para o transporte de estrume e lavras durante um período curto de dias, findo o qual o terreno volta a ser vedado aos animais. Isto acontece por sistema, entre os fins de Abril e começos de Maio e daí a recorrência deste leilão nesta altura do ano; no entanto, pode também efectuar-se mais cedo, aproveitando uma reunião de conselho convocado com outra finalidade e procedendo na mesma sessão à arrematação de todos os bens dos Santos; foi isto que aconteceu em 1976 no conselho que teve lugar no dia 25 de Janeiro e que descrevemos no capítulo 4.
13Os proprietários dos alargos que integram os coutos têm, como já vimos, direito a um corte de feno em cada segundo ano. Sendo também o Santo proprietário de dois destes alargos, o feno que produzem nos anos em que lhe corresponde o corte é posto em leilão no mês de Junho, altura em que se procede à segada do feno. Mas este pode também ser segado pelo conselho junto com todo o restante e guardado para alimento do touro da aldeia que assim estabelece relações contratuais com o Santo tornando-se seu devedor, facto que aparece especificado nos registos: «O touro deve ao Santo...» Estas dívidas são pagas a partir do orçamento próprio onde as receitas e despesas do touro são individualizadas.
14As uvas da vinha do Santo são postas em leilão imediatamente após a vindima feita pelo conselho depois de se encherem devidamente os coleiros transportados para a aldeia e colocados, em geral, sobre as guardas da ponte para que todos as vejam e possam calcular, mais exactamente, o seu valor (um coleiro cheio dará perto de um almude de vinho). Este leilão realiza-se entre fins de Setembro e começos de Outubro raramente ultrapassando o dia 12 deste mês, dia de feira em Bragança, tomado como meta depois da qual as vindimas raramente se realizam.
15Dos lameiros do Santo, dois são postos em leilão, com uma maior oscilação de datas, entre Outubro e Janeiro. Um terceiro, mais fértil e com um ciclo de produção mais longo, tende a ser arrematado em Janeiro/Fevereiro. Esta distinção aparece claramente nos registos até aos anos 60 mas torna-se, posteriormente, menos precisa podendo (como acima foi dito acerca dos chãos) todas as propriedades serem arrematadas no mesmo momento.
16As batatas cultivadas pelo conselho em uma ou mais parcelas do Santo são levadas a leilão em Setembro/Outubro. Esta operação pode também ser substituída por uma distribuição em partes iguais por todas as casas depois de ter sido estabelecido um preço por unidade de compra (a arroba), dependendo do interesse, em termos de procura, manifestado por esta aquisição. Pelos fins dos anos 60 este cultivo colectivo deixa de fazer-se não apenas como um sinal de afrouxamento dos constrangimentos colectivos próprios destes trabalhos, mas também porque se havia generalizado e ampliado a cultura da batata destinando-lhe, em exclusivo, os vizinhos, certas parcelas de terreno. A batata não só deixa de faltar como bem de consumo doméstico, como começarão a ser produzidos excedentes para a venda.
17Um leilão que deixa de se realizar no final dos anos 50 é o da bosta que o rebanho das vacas da aldeia deixava depois da sua permanência no dormedeiro da boiada durante o período em que se realizavam as malhas. A bosta, que também foi distribuída «à roda» pelos membros do conselho (5 a 7 casas em cada ano), quando leiloada, era-o no mês de Outubro. Sendo um assunto da competência específica do conselho que nada tem a ver com os bens dos Santos, é no livro dos mordomos que se encontram indicações quanto a este leilão, sendo, no entanto, esporádicas, o mesmo acontecendo em relação a outros, que no mesmo âmbito do conselho, podem realizar-se com vínculos de sazonalidade ao calendário. Um é a arrematação do «lodo do lagar»; assim, vamos encontrar a indicação «rematou-se a lodo do lagar» em 19 Abril de 1953, altura do ano em que se transporta o estrume para as culturas que se fazem nas hortas no interior da aldeia. A própria limpeza dos coutos efectuada no mês de Março e, de novo em Agosto, pode dar lugar ao leilão dos juncos que se retiram dos lameiros, mesmo que, sem o formalismo e procedimento ritual que caracterizam os leilões, mais se assemelhe a uma simples venda a um particular como aconteceu em relação aos que um vizinho comprou em 1976 por preço acordado em público quando o conselho se encontrava no Couto e sem que tenha havido outros interessados. Diferentemente da generalidade dos leilões, alguns dos que se realizam no âmbito específico da competência do conselho podem traduzir-se em pagamentos em vinho como se passou com a arrematação das «bostas do Dormedeiro» (50 quartilhos) e das «touças» (75 quartilhos) efectuadas a 19 de Outubro de 1955.
18Dois últimos leilões com recorrência sazonal não têm, contudo, uma repetição periódica, facto que decorre da própria natureza do objecto sobre que incidem. Dos trabalhos de replantação da vinha do Santo para a substituição de plantas envelhecidas ou já mortas podem sobrar bacelos que para o efeito foram comprados e que o conselho não necessita. São estes que vão ser vendidos em leilão ao findar o trabalho que é feito nos meses de Março/Abril e que os vizinhos arrematantes necessitam para as suas próprias vinhas. O mesmo se passa com as batatas que sobraram das sementeiras efectuadas pelo conselho em terrenos dos Santos e que nos nossos registos ocorre, em geral, no mês de Maio; são todavia, leilões mais esporádicos.
Leilões com tendência mas sem obrigatoriedade sazonal
19Os documentos que nos servem de principal fonte para o conhecimento dos leilões — os livros onde é registada a contabilidade própria dos Santos — revelam um com o qual se põem em venda pública porcos ou, mais exactamente, leitões oferecidos de tempos a tempos aos Santos (em particular a St. António, mas também a S. Sebastião). Esta prática que cai em desuso no final dos anos 60, decorre de problemas sobrevindos nos momentos que precedem e se sucedem aos nascimentos, à existência de doenças que ameaçam os animais, enfim, ao risco da sua perda que vai provocar o recurso suplementar e individualizado à protecção dos Santos a quem se oferecem os leitões como promessa que a vai pagar. Estes porcos eram reunidos ao rebanho comum (besseira dos leitons) sem serem tidos em conta para o cálculo dos dias de guarda dos turnos entre os vizinhos, rebanho que deixou de constituir-se nos anos 50. Tinham para além disso total liberdade de circulação no interior e imediações da aldeia não devendo ser maltratados nem dando lugar a qualquer multa por estragos feitos (o seu dono era agora o Santo). São cinco os meses mais representados (de Março a Julho) nos registos, mas a mais forte densidade destes leilões (24 porcos em 28 anos) ocorre em Abril/Maio).
20Do que deixámos dito constata-se a vinculação dos leilões ao calendário agro-pastoril e ritual-festivo, que vai desde uma interdependência estrita manifestada pelos leilões que se realizam em data fixa, a uma oscilação relativa que decorre da que acompanha as várias fases e operações do ciclo dos trabalhos agrícolas e da reprodução dos animais. Fica assim coberto o conjunto dos leilões que, num período de mais de quatro décadas se realizam em Rio de Onor — a maior parte dos quais se prende com a circulação de bens mediados pelos Santos da aldeia — podendo no entanto, também haver lugar à realização de leilões de carácter eventual, mais esporádicos. É exemplo destes, o leilão das sedas do javali quando algum destes era caçado no decurso de uma batida colectiva (ver Dias, 1953: 491-2), objecto pretendido pelos sapateiros (da aldeia ou do exterior). Aliás, qualquer situação que se apresente, mesmo desinserida do contexto local das actividades e ritmos quotidianos, pode dar lugar à utilização do leilão como princípio que permite simultaneamente aproveitar e distribuir recursos, e reunir fundos. Lembremos como caso ilustrativo a arrematação a que se procedeu em Fevereiro de 1976, noutro lugar descrita, dos objectos deixados pelo pedreiro minhoto que vivera na aldeia e aí morrera sem família conhecida. Tratou-se neste caso de desocupar a casa do Santo que este homem habitara, de modo a permitir a sua nova utilização e de transformar os seus objectos em dinheiro que os seus herdeiros (desconhecidos) poderiam reclamar e que ficou à guarda do presidente da Junta de Freguesia. Neste sentido, este exemplo é diferente da generalidade dos leilões que na aldeia se realizam, mas ilustra a «naturalidade» do recurso a este princípio com a profusão e diversidade de situações e bens sobre que incide, tal como resulta da caracterização acabada de fazer. Esta não é todavia suficiente para uma análise do complexo funcionamento local dos leilões, o que nos vai obrigar a inquirir, pelo lado dos seus actores sociais — os arrematantes, pois que os registos não nos dão qualquer informação sobre todos aqueles que participam na licitação — das formas como se constituem, dinamicamente, em fundo local de terra, géneros de subsistência e capital.
Um fundo local de terra
21As propriedades dos Santos constituem um acervo de bens comunais cuja utilização é ciclicamente posta em leilão no espaço exclusivo da aldeia e apenas acessível a quem nela habita. É, pois, um mercado de terras exclusivamente local e que, apesar de reduzido em número de parcelas, adquire significado dada a qualidade dos terrenos e as produções que deles podem ser extraídas. É sintomático que, de entre a diversidade do património dos Santos, sejam os chãos (parcelas de horta em regadio) e os lameiros, aqueles que repetidamente são arrematados em leilão, havendo apenas indicações esporádicas sobre a arrematação de terras de centeio existentes nas duas folhas nos terrenos de secano exclusivamente destinados a este cultivo10.
22A constatação da existência deste património comunal, cuja posse precária circula no espaço social da aldeia, revela, desde logo, uma dimensão fundamental da existência e funcionamento dos leilões como princípio de organização e partilha. Este é referenciado à aldeia como totalidade que, por meio daqueles, gere o acesso a recursos colectivos (com que se produzem fundos igualmente colectivos) e a manutenção destes no universo exclusivo dos que nela habitam. Insistimos neste facto, pois são também os leilões que vamos descobrir, na história das formas de organização comunitária em torno da propriedade comunal e dos constrangimentos a esta inerentes, como meio de acesso a um património por parte daqueles que, vindos do exterior, vêm adquirir (por arrematação) sobre ele, direitos de posse ou mesmo de propriedade. São inúmeros os exemplos que poderiam ser referidos, bastando lembrar as alienações de baldios por loteamentos levados à praça pública que acontecem ao longo do século XIX em Portugal como em Espanha, (países onde sobretudo temos buscado elementos comparativos no âmbito deste estudo) procedimento que, no caso do país vizinho, vinha de séculos anteriores e teve a sua primeira expressão maciça no século xvi11. Esta abertura ao exterior traduziu-se em verdadeiras situações críticas em que aldeias viram o seu património fundário a ser conduzido para um mercado que não tinham condições para controlar, impotentes perante os competidores possidentes interessados e capazes de cobrir os lances.
23Mas também foi este o quadro em que, tanto no século xvi, como no século xix (e agora com muito mais frequência) os povos conseguiram adquirir colectivamente a propriedade dos bens de que detinham, por usos antigos, a posse comunal12. Não é de excluir a hipótese de os acontecimentos ocorridos em Rio Onor de Castilla em 1780, quando os coutos ou lameiros comunais aparentemente estiveram em perigo de ser perdidos — factos indiciados pelo documento do conselho onde foram registados vários procedimentos e despesas com a justiça então feitos — se prenderem com um acto de alienação em que o leilão tenha sido utilizado13. Outros exemplos das consequências da abertura do leilão ao exterior (em que os recursos comunais caem directamente num mercado amplo) foram referidos por Albert Silbert em relação às pastagens, pertença dos povos que os criadores de gado e condutores dos rebanhos transumantes arrendam e que, neste caso, se traduz numa deslocação para as autarquias do rendimento de recursos cujo usofruto revertia a favor dos habitantes, É neste sentido que deve ser entendida a afirmação que este autor formula no seu estudo sobre o Alentejo e a Beira Baixa no final do Antigo Regime: «o próprio princípio do leilão é a negação do verdadeiro “colectivismo”» (Silbert, 1978: 1130), ou seja, um meio que supõe e, sobretudo, permite diferenciações no acesso a um património colectivo e o desvio deste do seu destino comunal. No longo comentário que Orlando Ribeiro fez ao livro deste autor encontramos sintetizada a mesma ideia: «a venda em leilão, quer dos mesmos pastos, quer das courelas, coutos e aduas, beneficia evidentemente quem mais pode pagar. Confundindo bens do povo com bens do conselho, as Câmaras foram, em muitos casos espoliadores em benefício próprio e dos poderosos» (Ribeiro, 1970: 173).
24Não se trata no entanto aqui, das realidades económicas e sociais para que remetem as afirmações anteriores pois, no nosso caso, os leilões apresentam-se duplamente confinados: à aldeia ou povo que, segundo modelos de organização próprios, mantém o controlo sobre o diversificado património que detém; e a umas poucas parcelas de terreno de área extremamente reduzida que, não só não despertam apetites exteriores, como apenas no interior da aldeia podem encontrar uma utilidade económica e social. Pela consulta feita das arrematações realizadas entre 1937 e 1961 das propriedades do Santo e considerando, tanto os preços praticados, como os vizinhos adjudicantes desses leilões, compreende-se melhor a sua inserção local e as funções que vêm a preencher.
25No quadro 16 reunimos todas as informações constantes do «livro do Santo» em relação à arrematação das sete parcelas referidas, a última das quais é, mais precisamente, a erva ou feno que produzem os «alargos» que pertencem ao Santo. Acrescentámos ainda, uma coluna com o valor da renda da «casa do Santo» e uma última coluna com as variações do preço local do alqueire do centeio, para se ter um valor comparativo em relação ao que atingem as arrematações das propriedades do Santo. Por não havermos feito o tratamento sistemático destas para os anos posteriores a 1962, apenas inserimos os preços praticados em 1976, ano em que assistimos à realização do leilão14.
26Importa referir que o pagamento em dinheiro é o único que aparece registado, desde o início (1937), nos documentos consultados, não dispondo nós de qualquer informação exacta que situe no tempo a substituição do pagamento em género (centeio) pela forma de pagamento das arrematações que, no último meio século, se pratica na aldeia. É de admitir que tenha sido aquela forma de pagamento a mais corrente, no contexto de uma economia em que a moeda é escassa, mesmo que nunca de todo ausente, pois em algum momento da circulação dos bens, estes tiveram que ser trocados em dinheiro para cobrir gastos de âmbito comunal, em particular os que se prendem com a realização de festas, manutenção e equipamento do templo, etc.15 Um primeiro dado da leitura do quadro 16 é o aumento acentuado dos valores das arrematações entre 1944/45, conjuntura, não apenas local, de uma subida de preços em que, por exemplo, o centeio mais que duplica em relação a poucos anos antes. A partir daqueles anos do pós-guerra os preços mantêm-se relativamente estáveis, diminuindo mesmo um pouco (vejam-se, os valores do alqueire do centeio) e, comparativamente, no conjunto das arrematações das propriedades, as oscilações que se observam não parecem traduzir outras mutações globais. Estas vêm, no entanto, a verificar-se na segunda metade dos anos 50, em que os preços das arrematações denunciam uma baixa, mesmo em valores absolutos em relação ao que atingiram na década anterior e que, em termos relativos, se torna mais significativa se atendermos à progressiva e lenta subida do preço local do centeio que então se observa. Este desfasamento — que, forçosamente, corresponde a duas lógicas locais que agem sobre o valor dos bens — é expressivamente patenteado pelas indicações que dispomos para o ano de 1976 quando o preço do alqueire de centeio é de 42$00 e os valores de adjudicação das parcelas do Santo se mantêm baixos e, em certos casos inferiores, em absoluto, aos preços praticados 30 anos antes16. Nesse ano de 1976, a renda mensal da «casa do Santo», que então foi levada a leilão, sofreu a sua primeira subida, pois havia-se mantido nos 15 anos imediatamente anteriores (quando nela vivia o pedreiro minhoto que acabava de morrer) nos 30$00 que já aparecem praticados em 1951. Uma primeira distinção de entre os bens contemplados no quadro 16 obriga desde já a considerar separadamente esta casa que aparece como recurso a poder ser utilizado por gente de fora da aldeia que aí vem viver, como foi o exemplo do referido pedreiro e de todos os seus utentes anteriores — guardas-fiscais em serviço na aldeia — e cujo preço de renda não tem qualquer lógica de mercado a determiná-lo (nem o número de interessados que a crie) e vem a traduzir-se numa compensação por um serviço que a aldeia presta: o alojamento de quem não é de lá. Tomados globalmente, os valores das adjudicações não sugerem, em geral, níveis de competição elevados no decurso do leilão que fariam disparar os preços como, por exemplo, se torna evidente da análise feita por J. Portela (1985: 687-8) dos leilões na aldeia de Fontim. Neste último caso, contribuiria para isso, segundo o autor, não apenas o número dos competidores em leilão mas também o facto de os detentores do uso das terras no ano anterior (ou anos) não desejarem perder para outros o investimento nelas feito em trabalho e cuidados com a estrumação. Ora, no caso de Rio de Onor, há uma homogeneidade de comportamento em relação ao trabalho incorporado nas propriedades adjudicadas que se reduz a um mínimo quanto aos lameiros (que se evita estrumar, porque não são próprios) e, quanto aos chãos, se traduz no extremo cuidado, generalizado a todos os vizinhos, de os estrumar devidamente, atendendo aos géneros que neles se produzem, o que lhes restitui uma fertilidade muito estável. Para isso contribui também o facto de eles se situarem em zonas sujeitas a condicionamentos por parte do concelho. De facto, os dois chãos da Faceira (tal como os dos Hortos até meados dos anos 50), encontram-se num espaço que só pode ser lavrado em momentos do ano determinados pelo concelho e a sincronização de todas as operações exigidas pelo seu cultivo é acompanhada por (e contribui para) uma semelhança nos cuidados de que são objecto por parte dos vizinhos. É portanto bem diversa a situação destas propriedades do Santo em relação às «terras de pão» (como as dos leilões de Fontim) em que já se observam diversidades de comportamento (e de investimento) com trabalho e gastos que acompanham lavras e sementeira e em que a rentabilidade destas facilmente é afectada, em anos sucessivos, por uma maior ou menor estrumação e até pelo desleixo (poupança) com esta17.
27Mas, todos estes elementos que sugerimos para a leitura dos preços de adjudicação das propriedades do Santo, têm de ser interpretadas em função do conhecimento que temos da identidade dos vizinhos arrematantes. No Quadro 17 reunimos todas as indicações disponíveis quanto aos leilões efectuados entre 1937 e 1961 em relação aos quais podemos referenciar com exactidão a designação da parcela e o nome do vizinho. Sintetizámos os leilões efectuados ao longo destes anos em dois períodos, havendo no primeiro casas que no seguinte já se haviam extinguido e, neste, casas que entretanto se constituíram autonomamente. Em 29 leilões realizados entre 1937 e 46, as adjudicações foram feitas a apenas 12 vizinhos, ou seja, menos de 1/3 das casas da aldeia. Aparecem ainda 3 guardas-fiscais como arrematantes em 4 outros leilões desse mesmo período. Nos anos seguintes, (1947/61), para 63 leilões registados, apenas 19 vizinhos surgem como arrematantes, e um guarda-fiscal arrematante de 3 leilões além daqueles. De entre as 19 casas deste período, 6 vêm do período anterior — com o mesmo vizinho a representá-las ou um filho ou viúva — e fazem parte do grupo das unidades de exploração mais carenciadas da aldeia que igualmente recorrem, como veremos, aos géneros e dinheiro que a aldeia vende ou empresta. Globalmente considerados, os arrematantes das propriedades dos Santos, representam casas de menores recursos, recorrendo a este mercado local para produzirem subsistências indispensáveis aos seus consumos quotidianos (os chãos ocupam aqui um importante lugar) e/ou pastos que possam acrescentar aos que dispõem dos seus lameiros particulares e com eles reúnam o complemento indispensável para a alimentação das vacas que, no rebanho colectivo, pastam cerca de metade do ano nos coutos e no monte. A nota final de interpretação dos leilões das propriedades do Santo parece, claramente, apontar para a circulação destas no grupo das casas mais carenciadas sem uma competição marcada por parte das outras, facto que, se pode ser lido como um reconhecimento tácito daquela carência, devê-lo-á ser, talvez mais plausivelmente, como a fuga ou recusa em fazer despesas (no caso vertente, subir a licitação e arrematar) quando não se tornam absolutamente indispensáveis para a subsistência do grupo doméstico e garantia das condições de reprodução das casas. Há, finalmente, algumas casas de maiores recursos que arrematam certas propriedades por conveniência que decorre da localização daquelas, em particular quando confinam com parcelas de propriedade privada com o mesmo destino (lameiro ou chão). Assim, um dos chãos da Faceira tem estado nos últimos anos na posse de um vizinho com uma «boa casa» que tem, confinando com ele, mais dois chãos, detendo nestas condições uma parcela relativamente extensa que tem cultivado de batata18. É ainda neste fundo de terra que a aldeia dispõe que os guardas-fiscais vão encontrar o terreno que lhes permite fazer a pequena horta para os legumes que consomem, como foi referido para os anos contemplados no Quadro 17 e, do mesmo modo, na actualidade se observa.
Um fundo local de géneros
28Dos géneros oferecidos em leilão ao longo das quatro décadas em relação às quais há registos, uns são-no de forma isolada, em determinados momentos do ano sem a circulação difusa e recorrente que está associada a outros. De entre os primeiros, contam-se as cepas «das almas», a carne de porco e enchidos do dia de S. Sebastião e do «ramo dos Reis», as uvas da «vinha do Santo» e, de forma mais esporádica, os porcos oferecidos por promessa. Do primeiro, (sem registos) não possuímos informação quanto à identidade dos arrematantes ou sobre a evolução dos preços. Supomos, no entanto, por indicações colhidas de informação oral, que os valores da adjudicação se mantêm bastante estáveis e próximos do preço de um carro de cepas, preço este que é familiar aos vizinhos da aldeia pois aquelas são em alguns momentos vendidas e utilizadas, por exemplo, para a amortização de dívidas na taberna (Brito, 1991). Em 1976, um carro de cepas valeu 3000$00, ficando com elas um vizinho que assim se livrou do trabalho de as ir arrancar no monte, mas estamos já no período em que a cotação das arrematações deste leilão periódico aumentou sem qualquer proporção com o estrito valor económico que possa ser atribuído às cepas como lenha de uso doméstico que qualquer um pode ir gratuitamente colher; aumento que se prende não só com o contexto ritual em que se manifesta (e com o destino votivo do dinheiro), mas igualmente com a circulação acrescida do dinheiro a partir do começo dos anos 70, e ainda, com a intensificação mais que uma vez referida neste trabalho, das linguagens e modos de organização comunitários em torno da máxima representatividade do conselho (entre 1976 e 1981) e do ocultamento e suspensão dos conflitos latentes que, anos antes, os ameaçaram. Já quanto às carnes salgadas e fumadas que são o contributo dos vizinhos para os leilões que se efectuam a 6 e 20 de Janeiro, — marcados também eles pela ritualidade e ambiente de festa — o conhecimento dos registos permite-nos, sem equívocos, detectar as mutações que sofreram. Com efeito, o preço dos pés e orelheiras (orelhadas) de porco da «esmola de S. Sebastião» que em 1947, com a carestia geral a que naqueles anos se assistiu, são excepcionalmente elevados em relação a 1937 (um pé: 6$30 e 1$80 respectivamente) vão-se manter na década seguinte em valores relativamente estáveis e a maioria das arrematações recai em vizinhos que nele buscam reservas alimentares que complementem unidades de exploração mais fracas (entre os quais se encontram duas casas com bastantes filhos) e também nos guardas-fiscais que exercem funções na aldeia e que neste mercado se abastecem; o mesmo se passa com a professora primária que, em 1945 e 1949, fica com alguns ovos e carne. No começo dos anos 70 oferecem-se já chouriças que no final desta década se encontram muito valorizadas e os preços da sua arrematação rondam a alta cotação do mercado (na cidade, em Bragança) associando-as mais a um «mimo» alimentar do que a simples produto de consumo habitual. Os arrematantes já raramente são os que matam porco e as produzem (e as oferecem) continuando a ser os guardas-fiscais ou pessoas que circunstancialmente se encontram na aldeia ou aí se deslocaram expressamente para participar no leilão. Num destes leilões a que assistimos em 1976, um habitante de uma aldeia próxima veio, de propósito a Rio de Onor, participar no leilão tendo arrematado a quase totalidade de «orelhadas» e «pés de porco» para as vender na cidade, e o mesmo pode ter-se passado em anos mais recentes com as chouriças. Quanto ao «ramo dos Reis», este é objecto de uma mutação ainda mais nítida. Dos registos resulta que, entre 1965 e 1972 o valor por que é arrematado oscila entre 800 e 1200$00, sofre um primeiro salto em 1973 (1800$00) e quase duplica no ano seguinte para se manter até 1978, vindo, a partir daí, a alcançar cifras que resultam do espaço competitivo e de emolação entre alguns vizinhos (e, sobretudo, naturais da aldeia residindo fora) e forasteiros. Este leilão que, desde os anos 50 se esperava ver resolvido a favor do dono da taberna/mercearia de Espanha que arrematava frequentemente o «ramo», sinalizando assim uma dádiva à aldeia (sua cliente) e, com isso, a reafirmação diferenciada em relação ao conjunto dos vizinhos veio, pois, a configurar-se, na sua abertura ao exterior, como espaço de performance e jogo de resultado incerto que afinal são os traços correntemente associados a qualquer leilão. Já os leilões de porcos oferecidos se mantiveram no quadro tradicional, pois deixam de efectuar-se a partir de meados dos anos 60 como género esporádica e aleatoriamente disponível no interior da aldeia e a que os vizinhos recorrem como complemento da sua despensa, tal como aconteceu com as demais carnes leiloadas. Tomados estes no conjunto dos registos que os referenciam constatamos que, dos 24 porcos levados a leilão entre 1934 e 1957, oito foram arrematados por três casas. É de comportamento similar o leilão das uvas da «vinha do Santo» pois das 18 adjudicações identificadas para o período de 1942 a 61, nove recaíram em apenas duas casas, ambas de recursos escassos e uma com uma numerosa prole (dez filhos), que à sua conta, é por sete vezes o arrematante19. Mas tanto os porcos como as uvas são por vezes arrematados por vizinhos com mais posses, facto que certamente depende do interesse geral e circunstancial e do aleatório e dimensão lúdica do acto de licitação.
29Os leilões anteriores incidem sobre bens cuja circulação no espaço aldeão é incomparavelmente menor do que a de dois géneros de importância básica no consumo alimentar dos grupos domésticos: a batata e o centeio. Em relação à primeira são raras as casas que a têm, até finais dos anos 40, em quantidade suficiente de produção própria. É nessa década que esta cultura começou a expandir-se com o progressivo desaparecimento do linho que cobria uma boa parte das parcelas de regadio que passaram a ser ocupadas com batata em rotação, sobretudo com forragens verdes (ferranha), e com a adstrição de pequenos conjuntos de «terras» na proximidade da aldeia à alternância anual centeio/batata. Nas duas décadas que se seguem a sua cultura intensifica-se vindo a tornar-se numa das produções de que se procuram excedentes para vendas. Assim, até aos anos 60 o cultivo colectivo da batata em parcelas de terreno comunal (propriedade dos Santos), sendo um meio de aquisição de fundos é, simultaneamente, uma forma de produzir recursos alimentares que, durante anos, são relativamente escassos. A distribuição deste recurso faz-se não apenas por meio dos leilões mas também, por rateio da produção alcançada entre a totalidade dos vizinhos ou apenas aqueles que mais a necessitam, com base num preço estipulado pelo conselho. Nos documentos que temos analisado — os Livros dos mordomos dos Santos — deparamos, em relação a vários anos, com listas de vizinhos que dão exactamente conta da distribuição entre eles da batata, em partes iguais. A própria estabilidade dos preços praticados nesses leilões e/ou vendas, permitem fundamentar a afirmação que a oferta da batata como produção e distribuição comunalmente gerida cumpriu, enquanto se fez (até meados dos anos 60), funções sociais em que a evolução dos preços própria de um mercado mais aberto não se manifesta; facto que se exprime em duas vertentes. A primeira é revelada (para certos anos) pela obrigatoriedade da sua partilha pela totalidade das casas e que tem de ser entendida tanto como distribuição de um recurso como de contribuição igual nos custos da produção; a segunda (patente sobretudo nos leilões) traduz-se no facto da batata vir a ser adquirida por casas de menores posses e que, portanto, mais dela precisam20.
30Os traços de caracterização feita em relação à circulação local da batata são basicamente os mesmos — mas agora nitidamente intensificados — dos que se referem ao género essencial dos consumos domésticos: o centeio ou «pão». São duas as formas que acompanham a sua circulação local, a partir de uma oferta que se configura na instituição comunal de um mercado aldeão: os leilões e os empréstimos. O mais constante de entre os primeiros, é como referimos, o que desde o início dos anos 50 se efectua no dia 13 de Maio e que nos registos aparece designado como da «esmola da Santa» ou do «pão da Santa», centeio este reunido por peditório pelas casas dos vizinhos. Aparecem também informações sobre outros com carácter mais eventual entre os quais, por exemplo, o que se realizou em 1953 do centeio do touro, ou seja, parte do grão dado por cada membro do conselho e que aquele não chegou a consumir21: o mesmo se passa com outras arrematações esporádicas de centeio, pertença dos Santos. Mas é tomando em conjunto os leilões e os pedidos de empréstimo de cereal que melhor se percebem as carências de certas casas, as quantidades transacionadas e as mutações que estas sofrem ao longo de quatro décadas. A aldeia mantém, para este efeito, uma reserva de cereal que se apresenta, na sua forma e no seu funcionamento institucional, como o celeiro comunal, tantas vezes referido na literatura etnográfica e histórica como traço de uma organização comunitária22. Chama-se aqui a «tulha» ou «arca do Santo», esse fundo de empréstimo que designa, simultaneamente, o local onde é armazenado: uma arca de madeira que contém o centeio e se guarda na sacristia da igreja. Este resulta, numa cadeia contínua e distante no tempo, do pagamento de empréstimos anteriormente concedidos e dos juros que lhes correspondem e que, desde 1940 (data da primeira informação disponível) até 1972, se mantém no valor de «meia quarta», o mesmo que 1/8 de alqueire por cada alqueire emprestado. As «terras» que são propriedade do Santo, podem também ser cultivadas pelo conselho e parte da produção ser destinada ao abastecimento da tulha (sendo outra parte leiloada ou rateada pelos vizinhos)23. As despesas inerentes àquele cultivo colectivo aparecem nos registos em anotações do género: «pagou-se um almude de vinho para malhar o pão» (1943). Por último, o centeio disponível para emprestar aos vizinhos é conseguido por colecta junto de todas as casas, processo de que também os registos dão conta: «Paguei-lhe um cantaro de vinho ao senhor C. que o beberam os rapazes o dia que foram pelo pão do pendão» (1954) ou «Relação do pão que saquemos no ano de 1961, que se arrecolheu na arca do Santo». O Quadro 18 dá conta dos pedidos de empréstimo de centeio que puderam ser identificados em relação a 19 anos, entre 1940 e 1972. São certamente incompletos e não cobrem todas as transacções efectuadas na aldeia ao longo desse período, pois teremos de admitir que também as houve nos anos omissos, assim como algumas poderão ter sido anotadas no Livro do Santo que não foi por nós consultado em detalhe para os anos posteriores a 1962. Estas lacunas não enfermam, no entanto, certas indicações conclusivas que a sua leitura nos faculta. Devem ser consideradas três ordens de factores que interferem na progressiva diminuição do volume total de centeio requerido em cada ano pelos vizinhos da aldeia. Uma, prende-se com o aumento da produção total da aldeia que se inicia em finais dos anos 40 com a permissão dada pelo conselho para roturações livres do monte (por roçadas e queimadas) o que faz com que algumas das casas mais carenciadas de pão, por disporem da força de trabalho dos seus grupos domésticos extensos, venham a conseguir na década seguinte grandes colheitas. Sirva de exemplo o vizinho n.° 7 do quadro que, com a sua mulher e os seus 10 filhos, se liberta da ameaça da fome e do endividamento vindo a tornar-se, na década de 50, no maior produtor de centeio da aldeia. Outro factor de interpretação a reter prende-se com as saídas de habitantes da aldeia num período em que esta atinge a sua máxima pressão demográfica e que leva a uma diminuição nas dimensões dos grupos domésticos e, portanto, a uma menor necessidade de pão para o seu sustento quotidiano. Por último, o final dos anos 60 é marcado por dois aspectos que, vindo na continuidade dos anteriores referidos, são agora qualitativamente diferentes na forma como agem sobre a diminuição dos pedidos de empréstimo de centeio. É então que o começo da saída dos emigrantes para a Europa e o esboço da melhoria das condições de vida ligada a uma animação do mercado (batata, vitelos, castanha e pequenos excedentes de feijão, por exemplo) fazem cair acentuadamente a necessidade de recorrer por empréstimo ou por compra em leilão ao fundo comum de centeio que a aldeia para tal dispõe. Só o ano de 1963 apresenta valores anómalos em relação à evolução geral das transacções e que podem estar ligados a um péssimo ano agrícola anterior24. Junto com estas apreciações referidas genericamente ao conjunto das transacções e das casas que nelas intervêm, importa retirar o que em relação a algumas destas o quadro revela. Assim, constata-se a existência de casas que atravessam todo o período contemplado em situação de necessidade de recorrer a empréstimos de «pão» que não produzem em quantidade suficiente para o seu consumo (A, B, C, G), cabendo a responsabilidade do débito a elementos do grupo doméstico que representam a casa depois da morte de um pai ou marido. Três casas nesta situação deixam de pedir pão no final dos anos 40 por terem acabado (a 9) ou terem os filhos saído da aldeia (a 14). A «tulha do Santo» é abandonada como instituição local do crédito no final dos anos 60, no contexto das mutações gerais que a economia da aldeia manifesta com uma acrescida circulação de dinheiro que nos anos posteriores se acentua. Simultaneamente, a produção de centeio decresce e este deixa de ocupar o lugar central que até então fora o seu na subsistência dos grupos domésticos.
31O registo das contas revela-nos que, no começo dos anos 70, são feitos os últimos empréstimos de centeio, centeio este que resulta já, apenas, do pagamento de dívidas e juros de empréstimos anteriores e não da manutenção de um fundo permanente de empréstimo em género. Os últimos pagamentos efectuados, por escassos vizinhos, em 1974 e 75 já foram pagos em dinheiro. Uma folha do «Livro da Santa» revela mesmo o abandono definitivo do sistema de empréstimo que significou a «tulha do Santo», expresso na distribuição feita em Fevereiro de 1973 de 96 alqueires de centeio que a aldeia dispunha de empréstimos anteriores. Os 12 vizinhos que com ele ficaram pagaram-no a dinheiro pelo preço então estipulado (30$00), num claro processo de encerramento da manutenção de um fundo comunal de cereal para empréstimos.
32A escrituração feita pelos mordomos nos livros dos Santos não obedece a qualquer normalização e é frequentemente anárquica, tornando-se confusa, facto que forçosamente interferiu na elaboração do Quadro 18 que, por isso, não pode ser lido como o registo exacto das totalidades das transacções. Ele tem, contudo, um valor indicativo e muito aproximado da realidade em particular no que respeita à identificação dos vizinhos que mais recorrem ao empréstimo ou arrematação em leilão do fundo comunal de centeio que a aldeia dispõe. É aliás para estes que os mordomos abrem páginas onde são reunidas as indicações quanto à sua situação de devedores e que revelam, por vezes, cadeias ininterruptas de pedidos e pagamentos; tal como exemplificamos.
Exemplo I
«Relação do pão de 1959 do tio X, deve dez alqueires (...) Em 1960 entregou de juro um alqueire e quarta (...) Em 1963 levou no mês de Março 10 alqueires (...) levou mais doutra vez 12 (...) dia 15 de Setembro pagou de juro 5 alqueires (...) Ano de 1954 Rematou da Santa 6 alqs a 26$00 cada um (...) Ano de 1965 resta a dever de pão 15 alqs, mais a dinheiro 18 alqueires a 26$00 cada um (...) dia 29 de Outubro de 1965 entregou da conta 33 alqueires e 4 de juro...»
33Se no exemplo anterior se trata exclusivamente de empréstimos de centeio, noutros casos (mais frequentes) este aparece combinado com pedidos de empréstimo de dinheiro tal como se ilustra com o exemplo seguinte:
Exemplo 2
«Relação do débito de Z de 1962. Dia 20 de Setembro demoslhe a quantia de 2100$00 (...) No mês de Abril (1963) levou 6 alqueires, no mês de Setembro pagou total e juro de pão (...) Ano de 1964 levou no mês de Abril 12 alqueires. No mês de Setembro entreguei-lhe 800$00 (...) Ano de 1966 no mês de Setembro dia 15 entreguei-lhe 1300S00 e dia 20 entreguei-lhe mais 1000S00. No mês de Novembro entregou 3000$00. No mês de Maio de 1966 levou 7 alqueires. No dia 1 de Outubro entregou de juro 5,5 alqs. e mais 9,5 alqueires para entregar na conta (...) Ano de 1969, dia 14 de Novembro entregou da conta que devia 2200$00. Ficou a dever com o juro 700$00. Dia 23 de Janeiro (1970) entregou todo o dinheiro.»
34Os vizinhos que mais recorrem a este fundo de empréstimo dirigem unidades de exploração com um património mais reduzido e são os que descobrimos a arrematar as propriedades dos Santos e iremos encontrar a pedir dinheiro de empréstimo à aldeia. Todavia, se parte delas denuncia uma posição estrutural (no sentido de continuada) de carência, também vamos encontrar nos registos casas que são levadas a pedir empréstimos pelas conjunturas que atravessa o ciclo de vida do grupo doméstico ou crises que o afectam. Para além das próprias mutações conjunturais na história da aldeia, que várias vezes temos referido, e que de seguida propomos para interpretar o recurso ao crédito local em dinheiro.
Um fundo local em dinheiro
35O dinheiro que resulta das vendas em leilão que ao longo dos anos se efectuam em Rio de Onor é, pela origem dos bens leiloados, adstricto a diferentes instituições locais. Assim, ele reverterá para o conselho na área específica da sua competência se resulta, por exemplo, da arrematação da bosta que a boiada deixara no couto ou do «lodo» (bagaço) que ficara no lagar depois da sua utilização para o fabrico da aguardente (que hoje já não se efectuam) ou dos juncos e touças retirados aquando da limpeza dos coutos que o arrematante irá utilizar como estrume. Este dinheiro entra nos registos de contabilidade a cargo dos mordomos do conselho e é aplicado nas despesas que lhe são inerentes. Um dos leilões acima descritos — as «cepas das almas» — conduzido pelos moços na esfera da sua competência ritual, dá origem a um capital que estes recebem e por eles é directamente entregue ao padre, não constando pois de qualquer registo. Mas, a generalidade dos leilões incide sobre os bens dos Santos e é na contabilidade que lhes é própria que os valores alcançados são inscritos. Com o particular cuidado por parte dos seus mordomos de especificar o dinheiro que pertence a uns ou outros. Em primeiro lugar, separando em livros próprios — «Livro dos mordomos dos Santos» e «Livro dos mordomos da Santa» — conjuntos de despesas e receitas, sendo o segundo, como foi dito, bastante mais recente. Isto faz com que apareçam nos registos sinais das relações que entre ambos se estabelecem, como esta do «Livro do Santo»: «Dia 27 de Janeiro entreguei ao mordomo de N.a Sr.a de Fátima 310$00 que nos tinha emprestado para a festa de S. João» (1957). Esta separação não é contudo absoluta já que a existência destes dois livros tem na origem, sobretudo, a necessidade de distribuir pelo princípio da rotatividade as funções de mordomo — e a incorporação local e tardia da N.a Sr.a de Fátima a necessitar de fundos próprios — e os registos, por vezes, confundem-se, ao surgirem num deles anotações que formalmente deveriam ser inscritas no outro. É o que acontece, ao aparecerem no «Livro da Santa» indicações de despesas respeitantes à «vinha do Santo», exemplo de imprecisão que não trás qualquer confusão, já que, ao saldar contas se cotejam ambos os registos que respeitam a um património colectivo designado genericamente como «dos Santos» ou mesmo (mas menos frequente) «da Igreja»25. Mas, um segundo nível de especificação é aquele que se traduz (nas páginas do «Livro do Santo») na individualização de receitas e despesas próprias a cada um dos Santos — S. Bráz, St. António, S. Sebastião — que, pelo final dos anos 60, vão perdendo identidade própria, desaparecendo mesmo dos registos os dois primeiros e sendo as contas genericamente referidas ao «Santo». Aquela especificação traduzia-se no facto de, por exemplo, um porco ser oferecido a St. António ou a S. Sebastião (ou aos dois, simultaneamente) e o dinheiro resultante da sua adjudicação em leilão pertencer a um ou a outro (ou a ambos). Do mesmo modo, dos pedidos de empréstimo feitos pelos vizinhos e que mais à frente analisaremos, resultam dívidas a um ou a outro Santo. Esta especificação da individualidade dos «donos» do dinheiro e consequente separação das esferas a que se encontra vinculado é frequente nos livros dos mordomos, em anotações como estas: «Emprestou-lhe a quantia de duzentos escudos S. Sebastião a S. Braz [para] dois metros de cetim para forrare o Sacrário» (1948); «Emprestou-lhe S. Sebastião a [à] Igreja para 20 litros de azeite que lhe comprei o [ao] taberneiro de Barje...» (1942).
36O fundo comum do dinheiro que rendem os leilões (complementado com as esmolas também em dinheiro que, a partir dos anos 70 se tornam bastante significativas) não constitui apenas um fundo cerimonial (para nos servirmos da expressão de Eric Wolf) utilizado para as diversas despesas efectuadas com o culto divino e cuidados com o templo, as festas e a própria exploração e manutenção do património dos Santos, seja ele a vinha, um chão ou as vestes de uma imagem. Na realidade, este capital constitui-se em instituição de crédito local de que os vizinhos se socorrem. Nos quadros 19 e 20 reunimos a informação disponível dos livros a cargo dos mordomos dos Santos que nos permitem restituir os principais traços de caracterização deste mercado de dinheiro no contexto aldeão e formular certas hipóteses conclusivas sobre o recurso ao crédito. Deparámos com registos de pedidos particulares de empréstimo de dinheiro para 24 anos ao longo de período que vai desde 1931 a 1975. Importa ponderar a natureza lacunar destes registos. Na década de 30 (quando foram começados) eles são esparsos e não dão conta da generalidade de assuntos que, nas décadas posteriores aí são contemplados. Por outro lado, a ausência de anos sem pedidos de dinheiro não nos permite concluir que, efectivamente, não tenham sido feitos, podendo ter sido anotados em folhas soltas ou tendo-nos desaparecido na, por vezes, anárquica forma como a escrituração dos livros é feita. Finalmente, em relação ao período que se inicia em 1962, só pudemos consultar sistematicamente o «Livro da Santa», o que não se apresenta como uma limitação ao tratamento que fazemos dos dados, pois não só nos quatro anos anteriores não aparecem registos de créditos no «Livro do Santo», como da breve consulta que dele fizemos para o referido período também não detectámos pedidos de empréstimo que parecem terem sido concentrados no «Livro da Santa». Em todo o caso, mesmo a haver maior número de solicitações de crédito a partir daquela data (1962) só reforçaria o sentido da interpretação que nos sugere. No quadro 19 agrupámos o conjunto dos pedidos de empréstimo de dinheiro (69) feitos naqueles 24 anos em 4 períodos que se diferenciam pelo valor do juro a pagar, pela densidade da solicitação do crédito e, em articulação com esta, o volume total do dinheiro emprestado e o valor médio de cada empréstimo para cada um dos períodos. Nos primeiros 8 anos (I) foram feitos 16 empréstimos a um juro de 7%, sendo difícil tecer considerações mais seguras já que, não dispomos de informações similares para os anos anteriores26. Refira-se apenas a relativa constância do número de pedidos, assim como as poucas variações que há em relação ao seu valor médio (139$00). O que importa destacar é o facto destes 16 empréstimos serem concedidos a oito casas, revelando as diferenciações económicas no interior da aldeia já tornadas patentes pela leitura feita dos leilões das propriedades dos Santos e, de forma mais eloquente, das compras em leilão e/ou pedidos de empréstimo de centeio. Nos períodos que se seguem esta indicação torna-se mais notória. Nos anos subsequentes assiste-se a um expressivo aumento dos juros estipulados (9%) que correspondem ao aumento geral dos preços a que se assiste no imediato pós-guerra e que já podemos constatar a partir dos valores atingidos na arrematação das propriedades dos Santos e do centeio que sofrem uma variação acentuada por 194527. Nos quatro anos que agrupámos no período II, apesar de escassos para deles se fazer uma leitura sólida, parecem apontar para uma recessão no número de pedidos de empréstimo — sete — que, no entanto, quase triplicam o valor médio atingido no período anterior (383$00), ultrapassando em pouco o volume total de dinheiro emprestado (2685$00). Dois dos cinco vizinhos que solicitaram quatro daqueles sete empréstimos estão, neste período, à cabeça das casas que os seus pais dirigiam no período anterior tendo só esses dois então recorrido nove vezes ao crédito. No período III — o que contempla sem interrupção os 8 anos que vão de 1960 a 67 — os juros estabilizam-se em 9% para todos os empréstimos efectuados, ao mesmo tempo que o recurso ao crédito sofre um aumento notório com um total de 41 empréstimos que, para um valor médio de 691$00, perfazem um total de 28 523$50. Esta mutação deverá ser interpretada no contexto mais geral das melhorias nas condições de vida local, produzidas pela descompressão que significou a saída de parte dos habitantes a partir de meados do período anterior, para o Brasil ou para o desempenho de profissões nos serviços militarizados (GNR, PSP, GF); produzidas também pelo aumento de relações com o mercado (na cidade) com a intensificação dos cuidados com a cultura da batata — produzindo excedentes para venda — e, talvez sobretudo, com a produção dos vitelos. Neste período, as melhorias do acesso por estrada tornaram frequente a vinda de negociantes, que compram esses e outros géneros de produção local que antes pouco compensava transportar até à cidade (algum feijão, castanha, um ou outro tronco de castanheiro afectado pela tinta). É ainda nos primeiros anos deste período que se vem a atingir a máxima produção de centeio jamais conseguida na aldeia depois de um crescimento contínuo vindo da década anterior possibilitado pela permissão de roturar o monte e «fazer terras» livremente. Este facto já anteriormente referido está, como dissemos, associado à diminuição a partir de meados dos anos 50 dos pedidos de empréstimo ou compra de cereal que a aldeia (os Santos) pode oferecer. Mas um outro factor que ajudará a explicar o aumento substancial de pedidos de empréstimo em dinheiro, pode ter sido a progressiva familiarização em recorrer a este crédito local sem o temor de endividamento (com a acentuação da melhoria de condições de vida) e havendo necessidade de dinheiro para refazer equilíbrios precários das unidades de exploração de alguns vizinhos, em que pesam os gastos acrescidos com os adubos químicos num período em que os fertilizantes naturais sofrem uma drástica redução com a proibição das estrumeiras públicas. É sintomático que os 41 pedidos de empréstimo destes 8 anos foram feitos por apenas 10 vizinhos confinando-se este número às casas mais «fracas» da aldeia, deixando isto transparecer que, se bem que o recurso ao crédito só acontece em situações de absoluta necessidade, ele torna-se neste período mais sistemático e, em termos de leitura dos números, ajudamos a definir o conjunto das casas mais carenciadas da aldeia, entre as quais se encontram quatro das cinco que pediram dinheiro no período anterior(duas das quais já haviam recorrido ao crédito local, por nove vezes, no período I). Com o que dizemos, não pretendemos esgotar a análise dos dados recolhidos para este período, mas parece evidente que este apresenta características homólogas às dos dois anteriores e, em conjunto, contrastam com os últimos anos contemplados no quadro (IV). Neste período final em que há uma maior circulação de dinheiro na aldeia, decorrente de causas que vêm dos finais do período anterior e principalmente das primeiras remessas de emigrantes, o recurso ao crédito local diminui, tornando-se esporádico, mas com um valor muito superior por cada empréstimo revelando um nítido contraste com a natureza e as causas dos empréstimos ao longo dos três períodos. Trata-se agora de procurar um dinheiro para fins pontuais e de excepção que na maioria dos casos (assim como em três dos empréstimos de finais dos anos 60) se destinam a despesas com viagens daqueles que vão emigrar28. Está-se assim, perante um quadro social e económico para a procura de dinheiro local qualitativamente diferente em relação ao que genericamente se apresenta em anos passados e até finais da década de 60. Ao longo daqueles anos — com as variações que apontámos e que justificam o seu faseamento em períodos — os pedidos de empréstimo parecem destinar-se a gastos correntes numa economia pobre e relativamente desmonetarizada (por exemplo, contribuições, carências mais acentuadas e constantes de algumas casas) e das próprias mutações que esta sofre entre as quais pesa o progressivo aumento do consumo de adubos químicos. Os juros de 5% dos empréstimos concedidos no começo dos anos 70 (período IV) sugerem não apenas a diminuição de uma procura mais difusa de dinheiro, mas também aquilo que poderemos designar como uma nova função social para os empréstimos que então foram feitos e que beneficiavam tanto o habitante que a ele recorre para suportar as despesas com a sua partida, como a aldeia que, indirectamente, é favorecida com ela. Não temos condições para avaliar com exactidão da importância relativa dos factores que pesaram nesta brusca descida do valor local dos juros e que não resulta de uma evolução progressiva destes, mas de uma decisão tomada pelo conselho da aldeia que podemos detectar no «livro da Santa»: «No dia 1 de Janeiro de 1971 ficou o juro do dinheiro a render ao mesmo preço da Caixa Geral de Depósitos». Para além das causas antes referidas, ela pode estar ligada aos primeiros contactos da aldeia como depositante com as instituições bancárias da cidade que começam então a acolher não apenas as primeiras remessas dos emigrantes mas o próprio dinheiro que a aldeia como colectivo movimenta29. Refira-se que o volume total do crédito concedido naquele último período de cinco anos (30 000$00) é a expressão do significativo aumento das receitas dos Santos, resultado das maiores prestações rateadas pelos vizinhos e das ofertas em dinheiro que continuarão sempre a crescer na década seguinte. Aquele quantitativo não corresponde aliás ao fundo global do dinheiro acumulado pelos Santos, pois parte deste passa a ser depositado na C. G. D. em Bragança. Uma anotação do livro dos mordomos da Santa dá conta deste facto: «dia 4 de Março de 1973 depositámos na caixa a quantia de 13 000$00. Em 22 de Dezembro depositámos mais 20 000$00. É no começo desta década que se assiste a uma nítida subida das receitas auferidas pela Santa em torno da qual se centraliza uma maior circulação de dinheiro e cuja festa vem a ser objecto de um maior investimento (relativamente ao santo padroeiro que decai em importância), vindo a tornar-se particularmente expressivo ao findar a década e nos anos subsequentes»30.
37Feita a leitura dos dados disponíveis sobre os leilões que se realizam em Rio de Onor importa sintetizar alguns pontos conclusivos que retomam apreciações feitas ao longo do presente capítulo. Diremos, em primeiro lugar, que o principal actor destes leilões é a aldeia enquanto universo delimitado em que estes são accionados como princípio de organização e partilha. Mas logo os sucessivos leilões revelam através dos quadros que elaborámos, outros actores sociais que denunciam as diferenciações internas da aldeia. De facto, eles vêm a dizer mais directamente respeito e a chamar à liça as casas de menores recursos, que assim se mantêm ao longo de mais de quatro décadas, passando de pai para filho ou de marido para a viúva as dificuldades que têm de enfrentar na condução das respectivas unidades de exploração e no recurso aos meios que garantam a sua subsistência e as condições da sua reprodução. Estão neste caso as casas referenciadas nos quadros 17, 18 e 20 pelas maiúsculas A e B e, de forma menos aguda, as casas E, G e H. Algumas delas (C e D), estão aí representadas com os membros (filhos, irmãos) que vieram a separar-se em casas autónomas e onde se repercutem e agravam as carências da casa original. As situações em que se recorre ao crédito local, (centeio ou dinheiro), também se prendem com conjunturas críticas que as casas atravessam, como pode ser exemplificado pela F, onde morre o marido (em 1951), ficando a viúva com seis filhos menores, dos quais o mais velho é, excepcionalmente, aceite como o seu representante no conselho da aldeia, apenas com 15 anos31. Outros intervenientes nos leilões (em particular das propriedades dos Santos e esmolas em carne que lhes são oferecidas) são os forasteiros residentes — guardas-fiscais, professora ou outros — que neles vão encontrar meios que suportem os seus consumos domésticos.
38Mas este fundo comunal que a aldeia dispõe e gere, não é o único lugar para recorrer aos bens como os que aí são propostos e que as casas necessitam, pois também se efectuam transacções entre os vizinhos, de terras, cereal e dinheiro que são propriedade particular. É importante considerar as diferenças que apresentam em relação às que os leilões e os pedidos de empréstimo à aldeia contemplam. Assim, quanto aos acordos de arrendamento de parcelas estabelecidos entre vizinhos, estes são sempre pagos em géneros (centeio) o que os diferencia em absoluto das arrematações em leilão que se destinam a constituir uma reserva comunal de dinheiro. Por outro lado, quanto aos empréstimos de cereal concedidos por vizinhos a outros que os solicitam, apresentam uma primeira diferença, o serem feitos a um juro muito elevado («à quarta», ou seja, um alqueire em cada quatro) que nestes empréstimos ainda é praticado durante os anos 4032. Também os vizinhos se socorrem pontualmente de pedidos de empréstimo em dinheiro, feito a outros, procedimento que, pela sua natureza de acordo reservado de que se não fala, não podemos ter a dimensão exacta da sua frequência. Vamos, no entanto, detectá-lo no registo de contas particulares do taberneiro a quem alguns vizinhos pedem dinheiro emprestado (na década de 50), podendo este ser pago em géneros e serviços — «carretos» e «jeiras» — tal como acontece com os próprios pagamentos de débitos correntes na taberna. O que se torna particularmente relevante lembrar é o aspecto que distingue os pedidos de empréstimo em cereal ou dinheiro feitos a um vizinho daqueles que são dirigidos ao fundo comunal da aldeia. No primeiro caso, estamos perante acordos diádicos cujo pagamento nunca os deixa completamento saldados, gerando (ou resultando já de) agradecimentos e obrigações, ao passo que, no segundo, há um quadro institucional para o recurso ao crédito que salvaguarda deferências pessoais através de uma via que, como modelo, igualiza todos os vizinhos. Resulta, então, que a complexa circulação dos bens propostos em leilão e o capital que a aldeia consegue reunir e pode dispor, devem ser vistos como cumprindo as funções sociais de um fundo mutual — uma última face deste princípio de organização e partilha — que pode ser posto em paralelo com as situações descritas por Joaquin Costa, no capítulo que dedica às irmandades e mutualidade local (Costa, 1898) numa grande diversidade de soluções e onde, por exemplo, o dinheiro que a aldeia dispõe chega a ser leiloado e adjudicado aos vizinhos que oferecem o juro mais elevado33. Entenda-se, todavia, que, sob este ângulo de leitura dos leilões em Rio de Onor, nada nos permite ver neles o que uma descuidada projecção ideológica remete para conceitos tão vagos como altruísmo e solidariedade. A aldeia age com garantias e julgamos mesmo descobrir nos registos dos mordomos dos Santos, em casos isolados, a ausência de empréstimos de dinheiro a vizinhos que não as podem dar. Assim, há membros das casas C e D (ver Quadros 17, 18 e 20) que se constituíram em fogos separados e que, como vimos, aparecem como arrematantes nos leilões ou a pedir empréstimos de centeio, mas nunca nos surgem como sujeitos de uma relação de crédito em dinheiro. As dívidas são muitas, as amortizações são pequenas e espaçadas no tempo e em relação a um deles (da casa C), foi mesmo o conselho que o levou a assinar um compromisso de dívida e forma do seu pagamento. Trata-se de uma declaração escrita em papel azul e assinada pelo presidente e vogal da Junta de Freguesia, pelo regedor e o próprio declarante:
«Eu abaixo assinado declaro em como autoriso a que o concelho de Rio de Onor recolha o centeio das minhas terras (...) para pagamento da minha dívida com a Igreja, caso eu pague tal dívida até às ceifas, o dito centeio é recolhido por minha mulher. Rio de Onor, 20 de Março de 1962»
Notes de bas de page
1 Temos conhecimento de um único caso, referido à Galiza do início do século, de atribuição do cargo de mordomo do conselho por leilão: acontecia isto com a «xunta dos homes» de Taboadelo em que o cargo era leiloado no dia 1 de Janeiro de cada ano e, segundo o autor que registou o facto (Garcia Ramos, 1912), era atribuído a quem mais oferecesse; não será equívoco do autor e não seria antes uma adjudicação aquele que menos quisesse receber?
2 Se exceptuarmos a exploração da «vinha do Santo» que hoje continua a ser feita pelo conselho, trata-se do cultivo colectivo que veio até mais tarde.
3 A «tulha do Santo» de que falaremos mais adiante manteve-se, como instituição de crédito local, até final dos anos 60. Nos anos 30/40 há ainda referências esparsas nos livros dos mordomos ao leilão das ervas do cemitério e do adro.
4 Sobre a ritualidade do Inverno nesta região e os papéis desempenhados pelos moços veja-se sobretudo Alves (1910), Dias (1953), Pereira (1973) e Afonso (1981 e 1989).
5 Podemos constatar esta relevância do dia de S. Sebastião em relação à maioria das 40 aldeias do norte do concelho de Bragança por nós inquiridas em 1986. De entre as contas que naquele dia se saldam constam, por exemplo, o pagamento à detentora do posto público do telefone do valor que a aldeia com ela acordou. É o dia em que se fazem «as contas do povo».
6 É naqueles anos que se realiza a viagem da «Imagem peregrina» pelas terras do continente, ilhas e possessões ultramarinas, cumprindo Nossa Senhora de Fátima a sua dupla dimensão de referência única e hegemónica como Mãe de Cristo e de acção simbólico-ideológica que decorre da sua invenção, tomado este termo no sentido que os textos sagrados lhe dão — aparecimento — como na expressão «dia da Invenção da Santa Cruz». A Virgem foi então recebida em altar próprio em muitos templos locais, vindo muitas vezes a descentrar a importância dos padroeiros. Não se trata, no entanto, de uma acção isolada, pois terá de ser vista no contexto do grande investimento ideológico nas consciências e maneiras de ser português que o regime promove e que encontra no S. P. N./S. N. I. um dos principais arautos (ver Brito, 1982).
7 O crescendo na afirmação/promoção da Festa traduziu-se na feitura de cartazes (em alguns anos) a partir de 1977, afixados na cidade e aldeias da zona e de uma brochura em que são referidos os aspectos mais singulares do comunitarismo de Rio de Onor numa clara manifestação do que neste livro designámos como «efeito Rio de Onor» — a aldeia sempre a cuidar, ao espelho, da imagem que de si própria foi aprendendo e construindo.
8 Trata-se, em geral, de um electrodoméstico previamente adquirido na cidade, um presunto igualmente comprado, etc. De entre as novas formas de aumentar as receitas, consta o torneio de tiro aos pratos que se efectuou pela primeira vez em 1978 e que atrai atiradores da cidade.
9 Lembremos que o «Livro da Santa» onde são feitos os registos de contas que directamente lhe respeitam, existia já na aldeia como «Livro da Igreja». Era neste que, desde os finais dos anos 30 as despesas correntes eram anotadas — azeite para a lâmpada, vinho para a missa, gastos com reparações e melhoramentos, etc. — e são estas que mais se identificam com a Santa por mediação directa das zeladoras da igreja, também elas promotoras locais de Nossa Senhora de Fátima.
10 Apenas podemos localizar dois leilões em que foram arrematadas as «terras do Santo»: em 1950 e em 1962.
11 Para o conhecimento deste período e dos ataques então desferidos contra as propriedades de uso comunal das aldeias, dispomos do texto já clássico de Noel Salomon (1964) que aborda a propriedade comunitária e as investidas a que começa a estar sujeita, do estudo de Moreno Sebastian (1986) incidindo sobre a área leonesa limítrofe de Rio de Onor e da investigação mais ampla (relativa a toda a Espanha) da autoria de Vassberg (1980 e, sobretudo, 1983). Este último é mesmo, de nosso conhecimento, o trabalho que melhor analisa o formalismo, funcionamento e artes de manipulação dos leilões e do papel destes nos processos de alienação (e, também, de validação formal) da propriedade comunal. Ver ainda Zulueta (1975) e a detalhada visão de conjunto que Mangas Navas (1981) nos propõe das formas de organização comunitária em que estas alienações ocorrem.
12 Vejam-se, para o século xvi múltiplos exemplos em Vassberg (1983) e Moreno Sebastian (1986) e, para o século xix, na obra dirigida por J. Costa (1902) e em Diez Espinosa (1983).
13 Hipótese que não é contraditória e deverá ser posta em paralelo com a que possa apontar para uma simples reivindicação/ocupação, directa ou mediada por terceiros, por parte do proprietário de todo o termo da aldeia (o Conde de Benavente).
14 Trata-se de uma lacuna de informação que nos impede de alargar, sem mais, ao período omisso a interpretação aqui proposta. Mas as indicações de fonte oral recolhidas no terreno vão ao encontro desta.
15 Na análise que José Portela fez dos leilões realizados na aldeia trasmontana de Fontim, a transição dos pagamentos em centeio para pagamentos em dinheiro, dá-se, com bastante precisão nos anos de 1921/22 (Portela, 1985).
16 Os leilões de um só ano não permitem suportar conclusões absolutamente precisas, já que eles variam de acordo com o próprio desenrolar da sessão, a sua animação e margem de imprevisibilidade. Sabemos, todavia, que os preços de 76 rondaram os valores dos que haviam sido praticados no ano anterior. Um dos lameiros (F) fora arrematado três anos antes por um período de cinco anos, desconhecendo nós o preço.
17 A irregularidade com que as «terras do Santo» são levadas a leilão, pode também ter a ver com estes condicionalismos que abrem campo à sua aleatória fertilidade e ao risco de perda, para outros, do investimento nelas feito. Na última quinzena de anos têm ficado sem ser cultivadas por não haver interessados e porque também o conselho deixou de o fazer.
18 No contexto mais recente da vida da aldeia em que há uma menor pressão sobre a terra — por rarefacção demográfica e melhoria geral das condições de vida — esta posse temporária tem também sido tacitamente respeitada ou permitida sem o referido vizinho ter que a defender pela subida dos lances em leilão.
19 Torna-se impossível avaliar da evolução dos preços das «uvas do Santo» devido à própria variação da produção da vinha, de ano para ano. As quantidades arrematadas nunca são especificadas.
20 De entre os 24 leilões realizados no período de 1938 a 1961, são os membros de uma só casa que, em 11 deles, arrematam as batatas. Trata-se de uma das casas que mais recorrentemente aparece na adjudicação final de bens em leilão (casa C dos quadros 17, 18 e 20).
21 Pode, também, o conselho ter optado por transformá-lo em dinheiro.
22 Vejam-se, por exemplo, as sínteses de L. de Castro (1900) e de A. de Castro (1963) sobre os celeiros comuns e seu progressivo desaparecimento e transformação, em meados do século xix, para os moldes bancários e passagem para as mãos dos particulares (com acentuação da usura).
23 Não conseguimos saber, com precisão, qual a frequência e até quando se manteve esta prática de cultivo colectivo, mas ela parece estar caída em desuso no começo dos anos 50.
24 O aumento de pedidos de empréstimo naquele ano (ou de compra em leilão) pode corresponder a uma crise muito localizada como a que sugerimos e que terá, provavelmente, a ver com o salto notório de pedidos de empréstimo em dinheiro que na aldeia foram feitos no ano seguinte (ver Quadro 19).
25 Aliás, esta mesma confusão ou sobreposição de notas de despesa ou de receita, observa-se ao cotejar os «livros dos Santos» com os «livros do conselho», encontrando-se nestes, por exemplo, anotações respeitantes à arrematação de chãos ou lameiros dos Santos.
26 O único dado concreto de que temos conhecimento para anos anteriores é o valor do juro (10%) do empréstimo feito pelo conselho junto de um vizinho recém-chegado da Argentina onde estivera uns anos emigrado, para a compra da malhadeira colectiva. Aquele empréstimo foi contraído em 1929 ou 1930, mas o juro acordado não é necessariamente igual ao que seria praticado nas transacções internas em que a aldeia aparece como prestamista e, portanto, difícil de comparar com aquele que 10 anos mais tarde circulava (7%).
27 De uma anotação no «Livro do Santo» que não permite identificar nem a quantidade do dinheiro pedido, nem o vizinho que o pede, resulta que o juro de 9% já era praticado em 1949.
28 Um destes empréstimos, deve ter na origem o casamento de uma filha do vizinho que o contrai.
29 As informações que dispomos, apontam para situar na transição da década de 60 para 70 os contactos mais assíduos e repetidos com a instituição bancária, permanecendo o dinheiro até então na aldeia, onde circula, e supre gastos colectivos e necessidades dos vizinhos. Já quanto à aldeia espanhola, — que não apresenta formas creditícias comunais tão elaboradas e recorrentes como as de Rio de Onor —, a deslocação do dinheiro para o Banco ter-se-á dado muito mais cedo. Numa anotação feita pelo taberneiro no livro em que regista os consumos e débitos da sua clientela, aquele aparece-nos como mandatário do conselho para depositar na vila o dinheiro que resultou do balanço das contas da aldeia de 1955 (1692 pesetas).
30 Para se ter uma ideia dessa evolução vejam-se as receitas correspondentes a alguns anos e que são anotadas quando os mordomos cessantes apresentam contas aos que os substituem.
31 Nessa mesma década houve outras duas casas representadas no conselho por menores, em idêntica situação de crise, como já foi referido no respectivo capítulo.
32 Os pedidos de empréstimo à «tulha do Santo» também estiveram sujeitos àquele juro («à quarta»), num período anterior de que não conseguimos situar a fronteira, mas que pensamos ter abrangido os anos 20. Vejam-se as informações de Descamps, quanto ao valor dos juros (para o empréstimo de cereal) no mesmo espaço regional — no caso, a aldeia de Rabal — onde estes oscilam entre 16 e 20% ao ano, mas podem elevar-se até 100%, pois um pedido de centeio feito em Maio, é pago em Agosto, por altura das malhas (Descamps, 1935: 62-63). Trata-se, todavia, de empréstimos contraídos entre particulares, em relação aos quais, as variações são grandes. São também estas que caracterizam as formas de usura (em dinheiro) de que os camponeses são vítimas e de que em parte se defendem com as instituições de crédito local como a que temos em análise para Rio de Onor. É no distrito de Bragança que, na viragem do século, os juros atingem a máxima variação e o «plafond» mais elevado do país (de 5% a 75%); veja-se, a este propósito, a Carta elaborada por L. de Castro (1900).
33 Esta informação (que J. Costa não desenvolve) não nos permite retirar conclusões quanto ao destino do dinheiro e modos como nele se projectam e reproduzem (ou não) diferenciações económicas e/ou sociais locais. Só o conhecimento do desenrolar daquele leilão e a forma como se organizam, entre si, os vizinhos licitantes, nos forneceriam elementos de interpretação.
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