Capítulo 5. As rodas: um princípio estrutural e estruturante
p. 193-232
Texte intégral
1Destacam-se em Rio de Onor — como noutras formas sociais de similar estrutura e organização sócio-económica — três planos ou eixos principais e igualmente determinantes da organização social e técnica do trabalho, identificáveis pelo tamanho dos grupos em acção, o formalismo da sua constituição e as relações que os seus membros mantêm entre si, o objecto e a finalidade do trabalho. Distinguem-se e manifestam-se separadamente, do mesmo modo que se combinam e articulam ao longo do ciclo anual das actividades da aldeia, sucedendo-se e/ou sobrepondo-se no tempo; podem, igualmente, intermutar-se e sofrem transformações que participam do quadro mais geral da historicidade local. Por um lado, temos os grandes grupos instituídos ao nível da aldeia: o conselho constituído pela totalidade das casas e reunido para a construção ou reparação de infra-estruturas e equipamentos colectivos ou, até aos anos 40, para roçar e cultivar o monte ou proceder a uma caçada aos coelhos ou ao javali (Dias, 1953: 488-492); ou o conselho, de âmbito mais restrito, que explora os coutos ou outros terrenos comunais como a vinha do Santo. No mesmo plano se encontram as duas quadrilhas que, como grupos de trabalho estáveis e pré-determinados, procedem à debulha do cereal. A totalidade dos habitantes da aldeia pode ainda emergir como colectivo que intervém em situações de crise como o ataque a um incêndio ou a busca de um animal que se perdeu. Num outro plano, que poderíamos dizer oposto, estão os vizinhos à cabeça das suas unidades de exploração individual, com o trabalho a ser distribuído pelos membros do grupo doméstico (e pelo calendário) em combinações múltiplas e flexíveis que dependerão, desde logo, da sua dimensão assim como dos constrangimentos colectivos. São eles que, por acordos diádicos, podem participar de interajudas pontuais que reforçam momentaneamente os seus efectivos e que, em dois momentos importantes do ciclo produtivo anual e do ciclo, mais longo e crítico, da vida dos seus membros, se constituem em grupos mais alargados que reúnem os parentes próximos: a matança do porco e a preparação da boda de um casamento. Deparamos, enfim, num último plano em que os dois anteriores se articulam, com um vasto e diversificado conjunto de actividades que, não só não incidem exclusivamente (ou, mesmo, de todo) sobre os bens de propriedade particular que integram as unidades de exploração individual, como apenas necessitam, para ser efectivadas, de escasso número de pessoas. São actividades que vão desenrolar-se no tempo, por turnos, algumas dia após dia, sem interrupção ao longo dos anos ou só em alguns períodos sazonais, outras com espaços maiores, de ano a ano, outras, ainda, com cadência mais irregular. Raramente exigem mais do que 1 a 2 casas (e 1 a 2 pessoas por casa) em cada intervenção isolada (a sua vez) e com elas se cumprem tarefas de interesse colectivo e/ou usufruem recursos comunais. Trata-se de direitos e deveres que terão de ser equitativamente partilhados pelas unidades de conta que são as casas (o mesmo é dizer os vizinhos) da aldeia. O modelo que configura essa equidade é a roda, termo (e instituição) generalizado a todo o norte trasmontano1 e que corresponde à rolda, ronda ou xírio da Galiza (Lison Tolosana, 1971) à corrida das montanhas de León (Béhar, 1986), ou, mais a leste, à corruda dos Picos de Europa (Lopez Linage, 1978), à adra da Sierra Ministra (Freeman, 1970 e 1987), ao torno ou rueda da vertente norte da Serra de Gredos (Kavanagh, 1988), à salia dos Perinéus (Redclift, 1973) ou, fora do contexto peninsular, ao cher do Vaiais suíço (Niederer, 1965).
2A rotatividade supõe uma sequência ordenada dos agentes ou das coisas sobre que incide a sua acção. Pode ser, em certos casos, a ordem de proximidade das parcelas de terra a regar ou a da distribuição espacial, na eira colectiva, das medas de cereal a debulhar ou, ainda, a ordem de precedência ou antiguidade na posse de determinado estatuto — de casado, por exemplo — a qual, ao contrário das duas primeiras, não parece ter sido seguida em Rio de Onor (nos tempos mais recentes)2 como critério para fazer suceder no tempo intervenções sucessivas e homólogas de diferentes sujeitos que fazem parte de um mesmo conjunto. No entanto, independentemente de poder também ter como suporte critérios de ordenação como os que acabamos de referir, a rotatividade funda o seu funcionamento mais geral e operatório — em Rio de Onor como nos exemplos conhecidos da literatura etnográfica europeia de formas idênticas de organização — na ordem que as casas ocupam na aldeia. Esta apresenta-se como estabelecida «desde sempre», no desenho de um círculo invisível que se fecha a cada volta que se completa e continuamente recomeça, reproduzindo, por uma prática generalizada e recorrente, um espaço circular orientado em determinado sentido e que os habitantes se representam para além do desempenho das funções que as rodas preenchem. Dizem na aldeia: «a roda anda sempre para a direita» e esta orientação — contrária ao movimento dos ponteiros de um relógio — é a mesma que se projecta sobre os limites do termo (quando, mentalmente, se faz o inventário dos marcos divisórios) e também a que seguem os percursos rituais que na aldeia se fazem.
3As propostas de leitura simbólica sobre o sentido preciso do movimento que, num determinado contexto local, está associado a uma sequência ordenada, com base, apenas, na expressão que o designa — «à direita» ou «para a direita» — tendem a não poder ser mais que uma reflexão, de âmbito mais alargado, sobre o uso do termo «direita» e sua classificação e valoração positiva por oposição a «esquerda» e que, com outros pares de opostos como frente/trás ou cima/baixo, parece apresentar-se como projecção do corpo enquanto operador simbólico e instrumento de ordenação e estruturação do espaço físico e social, participando do conjunto das práticas e representações de indivíduos e grupos. Se é certo que o termo «à direita» designa, em todos os casos da literatura etnográfica por nós consultada, a orientação base correcta de percursos e gestos, o facto é que ele pode corresponder a movimentos de sentidos opostos se nos deslocarmos de uma comunidade para outra. Assim, na aldeia basca estudada por Sandra Ott (1980 e 1981 a), coincide com o movimento dos ponteiros de um relógio, como se os habitantes «olhassem em volta, situados no centro do círculo», tal como em Minot, onde esse mesmo movimento é considerado benéfico (Jolas, 1977). Ora essa mesma expressão designa em Rio de Onor e em várias outras aldeias da região3 o movimento oposto, como se, neste caso, para o classificar os habitantes se vissem na situação de o realizar voltados para o centro. Estas observações servem-nos para frisar que não é a expressão «à direita» ou «para a direita», nem a orientação que lhe é dada (Norte-Oeste-Sul-Este, em Rio de Onor) que procuraremos questionar, mas sim o facto de haver uma ordem, estável e pré-estabelecida, indispensável ao funcionamento de um princípio de rotatividade e que cada roda reproduz, modelando a aldeia numa sequência circular de pontos que se equivalem. As casas distribuem-se sem confusão, cada uma ocupa um lugar certo no conjunto e participa, sempre que chega a sua vez, na série de movimentos que se encadeiam e sobrepõem. Podem ser rodas que implicam a totalidade dos vizinhos ou que dizem respeito, tão somente, aos membros do conselho no seu sentido mais restrito, e neste caso, as casas nele representadas sucedem-se na roda como se as outras não existissem (ver Fig. 9). O conjunto das rodas e a sua recorrência repetem e restauram, a cada momento, a ordem circular da aldeia, com efeito estruturante que a constitui em totalidade entretecida de trocas e interdependências, num modelo ideológico de homologia e igualdade das casas — independentemente do facto de algumas rodas darem conta, como veremos, de diferenciações económicas entre elas e permitirem a reprodução dessa diferença. O ponto de início desse continuum de intervenções sucessivas dos vizinhos numa roda é, em geral, estabelecido por sorteio ou, mais raramente, por determinação do conselho. A escolha recairá numa das «pontas» da aldeia e é por uma delas que sempre principia qualquer enumeração dos vizinhos (oral ou escrita em documentos de produção local) como a que se encontra gravada na tala e que fixa a ordem das casas na aldeia e um começo para essa ordenação circular.
4Aquele que, pela primeira vez, descreveu as talas de Rio de Onor, admitiu ver nelas sinais de uma remota origem: «é muito para notar a sua leitura que se faz sempre da direita para a esquerda, como nas línguas orientais, o que lhe dá uma génese arcaica que convém não esquecer» (Alves, 1910: 139). O facto é que esta leitura da direita para a esquerda (que continua hoje a fazer-se em relação à tala para a eleição dos mordomos do conselho, a única ainda em uso) decorre directamente dos constrangimentos técnicos da «escrita» e do tipo de suporte em que é inscrita. A mão que «escreve» — a mão direita — segura a navalha com que faz os entalhes na vara agarrada com a mão esquerda, de encontro ao peito e em posição quase horizontal. Com a ponta do polegar esquerdo, o mordomo vai percorrendo, ao longo da tala, os sucessivos espaços que correspondem às casas, na ordem por que se sucedem na aldeia, para assim poder localizar cada uma delas e fazer os entalhes nos locais devidos. Faz isto começando no primeiro espaço inciso na ponta direita da vara — enquanto os que imediatamente se seguem (à esquerda) se mantêm encobertos pelo polegar e mão que a segura — estabelecendo, mentalmente e em simultâneo, a correspondência entre cada um dos espaços e as casas dos vizinhos representados na tala que, por vezes, vai nomeando em surdina — «Gonçalo, Abel, Sebastião, ... etc.» — até chegar aquele onde quer fazer um entalhe. Assim, este processo de escrita da direita para a esquerda, de maneira a manter visível o que vai sendo gravado na tala, é indissociável de uma leitura, igualmente da direita para a esquerda que, de modo automático, é feita para identificar o local onde inscrever os sinais. E essa orientação da leitura mantém-se mesmo se dissociada da escrita quando, por qualquer motivo, é necessário consultar as informações registadas na tala — por exemplo, para saber quem foi eleito mordomo ou para contar as ovelhas que cada vizinho possui no rebanho colectivo e calcular a parte que lhe cabe no pagamento proporcional ao pastor contratado.
5A tala é um registo gráfico da organização topológica da aldeia no conjunto das unidades físicas e sociais que a constituem e no modelo circular, devidamente orientado, da representação espacial que a apreende. Ela fixa a sequência em que as casas se sucedem e se situam umas em relação a outras e a orientação ou sentido enumerativo dessa ordenação, vectores que determinam, tanto o momento em que cada uma é chamada a intervir nas diferentes rodas que na aldeia são postas a funcionar, como o automatismo e a estabilidade do processo de inventariação ou listagem dos vizinhos para determinado fim. Se, sob o primeiro aspecto do funcionamento das rodas, estas se sucedem e sobrepõem, em movimento contínuo, no desenho repetido de um círculo que parece não ter fim nem princípio, já ao proceder-se a uma enumeração ou listagem das casas esta vai começar, convencionalmente, por uma das duas «pontas» da aldeia: a casa mais a Norte na margem direita do rio, a que vão seguir-se, no sentido Norte-Sul, todas as outras dessa margem ou a casa mais a Sul na margem esquerda e à qual se seguirão, em sentido inverso (Sul-Norte), todas as que se situam nessa mesma margem. É esta a sequência gravada na tala, com o entalhe mais profundo que lhe é feito a meio a assinalar o rio e a separação das duas margens. À primeira secção nela gravada (na extremidade mais grossa) corresponde aquela primeira casa da margem direita, no entanto, a existência deste ponto de partida não traduz qualquer hierarquização do espaço aldeão em que a casa n.° 1 ocuparia, de algum modo, um estatuto superior4, já que não é, necessariamente, sempre o mesmo vizinho que ela representa, mas sim o primeiro que, naquela extremidade da aldeia, faz parte de um determinado conjunto — os que têm vacas, os que têm ovelhas, etc. — e que, de ano para ano, pode variar.
6Tanto as talas como os documentos locais com listagens de vizinhos (frequentes nas páginas do «livro do conselho» ou «dos Santos») estabelecem os pontos convencionais (com apoio na topografia da aldeia) escolhidos como início possível para as rodas. Mas esta fixação por escrito não só não exclui a representação circular do todo que regista como contribui decisivamente para a reprodução do modo de estruturação topológica da aldeia, no sentido das observações de Jack Goody sobre as interacções entre oral e escrito e seus efeitos nos processos de abstracção: «a ordenação implicada em listas escritas parece produzir um efeito de feed-back que age sobre a definição de categorias tornando-as, em certos contextos, mais visíveis» (Goody, 1987: 182).
7Com o que deixamos dito, resulta evidente que este eixo da organização técnica e social de trabalho que é a roda constitui-se em verdadeiro princípio estrutural de organização e partilha, com efeitos de estruturação (espacial, social, ideológica) da própria aldeia como todo. E, simultaneamente, detém propriedades dinâmicas e flexibilidade que vão permitir a sua adaptação a diferenciações internas e a conjunturas de vário tipo. São estas duas vertentes da roda — simplicidade e estabilidade estrutural do modelo que a postula e versatilidade e capacidade adaptativa — que procuramos revelar ao fazer a identificação e caracterização das rodas actualmente a funcionar em Rio de Onor, com a preocupação de dar conta das variações concretas que, nas últimas décadas, sofreram (desaparecimentos, aparecimentos, transformações) e dos processos temporais de que participam. Nesta caracterização agrupamo-las, por facilidade de exposição, de acordo com a esfera de actividades e bens sobre que incidem.
Os coutos e os bovinos
8Vimos já que a exploração dos extensos lameiros comuns vai exigir um conjunto diversificado de intervenções do conselho ao longo do ano. É este que, enquanto grupo de trabalho, vai proceder às operações correntes e cíclicas da limpeza da vegetação nociva e dos detritos acumulados, do arranjo e preparação das presas e agueiras, do corte e carregamento do feno do touro — fora outras que possam ocorrer mais espaçadamente como a construção de uma presa nova, o alargamento da área irrigada ou a plantação de árvores nas bordas do rio, por exemplo. Há, no entanto, outras actividades daquela mesma gestão e usufruto dos coutos que não necessitam para a sua concretização da participação, em simultâneo, de muitos braços e que vão sendo cumpridas, rotativamente, pelos membros do conselho, isolados ou em pequenos grupos, de acordo com o objectivo a atingir e as conveniências de momento. A distribuição do trabalho é coordenada pelos mordomos — que dizem quando deverá ser feito — e a sequência das prestações individuais (ou turnos) dos vizinhos é determinada segundo a roda do couto. Por esta se distribuem entre eles — segundo o modelo da localização e ordenação das suas casas na aldeia — as tarefas de fechar ou abrir a água nos canais de rega e de orientar o seu curso pelos regos mais pequenos que cruzam os lameiros, para o qual apenas um ou dois homens se tornam necessários, de cada vez. Estas mesmas funções cumpriam-se, num passado não muito distante, com um alcance social mais amplo e um mais estrito e sistemático controlo que se traduzia na vigilância diária da totalidade dos lameiros, reforçada durante o Verão com o policiamento nocturno para impedir desvios (roubos) de água (sobretudo nos coutos mais distantes, a jusante), frequentemente atribuídos aos habitantes da aldeia limítrofe da Varge (ver Dias, 1953: 174-5). A roda do couto, mais solta dos constrangimentos de uma autoridade colectiva enfraquecida, não tem hoje aquela regularidade e os seus turnos só funcionam quando julgados absolutamente indispensáveis, pela escassez ou excesso de água nos coutos ou por esta se encontrar mal distribuída pelos lameiros. Os turnos sucedemse, mais ou menos espaçados, numa cadência irregular e, como não há que fazer face a nenhuma sobrecarga ou exigência de trabalho contínuo, é com esta roda que agora se realiza a limpeza do cemitério (corte das ervas e demais vegetação rasteira)5. Pode ainda ser chamada a responder a uma situação não ordinária como a que se desenrolou durante o Verão de 1977 quando uma máquina escavadora facultada por um serviço oficial veio para a aldeia melhorar e abrir caminhos de acesso aos coutos e aí conquistar um pouco de terreno de pastagem, pelo desvio do curso do rio. A indicação dos locais ao motorista, a presença de alguém para qualquer ajuda e o fornecimento das refeições, foram prestados, por turnos diários, na roda do couto que, assim, veio complementar as intervenções (que também houve) do conselho como equipa de trabalho.
9Todas as funções cumpridas hoje pela roda do couto (de entre as quais se contam pequenas reparações que os equipamentos colectivos necessitam como, por exemplo, «picar as pedras» ou mós do moinho) eram preenchidas, junto com outras, pelos homens de roda (Dias, 1953: 150-52, 174, 178 e 217). A eles competia o policiamento (vigilância) da água dos coutos, como referimos, e das vinhas quando iniciado o processo de maturação das uvas, além do desempenho de tarefas fora da aldeia. Neste último caso, o conselho procurava escolher (trocando os turnos) um homem que, pelos seus dotes ou características individuais, melhor respondesse às exigências deste contacto com o exterior — pagar contribuições, consultar alguém, etc. Este relacionamento com o exterior — máximo com a cidade e os múltiplos serviços e instituições nela sediados — foi sendo, progressiva e paulatinamente, assumido pelos representantes formais dos poderes centrais: regedor e Presidente da Junta6.
10Como também já foi referido, para certos trabalhos a fazer nos coutos torna-se necessário utilizar os carros de bois. Estes são fornecidos pelos vizinhos do conselho, segundo a roda dos carretos, para retirar os lixos acumulados após a limpeza feita pelo conselho (2 a 3 carros), para o transporte dos torrões de terra e erva para vedar as presas (1 a 2 carros), das pedras para as reparar (1 ou mais carros) e, ainda, para transportar o feno do touro até ao local onde é guardado. Este último serviço tem exigido a utilização de cinco carros, ou seja, a quantidade de feno necessário para o penso diário que, durante todo o ano, é dado ao touro comunal. Esta roda acompanha a sazonalidade dos trabalhos nos coutos, tem igualmente uma cadência irregular e, em anos em que não surjam tarefas extraordinárias a realizar (a construção de uma presa nova, por exemplo), requererá a participação de 9 a 10 vizinhos com os seus carros e animais de tracção. É, sem qualquer dúvida, o serviço por turnos mais valorado, pois coincide com o tempo de maior intensidade de trabalho (em particular aquando do transporte do feno do touro) em que as vacas necessitam ser poupadas a esforços acrescidos e, por isso, é também considerada importante a regalia que os mordomos têm — a única — de não «dar carretos». São estes que coordenam o andamento da roda de modo a não haver dúvidas quanto à ordem em que cada um é chamado a cumprir o seu turno, facto que, no entanto, tende a encontrar na natureza e valor do serviço prestado e na presença de todos os vizinhos (quando é feito) os meios para o seu autocontrolo e processamento sem atropelos.
11Importa frisar que a prestação de serviços com o carro de bois foi, até tempos recentes, em Rio de Onor — como noutras aldeias em que se desenvolveram as mesmas formas de organização comunitária e de interdependência vicinal em torno da gestão do património colectivo — uma exigência muito mais premente e frequente, já que se tratava da única tecnologia disponível para fazer face a determinadas tarefas e empreendimentos. Os carretos foram necessários para a construção de infra-estruturas e equipamentos colectivos de maior vulto como a ponte que une as duas margens do rio (nos começos do século), a escola (cerca de 1928-30) ou a nova presa (em 1951), assim como para as constantes reparações dos caminhos, da estrada e das caldeiras abertas nas vertentes pelas invernias. Te-lo-ão sido, ainda, para o transporte do cereal produzido nas roçadas colectivas (até ao começo dos anos 40), para efectuar as lavouras e sementeiras (a junta de bois com o arado) nas terras e chãos dos Santos (até meados dos anos 60) e transporte das colheitas (batata, essencialmente) e, provavelmente, para o transporte do cereal devido ao Santo, desde a eira até à tulha em que ficava guardado (até meados dos anos 60), para referir algumas situações melhor configuradas. Dois factores se conjugam para a redução dos carretos aos níveis de hoje e sua confinação à esfera de acção do conselho como gestor dos coutos. O primeiro foi o abandono de certas práticas económicas de âmbito comunitário, como as roçadas colectivas que deixaram de se fazer quando passou a ser permitido a qualquer vizinho, isoladamente, roçar e semear no monte baldio; como a exploração directa por parte do conselho de algumas parcelas dos Santos que passaram a ser todas (com excepção da vinha) arrendadas anualmente em leilão; ou como a constituição daquele fundo comum de empréstimo (a tulha do Santo) que o aumento da produção de centeio e a melhoria geral das condições de vida vieram subalternizar. O segundo — e mais significativo — foi a possibilidade de dispor, a partir de finais de 60/começos de 70, de máquinas e veículos de carga (da C.M. de Bragança, J.C.I./I.R.A. ou outros serviços oficiais) para os trabalhos de reparação, remodelação e eventual construção de infra-estruturas e equipamentos colectivos, coincidindo no tempo com a tendência para uma progressiva delegação de competências (nunca claramente postulada ou assumida) na figura do Presidente da Junta como coordenador dos melhoramentos e obras no casco urbano da aldeia e vias de comunicação e como interlocutor para as conseguir do exterior. A chegada dos tractores particulares, facto a que anda associado o desaparecimento dos serviços prestados pelos vizinhos com os seus carros e juntas7, não apresenta, em Rio de Onor, qualquer relação directa de causalidade com esta relativa rarefacção da roda dos carretos, pois quando eles são adquiridos — o primeiro, em 1974, por um emigrante regressado de Angola e que não é membro do conselho, o segundo, em 1984, por um Guarda Fiscal natural da aldeia que consegue manter-se no conselho (na casa de sua sogra) por uma hábil gestão do seu tempo e do seu grupo doméstico — já os factores referidos haviam contribuído para aquela diminuição. No entanto, parecem hoje reunidas as condições para que, em qualquer altura, o conselho recorra ao aluguer de um dos tractores para recolher o feno do touro, por exemplo, continuando a roda dos carretos para os restantes trabalhos nos coutos em que as cargas a transportar são menores, as distâncias mais curtas e os momentos do calendário agrícola em que se realizam menos críticos8.
12Um outro tipo de serviço em benefício da aldeia que exige os carros e respectivas juntas de animais sai fora da roda dos carretos, caindo aleatoriamente neste ou naquele vizinho, ou em vários deles. Trata-se do pedido de empréstimo de carros, jugos e vacas — que não deve ser recusado e pode ser considerado como um direito daqueles (e da aldeia) — feito pelos moços para o transporte das cepas que no dia 1 de Novembro arrancam no monte e, posteriormente, são leiloadas, revertendo o dinheiro para as missas que se mandam rezar pelas almas de todos os mortos. É mais que provável que, no passado, os carretos também fossem exigidos para o transporte da lenha de uso doméstico de residentes vindos de fora e prestando serviços na aldeia — pároco, professor primário, Guardas Fiscais —, sistema de que existem profusas referências, sobretudo na literatura etnográfica da viragem do século, quando as aldeias eram ainda chamadas a suportar parte dos custos de manutenção dos serviços de múltiplas instituições centrais.
13As vacas — que, reunidas, formam a boiada e se situam numa relação de interdependência com os coutos — ocupam, como animais de trabalho e de produção de carne e estrume, um lugar fulcral na organização económica e social da aldeia. Daí que, pela sequência expositiva que escolhemos, a elas nos tenhamos já referido ao caracterizar o calendário local das actividades agro-pastoris e ao analisar o conselho quanto à sua composição (os que as possuem) e âmbito de acção. É agora necessário, ao procurar identificar e isolar analiticamente o princípio estrutural e estruturante das rodas, especificar o modelo de funcionamento dos turnos de guarda deste rebanho colectivo, as condições em que se forma e os modos como nele se reflecte o todo que é a aldeia e os interesses do conjunto dos vizinhos, incluindo os que não pertencem ao conselho nesta sua dimensão mais restrita. A boiada constitui-se sazonalmente, por períodos intermitentes de dias seguidos ou de domingo a domingo, e é conduzida a pastar nos coutos (onde passa a maior parte do tempo) e, também, no monte (onde, no entanto, vai hoje muito menos vezes que num passado próximo). Os coutos têm uma época de defeso que vai, sem datas rigorosamente pré-estabelecidas9, de Novembro a Maio, altura em que a boiada começa a frequentá-los, aos domingos, «para castigar os juncos». Durante os meses de Inverno em que os lameiros comunais se encontram «vedados», o rebanho das vacas (pelos anos 40-50) saía diariamente para o monte. Mais recentemente (e até 197072) passou a sair para aí só de Janeiro a fins de Março, altura em que a actividade agrícola é retomada com as primeiras lavras das terras de centeio e dos chãos. Hoje vai menos vezes para o monte, pois os donos dos animais, com os cuidados acrescidos que lhes dedicam como principal fonte de rendimentos, preferem levá-los a pastar nos seus próprios lameiros a dar-lhes o pasto pobre que reveste as encostas e os cabeços baldios. Sempre que há boiada para o monte desaparece o limite imposto das três cabeças que cada vizinho (do conselho) pode enviar para os coutos; todas as vacas da aldeia se lhe podem juntar e os turnos de guarda (que são diários, nos coutos) são, neste caso, proporcionais às vacas que se enviaram para o monte (um dia de guarda por cada cabeça). São vários os factores que interferem na constituição (ou não) do rebanho colectivo, para além da sua dependência do calendário de abertura e defeso dos coutos. Apresentamse, desde logo, como condições de necessidade ou de impossibilidade. As primeiras correspondem aos períodos de intensa actividade em que a totalidade ou a maioria das casas se encontra ocupada com tarefas em que os animais de trabalho não são utilizados e que exigem a disponibilidade do maior número possível de braços: a segada do centeio (cerca de 20 dias), as malhas (15 a 20 dias), as matanças do porco (12 a 15 dias). Nestes dias «há boiada», assim como naqueles em que os vizinhos se libertam da guarda individual dos seus animais para que todos possam (exceptuando os pastores de turno) permanecer na aldeia: os dias festivos do calendário (10/12 dias) e sempre que se realiza um casamento ou tem lugar qualquer acontecimento ou celebração extraordinários. Há ainda boiada sempre que há conselho (o que, actualmente, ronda os 30 dias por ano). As condições de impossibilidade para a formação do rebanho correspondem aos tempos de trabalho realizado com a ajuda das vacas, na tracção do arado ou do carro: sementeira, acarrejo e segada e transporte do feno dos lameiros particulares, além de outras tarefas de menos duração como as vindimas ou mais esparsas e não sincronizadas ao nível da aldeia, como o corte e transporte dos ramalhos no final do Verão e começos do Outono. Naqueles períodos de maior actividade e esforço dispendido pelos animais forma-se a boiada nos únicos dias que não trabalham — os domingos — e sempre para os coutos. Percebe-se, pela combinação destes factores, que o rebanho colectivo das vacas opera como regulador dos ritmos do calendário aldeão e contribui de forma decisiva para a coordenação e sincronização das tarefas individuais e/ou colectivas que ao longo dele se desenrolam. Uma outra forma de regulação prende-se com o particular cuidado em distribuir equitativamente, por todos os que têm vacas, os custos e benefícios da formação e guarda da boiada. É isto conseguido, por um lado, calculando os dias de modo a que nos diferentes períodos em que há boiada — especialmente nas alturas de maior intensidade de trabalho como na segada e nas malhas — todos os vizinhos façam o mesmo número de turnos e as rodas se completem. Por outro lado, distinguindo os dois locais de pastagem — coutos e monte — e fazendo de modo a que se completem os turnos dos vizinhos e se «feche» a roda, separadamente, em relação a cada um deles. É isto que aparece registado pelo mordomo numa folha do «Libro do Concelho» relativa ao ano de 1981: «Acabou aboyada en casa do G. i u primeiro air depois e o S. Quando ouber para o couto». E, logo depois, «comezou avoyada do monte dia 2 de marzo de 1981 i come zou en casa do M. findou duas Rodas completas».
14O total de dias de boiada durante o ano pode estimar-se entre os 100120 para os coutos e 40-60 para o monte, valores que vão sofrendo variações e se adaptam às circunstâncias que surgem como a diminuição do número de membros do conselho e, consequentemente, do número total de vacas, que vai permitir (dentro dos condicionalismos referidos) mais dias de pasto nos coutos. O rebanho regressa sempre à aldeia ao fim da tarde e as vacas dormem nas lojas dos seus donos o que não acontecia quando J. Dias estudou a aldeia. Então, por altura da segada do centeio e das malhas, a boiada pernoitava num local, junto ao Couto Grande, chamado dormedouro da boiada, onde os vizinhos se deslocavam para retomar os seus turnos de guarda. Esta prática manteve-se até ao início dos anos 60, época em que também deixaram de funcionar duas outras rodas ligadas aos coutos e bovinos. A primeira, decorria da formação, no período absorvente das malhas, de um rebanho separado constituído pelas vacas paridas e respectivas crias e guardado pelos donos dos animais nestas circunstâncias. A segunda tinha como finalidade distribuir pelos vizinhos a bosta que ficava no local de pernoita da boiada «apanhada em comum, num dia determinado, e distribuída por cinco vizinhos cada ano» (Dias, 1953: 177), e que também chegou a ser distribuída por leilão10.
15A responsabilidade de manter e cuidar do touro colectivo foi, desde os anos 40, pelo menos, (Dias, 1953: 178-79) e até 1975, inclusive, atribuída em leilão, realizado no começo do ano, ao vizinho que pedisse menos compensações ou regalias por parte do conselho. Iria guardá-lo, junto com as suas vacas, na sua própria loja onde permanecia sempre que não houvesse boiada, altura em que se juntava aos restantes animais. Posteriormente, foi-lhe arranjado um local próprio ao ser desafectado o lagar comunal da sua utilização para o fabrico da aguardente que, assim, passou a ter a destinação exclusiva de curral e palheiro do feno do touro11. O sistema manteve-se mesmo durante os anos em que o touro reprodutor foi cedido pelos serviços pecuários do Estado, deixando de ser propriedade da aldeia (197071 a 1975), até que, em 1976, como referimos, esta decidiu readquirir um touro próprio. Foi também neste ano que o sistema de guarda foi alterado, passando aquela responsabilidade a ser assumida, rotativamente, por todos os vizinhos do conselho. É importante ponderar nesta substituição de um princípio de organização por outro, pois ela coloca claramente a questão em que temos insistido da constante e vigilante contabilidade social de perdas e ganhos na distribuição das tarefas e dos recursos colectivos. O encargo de cuidar do touro, para além de uma grande responsabilidade em si mesma, foi-se tornando — com as estratégias de individuação das casas e de progressivo desprendimento de constrangimentos colectivos (hoje sem uma autoridade absolutamente impositiva), com o correlativo maior espaço de acção na condução das unidades de exploração individual e, ainda, com a redução dos membros do grupo doméstico — um fardo que só uma retribuição significativa compensaria. As exigências de regalias vão-se tornando maiores, pois nenhum vizinho está disposto a ficar responsável pelo touro sem evidentes vantagens (por exemplo: estar um ano sem «dar carretos» ou sem ir ao conselho, ou poder meter mais uma ou duas vacas na boiada, etc.) mas, por outro lado, nenhum está disposto a tornar-se perdedor com esse ganho acrescido de um só vizinho («se ele, porque não eu?!»). Foi no quadro desta delicada avaliação que então se recorreu ao princípio geral da rotatividade, como modelo igualitário e como preeminência do «interesse» e «equilíbrio» colectivos sobre o risco de um indevido ganho individual — que cada um poderia desejar para si, mas não permite aos outros. O touro passou a estar ao cuidado de um vizinho cada mês, com o encargo de lhe dar a ração diária de comida, fazer-lhe a cama com palha que vai buscar ao seu medeiro, abrir-lhe o curral para que saia com a boiada ou para responder à solicitação dos seus serviços de macho reprodutor, recolhê-lo e estar atento a qualquer sinal de indisposição ou doença que possa ocorrer. A única compensação que recebe é o estrume que recolherá do curral para a loja das suas vacas, ao findar o seu mês de turno12.
16O touro dá ainda origem a uma roda, a funcionar apenas durante um período do ano e a cargo dos mesmos vizinhos do conselho. Durante os meses de Março a Abril (época em que os coutos se mantêm vedados), para complemento e reforço da sua alimentação, cada um lhe leva, em turnos diários, um molho ou braçado de ferranha (centeio e cevada cortados em verde) que colhe nos chãos de sua propriedade13.
O gado miúdo
17As ovelhas e cabras dos vizinhos da aldeia encontram-se reunidas em dois únicos rebanhos — o gado e a cabrada — guardados, por turnos, pelos seus proprietários ou, sempre que houve (ou possa haver) pastores contratados, guardados por estes, estando aqueles obrigados a alojá-los e a alimentá-los, também «à roda», e a contribuir proporcionalmente ao número de animais que possuem para o pagamento que lhes é devido. Como já referimos, o último pastor profissional serviu a povoação (na guarda do gado) em 1972-73 (depois de anos sem haver pastores de fora) e, de novo, em 1976-77, não tendo aparecido outros desde então. A constituição dos dois rebanhos únicos deu-se nos começos (ou meados) dos anos 30 e, se bem que sejam escassos os elementos de que dispomos quanto às décadas imediatamente anteriores, devem ser ponderadas as diferenças entretanto ocorridas. Um informante dizia-nos, de maneira imprecisa, que «antigamente havia duas ou três cabradas e dois ou três gados, mas havia muitos vizinhos que no tinham», parecendo fazer remontar o facto aos anos 10/20 e deixando enganadoramente sugerir, tanto uma menor rigidez na organização comunitária do pastoreio, como uma maior diferenciação económica na base da existência de vizinhos proprietários ou não proprietários de ovelhas e cabras (explicação sem pertinência em relação a animais que não necessitam para a sua manutenção ao longo do ano de recursos extraídos das propriedades individuais). Jorge Dias regista uma informação que aponta, também, para aquela pluralidade de rebanhos e que, apesar de não ter conseguido situá-la no tempo é, porém, mais precisa: «antigamente os rebanhos eram mais numerosos e levavam mais pastores (...) dois rebanhos de cabras, com quatro pastores cada um, os quais tinham muito mais do dobro de animais do que hoje (...) as ovelhas estavam divididas em dois rebanhos de 4 pastores (...) os pastores eram, em geral, do lugar» (Dias, 1953: 181-2). Parece-nos ser esta existência dos dois rebanhos (e não mais), para cada tipo de animais, a prática local mais provável em todo o primeiro quartel deste século. É para tal que aponta uma tala do gado, relativa ao ano de 1908, de que o Abade de Baçal publicou a fotografia (Alves: 1910) e onde se encontram registados 13 vizinhos proprietários que devem corresponder a uma das margens (não há nela o entalhe que assinala, em todas as talas, o rio a separar as duas «metades» da aldeia), à qual terá correspondido uma outra para o rebanho dos vizinhos da outra margem, em número provavelmente similar. Isto leva-nos a supor a existência de um mínimo de 26-28 proprietários de ovelhas — quando na aldeia havia um máximo (teórico, mas improvável) de 36 casas14 — e a admitir ainda que, em relação às cabras, encontraríamos valores aproximados para o mesmo modelo de distribuição dos animais. Na interpretação de J. Dias, a passagem de quatro para dois rebanhos colectivos (e concomitante redução do número total de cabeças) deveu-se à diminuição dos abundantes pastos de monte provocada pela intensificação da vida agrícola. É indubitável que, a partir da década de 30 e, com maior expressão, nas duas seguintes, se assiste a uma intensificação e diversificação da actividade agrícola: permissão de roturações temporárias do monte para cultivo individual, abandono do linho e importância acrescida das culturas hortículas, afectação de parcelas à cultura da batata, introdução e papel potenciador do adubo químico. No entanto, este contexto de mutação não nos parece trazer como consequência uma diminuição de pasto para o gado miúdo, pois este vai buscar o seu alimento tanto ao monte (que continua a ser muito extenso) como às terras cultivadas depois do cereal colhido, nas duas folhas que, anualmente, alternam em cultivo e pousio, sendo os restolhos ainda melhor pasto que o próprio monte. A explicação deve, a nosso ver, ser buscada noutra ordem de fenómenos que acompanham aquela intensificação e que se inserem no quadro mais geral dos ritmos da vida aldeã e das racionalidades e contabilidades sociais que se produzem e articulam numa organização comunitária como a que temos em análise. O acréscimo e diversificação do trabalho da terra traz consigo uma maior indisponibilidade de tempo por parte dos habitantes (facto que J. Dias igualmente refere), sobretudo porque todas as operações necessárias à cultura do cereal no monte roçado e queimado são feitas a braço (condição para serem permitidas) o que exige a participação do maior número possível de membros do grupo doméstico. Por outro lado, o aumento de terrenos, definitiva ou temporariamente conquistados ao monte, exige uma maior vigilância sobre a circulação dos animais o que, junto com o motivo anterior, conduz à sua reunião em rebanhos únicos de ovelhas e de cabras, assim como à redução dos seus efectivos. Neste período ocorrem igualmente transformações que se traduzem — com o definitivo abandono de estratégias de reprodução da casa em torno do celibato e do casamento tardio — no aumento, não apenas da população total, mas também do número de vizinhos (casas) que compõem a aldeia o que faz crescer a procura de subsistências expressa, desde logo, naquela intensificação do trabalho agrícola e de que o colectivo da aldeia, simultaneamente, coordena as condições de possibilidade e procura manter sob controlo. Os rebanhos únicos traduzem esta realidade feita de crescimento e escassez, permitindo libertar braços e procurando garantir, formalmente, uma igual distribuição de tarefas e recursos15. Apesar do monte estar à disposição dos vizinhos sem os constrangimentos que pesam sobre os lameiros comunais, procura-se a todo o custo impedir usos individuais que viriam a permitir, segundo os atentos e silenciosos cálculos dos habitantes, o «enriquecimento» ou os ganhos indevidos de alguns. Este mecanismo de controlo social é exemplarmente ilustrado com a difícil e curta vida dos rebanhos particulares que famílias com bastantes filhos, num esforço de maximização dos recursos que a aldeia dispõe, entregam à guarda de um deles. J. Dias refere um exemplo, para o tempo anterior à constituição dos rebanhos únicos, designado «o rebanho da ’tisoira’», pois comeria onde não era devido e foi suprimido. Recolhemos, ainda, a informação sobre dois outros que, já nos anos 40, sob a pressão contínua do conselho e das multas aplicadas aos seus proprietários, sob pretextos vários, foram extintos e os donos juntaram os seus animais (cabras) ao rebanho da aldeia. «Era, também, a inveja», diz um nosso informante.
18O gado reúne actualmente, com variações de ano para ano, entre 300 e 400 cabeças. As cabras haviam desaparecido sob acção dos Serviços Florestais, mas ressurgiram em 1974, em pequeno número e misturadas no rebanho de ovelhas até que, em 1976, se separam numa cabrada, tendo-se mantido em valores próximos das 140-200 cabeças16. A maioria dos vizinhos (30 a 33) possui animais em ambos os rebanhos ou só num deles e faz turnos de guarda proporcionalmente ao número de ovelhas ou cabras de que é proprietário. Até 1977, inclusive, essa proporção era de 1 dia por cada 2 cabeças (como no tempo em que J. Dias estudou a aldeia), sendo então alterada para um dia de guarda por 4 cabeças (tanto para o gado como para a cabrada). As razões são evidentes: face à ausência de pastores profissionais (o último, e esporádico, fora-se embora nos meados desse ano) e à acentuada quebra no número de membros que compõem os grupos domésticos, tratava-se de evitar permanecer ocupado dias seguidos com a guarda dos rebanhos, situação particularmente crítica quando, nos meses de Verão, todos os braços são escassos para a intensa actividade que mobiliza cada uma das unidades de exploração17. A cabrada, antes de ter sido extinta, rondava as 400 e mais cabeças e era guardada por dois vizinhos (ou pelo pastor contratado acolitado por um vizinho, o zagal); hoje, bastante mais reduzida, leva um só pastor de turno. O gado é guardado por dois vizinhos (ou seja: o pastor e o zagal) e o cão que o acompanha e pertence à aldeia é, também ele, alimentado pelo pastor nos dias que lhe correspondem na guarda do rebanho. Nos últimos 13 anos o cão que acompanha o gado é um possante «Castro Laboreiro» que alguém oferecera à aldeia, muito estimado por manter os lobos afastados do rebanho. Já uma cachorra da mesma raça, também oferecida e chegada à aldeia em 1976, não teve a mesma sorte: pouco tempo depois foi atacada e devorada por um lobo nas imediações da povoação. O cão do gado ou «do povo», quando o rebanho regressa ao fim do dia, espera em frente à casa do pastor de turno que este lhe dê comida; daí ele ser também veículo das críticas e avaliações do cumprimento ou não de deveres que incidem sobre alguns vizinhos, acusados (em surdina) de não o alimentarem.
19Em ambos os rebanhos colectivos os machos não contam para o cálculo dos dias de guarda o que se traduz numa compensação pelo serviço que prestam ou podem vir a prestar como reprodutores. Não há, no entanto, verdadeira preocupação com a selecção e garantia de permanência de bons reprodutores nos rebanhos e os donos dos cordeiros e cabritos não se sentem obrigados a deixá-los nos rebanhos com essa finalidade. Parece-nos particularmente reveladora a apreciação que um vizinho nos fez desta situação de relativo abandono da qualidade dos rebanhos ao acaso dos machos de cobrição que casualmente neles andam, pois trata-se de um eloquente exercício de cálculo de perdas, ganhos e invejas que atravessam o binómio individual/colectivo com que frequentemente deparamos e que, ao longo do texto, temos referido. Foi pronunciada a propósito da vinda para a aldeia, em 1976, do bode oferecido pelos serviços regionais do Ministério da Agricultura e que, na ocasião, havia dado lugar a uma roda (efémera) para distribuir por todos o encargo de uma alimentação suplementar:
Pelo povo compraram-se dois que eram de Labiados. Estiveram até velhinhos. (Até depois foi comido um na escola velha que já nem se podia comer a carne, era dura como ferro.) E melhorou a raça pois então. E carneiros a mesma coisa. Houve um pastor que trouxe para cá um que era duma quinta, era um carneirão grande, depois melhorou a raça. Quanto tempo houve boas ovelhas e bons carneiros! Agora tornou a ficar-se... os bons vão-se vendendo, porque valem dinheiro e já no se cria um carneiro bom, no há quem no crie. Nós [no sentido de: eu] temo-los tido bons e dizem: «deixa esse cordeiro!»; mas está bem, está gordo, dão-mos um conto de reis ou 12 notas e vou deixá-lo? Pra depois comê-lo o lobo, morrer-se-me ou estragar-se? E o povo no me agradece. Que é que nos custava comprar um carneiro agora? Já que o bode é oferecido, nós compravamos um carneiro bom, por todos, custavamo-nos alguma coisa? Ó escutar [ratear] a soldada do pastor, escutava-se mais um conto de reis pra um cordeiro. E pronto. Se havíamos de escutar a 10$00, saía-mos a 15. Pronto, compra-se um cordeiro. E o pastor tinha proa já co aquele carneiro. Dava-le mais uma codea, entrava pra um lameiro, deixava-o entrar — o carneiro era de todos já no havia interesse. Se o deixava um, já têm refilado. Ah! porque o carneiro!... e o carneiro é dele!... e o carneiro a comer ali!... E falam. Pois pra que no falem era de todos. Se se vendia, quando se vendesse dava dinheiro pra comprar outro. Se o comia o lobo, comia-o, era de todos. Se morria, morria à conta de todos.
20Não funcionam actualmente duas rodas relacionadas com a criação dos porcos. Uma era a vezeira dos porcos que, pela Primavera, percorria as ruas e largos da aldeia e suas proximidades, guardada por dois ou três vizinhos na proporção de um dia por cada porco que possuíam e que fora descrita por J. Dias (1953: 183-4). Hoje (desde começos dos anos 60?) os porcos permanecem todo o ano nas lojas dos respectivos donos. A outra roda destinava-se ao alojamento e sustento do berrão ou porco da coberta escolhido, cada ano, pelo conselho de entre os que havia na aldeia e adquirido para serviço público. Foi Boaventura o último vizinho a ter a seu cargo, em 1975, o berrão do povo, deixando de haver, desde então, um reprodutor de propriedade colectiva e os consequentes turnos anuais de guarda. Do Livro dos Mordomos consta, para esse ano: «Porco do pobo. A. entregou cuantia 5$00», ou seja, um acerto do dinheiro que este teve de entregar ao conselho para perfazer a soma que deste recebera quando lho comprara depois de escolhido para porco da coberta. Atente-se na descrição feita por J. Dias do processo de selecção e manutenção deste animal, pois ela patenteia, exemplarmente, a complexa articulação de planos que decorre da organização da produção (neste caso, garantir um reprodutor): contabilidade estrita de um acto de compra (ou melhor: expropriação temporária para serviço público), definição de responsabilidade e dos momentos em que transita da esfera do conselho para a de um só vizinho, ritualidade da celeração do terminus do contrato com a refeição dos testículos no momento da capação que antecede de alguns dias a devolução do animal ao primitivo dono (Dias, 1953: 184-185). Esta última não teve lugar em 1976 e desconhecemos desde quando se não faria. Agora, sempre que é chegado o momento, os donos das porcas levam-nas até junto dos machos de um ou outro vizinho, abrindo-se assim o campo para uma mais aleatória e difusa circulação dos animais e das relações diádicas que entretecem o quotidiano (marcado por alianças e oposições) dos vizinhos. Acontece também que, vários de entre eles, compram hoje, na feira de Bragança, os porcos já criados para depois matarem, também por aqui diminuindo o interesse geral do porco da coberta.
Infra-estruturas e equipamentos colectivos
21Os trabalhos de manutenção e reparação das infra-estruturas e equipamentos de propriedade e uso colectivos — sejam eles edifícios ou espaços abertos construídos — são muitas vezes feitos pelo conjunto dos vizinhos, em conselho. A igreja, o cemitério, a escola, a forja, os moinhos, o curral do touro (antigo lagar), as presas, os muros, a eira, os caminhos, são reparados, se é caso disso e em função da força de trabalho momentaneamente requerida, pelos representantes das casas reunidos sob a coordenação dos mordomos ou do Presidente da Junta. Pode igualmente acontecer que por ser desnecessária uma equipa numerosa, esse trabalho seja realizado por turnos ad hoc ou numa roda como a do couto, ou se combinem os dois processos, como aconteceu em 1976, com a remodelação da escola velha, por exemplo. Há, no entanto duas rodas específicas, ligadas à gestão deste diverso património colectivo, que actualmente funcionam — uma para a utilização do moinho, outra para a limpeza dos largos e praças da aldeia.
22Dos dois moinhos comunais só aquele que se encontra junto à fronteira é utilizado. O outro, que foi reconstruído no começo dos anos 70 e, posteriormente, beneficiado com a ajuda do Parque Natural de Montezinho, dispõe de uma mó alveira para moer trigo, mas, de facto, nunca ficou definitivamente equipado. O moinho é utilizado à roda — cada vizinho, um dia de moagem — com início no Verão (com maior procura depois das malhas), com mais ou menos rigidez segundo a maior ou menor escassez de água. A casa que começará a moer é determinada por sorteio feito previamente (entre finais de Junho e começos de Agosto) e formalmente concebido para melhor distribuir entre todos o acaso de poderem estar entre os primeiros a servir-se do moinho. Para tal, consideram-se como «pontas» onde pode começar a roda as casas de 4 extremidades da aldeia (ver fig. 10). Se a sorte cai em A ou B as casas que se seguem respeitam a ordem normal de todas as rodas («à direita»), se calha em C ou D a roda «anda para trás», única situação em que — por preocupações com uma equidade conceptualmente remetida para a sorte — a sequência dos turnos se inverte em relação à ordem instituída das casas na aldeia18. É também por esta existir e ser estável que pode ser invertida e ser seguida sem confusões. Esta roda mantém-se a funcionar até Fevereiro/Março, mas a utilização do moinho é mais intensa nos meses que antecedem as matanças dos porcos (em Dezembro), animais que consomem bastante farinha sobretudo no período em que são cevados. A partir daí é mais flexível o funcionamento da roda e menos sistemática e contínua a utilização do moinho. De qualquer modo, deve dizer-se que a pressão sobre o uso do moinho é hoje muito reduzida em relação a um passado recente em que era maior o número de vizinhos produtores de centeio e em que todos «fabricavam» a totalidade do pão consumido ao longo do ano. Também os Guardas Florestais — com direito a pedir a vez entre dois turnos, pois estão fora do universo formal da roda — praticamente não se servem hoje dele, posto que compram o pão aos vendedores ambulantes ou na aldeia espanhola (como alguns vizinhos fazem) e compram o porco muito próximo da matança (quando a realizam).
23Com uma outra roda, de formação mais recente, procede-se à limpeza dos largos da aldeia, já que, quanto às ruas propriamente ditas, incumbe a cada um dos vizinhos varrer a parte que confronta com as testadas de suas casas, trabalho que é feito aos domingos e dias festivos, pela manhã. Até 1977, um homem da aldeia que constituía casa com um irmão (ambos celibatários), representada no conselho, limpava largos e demais recantos e espaços comuns do núcleo habitado com a única compensação de recolher para si os detritos e excrementos que transportava num carro de mão para juntar ao estrume dos seus próprios animais. Fê-lo durante seis ou sete anos, em dias incertos, deixando de o fazer quando arranjou um empregado de cantoneiro no troço de estrada de Rio de Onor a Varge, altura em que veio a separar-se do irmão para morar em casa própria, saindo do conselho (o que o irmão também foi levado a fazer no ano seguinte). A roda foi então formada para, entre todos, procurarem manter a aldeia limpa, tendo ficado estabelecido (em discussão no conselho) que, em cada turno, três mulheres (representando três casas) varreriam os largos, nos domingos e dias de festa. No entanto, essa cadência não se manteria e a roda funciona com ritmo irregular. É difícil configurar com exactidão essa irregularidade — oscilação dos ritmos, abstenções, interrupções, conflitos — sem uma presença continuada na aldeia, pois as informações posteriores dos vizinhos (mesmo das directamente implicadas, as mulheres) tendem a minimizá-la por processos selectivos ou a registar um ou outro aspecto que faz recair sobre este ou aquele — segundo conjunturas e estratégias de aliança e oposição — descuidos, recusas, etc. O que se torna necessário referir é que as funções que esta roda cumpre estão a ser delegadas para uma outra esfera de competência, como consequência da aprendizagem de uma pertença administrativa e cívica a um espaço político-social mais alargado: nos últimos anos uma das reivindicações (ou desejos) locais é o acesso ao serviço municipal de recolha de lixos. A roda provavelmente desaparecerá então e com ela os custos sociais das contabilidades a que o seu irregular funcionamento dá lugar (quem cumpre, quem não cumpre...)19.
A igreja e os santos
24A roda de tocar o sino define, ritualmente, o universo mais amplo da condição de vizinho da aldeia. Dele se encontram excluídos os Guardas Fiscais residentes, apesar de, como membros de uma casa da aldeia (se, por exemplo, vivem com os sogros), poderem desempenhar funções inerentes à roda quando o turno pertence a essa mesma casa. Ao lampadário — designação local, actualmente caída em desuso, para o cargo que a roda visa preencher — compete alimentar e manter acesa a lâmpada de azeite no interior e tocar o sino às «Avé-Marias», todos os dias ao fim da tarde. Até cerca de 1956-57 esta obrigação era desempenhada por cada vizinho durante um ano, numa lenta sequência de turnos que só ao fim de cerca de 40 anos se completavam. Foi, então, alterada a sua cadência para um sistema de turnos mensais e a roda demora agora (com os 36-38 vizinhos da última década) cerca de três anos a completar-se. Esta mudança prende-se, desde logo, com o esforço em reduzir o número de dias contínuos que ocupa cada vizinho em cada turno — o que também levou, como vimos, à aceleração das rodas para a guarda do gado e da cabrada. Parece-nos, todavia, que ela decorre sobretudo de cálculos de outra natureza e de razões não explicitadas que se ligam com as transformações que atravessavam a aldeia e traziam aos seus habitantes uma consciência mais pesada de um tempo com outras qualidades. O aumento absoluto do número de fogos, a emergência e desaparecimento mais aleatórios das casas, com estas a perderem condições de estabilidade e garantias de permanência, fazem com que os 40-45 anos necessários para se cumprirem os turnos desta roda abram para rupturas na reciprocidade (entendida como o que todos têm igualmente a fazer) que só um encurtamento total da roda, pela aceleração dos turnos, permite conseguir e controlar no presente. De referir que há situações de comportamento desviante em relação a este vínculo inerente ao estatuto de vizinho que se traduzem em verdadeira auto-exclusão. O caso mais evidente é o de um celibatário que manteve (até à sua morte, ocorrida em 1992) uma postura marginal de total insociabilidade e que a aldeia sempre confinou a essa marginalidade, não contando com ele para nada do que diz respeito ao conjunto dos habitantes e passando-lhe a roda (esta ou outras) pela casa como se ele não existisse.
25A limpeza do edifício da igreja que antes impendia sobre cada uma das casas en turnos semanais (Dias, 1953: 284) veio a estar a cargo das zeladoras (ou: mor domas) da igreja, escolhidas de entre as raparigas solteiras (por elas próprias) que também se encarregam de lavar os panos, enfeitar, etc.20
26O património dos Santos é, como já foi referido e será posteriormente desenvolvido, gerido pela aldeia através do conselho, sem a interferência dos padres que, conjunturalmente, a servem. Todos os registos relativos às receitas que auferem das esmolas e dos rendimentos das propriedades e demais bens leiloados, assim como a todo o género de despesas que se vão efectuando, estão a cargo dos mordomos dos Santos. São também eles que devem ocupar-se com a organização das duas festas anuais (13 de Maio e 24 de Junho) e/ou pôr os meios necessários à disposição dos moços para que dela se encarreguem. Há dois mordomos do Santo (S. João, o padroeiro) e dois mordomos da Santa (N.a Sr.a de Fátima, que começou a ter rendimentos em 1948-49, pouco depois de ter chegado à aldeia) e os turnos correm entre os vizinhos do conselho. São, portanto, quatro as casas implicadas, anualmente, nestas duas rodas. Segundo uma informação por nós recolhida na aldeia, antes de 1971 (ou 72) a responsabilidade pelos assuntos e contas dos Santos tendia a cair só em alguns vizinhos — «os que sabiam ler». A passagem ao sistema actual, com uma definição mais rigorosa do universo da roda (o conselho), deu-se, na explicação do nosso informante, para evitar a acumulação do cargo em alguns e os eventuais comentários, em surdina, quanto ao destino das verbas de que eram depositários. No entanto, apesar de não podermos hoje avaliar devidamente quando e até que ponto se manifesta esta tendência a uma circulação dos registos das contas apenas dentro de um grupo mais restrito de vizinhos, o facto é que pela consulta do «livro do Santo» percebe-se que no final dos anos 30 e nas duas décadas seguintes a rotação anual dos três mordomos que então havia (de S. Sebastião, de S. Brás e de St. António) se fazia de forma absolutamente sistemática. Das anotações que constam do «Livro do Santo» ressalta a regularidade (aparentemente sem falhas entre os anos de 1938 e 1959) da ocupação do cargo, «à roda», de mordomo de São Sebastião e de São Brás: um vizinho para cada um deles, sendo o mordomo de São Brás em determinado ano, o mordomo de São Sebastião no ano imediato. Já as informações quanto ao mordomo de Santo António são extremamente lacunares, faltando para a maioria dos anos e denunciando irregularidade quanto ao funcionamento da roda (por exemplo: o mesmo vizinho foi mordomo em 1947 e, de novo, em 1952). Por outro lado, esses registos não permitem identificar sequências na ocupação do cargo de mordomo do santo (o padroeiro, S. João), que parece ter recaído no conselho ou, como dizemos no texto, em alguns dos seus membros, com certa indeterminação. O estabelecimento, em 1971/72, das duas rodas entendemo-lo como uma reorganização das mordomias feita a dois níveis: por um lado, a sua simplificação e uniformização, com a redução do número de mordomos, não vinculados agora a um santo específico, e com a utilização do mesmo modelo formal para uma Santa sem tradições locais e cujos assuntos seriam geridos pelo conselho sem recurso ao princípio rígido das rodas; por outro lado, o mais efectivo e automático controlo das contas conseguido com a duplicação dos vizinhos de turno em cada uma das mordomias.
27Numa outra roda — para pedir a esmola para as almas — aparecem confundidos o alargamento da comunidade dos vivos com a memória e celebração colectiva dos seus mortos e a própria presença social e económica dos santos locais. Até 1971/72 cada vizinho, em cada domingo, pedia por todas as casas a esmola para as almas e para os diversos Santos. Estas eram dadas em géneros (ovos, carnes salgadas, enchidos) depois leiloados. A partir daquela data vieram a ser os mordomos do Santo que (no âmbito da reorganização acima referida) ficaram encarregados de fazer o peditório no dia em que se faz o leilão (20 de Janeiro, S. Sebastião). A partir de 1980 estabeleceu-se uma roda autónoma de universo mais vasto (os vizinhos no sentido amplo), em turnos mensais: cada vizinho pede, nos domingos do seu mês de turno, a esmola para as almas que, agora, é dada sobretudo em dinheiro.
28Certos produtos locais tradicionalmente oferecidos aos Santos, como o linho, deixaram de ser produzidos e outros, como os enchidos, passaram a ser muito valorizados em termos monetários, no contexto da promoção «patrimonialista» de que foram objecto, no começo dos anos 80, sobretudo com a Feira de Vinhais, onde atingem dos preços mais elevados do país e onde são atribuídos prémios aos produtores-locais. Os habitantes de Rio de Onor não têm participado nessa feira mas têm conhecimento daqueles valores pelos meios de comunicação (rádio e TV) e canais de circulação da informação em que se inserem (por estes conhecem os preços a que são vendidos nos comércios de Bragança). Neste quadro, oferecer dinheiro torna-se, relativamente, «mais barato», facto que, todavia, não eliminou as ofertas em géneros: ovos, orelheira e pés de porco salgados e, também, enchidos.
29Apresenta-se-nos, enfim, uma última roda associada, ainda, ao diversificado conjunto de funções e tarefas que decorrem da administração das coisas referentes à igreja e à vivência terrena e quotidiana do sagrado e da ritualidade festiva. Destina-se ela a regular e distribuir o encargo de dar a refeição aos padres que vêm à aldeia para celebrar as missas nos dois dias de festa maior. São, normalmente, em número de quatro e em cada um desses dias são recebidos por duas casas para o jantar depois da cerimónia religiosa, dois por casa. Quando J. Dias estudou a aldeia aqueles quatro padres eram alimentados pelos dois mordomos do Santo (S. João) no dia da festa anual que então era a única (Dias, 1953: 289), pois N.a Sr.a de Fátima que daria lugar, como foi referido, a mordomia própria, só muito mais tarde veio a ser celebrada com idêntica solenidade (a 13 de Maio), duplicando-se assim, em cada ano, a presença dos padres visitantes e o número de vizinhos com a obrigação de os receber. Desconhecemos, por insuficiência da informação disponível, quando terá sido instituída esta roda, mas é de admitir que a sua emergência como processo de distribuição rotativa de um encargo esteja de alguma forma ligada com a não existência de pároco residente — o que acontece, de forma praticamente contínua, pelo menos desde o último quartel do século xix — que na sua casa poderia receber os colegas (mesmo que com despesas suportadas pela aldeia).
30As condições de funcionamento desta roda e as subtis avaliações que a envolvem decorrem da especificidade que manifesta e a distingue de todas as outras. De facto, é ela a única em que o princípio da rotatividade como expressão de formas de organização colectiva dos vizinhos e assunto interno da aldeia põe esta em contacto (íntimo, diremos) com o exterior21. Os sacerdotes que aí vêm (muitas vezes os mesmos ao longo dos anos) entram, ano após ano, nas casas e sentam-se à mesa de todos e cada um dos vizinhos, o que supõe (e exige) não apenas uma conceptualização local da igualidade social entre eles, mas também a real homologia das condições em que habitam e dos consumos que fazem. O nível em que essa homologia é mais conseguida é o das casas que pertencem ao conselho na sua configuração mais restrita (os que possuem vacas) — e que são a esmagadora maioria nas primeiras décadas do século — pois são essas em que os grupos domésticos são mais amplos, a actividade productiva mais uniforme e, sobretudo, onde existe pelo menos uma mulher que cuida da casa e se encarrega da preparação das refeições; e isto independentemente das diferenças de património e de riqueza relativa que as distinguem. Este último aspecto fora aliás contemplado na distribuição do encargo, pelo menos entre os anos 30-60 (e, certamente, em período anterior), pois as casas de turno para receber os padres não tinham que suportar as despesas que faziam com a refeição de festa que lhes ofereciam, estando estas a cargo da aldeia através do dinheiro pertencente aos Santos. Pareciam estar, assim, salvaguardados tanto os prováveis desequilíbrios dos custos decorrentes da diferença de posses dos vizinhos, como a diferenciação entre eles — por eventual afirmação social competitiva de uns ou por escassez, poupança e/ou desleixo de outros — e ainda, indirectamente, conseguida a projecção da unidade e homogeneidade da aldeia pela igualdade de tratamento dado aos padres, pois o que lhes era servido era previamente combinado entre as mulheres e os mordomos dos santos de acordo com o que em anos antecedentes fora preparado.
31As transformações que se produzem nas últimas três décadas projectam-se no funcionamento da roda, com novas ambiguidades que perturbam e coexistem com a sua definição formal e deixam entrever as contabilidades sociais e tensões que a acompanham. Refira-se, em primeiro lugar, o número crescente de vizinhos fora do conselho (sentido restrito) que irá atingir a sua máxima expressão ao iniciar-se a década de 70 com a ausência dos homens emigrados em França e na Alemanha. Um encargo que deveria, teoricamente, recair sobre a totalidade dos vizinhos — os que rotativamente se ocupam do sino e lâmpada de azeite da igreja — e que um conselho grandemente representativo permite distribuir, sem sobrecarga, entre os seus membros, começa a recair num número cada vez mais restrito de vizinhos, evidenciando-se o desfasamento entre este espaço de circulação da roda e aquele, mais amplo, em que deveria circular — todas as casas22. É também este o contexto em que a pressão conflitiva de um excesso de população — a que corresponde a perda de autoridade e de poder coercivo do concelho — dá lugar à partida definitiva de alguns para o Brasil e para Lisboa, sobretudo (anos 50/60) e, já no final do período considerado, a uma melhoria geral, das condições de vida na povoação, como resultado daquele abandono, das remessas de dinheiro dos emigrantes na Europa e dos melhoramentos nas infra-estruturas da aldeia dos quais importa aqui reter o arranjo da estrada, o restauro e beneficiação (com subsídios da JCI/IRA) das casas de habitação e a instalação da luz eléctrica. O funcionamento da roda — que então terá sofrido desacertos e irregularidades hoje difíceis de precisar — viria de novo a configurar-se com mais precisão e equilíbrio distributivo quando, com o regresso dos emigrantes e a intensificação da expressão colectiva do quotidiano aldeão, o conselho vai passar pelo seu último período de grande representatividade (1976/1981). No entanto, as casas que agora recebem, nos respectivos turnos, os padres visitantes, encontram-se diferentemente apetrechadas depois do restauro e das transformações a que foram sujeitas e do arranjo interior e equipamentos que foram alterando as condições de habitabilidade, consoante a disponibilidade de dinheiro e a acentuação relativa dada a valores de modelo urbano, motores de novas «necessidades». São raras as que começam por dispor de casa de banho — 3 em 1976, 4 em 1980 — e nem todas têm sala, esse novo espaço interior trazido para a aldeia com as obras subsidiadas pela JCI/IRA e que as novas casas construídas pelos emigrantes sempre contemplam23. É neste quadro de mutações — em que os vizinhos comparam as melhores ou piores condições relativas que as suas casas oferecem para receber alguém de fora — que deve ser entendida uma interrupção na roda ocorrida em 1981. Nesse ano, pelo S. João, um dos vizinhos que deveria receber dois dos sacerdotes que viriam para a celebração da missa daquele dia de festa (e cuja casa, sem instalações sanitárias, não sofrera grandes transformações) recusou-se a cumprir o seu turno, sob o pretexto de não se sentir obrigado a suportar um encargo que deveria caber a todos, induzindo o mesmo comportamento na casa imediata («se ele não, porquê eu?»). A roda foi então retomada, como se recomeçasse de novo, no lado oposto da aldeia, por acordo entre dois vizinhos (dois irmãos dos quais um ajuda, normalmente, à missa) e sem qualquer intervenção reguladora e impositiva do conselho, impotente perante esta «desordem» e com a preocupação tácita — como noutras ocasiões de ruptura de reciprocidades — de minimizar a gravidade e ocultar (desde logo, perante os sacerdotes de visita) o significado social do facto, não falando dele. O prosseguimento da roda nos anos posteriores (nos dois seguintes recaiu, sem incidentes, sobre as casas imediatas àquelas, todas do conselho) viria a situar-se num território de ambiguidades com tendência para uma redefinição e alargamento do seu espaço de circulação. A partir de 1985/86 generalizara-se pela maioria das casas da aldeia a instalação de casas de banho (ainda que, na maior parte das casas, sem água canalizada) e de alguns equipamentos electrodomésticos dos quais o frigorífico e a televisão eram já de uso praticamente geral. As habitações de novo se apresentam «mais iguais» ao mesmo tempo que se agrava a relação numérica dos vizinhos que pertencem e não pertencem ao conselho. O dever de alimentar os padres não pode «logicamente» recair apenas sobre os primeiros e alguns dos outros continuam (ou passam) a recebê-los, sendo os gastos com a refeição festiva custeados por cada um, na sua vez24.
32Assim, a roda para receber os padres, depois de ter funcionado como princípio de partilha que procurava espelhar um colectivo de casas homólogas e de, posteriormente, ter traduzido diferenciações e desequilíbrios entre as unidades constitutivas da aldeia na sua conflitualidade interna, viria, mais recentemente, a abarcar de facto e sem qualquer rigor — fora do modelo igualitário de reciprocidade constrangida que definira, antes, o seu âmbito de circulação — um conjunto mais amplo de casas, com a particularidade de agora haver margem social para a afirmação cumulativa da individualidade e valor relativo por parte destas.
33Com a caracterização feita e a identificação dos processos temporais que atravessam esta roda e a devolvem à história recente da aldeia — como procurámos fazer em relação a todas as outras — resta concluir com a especificação dos principais traços do seu funcionamento actual. Por um lado, ela responde, mesmo que com evidentes sobressaltos, à exigência de participação de um dever que é suposto ser de todos com as subtis avaliações e contabilidades sociais que a acompanham25. Por outro lado, ela insere-se e contribui para preservar a imagem-construção da aldeia como totalidade auto-organizada, para si própria e na sua projecção exterior por mediação dos sacerdotes que nela circulam. Finalmente (e, talvez, sobretudo), ela permite a cada uma das casas de turno desenvolver estratégias de afirmação social, na sua liberdade (fazem-no não por serem «obrigadas», mas por quererem) e na sua individualidade (não ficar «atrás» das outras, receberem melhor).
34No Quadro 15 encontram-se representados os principais elementos de caracterização da totalidade das rodas que foram descritas e que, com as variações que apontámos, têm funcionado em Rio de Onor nos últimos quinze anos. A última coluna onde se anota o tempo aproximado que separa dois turnos sucessivos de um mesmo vizinho na mesma roda — ou seja, o tempo necessário à conclusão de «uma roda completa» — remete para as 38 casas que, em média, compõem a aldeia em cada um dos anos do período considerado. Já quanto às rodas que apenas implicam os membros do conselho (no seu âmbito mais restrito) os valores indicados correspondem mais precisamente aos anos de 1976 a 1982 em que este é formado por 23 a 20 casas; para os anos posteriores, com a diminuição dos seus efectivos, aqueles valores reduzem-se dado que as rodas se aceleram, cumprindo-se em ciclos mais curtos (por exemplo, em 1988 a roda da guarda do touro comunal completa-se em 13 meses, tantos quantos os vizinhos do conselho). O quadro facilita-nos a formulação de algumas conclusões quanto ao conjunto das rodas e ao princípio da rotatividade.
35Torna-se evidente que as rodas pressupõem (e permanentemente restituem) a aldeia como totalidade ou universo constituído por partes pré-determinadas. No entanto, identificam-se três níveis no seu âmbito de circulação. Assim, temos as rodas que respeitam à totalidade das casas da aldeia, das quais uma define mesmo o estatuto de vizinho no seu sentido mais amplo — a roda do sino e da lâmpada da igreja — e, que, como vimos, os raros casos em que é transgredida correspondem a situações de auto-exclusão ou automarginalização dos vizinhos que não garantem o cumprimento dos seus turnos. Este plano de maior amplitude que comporta ainda as rodas n.os 9, e 14, e que corresponde exclusivamente à distribuição de tarefas, é também aquele em que se constatam maiores irregularidades de funcionamento das rodas e adaptações visando contorná-las e que são fruto das contabilidades sociais em que temos insistido (quem faz ou quem não faz aquilo que os outros fazem, etc.). Um segundo nível corresponde a um espaço de circulação que não diz respeito a todas as casas com as rodas a funcionarem de forma bastante regular e sem sobressaltos, já que o universo daqueles que nelas cumprem os seus turnos está perfeitamente circunscrito — os que têm cereal para moer, os que têm cabras e ovelhas nos rebanhos colectivos — e as rodas visam não partilhar tarefas ou deveres a que se procura fugir, mas recursos. O terceiro nível é-nos dado pelo conselho na acepção mais restrita do termo (os que têm vacas), com sete rodas a funcionar no seu âmbito, mas de que importa distinguir dois tipos de natureza social diversa. Em relação às que recaiem sobre os lameiros comunais e animais de trabalho a que andam associados (rodas 1 a 5), o seu funcionamento processa-se com absoluto rigor, combinando-se nele a partilha de recursos e de tarefas que interessa a um universo de casas exactamente circunscrito. Já as rodas que distribuem as mordomias dos Santos (n.os 11 e 12) como vimos, traduzem a ambiguidade de incidirem sobre algo que é pertença da aldeia — os Santos, o seu património e a sua celebração — e que o conselho tem assegurado, garantindo assim a regularidade dos turnos para o desempenho da função, muito embora tenha diminuído a sua representatividade e o encurtamento do ciclo destas duas rodas faça recair as responsabilidades sobre os mesmos vizinhos em intervalos menores; também os reacertos e adaptações que referimos quando as caracterizámos são fruto desta mesma situação de relativa ambiguidade. Resta acrescentar que os dois últimos níveis referidos — a maioria das casas da aldeia ou as casas do conselho — não se apresentam como estanques e estáveis (ao contrário do primeiro que cobre — e institui — a totalidade dos vizinhos, apesar dos desvios que as rodas revelam), podendo em cada ano e decorrendo das conjunturas que marcam a história local, variar o número total que contemplam.
36Tendo a rotatividade como base e condição lógica para o seu funcionamento um modelo de equidade que se projecta na construção topológica da aldeia como um círculo de pontos que se equivalem, importa ver em que condições aquela se cumpre. Também aqui as rodas divergem. Em relação àquelas que incidem sobre a gestão e aproveitamento dos coutos, é patente que, com o limite de número de vacas por vizinho, a distribuição entre estes das tarefas a realizar e dos recursos existentes é feita de forma equitativa. A preocupação de equidade vai ao ponto de, como referimos, se procurar fechar «rodas completas» nos momentos do ano em que todas as casas se encontram ocupadas com tarefas que exigem intensificação de esforço e resolução na maior brevidade de tempo—segada do centeio e malhas—assim como fazê-las corresponder ao mesmo tipo de pastagem (no couto ou no monte); é ainda com esta contabilidade de iguais que se prende o envio de uma pessoa por casa para perfazer os dois pastores da boiada evitando, assim, desfalcar uma só casa de dois dos seus membros (por exemplo, nos dias de festa). Também em relação às rodas que recaem sobre as infra-estruturas e equipamentos colectivos, a igreja e os Santos, o modelo de equidade que lhe subjaz tende a ser conseguido apesar das irregularidades detectadas no seu funcionamento. Lembremos, no entanto, que da análise das mutações sofridas pela roda para receber os padres resulta que nela se abriram espaços sociais denunciando a diferenciação entre as casas e possibilitando a sua afirmação emolutiva.
37Do conjunto das rodas resta referir duas que, funcionando os seus turnos num regime de proporcionalidade, não só supõem a diversidade das casas, como permitem a reprodução dessa diferença. São elas, as rodas para a guarda do gado e da cabrada em que não há limites para o número de cabeças que cada um dos vizinhos aí pode ter. Mas, também aqui, entram em jogo subtis avaliações de perdas e ganhos que fazem com que o seu processamento tenda a manter dentro de certos limites os efectivos de cada proprietário e que as listas conhecidas para o período de 1950 a 58 confirmam. Apesar de serem animais que não necessitam de alimentação saída dos recursos produzidos pelas propriedades particulares, o número que cada vizinho possui aparece confinado por dois tipos de cálculo. Primeiramente, o que decorre da necessidade de estar o menor número possível de dias, em cada turno, ocupado com a guarda do rebanho, situação gravosa sobretudo nos picos do trabalho de Verão, em que as unidades de exploração individual exigem a presença da totalidade dos braços disponíveis (facto que também conduziu à duplicação do número de cabeças por dia de guarda). Este objectivo, por sua vez, só se atinge em condições óptimas quando o espaçamento entre dois turnos da mesma casa não se torna excessivamente curto, chamando esta a intervir frequentemente na guarda dos rebanhos, o que só é conseguido se os outros vizinhos não forem proprietários de um número bastante mais reduzido de animais (ou aquela casa não possua demasiados). Em segundo lugar, e em articulação com o aspecto anterior verifica-se aquilo que poderíamos designar como contabilidade negativa e que os informantes que ouvimos se recusaram a admitir: nenhum proprietário quer, por possuir um número excessivo de cabeças, andar longos períodos de tempo a guardar os animais dos outros. A combinação destas duas vertentes tem conduzido a um relativo equilíbrio no número de cabras e ovelhas que são propriedade de cada uma das casas, raramente ultrapassando as 20 e 8 cabeças respectivamente, diminuindo bastante no caso de pessoas isoladas ou casais idosos.
38Se bem que os autores que estudaram formas similares de organização comunitária refiram e descrevam com frequência o cumprimento de tarefas e a distribuição de recursos por turnos, a verdade é que nunca houve um esforço de sistematização do modelo de funcionamento da rotatividade como princípio de organização e partilha no contexto preciso das comunidades estudadas. Mesmo no caso de autores que, em estudos de comunidade, procedem a uma identificação com carácter de exaustividade das situações que dão lugar ao funcionamento dos turnos, a rotatividade não aparece analiticamente isolada — no sentido em que aqui o procuramos fazer — enquanto princípio de organização e partilha com efeitos de estruturação dos grupos e que, apesar da estabilidade do modelo topológico que o funda, se apresenta na diversidade interna das várias rodas e nas constantes adaptações e reacertos (e perturbações) a que são sujeitas. Estamos sobretudo a pensar nas monografias de melhor registo etnográfico de J. Dias (1948 e 1953) Arguedas (1968), Douglas (1969), Freeman (1970), Brandes (1975), Bennema (1978), ou Lopez Linage (1978), para já não referir os múltiplos exemplos da literatura anterior26. Julgamos que terá contribuído para tal — junto com demais condicionamentos teóricos e metodológicos da pesquisa — a diversidade das rodas quando consideradas individualmente e as formas como, com maior ou menor «visibilidade», se concretizam os seus turnos. Isto pode explicar, por exemplo, que, na generalidade dos textos da viragem do século, sejam sobretudo referidas as rodas mais «visíveis» e que imediatamente projectam uma dimensão colectiva e comunitária da aldeia: referimo-nos às vezeiras de todo o tipo de animais, muitas vezes interpretadas como sobrevivência de estádios supostamente mais arcaicos e puros de organização e emblematicamente transformadas na expressão do comunitarismo. O mesmo se poderá dizer quanto à frequente referência às infra-estruturas e equipamentos de que a aldeia é proprietária sem que as condições do seu acesso e uso sejam explicitadas ou, quando o são, sem este ser enquadrado no contexto social mais amplo do modelo subjacente ao funcionamento das rodas. A contribuição mais recente de Susan Tax Freeman para o estudo da rotatividade (Freeman, 1987), sendo inovadora em relação à ausência referida tem a nosso ver duas limitações: a) a sugestão de que se trata de um modelo de organização específico das sociedades ibéricas; b) a sua apresentação de forma excessivamente abstracta em que o formalismo do funcionamento dos turnos excluiria acordos diáticos e, de uma forma geral, o preservaria da conflitualidade social que, como vimos, o tornam objecto de subtis avaliações e locus de passagem dos processos temporais que marcam a historicidade da aldeia. Fazemos esta apreciação global (com o risco liminar de a tornar redutora) com a preocupação de insistir na necessidade de contextualização local do funcionamento das rodas e das tensões que lhe são inerentes. Ao fazê-lo, não retiramos nada à qualidade e importância daquele texto de síntese em que S. T. Freeman retoma dois artigos anteriores com a mesma referenciação a um espaço amplo peninsular (Freeman, 1968 a e b), alargando agora a reflexão à cidade e à existência nela do mesmo modelo de organização. Mas aqui, como refere a autora, podemos deparar com «a stratified system of rotative communities» (Freeman, 1987: 479) permanecendo problemática a conclusão sobre a identidade do modelo no seu efectivo funcionamento. Com efeito, julgamos ter que se atender, localmente, à natureza do poder e das condições da sua reprodução: na cidade, com a deslocação para um espaço social e formal separado, com uma aparente autonomia do político; na pequena aldeia comunitária tendendo a corresponder-lhe (o «povo») e a produzir-se, reproduzir-se e redefinir-se no próprio processo de funcionamento dos turnos (e demais formas organizativas locais) apesar das diferenciações internas entre os vizinhos e das manipulações e até de eventuais processos de apropriação que o podem visar.
39É exactamente nas propriedades dinâmicas que o princípio da rotatividade revela, que reside em nosso entender o seu traço mais importante e a actualidade da sua vigência — em Rio de Onor como nas aldeias da região e de outras zonas já mencionadas. Elas estão patentes na caracterização que foi feita de cada uma das rodas, podendo ser sintetizadas de modo mais explícito. Primeiramente, a roda é um lugar dinâmico de intersecção e articulação entre os domínios colectivo e privado inerente, desde logo, à configuração do modelo que lhe preside — o postulado de um universo feito de partes que se equivalem — assim como, das duas vertentes fundamentais da economia local: agricultura e pastorícia. Em segundo lugar, as rodas adaptam-se, consoante a especificidade do objecto sobre que incidem, a novas condições e conjunturas locais ou de âmbito mais amplo (como ficou patente com a aceleração dos turnos para a guarda da cabrada e do gado) que podem conduzir também à sua extinção e/ou criação de novos27; processos de transformação que, por períodos, podem perturbar o seu funcionamento até virem a ser redifinidas (como, por exemplo, as rodas para as mordomias dos Santos e para a alimentação dos padres revelaram). Mas o seu dinamismo funda-se ainda no facto de os turnos de cada um dos vizinhos resultarem não de qualquer qualidade essencial à aldeia — como emanência de um colectivo solidário — mas das condições de reprodução do estatuto de vizinho e, de forma mais concreta e pragmática, das racionalidades inerentes à condução das unidades de exploração individuais, no quadro aldeão da sua reprodução. De facto, em relação às rodas que permitem dividir recursos, cada um dos vizinhos age como se dos seus exclusivos interesses se tratasse; quanto às que visam distribuir tarefas, cada um deles as cumpre, enquanto sabe que todos os outros também o fazem. Daqui resulta que, as subtis vigilâncias e avaliações que nelas pesam — a «contabilidade social» em que temos falado — se encontrem balizadas pelas duas vertentes que continuamente se ponderam: a maximização do que cada um beneficia dos recursos partilhados e a minimização do esforço dispendido na partilha dos deveres. Também deste saldo de quem ganha e perde resulta a própria substituição de um princípio ou modelo de organização por outro. São disso exemplo o leilão para a guarda do touro que deu lugar à rotatividade ou a eleição do mordomo que foi substituída pela atribuição do cargo «à roda» e, posteriormente, de novo se veio a optar pelo processo de eleição.
40A coexistência das rodas que foram caracterizadas pressupõe a estabilidade do modelo topológico que preside ao seu funcionamento e que faz com que cada uma delas funcione independentemente de todas as outras. Quando numa casa coincidem, em determinado dia, turnos para várias delas, procede-se a trocas acordadas directamente entre os vizinhos, sem efectuar o processo normal das rodas. Para ilustrar a simultaneidade das rodas no tempo e tornar patente o que, de outro modo, tende a permanecer invisível, tomámos, um pouco ao acaso da nossa permanência na aldeia, dois dias, inventariando as casas efectivamente ocupadas com o cumprimento de turnos.
41A 24 de Junho de 1981 (Fig. 11), dia da Festa do Padroeiro, os vizinhos n.os 1 e 6 são os mordomos do Santo do ano e tomam nesse dia conta das despesas várias (foguetes, música, padres) e das ofertas em dinheiro que o Santo recebe; os mordomos da Santa deste mesmo ano — as duas casas do conselho que se lhes seguem (n.os 7 e 8) — não se encontram assinalados na figura pois não desempenham nesse dia qualquer função específica. O vizinho n.° 8 guarda o rebanho colectivo das cabras. O vizinho n.° 13 encontra-se no seu turno mensal encarregado da lâmpada da igreja e dos toques diários do sino. O vizinho n.° 17 cumpre o seu turno também mensal de responsável pelo tratamento do touro. Na casa n.° 22 recai a tarefa, igualmente mensal, mas apenas efectiva nos domingos e dias festivos do respectivo mês, de pedir pelas casas da aldeia a esmola para as almas. A mesma casa n.° 22 recebe, junto com a casa n.° 23, os padres que vieram para celebrar a missa, num ano em que esta roda sofrera na outra margem, a interrupção acima descrita, vindo a recomeçar nestas duas casas. Os vizinhos n.os 36 (casa do conselho) e 38 (fora do conselho) guardam o rebanho colectivo das ovelhas. Acrescentaremos que mais duas casas do conselho (uma pessoa por cada) se encontram implicadas numa roda que inevitavelmente funciona em dias de festa — a guarda da boiada — mas, por imprecisão das nossas notas de campo, não nos veio a ser possível identificá-las com exactidão e daí não terem sido assinaladas na figura. Na Fig. 12 encontram-se indicadas as casas que desempenham turnos nas rodas a 18 de Agosto, do mesmo ano de 1981, uma terça-feira em que houve convocação do conselho para cortar juncos e silvas no Couto de Baixo, operações de limpeza que se realizam por esta altura do Verão. O vizinho n.° 15 tem, a seu cargo, (neste mês de turno) a lâmpada e o sino. Os vizinhos n.os 20 e 21 guardam o gado; sob o primeiro recaía ainda o turno de guarda do rebanho das cabras que, no entanto, teve de trocar com uma casa mais à frente (a n.° 24) pois não tinha ninguém para mandar (o homem da casa fora para o conselho). O vizinho n.° 22 encontra-se no seu mês de turno de responsável pelo touro. O vizinho n.° 25, serve-se no seu dia de turno, do moinho comunal, cujo começo e ordem de utilização haviam sido decididos em sorteio realizado em 10 de Agosto, vindo aquele a recair (no dia 13) na casa n.° 20. Os vizinhos n.os 34 e 35 (uma pessoa por casa) guardam a boiada que saiu a pastar no Couto de Baixo.
Notes de bas de page
1 Pensamos em toda a Terra Fria trasmontana com a sua continuação para oeste pelas montanhas do Alto Minho; vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Dias (1948 e 1953), Fontes (1977), Bennema (1978), Guerreiro (1982), O’Neill (1981 e 1984).
2 Como em Vilarinho da Furna, para o desempenho semestral do cargo de Zelador da Junta (ou conselho), «à vez por todos os homens casados do lugar por ordem do casamento» (Dias, 1948:56); ou em Valdemora, em que os mordomos da irmandade são escolhidos segundo a antiguidade (como membros desta), corrigida pelo seu estatuto de casados (Freeman, 1970:42).
3 Este movimento que corresponde à expressão «à direita» constatámo-lo nós nas aldeias do norte e nordeste de Bragança, tendo procedido numa delas (Varge) ao registo de todas as situações em que se actualiza (8 rodas em 1981). É também esse o que se observa na aldeia leonesa de Santa Maria del Monte (Béhar, 1986) ou, ainda, nos percursos processionais da aldeia do Alto Minho estudada por Pina Cabral (1986: 134-150). No caso de Fontelas, Brian O’Neill refere, quanto à sequência das malhas pelas várias eiras da aldeia, a alternância anual do sentido que seguem, mas não dá informações precisas sobre a existência de uma orientação-base de referência estável e «correcta» a que noutros momentos se recorre, parecendo inclinar-se para a sua emergência aleatórea. Temos, no entanto, dificuldade em admitir uma aldeia como esta — pela sua inserção regional e pelos traços de organização comunal que, apesar de uma aparente fragmentação e diferenciação internas, manifesta — não orientada, ou seja, sem uma construção topológica que suporte, por exemplo (e no mínimo), o inventário menmónico das casas que a constituem feito por qualquer habitante. Aliás, uma referência do Autor parece igualmente ilustrar a pertinência desta questão, deixando-a em aberto: «a festa anual é organizada num sistema rotativo por três rapazes — os “mordomos”, (O’Neill, 1984: 166); permanece, pois, a pergunta: qual o critério da sucessão dos turnos? por que ordem?
4 Amos Rapoport fornece-nos o exemplo de aldeias da região báltica em que existe uma hierarquização (ou, talvez mais propriamente, cefalização) do espaço aldeão, com a preeminência de uma casa que ocupa o primeiro lugar na sequência enumerativa das casas e ordem topológica da aldeia — ali com um movimento cujo sentido é o dos ponteiros do relógio — à qual, simultaneamente, corresponde a posição social mais elevada (Rapoport, 1972: 71).
5 A morte, em Rio de Onor e em relação às últimas décadas, salvo para a limpeza do cemitério e o pedido de esmola para as almas (que mais adiante tratamos), não dá origem ao funcionamento de outras rodas, como em Valdemora para abrir os covais (Freeman, 1970: 63 e 104), ou os turnos associados ao complexo de práticas e rituais descritas por Douglas (1969) ou Ott (1980 e 1981 a) para o país Basco, ou por Ruth Béhar (1986: 174-179) para León.
6 É em torno de esses emissários enviados à cidade para tratar de assuntos de interesse comum que se foi construindo o anedotório que busca evidenciar, pelo risível, a suposta ignorância, atraso e ingenuidade do aldeão; dele fazem parte os célebres sapatos do conselho que o homem de serviço só calçava antes de entrar em Bragança com medo de os esmurrar («antes no meu pé que nos sapatos do conselho») que J. Dias registou para Rio de Onor; historieta que já ouvimos referida a outras aldeias trasmontanas.
7 Ruth Béhar descreve esse processo em Santa Maria del Monte, onde os trabalhos colectivos em equipa (e, também, por turnos) se distinguem entre «hacenderas de carro» (exigindo a prestação individual do carro e junta) e «hacenderas de a cuerpo» (apenas os vizinhos com as alfaias necessárias): «hoje todas as “hacenderas” são normalmente de a cuerpo; se é necessário fazer algum transporte a aldeia contrata os proprietários de tractores para realizar o trabalho» (Behár, 1986: 170).
8 O dono do 2 tractor, membro do conselho, pelo seu comportamento expansivo e inovador (e pela sua situação excêntrica, de profissional remunerado), talvez neste momento em que escrevemos já para tal o tenha oferecido (mesmo gratuitamente), assim se podendo dar um primeiro passo naquele sentido. Não se trata de uma previsão ou simples hipótese, mas do esboço de contexto social em que as inovações/transformações se produzem. Fê-lo, de facto, em 1990 (veja-se nota da pág. 188.)
9 De facto, apesar de em Rio de Onor ter vigorado uma data fixa, tradicionalmente estabelecida, para a abertura dos coutos à boiada — 12 de Maio (Dias, 1953: 176) —, não se apresenta hoje com rigor, se bem que seja sempre nos começos desse mês que finda a época de defeso para, de novo, serem os lameiros vedados aos animais nos começos de Novembro.
10 Anotação feita por um dos mordomos, no «Livro do conselho» em Outubro de 1955: «Remataram-se as bostas do dormideira».
11 Antes de o lagar comunal ter sido adoptado como estábulo do touro, este permanecia (ou apenas pernoitava, nos dias de boiada) no estábulo daquele vizinho que assumira a responsabilidade de tratar dele durante o ano.
12 O estrume animal, mesmo com a vulgarização e extensão actual do consumo de adubos químicos, continua a ser altamente valorado e com qualidades que estes não poderão substituir; daí que a guarda do touro por turnos mensais venha também a traduzir-se na partilha de um recurso, se bem que este benefício pareça, hoje, estar muito aquém da grande responsabilidade e incómodo do encargo.
13 Esta roda — que vimos funcionar em 1975 e 1976 — pode não ser accionada, sendo aquela alimentação adquirida pelo conselho a um outro vizinho. É a este facto que se referem as anotações dos mordomos em relação ao ano de 1979: «Paguei-lhe a A. D. da ferranha do touro a quantia de 700$00» e «Paguemos-lhe a D. da ferranha do touro 900$00»; o mesmo em 1981: «Ferranha de M. 1200 pts». Os três vendedores são vizinhos que não pertencem ao conselho (sem vacas, podem prescindir da ferranha), sendo o último da aldeia de Rihonor.
14 Baseamo-nos na leitura da tala da roçada daquele mesmo ano de 1908 de que falámos no Capítulo 2. As trinta e seis casas (espaços) aí constantes podem, eventualmente, incluir habitantes casados que continuam a fazer parte do seu grupo doméstico de origem e que pagaram o direito de entrar na roçada (a «patente»), sendo o número efectivo dos vizinhos mais baixo. É, todavia, apenas uma hipótese que suportamos com a informação que recolhemos sobre situações similares para os anos 30.
15 A preocupação com a utilização da totalidade dos recursos e com a sua igual distribuição fez com que, durante dois ou três anos, quando existiam dois rebanhos de ovelhas na aldeia, os proprietários dos animais que constituíam um deles tenham tentado o uso de cancelas para reter nas terras o estrume que estes produziam (particularmente valioso face à raridade do adubo), deslocando-as diariamente para cobrirem a totalidade das terras em pousio de que eram donos. Era no entanto um esforço considerado excessivo que logo viria a ser abandonado. Com um só rebanho, as ovelhas — de todos — adubam, se bem que aleatoriamente, as terras (e o monte) de todos.
16 A partir do arrolamento anual do gado da aldeia registado no posto local da Guarda Fiscal (para controlar eventuais movimentos de contrabando) elaborámos um quadro com os efectivos aproximados de ovelhas e cabras. Algumas das variações anuais podem resultar do momento do ano em que se procedeu à contagem e que não aparece no registo. O quadro poderia intitular-se «Os Serviços Florestais, o «25 de Abril» e as cabras»:
17 São estas mesmas razões que estão igualmente, na base da constituição, ao longo da década de 70, de rebanhos colectivos guardados por turnos entre os vizinhos proprietários em aldeias onde não existiam ou se multiplicavam por grupos de vizinhos impedindo ou tornando irregulares as condições iguais de acesso aos recursos colectivos — restolhos e monte, este reduzido com o avanço da floresta—, fenómeno que se acentuou a partir de 1975, com a devolução dos baldios às populações e a consciência de, de novo, disporem de um bem que é de todos. Tal se verificou em algumas das aldeias próximas de Rio de Onor (na Lombada); veja-se, quanto a Guadramil, Bennema (1989: 27). Um exemplo mais de relação entre a ausência de pastores e a activação locai dos turnos, nas montanhas cantábricas, aproximadamente, no mesmo período, pode ver-se em Lopez Linage (1978: 187). Outros exemplos destas variações, com desaparecimentos e aparecimentos das rodas de guarda dos gados, são patenteados pelos inquéritos feitos, nos anos 70, ao longo da raia trasmontana (J. S. Lourenço, 1981), zona acerca da qual J. Dias (1953) havia reunido profusa informação.
18 Numa outra situação em que a ordem topológica da aldeia é (ou tende a ser) reproduzida, mas fora do contexto do funcionamento das rodas, também o seu sentido se inverte; referimo-nos ao «desdobrar as sortes» aquando da preparação das augueiras nos coutos, formalismo decorrente da organização técnica do trabalho de que falámos ao descrever o conselho que, para esse fim, se realizou em 1976. É provável que a utilização do lagar tenha dado lugar, por motivação idêntica à da utilização do moinho, a este sorteio por quatro pontas com a consequente possibilidade de a roda «andar para trás».
19 Os contentores do lixo e a passagem do carro camarário para a sua recolha evocarão também novos modos de articulação e dependência de um poder mais central e urbano no sentido de algumas questões antes levantadas por Marc Guillaume (1977).
20 O escasso número de raparigas solteiras nos anos 80 faz com que todas, em conjunto, desempenhem a função, socorrendo-se ainda de mulheres casadas (sem qualquer recrutamento formal) para a limpeza e o arranjo da igreja.
21 A única, se atendermos à qualidade dos forasteiros recebidos, à regularidade com que vêm à aldeia e ao contexto ritual e cíclico dessa vinda. Até ao começo dos anos 50 também eles eram alimentados pelas casas da aldeia aquando da sua vinda para realizar as confissões do período quaresmal, numa roda de incidência mais ampla, pois com ela se respondia à presença de pessoas que aí vinham fazer ou tratar de algo que respeitava a toda a aldeia — capador, agentes da GNR, ocasional projeccionista de um filme, por exemplo. Com o desenvolvimento do transporte automóvel e as beneficiações de que a estrada foi objecto, estas situações foram rareando. Assim se autonomizou a roda da alimentação dos padres, sendo outros casos esporádicos remetidos para a roda do couto (como já vimos) ou dando lugar a uma hospitalidade selectiva por convite ou iniciativa de um vizinho, tendo por base um conhecimento ou relação pessoal anterior ou visando, promocionalmente, constituí-la.
22 Como dissemos, com as irregularidades patenteadas e com um número de membros do conselho nunca coincidindo, em absoluto, com a totalidade dos vizinhos, a roda nunca terá coberto todas as casas.
23 Voltaremos a falar desta inovação na estrutura interna das casas de habitação e nos valores que projecta e funções que cumpre.
24 Desconhecemos quando e como passaram a ser os vizinhos individualmente e não a aldeia a suportar os gastos com as comidas que, no seu turno, preparam, mas julgamos dever associar o facto ao contexto geral em que surgem as adaptações que foram sendo feitas para «acertar» o andamento da roda.
25 Os Guardas Fiscais que residem, em serviço, na aldeia — e não têm o estatuto de vizinho com os direitos e deveres correspondentes — estão excluídos da circulação desta roda, apesar de em alguns casos terem sido eles os primeiros a apresentar as casas melhor equipadas e em melhores condições de receber alguém de fora. Também por aqui se vê que a roda impede uma eventual afirmação social destes em prejuízo dos verdadeiros vizinhos que formam a aldeia e demarcam o seu universo de circulação.
26 O mesmo poderíamos dizer de Ruth Béhar (1986), se bem que a autora, pela leitura de um vasto corpus de documentos locais e a atenção às mutações recentes por que passou a aldeia, nos introduza no conhecimento de processos de transformação no tempo que permitem melhor interpretar e situar estruturalmente aquele princípio. Veja-se, contudo, o que em seguida se diz a propósito de um artigo mais recente de S.T. Freeman e lembremos, do mesmo modo, os trabalhos de Sandra Ott (1980, 1981 a e b), o autor que — ao organizar, em 1981, em Oxford o colóquio Forms of Cooperation and Reciprocity in Europe — abriu o campo a uma reflexão colectiva sobre as reciprocidades que se exprimem na circularidade dos turnos.
27 Para além dos exemplos retidos ao longo do presente capítulo que ilustram a capacidade de adaptação das rodas a situações novas, vejam-se outros em Freeman (1970: 163 e 166) ou Brandes (1975: 101), igualmente reveladores de um dinamismo que exprime a racionalidade económica e social do princípio que as activa.
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