Capítulo 6. O sorteio: modelo de equidade e recontagem do grupo
p. 233-257
Texte intégral
1Um campo de difícil apreensão no estudo das sociedades rurais (e não apenas destas) é o da emergência do aleatório e dos modos da sua incorporação social (na sua recorrência e nos seus efeitos) e representações que o envolvem. Não se trata, no entanto, de uma categoria estável, pois que é, desde logo, determinado pelo grau de ocorrência estatística dos factos casuais que os homens podem ou não prever ou impedir e que, familiarizados que estão com eles, acabam por ser um elemento estável que marca a estrutura e as condições de reprodução dos grupos. Centrando-nos mais precisamente nas formas de organização comunitária das pequenas aldeias agro-pastoris de montanha de que Rio de Onor é um exemplo, teremos que afirmar que os factores aleatórios que afectam os equilíbrios conjunturais na sua composição interna e organização social, económica e política são um traço caracterizador de uma situação de Antigo Regime que, de facto, se arrasta até próximo de meados do presente século. Torna-se isto evidente se as olharmos sob o aspecto demográfico, pela taxa elevada de mortalidade infantil ou pela esperança média de vida dos adultos, ambos eles vectores «naturais» da eliminação de parte da população produzida e da sua composição em cada momento. Também sob o aspecto médico-sanitário que até tempos muito recentes se traduz na quase total ausência de cuidados peri-natais e de frágeis respostas face à doença, podemos encontrar nas enfermidades e incapacidades físicas e mentais um elemento que acompanha a história biológica destas pequenas aldeias. Mas, paralelamente a este perfil cuja constância genericamente observada permite remeter para um quadro estrutural na reprodução dos grupos, é pela sua pequenez (em número de habitantes e de fogos) que o aleatório se produz no acaso de efeitos que reaquacionam a situação relativa das casas ou vizinhos da aldeia. Assim, por exemplo, uma casa em que alguns dos irmãos (potenciais competidores na herança e na continuidade ou divisão da casa) se encontram incapacitados, física ou mentalmente, ficando à partida excluídos do casamento, manter-se-á por «partir» na posse de um só filho, excluídos que são os irmãos que se encontram naquela situação1. O mesmo acontece, quando o acaso de uma morte de um jovem que, em princípio, se casaria não só o retirou da competição pela partilha da herança, como (tal como na situação apontada anteriormente) impediu a eventual constituição de uma nova casa. Consequências idênticas na redefinição interna das unidades constitutivas da aldeia, podem ter os grandes surtos epidémicos que vitimam um número elevado de pessoas como aconteceu em Rio de Onor em 1918 com a «bailarina», o mesmo que em anos anteriores se passara tal como referimos no Cap. 1. Relembramos, finalmente, que numa pequena aldeia como Rio de Onor, considerando-a ainda sob o ângulo do seu comportamento demográfico, podem ocorrer desequilíbrios que em si mesmos são o resultado da manifestação mais evidente do aleatório, quando o acaso dos nascimentos cria um fosso na relação homens-mulheres. Aconteceu isto de forma notavelmente acentuada a partir de finais da década de 70, trazendo como consequência o facto de a maioria dos rapazes solteiros da segunda metade dos anos 80 não ir, de certeza, casar com raparigas da aldeia. De facto, a relação é nestes anos, de 20 para 8, com doze casas apenas com 1 e 2 filhos todos rapazes.
2A um outro nível que, genericamente, podemos referir como o dos acidentes e catástrofes, também por ele se introduz o aleatório no quotidiano da aldeia. Já vimos que, se perante determinadas situações há respostas que se traduzem no funcionamento de uma mutualidade comunitária ou, em termos mais gerais, de uma solidariedade necessária, face a outras, a correcção do desastre torna-se improvável ou impossível. Um incêndio que devora as medas do cereal por malhar, a perda das colheitas por intempéries que a todos afecta, a sucessão dos anos em que isto acontece, instalam a fome, esvaziam a aldeia de uma parte da sua população e interferem inevitavelmente e em moldes que não podem ser pré-figurados na organização social, económica e política local.
3Estas considerações indiciam e obrigam a ponderar as qualidades das quantidades que uma aldeia é, em cada momento da sua história, como espaço social restrito que escapa e obriga a corrigir, na sua existência concreta, as leis dos grandes números e da recorrência estatística. Daí falarmos em aleatório e termos de lembrar que é também nele que se fundam comportamentos culturais e representações associadas à dor, ao sofrimento, à morte e, talvez em última instância, ao Destino. É este que, com as progressivas transformações que inserem a aldeia num quadro institucional amplo de acesso à assistência médica e medicamentos, à reforma por velhice ou invalidez, aos subsídios em anos calamitosos e, em geral, à melhoria das condições económicas da vida dos habitantes, ao aumento da circulação destes e dos conhecimentos técnicos, vai sofrendo reacertos nos seus contornos. Mas, mesmo quando julgamos estar fora daqueles momentos marcados pela casualidade e a aldeia se produz e reproduz, como forma social, em condições de «normalidade», é ainda com a marca do aleatório que se processa o seu quotidiano, antes como hoje. É ele que se manifesta e age no acaso das frases ouvidas e comentadas, do imprevisto das situações surgidas, do efémero das atitudes e gestos, dos comportamentos ideossincrásicos de um ou de outro, da imponderabilidade de uma ideia a que, de repente, todos aderem, enfim, na multiplicidade das inter-acções que entrelaçam — na aliança e no conflito — os habitantes, as casas, e estas com a aldeia, dando sentidos e formas à sua tecitura social. O mesmo se poderá dizer das relações que se estabelecem entre a aldeia e o seu exterior, também elas a poder ser condicionadas e/ou determinadas pela imprevisibilidade do alea, como exemplarmente pode ser ilustrado com o «efeito Rio de Onor» detonado pela monografia de Jorge Dias.
4Este campo do aleatório tem sido extremamente difícil de restituir pela análise enquanto categoria delimitada e problematicamente construída, face à necessidade de privilegiar a identificação de estruturas, recorrências normativas e modelos com pertinência interpretativa e capacidade de apreensão do todo social que, nos estudos de comunidade, é o quadro e, muitas vezes, o complexo objecto de observação. Não pretendemos nós próprios proceder aqui à identificação dos sinais e condições de presença deste aleatório numa aldeia como Rio de Onor e à sua organização metodológica, como problema a formular e a questionar, apesar de sentirmos que aqui se pode jogar, para a Antropologia (e demais Ciências Sociais), a possibilidade de complexificar e tornar mais fino um conhecimento que não fique prisioneiro de definições estruturais rígidas que muito ocultam ou se dissolva num casuísmo empírico e impressionista que pouco revela. Apenas desejamos — o que talvez seja já um passo nesse sentido — interrogar o recurso explícito e racionalizado ao aleatório, enquanto princípio de organização e partilha e como modelo de equidade, assim como o lugar que ocupa e as diferenças que apresenta em relação ao princípio da rotatividade antes analisado e aos leilões que no capítulo seguinte abordaremos. Consideraremos dois planos, desiguais na forma como nele se projecta a aldeia enquanto totalidade e quanto ao objectivo dos sorteios.
5Um primeiro plano é demarcado pelos sorteios realizados com o fim de introduzir elementos de correcção ou simplesmente complementares do funcionamento de um outro princípio de partilha. Assim, sorteiam-se as «pontas» da aldeia por onde irá começar uma «roda» e, no caso da determinação dos vizinhos que primeiro vão utilizar o moinho em tempo de maior necessidade e menos água, o sorteio por quatro «pontas» (e não por duas) visa, como vimos, abrir um maior campo de possibilidades de distribuição da sorte por um maior número de vizinhos. Também é por sorteio que se estabelece qual dos oito grupos de rega (as dunhas) em que se encontram agrupadas todas as casas da aldeia proprietárias de parcelas de horta na Faceira, começará a servir-se da água. O processo de realizar o sorteio é sempre idêntico, servindo-se de pequenos pedaços de pau cortados de um ramo de árvore com marcas que os distinguem dois ou quatro: para decidir o local do começo da roda; oito para a escolha da dunha que inicia a rega.
6Mas é no segundo dos planos aqui contemplados que o sorteio se apresenta sob o seu aspecto mais específico e determinante de sistema de partilha e que mais interesse e curiosidade despertou aos autores que, sobretudo desde finais do século xix, escreveram sobre as formas de organização comunitária destas aldeias agro-pastoris. Os sorteios produzem-se, neste caso, na sua autonomia de princípio de organização e partilha e incidem sobre a posse ou a propriedade da terra. Os primeiros referem-se à atribuição temporária de parcelas de terreno de propriedade comunal para cultivos a realizar individualmente pelos vizinhos e deles temos notícia na generalidade dos textos. São eles que se encontram no centro da interpretação que foi sendo dada e das próprias motivações dos autores pelo interesse manifestado pela organização social e económica das aldeias em que uma parte significativa do seu território está excluído da apropriação individual. De facto, é este estatuto jurídico local da terra que, paralelamente à melhor ou pior identificação e caracterização que os autores dele fazem, permite a estes projectar o seu ideário social nas reflexões que produzem em torno de binómios como comunismo/capitalismo, propriedade colectiva/propriedade privada e, em geral, sobre as funções sociais da propriedade. É isto que encontramos, por exemplo, no capítulo que Oliveira Martins dedicou aos sorteios para cultivo temporário (Martins, 1883) e, em muitos dos textos de Joaquim Costa e seus colaboradores (Costa, 1898 e 1902), interessando-nos particularmente a nós os que se referem às aldeias Leonesas e das regiões de Aliste e Sayago pela sua proximidade e semelhança com Rio de Onor2. Na realidade assiste-se ao longo do século xix e parte deste, à realização de sorteios para atribuição temporária de posse de parcelas de terrenos comunais aos vizinhos da aldeia em moldes que se adaptam e respondem ao crescimento da população e às exigências de subsistências. É isto que está contido nas informações dadas por Jorge Dias quanto a Rio de Onor (Dias, 1953: 187-189) e de que reteremos os pontos essenciais. Parte das terras de cultura de propriedade comunal que são sujeitas a sorteios periódicos para cultivos individuais periódicos, num primeiro momento (difícil de referenciar cronologicamente), vai-se definindo em manchas estáveis de cultivo em afolhamento bienal e formadas por parcelas («sortes» ou «latas») definitivamente constituídas em propriedade particular dos vizinhos. As outras terras comunais continuam a ser objecto de sorteios, ainda no presente século, sorteios que decorrem das exigências dos habitantes que o conselho representa e por este decididos face ao aumento do número de bocas a alimentar e às carências mais acentuadas de parte da população (as casas mais fracas). Se parte dos sorteios anteriores, como os primeiros, igualmente se tornam definitivos, ficam, no entanto, de fora e em posse comunal terrenos de inferior qualidade, onde o conselho acaba por permitir «fabricar terras» por iniciativa individual dos vizinhos e sem o procedimento formal dos tradicionais sorteios de parcelas idênticas para todos. Desconhecemos qual a periodicidade dos sorteios em Rio de Onor, ou seja, por quantos anos era atribuída a posse temporária para cultivos das «sortes» enquanto vigorou esta prática que, com carácter mais sistemático, terá vindo até ao primeiro quartel do presente século. No entanto, os indícios colhidos de informação oral, a organização dos afolhamentos e as notáveis semelhanças nos modelos de organização com as aldeias das zonas orientais de Aliste e Sayago levam-nos a supor que as «sortes» tinham uma vigência anual até que, com as sucessivas atribuições definitivas da sua propriedade a título individual, o território se foi estruturando em torno de manchas estáveis de terras dos vizinhos (com a forma longilínea e a contiguidade a denunciar a sua origem) e os sorteios temporários para cultivo se tornaram mais espaçados no tempo, até virem a ocorrer, como Jorge Dias observou, com a irregularidade resultante das conjunturas de crescimento demográfico e das necessidades de pão.
7Os modelos locais que definem a sistemacidade dos sorteios e o número de anos da posse individual, as variações e alterações conjunturais de que são objecto, a passagem da posse temporária a propriedade definitiva, foram observados numa profusão de casos locais — sempre referidos à mesma prática do sorteio de terras comunais para cultivo — e retidos pela literatura etnográfica e histórica de que nos socorremos no presente trabalho. Importa desde logo dizer que estes sorteios que adjudicam aos vizinhos parcelas da propriedade comunal para a produção de cereal têm de ser articulados em cada situação concreta com as outras formas de exploração de que as restantes terras comunais são objecto. Assim, em Rio de Onor, também o conselho as trabalha seja sob a forma de roçadas colectivas (enquanto se fizeram) efectuadas em zonas do monte menos acidentadas e julgadas mais próprias para tal, seja ainda por cultivos colectivos de área mais pequena e em terras de melhor qualidade que tanto podem ser parcelas do património dos Santos como «terras de pão» que integram ainda o património comunal da aldeia. No caso das roçadas o centeio produzido era distribuído em partes iguais por todos os vizinhos que nela participaram, no caso dos outros cultivos mais restritos (que se realizaram até aos anos 60) a produção final revertia para a constituição de um fundo local em géneros adstrito aos Santos e de cuja circulação pelos vizinhos aqueles são os mediadores através dos respectivos mordomos, tal como veremos no capítulo seguinte3.
8É igualmente variada a terminologia própria das designações locais que tomam as parcelas objecto de sorteio e nelas se projecta em alguns casos a aldeia na sua composição e no seu devir: sortes, quinones, vitas, vecindades, labranzas, etc. As periodicidades são muito diversas apesar de nas zonas antes referidas de Leão e Zamora as mais frequentes serem as posses temporárias de um, cinco e oito anos, observando-se ainda, no caso da primeira província a atribuição vitalícia de parcelas de propriedade comunal que voltam a integrá-la com a morte do vizinho que as detinha, revertendo para outros que entretanto se constituem como tal. Neste último caso das vitas de Leão, estamos perante um sistema que acaba por facilitar a atribuição definitiva da propriedade individual, processo que foi particularmente bem descrito por Ruth Behar em relação à aldeia de Santa Maria Del Monte, onde, sob a pressão do crescimento populacional e num contexto de crise de subsistências, as «suertes» do monte comunal atribuídas a título temporário (por vida) em sorteio realizado em 1869, viriam a ser definitivamente constituídas em propriedade particular dos vizinhos num outro sorteio que se efectuou em 1887 (Behar, 1986: 229-237). Estamos aqui perante um facto também ele relativamente bem exemplificado para Portugal, onde durante a segunda metade do século xix (sobretudo finais) e começos do presente século, os terrenos comunais foram alienados num processo em que aparentemente se conjugaram os interesses dos grandes e dos pequenos mas em que estes últimos viriam a ser prejudicados por não terem meios para explorar e rentabilizar as «sortes» que lhes couberam e viriam em geral a parar em mãos dos primeiros.
9Detenhamo-nos, no entanto, nos sorteios temporários para cultivo na perspectiva que mais directamente aqui nos interessa fazer ressaltar, ou seja, como princípio de organização e partilha à escala de uma comunidade local e que portanto pressupõe, na sua efectivação, a definição de quem tem «direito a sorte». Isto permite-nos abrir um ângulo de aproximação à aldeia nos modos como se constitui e representa enquanto totalidade formada de partes, cujo estatuto de igualdade de direitos o sorteio reafirma. Fá-lo-emos recorrendo, primeiramente, a três exemplos em contextos regionais diversos que, pelas diferenças formais que apresentam, melhor nos permitem colocar as questões que mais nos interessam. O primeiro, referese à Granja de Segura, na Beira Baixa, cuja forma de exploração foi tornada conhecida pelos textos que Orlando Ribeiro (1943) dedicou a esta província e que apresenta grande semelhança com a herdade do Soudo na aldeia limítrofe da Zebreira (Freitas, 1946) sobre a qual também o mesmo autor escreveu. A ambas se refere longamente Albert Silbert no capítulo que dedica aos sorteios periódicos de terra4. Servimo-nos aqui da descrição feita pelo autor da Monografia de Segura (1949) pelo tonus familiar de um conhecimento local e directo daquele sorteio:
«Está perfeitamente delimitada, abrangendo uma área aproximada de 350 hectares, com terreno aproveitável para nele se poderem semear cerca de 45 moios de trigo. Fica situada no extremo sudoeste do termo de Segura (...) A granja continuou a pertencer à Ordem Militar de Cristo até 30 de Maio de 1834. Com D. Pedro IV, e por decreto daquela data, foram extintas, no Reino de Portugal, e seus domínios, todas as Comendas, e os respectivos bens incorporados nos próprios da fazenda nacional. A propriedade da Granja, que não foi incorporada, continuou a ser usufruída em comum pelos lavradores da freguesia de Segura que possuíssem uma junta para lavrar de acordo com uma provisão de sua Majestade a Rainha D. Maria II (...) Esta importante provisão que proíbe a venda de qualquer parcela de terreno, concedia aos lavradores e moradores da freguesia a garantia de agricultarem a propriedade de Granja de quatro a quatro anos, a partir do dia 1 de Março, e a fruição dos pastos por todos os moradores, por esta ordem: os pastos pertenciam à Câmara de Idanha desde o dia de S. Miguel (29 de Setembro) até 1 de Março do ano seguinte. Dessa data até ao dia de S. Miguel pertenciam ao povo. Segundo a mesma provisão, a única corporação que tinha ingerência na propriedade era a Junta de Paróquia que, de acordo com os lavradores, nomeava anualmente uma Comissão de Lavradores para proceder ao sorteio da terra. Se havia sortes vagas, eram estas que se sorteavam. Em caso contrário tiravam terra aos lavradores que julgassem com sorte maior, constituindo novos sorteios, cujos quinhões eram entregues a outros lavradores. Inicialmente havia, portanto, sortes de diferentes áreas, proporcionais à lavoura de cada um. Em 1889 estavam inscritos noventa e três (93) lavradores. Com o decorrer dos tempos alteraram-se estas disposições autorizadas superiormente. Nos primórdios da implantação da República, uma comissão (...) dirigiu uma petição ao Governo para que a Granja fosse agricultada de dois em dois anos ou de três em três. A petição foi deferida e actualmente as sementeiras são ali feitas de dois em dois anos. A Câmara de Idanha-a-Nova vendeu os direitos que tinha sobre os pastos ao Reverendo Padre Manuel António Torres, de Segura, direitos que, por sua morte, couberam aos cinco herdeiros. Um destes vendeu a quinta parte dos pastos aos lavradores de Segura, pastos que, a partir da data dessa compra, começaram a ser fruídos pelo povo, durante todo o ano. A cultura do terreno passou a ser sorteada, desde Fevereiro de 1911, em partes iguais, por todos os «lavradores», tendo esta designação os moradores de Segura que lavrassem no alqueive anterior com junta ou parelha sua. O sorteio passou a ser feito anualmente, no dia 8 de Setembro, por uma comissão de lavradores nomeada de dois em dois anos pelos próprios lavradores, sem a intervenção da Junta de Freguesia, ao contrário do que se fazia antigamente. O terreno foi dividido em cinco lombões (quinhões): Tapadinha, Freixinho, S. Pedro, Vinagre e Curral do Roque. Cada Lombão, dividido em sortes, é atribuído a um certo número de lavradores, que o sorteia entre si. (...) O número de lavradores que entraram no sorteio em 1948 foi de setenta» (Andrade, 1949: 249-252).
10Neste exemplo deparamos com uma situação complexa em que se articulam, em torno da propriedade em questão, instituições que são sujeitos de direitos (e a diversa origem destes), diversidades de recursos, modos de fruição e variações no formalismo a que obedecem. Os pastos pertencem, parte do ano, à Câmara e, outra parte, aos moradores (aparentemente todos); quando aquela os vende a um particular uma parte acaba por voltar (por compra) à posse colectiva (aparentemente só dos lavradores); estes vão conseguindo a intensificação da exploração da propriedade por sorteios cada vez menos espaçados até que se tornam anuais. Como aspecto principal a reter está o facto de os usufrutuários ou partes com direito às sortes serem exclusivamente os lavradores (possuidores de uma junta de animais de trabalho), encontrando-se fora do acesso àquele recurso os restantes vizinhos (no sentido amplo da expressão) que provavelmente terão sido sempre em número superior. Já o segundo exemplo aponta para uma situação diferente, pois não só os terrenos sorteados são pertença comunal da aldeia (única entidade de referência para eles, na sua posse e na sua gestão), como as «sortes» são atribuídas à totalidade dos vizinhos que a compõem. Julgamos não ter sido referido em qualquer texto até à publicação do artigo onde este sorteio anual é descrito5. A região onde se realiza é agora o norte da Beira Alta, como a anterior nas proximidades da fronteira.
«A sobrevivência mais perfeita de repartição de baldios que conheço na Beira, faz-se na Barreira, aldeia do concelho de Meda, distrito da Guarda. Esta povoação situa-se a alguns quilómetros do rio Coa, numa área cerealífera, onde também se pratica a vinicultura, a oliveira e a figueira. (...) A forte coesão dos barreirenses impediu, por volta de 1935, a expropriação dos baldios. (...) Os terrenos comunitários da Barreira situam-se numa fértil mesopotamia, limitada pelo rio Massueime e pela Ribeira de Marialva. O rio Massueime é um afluente do Coa. Os baldios estendem-se actualmente, por uma faixa de 10 km por 3,5 km. Outrora foi mais vasta, pois, ainda em 1935, tinha mais de 9 km2, que perdeu quando a Gateira deixou de ser anexa da Barreira. Até essa data, os da Gateira, continuaram a tradição da arrematação das sortes, mas naquele ano em que o Governo planeara extinguir os baldios, a gente da Gateira decidiu dividir o terreno pelos fogos da povoação, acabando assim com a tradição comunitária. (...) Mas Barreira manteve até agora o sistema tradicional nos 35 km2 que lhe restaram. (...) Esse terreno está dividido em dois lotes ou folhas que são utilizados conforme o ano, par ou ímpar. Essas folhas conhecem-se por Carrasqueiro e por Cardal. Geralmente o baldio é designado por Carrasqueiro. As folhas servem alternadamente a agricultura e o pastoreio o que significa que o gado ocupa a folha livre. As culturas praticadas são as cerealíferas (centeio e trigo) e também o feijão. A arrematação dos lotes faz-se anualmente no dia 25 de Novembro, dia de Santa Catarina, padroeira da Barreira. Os nomes dos lotes, escritos em papéis, são metidos num púcaro novo de barro, que só serve para este efeito. A divisão é anual e de acordo com o número de fogos. Por isso diz o ditado — Se casas na Barreira tens sorte... O usufruto das sortes é gratuito, contrariamente ao que acontece em outros locais, em que se paga uma percentagem pela ocupação. Aqui, as sortes normais não são oneradas com qualquer encargo. A folha da Carrasqueira está dividida em 54 sortes que são arrematadas em anos ímpares. Cada uma destas subdivide-se em dois ou três lotes, ou quinhões, que são distribuídos por dois fogos, ou cabeças de casal. Entre estes é que se faz a divisão dos quinhões, pois o número das sortes é fixo, tendo em cada uma delas nome e identificação precisas. Os quinhões podem ser cultivados em comum pelos casais, ou separadamente se optarem pela divisão. Nos anos pares faz-se a arrematação das sortes do Cardai, em número de 29. Além destas sortes, cujo usufruto é gratuito, há outras sortes especiais: umas também gratuitas; outras arrematadas. São gratuitas as meias sortes das viúvas. Há aqui uma discriminação quanto aos viúvos, cujas sortes contam como se tratasse de cabeça de casal. (...) Há sortes especiais destinadas ao pastoreio, que são arrematadas pelos pastores. (...) Há sortes especiais que são arrematadas e cujo rendimento constitui bens da Junta, pagáveis em alqueires de cereais. Não se arrematam sortes a quem não residir na Barreira, isto é, a quem não participar do estatuto de vizinho. (...) As sortes, que vão à arrematação, são sempre as mesmas. Caracterizam-se por serem de mais fácil amanho, o que as torna mais cobiçadas. (...) As meias sortes das viúvas são onze, ficando-lhe próxima a meia-sorte da mulher, que é arrematada pela Junta. Nos anos pares, no Cardai, arrematam para a Junta, a sorte do Moinho e a do Cabeço das Viúvas. Esta última era oferecida pela Junta à Igreja. (...) Contudo, a sorte do Cabeço das Viúvas deixou de ser arrematada para a Igreja quando, em certa ocasião, um pároco, em surdina tentou junto das Finanças transaccionar esta sorte em propriedade difinitiva e exclusiva da Igreja. Nunca mais a sorte foi arrematada com essa intenção, embora a Junta continue a dar à Igreja, como dávida voluntária, a importância correspondente à arrematação. A utilização anual da sorte, não dá o direito de ocupação definitiva. Por isso se faz ciclicamente o seu sorteio. Mas verifica-se aqui uma particularidade curiosa. Quem plantar árvores no terreno que lhe for sorteado, fica com o direito vitalício da colheita dos frutos e da transmissão hereditária» (Rodrigues, 1980: 40-43).
11Refere o autor que esta prática de sorteios anuais das parcelas de cultivo pelos vizinhos foi perturbada com a emigração dos anos 60, sem especificar em que moldes. O que se torna evidente é que, diferentemente do exemplo anterior, aqui o terreno sorteado e o sorteio é, duplamente, um assunto da aldeia. É esta que detém a posse e uso em regime comunal daquele terreno cuja gestão cobre vários objectivos: a produção de géneros de subsistência para os vizinhos e a realização de fundos para cobrir encargos comunais com a arrematação de algumas das «sortes». Por outro lado, é a totalidade das casas que beneficia destas, salvaguardando-se mesmo as diferenças entre elas como o mostram as «sortes das viúvas». Este património e assunto da aldeia foi protegido não só no contexto da apropriação de baldios pelo Estado, como o é, em situações pontuais, face a outras ameaças de apropriação indevida de que é ilustração a tentativa frustrada de um pároco vincular à Igreja uma das sortes. Finalmente este exemplo da Meda é, também ele, uma ilustração da diversidade de respostas perante intervenções exteriores do Estado, que tanto podem levar a uma afirmação da coesão dos vizinhos da aldeia e à intensificação das práticas de fruição comunal, como tornar-se o quadro de uma alienação de parte do património comunal pela sua divisão em sortes atribuídas em plena propriedade aos vizinhos. De qualquer modo, manter a prática dos sorteios periódicos (como na Barreira) ou abandoná-la por meio de um último e definitivo sorteio que torna «as sortes» em propriedade particular (como na Gateira), é sempre uma decisão que se produz no quadro estritamente aldeão por consensos entre os vizinhos. É esta lógica, determinada pelo todo que é a comunidade local, que pode ser melhor percebida no terceiro exemplo que propomos para reflexão. Refere-se ele a Bermillo de Sayago (e outras aldeias próximas), uma das zonas onde os sorteios periódicos se mantiveram até mais tarde na Península, contígua ao ângulo nordeste da província de Trás-os-Montes. A descrição é da autoria de José Maria Arguedas no seu livro a muitos títulos pioneiro no estudo das formas de organização comunitária:
«Uma vecindad, é a parcela de terra comunal a que tem direito qualquer homem casado com residência na aldeia. Em Bermillo a vecindad é constituída por duas parcelas: a “entrega” e a “portilla”. Por tradição, ambas as parcelas se localizam quase sempre muito longe uma da outra; estão em “lienzos” separados (...) A distribuição das vecindades é feita em sessão pública, no Ayuntamiento, durante o mês de Março. (...) As terras comunais são dadas por um ano, não existe nenhuma possibilidade de que no ano seguinte o lavrador seja beneficiado com o mesmo lote. (...) Em San Vitero (Aliste) as terras são concedidas por seis anos e o lavrador trabalha-as quase como às próprias, aduba-as e protegeas. Em Bermillo a certeza de que as vencidades são dadas só por um ano criou uma habitual indiferença e até um certo menosprezo pelas terras comunais. Ninguém as aduba ou protege. (...) Os repartidores fixam a área dos lotes segundo a qualidade da terra. Há terras de l.a, 2.a, 3.a, 4.a e mesmo 5.a classe, apesar das duas últimas serem raras. (...) As terras comunais estão divididas em duas folhas, A de Cima e a A de Baixo. (...) A metade não semeada denomina-se a folha seca e a que se semeia chama-se simplesmente a Folha ou o Pão. Todas as terras comunais estão divididas em lienzos. (...) Os 47 lienzos da Folha tinham sido divididos para 1958 em 255 vecindades, das quais 11 se deixaram em branco e 3 foram adjudicadas por direito ao dono dos “touros do povo”. As 11 vecindades em branco servem para adjudicar a novos vizinhos que adquiram o direito no decurso do ano e para os casos de omissões. Povoavam, pois, a vila neste ano, 241 vizinhos (...). Só se excluem os transeuntes e os habitantes eventuais. São considerados como pessoas com residência eventual os guarda-civis e os jornaleiros contratados. (...) As terras são distribuídas entre todos os chefes de família estabelecidos no povo, com a suposição de que todos são lavradores. Teoricamente considera-se que é assim, e deve-o ter sido em Bermillo noutros tempos, como acontece na povoação de La Muga e demais aldeias de Sayago. (...) Os mestres de escola, que em Bermillo e por todo Sayago pertencem à classe dos “senhoritos”, “têm lavoura” em La Muga e realizam eles mesmos alguns dos trabalhos do campo, aqueles que a sua ocupação profissional lhes permite. Mas em Bermillo havia, em 1958, só 87 lavradores e as vincidades eram 241. (...) Entende-se que se trata de 87 chefes de família e não do número total de lavradores, que são mais, pois em Bermillo há um maior número de solteiros que de casados, entre os homens de 30 ou mais anos. Estes 87 lavradores usufruem as 241 vincidades. Os “senhoritos” (...) entregam as suas vincidades aos lavradores mediante acordos de três tipos: arrendam-nas, e paga-se por elas de 150 a 250 pesetas anuais; dão-nas “a meias”; trocam-nas por produtos (a dona da casa de pasto entrega a sua em troca de dois carregos de giesta) e, finalmente, alguns dos senhoritos oferecem-nas. Deste modo, torna-se de certa forma fácil conseguir estas terras, que como já dissemos, são de rendimento paupérrimo. (...) No entanto, por meio de inquérito, podemos comprovar que, dos 87 lavradores, 60 deles não podiam subsistir sem as terras comunais» (Arguedas, 1968: 34-38).
12Esta prática dos sorteios em Bermillo é particularmente bem conhecida (assim como outros traços de organização económica e social das suas aldeias) desde os escritos de Joaquin Costa e seus colaboradores na viragem do século, até ao importante estudo do geógrafo Cabo Alonso (1956), muito próximo no tempo do trabalho de campo realizado por Arguedas6. A descrição transcrita dá conta das principais informações de contextualização da prática dos sorteios periódicos de terrenos de propriedade comunal e das lógicas sociais que explicam a sua permanência e interferem no seu abandono. Retomaremos os pontos que julgamos essenciais reter do exemplo que transcrevemos (tendo presente o conteúdo da monografia deste autor). Em Bermillo o conjunto dos vizinhos (todos com direito às vecindades) encontra-se dividido em dois grandes grupos: os «lavradores» e os «senhoritos». Estes últimos, segundo o autor, comportam-se como uma casta separada dos primeiros, com escassas relações de frequentação. São eles que ocupam os lugares formais de poder, tendo adquirido este estatuto de importância e de grupo separado no interior da aldeia, após a guerra civil de Espanha. Nenhum dos dois grupos é homogéneo e o autor foi particularmente atento às diferenças de riqueza (e de carências e dificuldades) entre os lavradores (onde há ricos e pobres). Estes acabam por beneficiar do facto dos senhoritos não cultivarem as suas vecindades; e, facto mais relevante, sempre se opuseram em conjunto, a que as terras de cultivo comunais, sujeitas a sorteio periódico, fossem alienadas, ou seja, divididas por todos os vizinhos, através de um sorteio definitivo. Esta alienação suporia, na perspectiva dos lavradores, uma atribuição de propriedade àqueles que não trabalham a terra (os senhoritos) e diminuiria afinal a área que os primeiros acabam por dispor, dado que os segundos não cultivam as parcelas que anualmente lhes cabem. É contrastante a situação na aldeia de La Muga, onde praticamente a totalidade dos vizinhos trabalha a terra, pois a diversidade das condições económicas destes — coexistindo, como na primeira aldeia, ricos e pobres — é uma diferença entre iguais. Os vizinhos de La Muga sem terem que se opor a um grupo socialmente distinto no interior da aldeia, e sem terem, portanto, que preservar perante este, a permanência dos terrenos comunais para cultivo, consubstanciam a própria aldeia como totalidade constituída por partes com idêntico modo de vida, mas cujas diferenças de riqueza e conflitos entre elas vieram a conduzir à alienação (num último e definitivo sorteio ocorrido anos antes de Arguedas lá ter chegado) da propriedade comunal.
13Tomadas em conjunto, as situações contempladas nos três exemplos apresentados deixam perceber o que há de comum e de contrastante nesta mesma prática de sorteios periódicos. Em Segura (tal como na Zebreira) dizem estes respeito exclusivamente ao grupo dos lavradores, sem que a aldeia, por si mesma, (e na totalidade dos vizinhos que a formam), nos surja na qualidade de sujeito activo de direitos em relação à gestão da propriedade objecto do sorteio e na repartição dos recursos usufruídos. Na Barreira (Meda) já nos encontramos perante o universo social definido pela aldeia enquanto referência polar na posse e fruição dos recursos comunais e onde as unidades de conta que a estes têm acesso são a generalidade dos vizinhos independentemente da dimensão e das condições económicas das suas unidades de exploração. É evidente o paralelismo com La Muga de Sayago onde, como acontecera na Gateira (também na Meda), se viria a optar pela alienação também ela referida (como os sorteios periódicos) à totalidade dos vizinhos. Em Bermillo, como vimos, é igualmente a aldeia o âmbito de pertinência dos sorteios — a própria designação das sortes é reveladora: «vizinhanças» — e o facto de existirem dois grupos que socialmente se opõem acaba por ser um factor que, pelas contabilidades sociais dos lavradores (os únicos que trabalham as «vecindades»), funciona como travão à alienação da terra comunal.
14Também em Rio de Onor os sorteios são determinados por uma lógica comunal que respeita à aldeia no conjunto dos seus vizinhos. São estes os destinatários e os que decidem sobre a oportunidade de os realizar e, pelo sorteio, a aldeia permanentemente se reafirma (e precisa) na sua composição, ou seja, no número de unidades de conta (aqueles que têm «direito a sorte») que a constituem. Apesar da homogeneidade destas quanto à sua ocupação como pastores e agricultores as diferenças entre elas obrigam, no entanto, a ponderar sobre o grau de efectiva utilização e fruição das sortes. Por um lado, os sorteios temporários para cultivo não devem ser separados, como já dissemos, das outras operações agrícolas à escala comunal, como foram as roçadas e outros cultivos colectivos realizados pelo conselho de que saem particularmente beneficiadas as casas com menos posses (sobretudo em animais e braços de trabalho). Mas, por outro lado, o cultivo das sortes pelos vizinhos que se encontram nestas últimas condições terá igualmente sido possível, pela ajuda de todos os outros, tal como ocorreu em Bermillo de Sayago, com os conselhos realizados ao domingo para efectuar o trabalho nas labranzas daqueles que não dispunham de animais como tal, conselhos esses que viriam a ser proibidos pelo pároco no final dos anos 307.
15Tendo deixado de se efectuar, em Rio de Onor, sorteios cíclicos ou eventuais para atribuição da posse temporária de parcelas para cultivo de centeio, resta-nos ver aqueles que se realizam para adjudicação definitiva da propriedade das «sortes» a cada um dos vizinhos da aldeia. Os casos que conseguimos referenciar para os últimos 60 anos, cobrem a generalidade das situações que motivam estes sorteios que, desde logo, importa distinguir dos anteriores. Mais do que uma simples e recorrente reafirmação e redefinição da aldeia (quando os sorteios periódicos se faziam com carácter sistemático) como universo de partes com iguais direitos, trata-se agora de uma verdadeira recontagem dos vizinhos para a qual nem sequer é pertinente saber se, no caso dos mais carenciados, irão usufruir (e em que condições) das «suas sortes». Além disso, o sorteio definitivo é, por si mesmo, um evento de particular significado da vida na aldeia, tornando-se em marco cronológico da sua história, pois trata-se de uma deslocação de parte do seu património comunal para a esfera da propriedade particular dos vizinhos. Daí terem estes datado com relativa precisão as alienações por sorteio que de seguida descrevemos.
16O primeiro, (de entre os casos recolhidos) efectuou-se aquando da construção da escola velha, cerca de 1928/30, trabalho efectuado com a participação de todos os vizinhos da altura, de que resultou o edifício de maiores dimensões da aldeia onde a escola funcionou até aos anos 60, por cedência desta ao Estado8. As despesas então feitas foram cobertas com o dinheiro que foi pago pelos vizinhos a quem couberam as melhores «sortes» (que por isso se encontravam oneradas), tratando-se pois, de um sorteio em parcelas desiguais. Foram sorteados dois pedaços de propriedade comunal, um no lugar dito Bouça Velha em frente ao moinho, onde existia um souto de castanheiros já velhos e de pouca produção que o povo decidiu cortar; outro na Malhada, tratando-se aqui de uma lameira (um pouco abaixo do local onde foi construída pelo Estado a nova escola primária), onde todos os vizinhos de então passaram a dispor de «uma sorte» de lameiro. O informante que nos descreveu este sorteio com que se visou realizar dinheiro para uma despesa comunal não deixou de lembrar que o mordomo da altura (ainda vivo) teria roubado com os gastos efectuados em pólvora para rebentamento da pedreira, tendo apresentado a conta de 7000$00 quando o pacote de pólvora custaria 6 ou 7$00. Este procedimento classificatório no contexto da narração daquela alienação por sorteio é indissociável da importância e alcance social de similar acontecimento.
17No começo dos anos 40 a eira comunal da aldeia tornara-se pequena para receber o «pão» de todos os vizinhos. Estes haviam crescido em número, assim como começava a aumentar a produção de centeio com as primeiras roçadas individuais permitidas pelo conselho e livremente abertas no monte baldio. Procedeu-se então ao arranjo de um outro espaço para a eira numa encosta pouco declivosa próximo do primeiro local, inovação que trouxe consigo dois sorteios com objectivos diferentes. O novo terreno para as eiras foi sorteado em parcelas para determinar a localização dos «paus» que cada vizinho aí possui para o seu medeiro de palha (depois do cereal malhado)9; foi, além disso, toda a sua extensão dividida em sete partes (ou sete «eiras») ficando responsável por cada uma os vizinhos respectivos, distribuindo-se assim o trabalho necessário para o empedramento de todo o piso da eira. A eira antiga foi, por sua vez, objecto de um outro sorteio, depois de dividida em «sortes», sendo atribuída uma a cada vizinho. É aí (no sítio que mantém a designação Eira) que hoje existem cerca de 40 parcelas de propriedade privada utilizadas como lameiro e/ou culturas de regadio.
18Nos anos 40, fizeram-se várias divisões por sorteio em terreno de monte, no contexto muitas vezes referido ao longo deste trabalho da presença e da intervenção dos Serviços Florestais na região e, por outro lado, do crescimento do número de fogos e de solicitação de terra para aumento da produção de centeio. Desde o começo da década que o conselho permitia a realização de roçadas individuais que os vizinhos efectuavam por si próprios com a ajuda dos membros do seu grupo doméstico ou em associação entre eles; os sorteios que se vieram a fazer, complementam este processo de resposta simultânea à ameaça de um perigo vindo do exterior e à pressão interna que, se por um lado era generalizada às necessidades de pão de todas as casas, por outro era particularmente acentuada por parte dos vizinhos mais carenciados. As terras «partidas», no entanto, nem sempre despertam, pela sua natureza de terreno de monte, o interesse que terras de melhor qualidade despertariam. Assim, cerca de 1946/47, «partiu-se» a Lomba Rasa onde foi atribuída uma sorte a cada vizinho, mas ninguém viria a lavrar a sua parte, a «terra» que lhe coube. Por esta ausência de apropriação real daquelas sortes, o mesmo sítio viria de novo a ser sorteado por todos os vizinhos em 1953. Também foi sorteada, cerca de 1950 parte do Retigirão para «fazer terras», sendo a cada vizinho atribuído o seu pedaço.
19Quando, em 1948/49 se fez o novo cemitério (com a construção de um muro de pedra circundante e um portão de entrada em ferro), decidiu o conselho «partir» um pedaço relativamente pequeno do Couto da Roçada Velha, próximo da Pedra dos Bufos. Desconhecemos se o sorteio incidiu sobre sortes desiguais para, com a taxa imposta sobre as melhores, cobrir despesas então feitas10, mas o importante a ressaltar nesta alienação é a natureza da propriedade comunal em causa. Ela revela como o registo jurídico-formal de que foram objecto os Coutos aquando da organização das matrizes prediais de 1900 — recorde-se que ficaram então, por sortes fictícias, na titularidade individual de todos e cada um dos vizinhos — não retirou estes da posse e uso comunais, permanecendo, na prática, como património da aldeia; a tal ponto que uma parte deles (se bem que ínfima) pôde ser objecto de sorteio para adjudicação em propriedade particular aos vizinhos. O mesmo aconteceria uma década mais tarde com um novo sorteio realizado no contexto mais à frente descrito.
20Em 1957 procedia-se na aldeia à instalação do telefone público para a qual houve gastos de cerca de 1500$00 a custear pelo povo. Um dos mordomos do conselho de então lembrou e propôs que se «partissem» uns bocados de lameiro à beira do rio, na margem direita depois do moinho, mais a jusante, num sítio chamado Logueirona. As «sortes» melhores (pelo tamanho e/ou qualidade) estavam oneradas com determinado valor em dinheiro a ser pago pelos vizinhos a quem viessem a caber. A totalidade destes valores impostos às melhores «sortes» cobria a soma das despesas que se fizeram. Foi atribuída uma «sorte» a cada vizinho e estes aparecem identificados numa página do livro do conselho com a data de 5 de Maio de 1957: «Relação dos vizinhos que exestem na partilha da borda do rio» (Fig. 13); são ao todo 3411. Numa outra anotação da mesma altura especificaram os mordomos: «no mesmo dia do corrente feseram-se contas, para receber o dinheiro, do que o povo bendeu para assuntos do telefone»; são, de seguida, referidos 15 vizinhos, a que correspondem quantias variadas (das «sortes» oneradas) que somam 1782$00. O homem que nos descreveu este sorteio e o contexto que o motivou (e que na altura era um dos mais novos membros do conselho) comentava com desaprovação que aquela alienação de uma parcela de lameiro comunal fora desnecessária pois teria bastado para pagar a despesa feita, ter pedido o contributo de 50 escudos a cada vizinho12. O terreno que então foi dividido e sorteado, apesar de relativamente pouco cuidado por não ser objecto da intervenção continuada e atenta do conselho como a que envolve os coutos, por ter aproveitamento de lameiro situava-se no centro das atenções dos vizinhos, em particular daqueles que em menor número os possuíam (entre os quais se encontrava o mordomo que fez a proposta). Por isso a resolução final de «partir» e as justificações então ouvidas (segundo o nosso informante) sobre a pouca valia daquelas bordas do rio pelo relativo abandono em que se encontravam, justificação que terá sido utilizada, sobretudo, pelos vizinhos mais carenciados de lameiros e que, em termos mais genéricos, ajudava a legitimar o sorteio.
21Posteriormente à passagem na aldeia da equipa de jovens arquitectos que aí estagiaram no ano de 1963, servindo de mediadores para obras diversas de beneficiação na aldeia, vieram a ser instalados fontanários e calcetadas as ruas da povoação. A localização daqueles foi decidida em conselho, procurando que ficassem distribuídos de modo a servirem todos os vizinhos sem esforços acrescidos de uns ou outros (cinco de cada lado da aldeia); foram igualmente construídos dois bebedouros para as vacas cujo local também foi determinado pelo conselho (um de cada lado da aldeia). A sua instalação obrigou à construção de uma «mãe de água» elevada sobre a encosta a poente e a respectiva instalação das tubagens. O diário de campo que acompanha o relatório de um dos arquitectos (Fernandes, 1963) dá conta dos múltiplos passos dados nos contactos com entidades exteriores, assim como das discussões locais sobre a escolha dos percursos a calcetar, a diversidade das tarefas a empreender e a própria organização do trabalho. Este veio a realizar-se durante os meses de Maio a Julho de 1967 com a presença de pessoal especializado da câmara e por esta gratuitamente fornecido para o calcetamento das ruas e com a presença diária de uma pessoa de cada casa, em simultâneo ou por turnos, consoante as exigências das operações a realizar e do próprio momento crítico do calendário em que estas vieram a ser feitas. Com a conclusão dos trabalhos, o conselho decidiu «partir» o Couto das Calçadas, nome que toma na margem direita o Couto de Valferdigues, o primeiro a jusante da aldeia. Procedeu-se à divisão deste em «sortes», sortearam-se estas pelos vizinhos e já alguns haviam colocado marcos nas que lhe tinham cabido em sorte, quando as discussões e conflitos originados por esta partilha, levam à sua suspensão, ficando sem efeito. O pomo da discórdia esteve nos protestos daqueles a quem o conselho recusara «dar sorte» por não haverem trabalhado. Os vizinhos cujo grupo doméstico não prestou a sua colaboração nos trabalhos comunais, não se encontram todos nas mesmas circunstâncias. Primeiramente estão duas casas com pouca gente, das quais uma é um casal com os filhos ausentes, em que o marido é, na altura, o Presidente da Junta de Freguesia. A estes, o conselho recusa-se a incluí-los na partilha, pois estando presentes na aldeia, não participaram, como todos os outros, nas tarefas referidas13. As outras casas que não deram trabalho, eram aquelas em que os maridos se encontravam ausentes, emigrados na Europa, a quem o conselho decidira atribuir «sorte» na partilha do couto, caso pagassem a totalidade das «jeiras» correspondentes aos dias de trabalho com que deviam ter contribuído. O conflito instala-se, com o conselho a não abdicar da resolução tomada e com os vizinhos excluídos a reivindicar o seu próprio estatuto de vizinho para serem incluídos na divisão: «o couto tem de ser partido por quem toca às Trindades!» Perante o impasse e ajudados pelo aconselhamento de um notável da cidade que já antes havia estado na origem de alguns benefícios colectivos conseguidos pela aldeia, o sorteio foi anulado e os marcos que já haviam sido colocados, retirados. Foi esta a última alienação (frustrada), por divisão em sortes, de uma parcela da comunidade comunal. O facto de ter sido proposta é, em si mesmo, importante, se atendermos ao estatuto jurídico (pelo direito positivo) dos coutos que, como referimos, se encontravam registados (por divisão em sortes fictícias) em nome individual dos vizinhos existentes em 1900, traduzindo, portanto, a sua permanência numa sólida posse comunal. Do mesmo modo que se apresenta com igual importância a própria anulação que se seguiu, num contexto em que o conselho não pôde fazer valer a sua decisão e a sanção sobre os vizinhos faltantes pela sua exclusão.
22Os sorteios acabados de descrever são acontecimentos marcantes na vida da aldeia, tanto pelo seu espaçamento no tempo, como pela alteração que produzem quanto ao estatuto jurídico da terra e ainda, pelo facto de terem sido decididos. Se atendermos aos diferentes contextos referidos e às motivações que parecem estar subjacentes ao sorteio, melhor se pode avaliar da importância social do facto. Deixando de lado aquele que se efectuou para o arranjo da nova eira comunal e que pode também ser explicado por necessidades de organização técnica do trabalho, a maioria dos restantes vem a ser explicada como meio de realizar fundos para despesas comunais, com uma motivação complementar que, segundo os nossos informantes, lhes estaria na origem: uma compensação dada pelo povo a todos os vizinhos pelo esforço despendido ao longo dos trabalhos realizados de interesse comunal. Ficam de fora os sorteios que, na década de 40 e começos de 50, incidiram sobre os terrenos menos férteis do monte no contexto referido do perigo eventual da interferência nos baldios da aldeia por parte dos Serviços Florestais. Percebe-se que só a primeira das explicações causais para a realização do sorteio — a realização de dinheiro por alienação de «sortes» desiguais — tem um valor verdadeiramente explicativo e autónomo. O que de facto acontece é a permanente pressão dos vizinhos no sentido de «partir», operação que para ter lugar, apesar de beneficiar igualmente todos os vizinhos, tem de surgir social e colectivamente legitimada pelas razões que a tornam necessária. Neste sentido, «partir» nunca se torna um acto gratuito pois nele é a aldeia que se produz como sujeito e enquanto forma social e realidade patrimonial com passado, presente e futuro. Têm de ser remetidas para estas categorias temporais, as vigilantes contabilidades sociais que fazem com que, por exemplo, nem sempre seja pacífico o acto de contagem dos vizinhos que participam no sorteio14. Poder-se-á afirmar que estes sorteios são situações exemplares que denunciam um paradoxo ou tensão interna que acompanha o funcionamento de uma organização comunitária. De um lado, pelos motivos já referidos, a decisão de os efectivar pressupõe a unanimidade ou consenso de todos os vizinhos, ou seja, são a expressão máxima das linguagens sociais do grupo que, naquele acto intervém como totalidade de partes, de que, para efeitos do sorteio, foi necessário fazer a contagem. Mas, de outro lado, com a realização do sorteio é mais uma fatia do património comunal que se aliena e mais a porção de espaço (no sentido próprio e figurado) individual que cada casa ganha15.
23Todos os sorteios de que falámos seguiram o formalismo processual já descrito por Jorge Dias:
«Um mordomo arranja tantos pauzinhos, quantos os vizinhos interessados. Depois marca-se à navalha, de 1 até ao número de vizinhos presentes, e mete-os dentro do chapéu. A seguir, cada vizinho vai tirando um pauzito para saber qual é o número, e diz alto: — al miou é... e diz o número que lhe coube em sorte. Cada um fixa o número que tirou.
O mordomo volta a recolher os paus no chapéu, e agita-os durante algum tempo (abanar al tchapéu) para se misturarem bem. Depois diz porque ponta se vai começar o sorteio.
Se estiver alguma criança perto, é ela quem tira agora os pauzitos, caso contrário, será o vizinho mais velho. A pessoa vai tirando os pauzitos um a um, e entrega-os ao mordomo. Este lê os números em voz alta e, por cada número que lê, o vizinho que tinha tirado o mesmo número diz: ié miou, e toma posse do terreno. E assim, por aí fora, até estar tudo distribuído» (Dias, 1953: 168).
24Concluiremos dizendo que, tanto no primeiro plano referido de início — para sortear o lugar de começo de uma roda, por exemplo — como no outro que respeita aos sorteios temporários para cultivo ou definitivos para atribuição de plena propriedade, é sempre o mesmo modelo ideológico que está subjacente a este princípio de partilha. A decisão final e o acerto desta, são remetidos para uma instância que escapa à falibilidade dos homens e que estes não poderão manipular: a sorte. Neste sentido ele tende a ser, a nível da representação, o modelo mais perfeito de equidade, ao mesmo tempo que o seu uso recorrente parece sugerir que aquela dificilmente pode ser conseguida pelos homens por si sós.
Notes de bas de page
1 Há actualmente em Rio de Onor três casas que, por estes factores aleatórios, permanecem inteiras; duas delas são «boas casas» com um património relativamente extenso.
2 Este interesse patenteado pelos autores da viragem do século e as descrições e interpretações feitas dos sorteios periódicos de distribuição de terra para cultivos temporários ocupam a maioria dos textos do corpus antológico organizado por Guidetti e Stahl (1977 a, 177 b e 1979). Vejam-se ainda os livros de matriz evolucionista de Seebohm (1883), Kovalewsky (1890), Laveleye (1901) — autor este a quem Oliveira Martins dedica a 4,a edição do livro que referimos no texto — e Nicolás Tenório (1914). Dos colaboradores de Joaquin Costa é do maior interesse o texto de Lopez Moran (1902) sobre as aldeias de Leão.
3 Alguns destes cultivos realizados pelo conselho em parcelas de terra da propriedade dos Santos, ou noutras que o conselho escolhera, destinaram-se à produção de batata que era distribuída em partes iguais por todos os vizinhos, como veremos no capítulo seguinte.
4 O referido capítulo de Albert Silbert (1978: 335-369), particularmente minucioso na caracterização das situações identificadas de sorteios periódicos e no cuidado interpretativo, deve ser lido em conjunto com as reflexões produzidas por Orlando Ribeiro a pretexto e como comentário ao primeiro texto escrito por aquele autor sobre o problema (Silbert, 1960 e Ribeiro, 1970: 168-178). Se o primeiro chama a atenção para a emergência de um colectivismo tardio incidindo sobre terras de propriedade individual, o segundo, relembra a existência — sem antagonismos com a afirmação anterior — dos colectivismos agrários, de longa tradição e persistência no tempo, nas aldeias há muito fixadas em unidades de povoamento estável e antigo, facto que aponta, em geral, para as diversidades entre o norte interior e o sul (ver também: Ribeiro, 1940, 1963 e 1974; Silbert, 1964 e 1968).
5 Rodrigues (1980); o autor refere esta prática de sorteio periódico no presente, sem qualquer comentário acerca da sua efectiva vigência ou modificações ocorridas no formalismo e na importância local social e economicamente atribuída ao sorteio. Tanto este como o exemplo anterior se situam nas proximidades da fronteira luso-espanhola, facto que nos recorda a observação feita por Joaquin Costa sobre a maior frequência dos sorteios periódicos nas províncias ocidentais lindantes com Portugal. Também A. Silbert estabeleceu comparações entre o colectivismo que descreve para o Alentejo e Beira Baixa e práticas similares da Extremadura espanhola.
6 O artigo de Cabo Alonso (1956) é, quanto a nós, o mais sólido contributo para o conhecimento das formas de estruturação da paisagem e da economia das aldeias regidas por modelos de organização comunitária. A sua importância resulta da qualidade de observação no terreno e da quantificação da informação trabalhada e, ainda, da forma como pôde identificar e interpretar as transformações ocorridas ao longo de cerca de quatro séculos recorrendo aos levantamentos cadastrais realizados em Espanha.
7 O geógrafo Garcia Fernandez (1988) no capítulo «Solidariedade e pobreza aldeã» do seu livro de síntese sobre a sociedade rural nas Astúrias analisa as instituições comunais que eram chamadas a cumprir funções compensatórias de desigualdades económicas (entre as quais está a «sexta-feira» de que já falámos).
8 Com a construção, naqueles mesmos anos 60, da nova escola primária oficial, o edifício antigo ficou desafectado vindo a ser restaurado e adaptado para casa do povo em 1976/77. Estas novas obras tiveram a participação de todos os vizinhos da aldeia, por turnos e em trabalho colectivo mediante a convocação dos conselhos que descrevemos no capítulo 4.
9 Tal como na eira antiga (onde já não havia espaço para responder às necessidades) o terreno destinado para a nova eira foi dividido para o seu calcetamento pelos vizinhos existentes na altura, tendo-se previsto que novos vizinhos que viessem a surgir poderiam colocar os seus «paus» do medeiro na beira do espaço empedrado, o que veio a acontecer com um homem de Guadramil que ali vivia com a sua mulher natural de Rio de Onor e que, pouco tempo depois, se veio a instalar aqui enquanto vizinho. Não tendo participado nos trabalhos de aterro e calcetamento, não deixou de poder dispor de um espaço próprio na eira só que na sua periferia não calcetada.
10 As «sortes» podem ser iguais e, mesmo assim, estarem todas elas oneradas com um determinado quantitativo em dinheiro, por necessidade de reunir verbas para despesas comunais ou, simplesmente, como compensação que a aldeia cobra pela perda de uma parcela do seu património. Neste caso, o sorteio adquire a dimensão de uma venda (mesmo que por valores muito baixos ou mesmo simbólicos) como aconteceu, por exemplo, com a alienação por sorteio em «sortes» iguais de um dos coutos de Rihonor de Castilla, aldeia onde o formalismo seguido é o mesmo e são os mesmos os tipos de sorteio. Este que referimos efectuou-se em 1947 e foi decidido pelo concejo de vizinhos «para pagar la parte comunal» do foro que então foi remido.
11 Não nos é possível confirmar com exactidão se estes 34 vizinhos correspondem à totalidade dos que habitam na aldeia ou se uma ou outra casa terá ficado de fora por qualquer motivo que desconhecemos saído das contabilidades sociais que avaliam e fazem a contagem dos que, em determinado momento, têm «direito a sorte». Peias informações recolhidas e referidas à generalidade dos sorteios, a prática usual é a de «dar sorte» a todas as casas da aldeia — aqueles que são vizinhos no sentido mais amplo do termo traduzido pela «roda» de tocar o sino — qualquer que seja a sua situação e a composição do seu grupo doméstico. Por exemplo, ao homem refugiado na aldeia no contexto das movimentações monárquicas do norte da Província entre 1911 e 1912 (o «Tio Trauliteiro») e que aí casara com uma mulher de parcos recursos, o conselho davalhe «sorte» em todas as alienações por sorteio que se realizaram, «sorte» essa que, segundo um nosso informante, ele rapidamente vendia para realizar dinheiro a aplicar no seu pequeno negócio de taberneiro.
12 Do inquérito por nós realizado em 1986 às aldeias do norte do concelho de Bragança uma das mais interessantes constatações que ele nos trouxe prende-se com a instalação e gestão locais do posto público de telefone. A introdução deste meio de comunicação revela inequivocamente as formas de organização comunitária generalizadas a todas essas aldeias. Tanto o modo de realizar as verbas para cobrir as despesas, como a escolha da casa onde instalar o telefone (e a eventual mudança de local), como ainda a compensação a dar ao vizinho que se ocupa dele, são decididos pela assembleia dos vizinhos: o conselho ou povo. Em 22 das 40 aldeias essa compensação (isolada ou acompanhada de outras remunerações) traduz-se na dispensa de participar nas reuniões do conselho. Em Rio de Onor foi acordado cada vizinho dar 1 alqueire de centeio à mulher (viúva) em cuja casa se encontra o aparelho. (Ver Brito/Costa/Oliveira), 1989: 211-215).
13 Não conhecemos a motivação exacta daquela ausência de prestação de trabalho por parte destes dois vizinhos, que podem mesmo ter vindo a ser surpreendidos, quando a decisão de atribuir a todos uma parcela do couto foi posteriormente tomada (não contando eles de início com essa compensação final). Talvez que no caso do Presidente da Junta ele tenha pretendido que as funções que desempenhava lhe dessem lugar em qualquer partilha a efectuar.
14 Atente-se por exemplo, nos juízos que se fazem sobre aqueles que mais benefício tiram ou não das suas sortes, sobre quem mais precisa ou pouco precisa delas, sobre a «sorte» atribuída a um homem idoso sem herdeiros, em contraste com a que cabe a um casal com muitos filhos, etc., etc.
15 Julgamos pertinente relevar uma diferença entre os sorteios cíclicos para a posse e cultivo temporários e os sorteios isolados para a alienação definitiva da propriedade comunal. Com os primeiros, enquanto se mantêm na sua recorrência sistemática, a aldeia reproduz-se com contornos de permanência temporal pela repetição das práticas e sucessão e sobreposição dos ciclos agro-pastoris; a aldeia vive num presente que incorpora em si, em cada momento, passado e devir. Com os segundos, o tempo qualifica-se por esse acontecimento que data a história da aldeia e pelo qual esta se transforma. E quando já não há nada a sortear a aldeia é já outra.
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