Apêndice A. Festas do Espírito Santo, Povo e Clero
p. 269-282
Texte intégral
I
1Tivemos ocasião, no decurso deste estudo, de insistir sobre a relação de marcada autonomia que as Festas do Espírito Santo exibem em relação à Igreja.
2Essa autonomia expressa-se a vários níveis. Ela encontra-se desde logo inscrita nas modalidades de organização a que os festejos obedecem. Assim, quando estes resultam de promessa, esta suprime o padre enquanto mediador institucional entre o fiel e a divindade. O «contrato» é estabelecido directamente com a divindade e eventuais interferências do clero são mal aceites. Por outro lado, tanto as irmandades como outras formas de enquadramento institucional dos festejos encontram-se, como tivemos ocasião de sublinhar, totalmente independentes da Igreja. A própria estrutura das Festas é elucidativa do seu grau de autonomia em relação ao aparelho religioso. O dispêndio monetário que estas acarretam exclui quaisquer prestações canalizadas para o financiamento do culto usual. E a interferência do padre no desenrolar dos festejos circunscreve-se às bençãos de alimentos e à imposição da(s) Coroa(s) no quadro da coroação. Esta autonomia das Festas do Espírito Santo em relação à Igreja atinge ainda, em certos casos, expressões mais enfáticas. E o que se passa, como tivemos oportunidade de ver, em Santa Bárbara, onde o imperador, assumindo-se por um lado como um mediador na relação entre a comunidade e a divindade e, por outro, como uma figura por intermédio da qual é pensada a identidade da comunidade, usurpa momentaneamente funções religiosas e sociais usualmente atribuídas ao padre.
3Simultaneamente a esta autonomia, as Festas do Espírito Santo são marcadas em plano de relevo por um conjunto de formulações «sui generis» — em que avultam, para além das diferentes modalidades de circulação do alimento, cerimónias religiosas como as alumiações, as alvoradas e a própria coroação — que as tendem a situar no terreno daquilo que se convencionou chamar de «religiosidade popular».
4Devido a estas duas razões, as relações entre a Igreja e as Festas do Espírito Santo, quer ao nível central, quer ao nível local, não têm sido isentas de conflitos.
II
5Ao nível central, a Igreja, tem procurado por diversas vezes intervir nas Festas do Espírito Santo, através de um conjunto de «censuras e leis» — como lhes chama J. A. Pereira (1950) — emitidas tanto sob a forma de documentos episcopais, como sob a forma de proibições ou recomendações efectuadas por ocasião de visitas às diferentes paróquias do arquipélago.
6Para o período anterior ao séc. xix dispomos de um inventário parcial dessas «censuras e leis», realizado justamente por J. A. Pereira (1950). Nas Constituições do Bispado de Angra do Heroísmo, publicadas em 1560, depois de se constatar a presença de imperadores «em muitos domingos e festas do ano» (Pereira. J. A., 1950: 58), estatui-se que «não se façam festas de Imperadores senão na festa do Espírito Santo» e «nas procissões de CorpusChristi, Visitação ou do Anjo» e que, em qualquer dos casos, não «haja dois, nem Imperador e Imperatriz juntamente, senão um só». As Constituições advertem ainda que «quando entrarem nas igrejas com o Imperador ou Imperatriz, entrem honestamente sem arruído de vozes e sem tangeres, nas quais igrejas não estarão mais tempo que aos ofícios divinos ou fazer oração e passar» (id., ibid.: 59). Alguns anos mais tarde o bispo D. Jerónimo Teixeira (1600-1612) proibiu que os foliões «bailassem na Capela-mór das Igrejas» tendo um seu visitador acrescentado a essa proibição a de os foliões entrarem «na igreja a cantar cantigas profanas» (id., ibid.) Em 1645, um outro visitador eclesiástico proibiu na freguesia dos Altares (Terceira) a deslocação do pároco a casa do imperador: os «ministros eclesiásticos não assistirão à mesa dos imperadores nem irão a suas casas a dar-lhes o ceptro nem tirar-lhes a coroa» (id. ibid.). Mais tarde, o Bispo Dom António Vieira Leitão (1694-1714) proibiu por seu turno os Impérios de mulheres, argumentando com os «enfeites indecorosos e profanos de que as ditas mulheres usam em tais actos» e com o «concurso de homens que a eles vão com práticas indecentes e outras enormidades de que resulta geral escândalo» (id., ibid.: 60). O mesmo Bispo determinou ainda que «não houvesse em cada freguesia mais do que um Império do Espírito Santo» (id., ibid.). No artigo que temos vindo a citar são ainda referidas duas Pastorais, datadas respectivamente de 1841 e 1843, em que são feitas referências, de tom bastante violento, às Festas do Espírito Santo. Na primeira o Bispo adverte os fiéis «que se abstenham daqueles divertimentos que, em si e nas suas circunstâncias, envolvam crimes e pecados, como são os que se cometem nos dias da coroação do Espírito Santo, debaixo do falso pretexto de mais festejo e devoção» (id., ibid.). Na segunda são reprovados «os abusos, os excessos criminosos de qualquer natureza que sejam, com que se tem praticado e se houver de praticar a mais bem entendida devoção deste Senhor» (id., ibid.: 60-61).
7Mas é sobretudo a partir do último quartel do séc. xix — com a criação, em 1875, do «Boletim do Governo Eclesiástico dos Açores» — que a intervenção da Igreja se torna mais sistemática. Em 1876, o Bispo Dom João Maria Pimentel, depois de constatar que «em algumas freguesias há o costume de nos bodos do Espírito Santo acompanharem Imagens de Santos o préstito, com o título de pagens da coroa» ordena que «daqui em diante nenhuma Imagem saia da sua Igreja ou Capela para acompanhar tais préstitos» (Pastoral, 1876: 323-324). Em 1881, o mesmo Bispo, numa «Circular aos Mtos. Revdos. Párocos», depois de fazer alusão a «providências» tomadas pelos seus antecessores em relação às Festas do Espírito Santo, constata que, apesar delas, «novos abusos aparecem que é indispensável reprimir». Assim, têm sido introduzidas nos festejos «coroas de lata, as quais se põem em exposição pública em casas particulares, onde se reúnem muitas pessoas a título de honrarem o Divino Espírito Santo, mas onde é na verdade desacatado; porque em lugar de se dedicarem essas pessoas à oração e actos de piedade, se entretêm em jogos, danças e actos profanos, com que se ofende e não honra a Divindade; e que muitas vezes, para pretexto de tais festas, se fazem votos indiscretos, que é conveniente coibir. Que da mesma sorte se abusa também muitas vezes da exposição das coroas decentes de prata no tempo que decorre entre o Domingo de Páscoa e a Dominga da SS. Trindade» (Circular…, 1881a: 250-251). Para reprimir tais «abusos», a Circular determina: «1.° Que ninguém se ache habilitado para benzer coroas do Espírito Santo que não sejam de prata. 2.° Declaramos profanadas e indignas do culto dado ao mesmo Santo Espírito todas as coroas que não forem daquele metal. 3.° Proibimos novamente que se exponha a Coroa do Espírito Santo, e se façam festas ao mesmo fora do tempo que decorre da dominga de Páscoa à da SS. Trindade, sem licença nossa ou do Mto. Rvdo. Ouvidor, ouvido o respectivo Pároco: a qual se não concederá senão por justos e ponderosos motivos. 4.° Por ocasião de estar a coroa em casas particulares, não se praticarão ali outros actos que não sejam de oração e piedade. 5.° Logo que outra coisa conste ao respectivo Pároco, mandará tirar de tal casa a coroa de que se tenha abusado, e não prestará honras algumas religiosas a tais festas. 6.° As coroas decentes destinadas ao culto público serão conservadas nas Igrejas e, em casas particulares, só com licença do respectivo Pároco, não sendo licito expô-las ao culto público e iluminá-las, a não ser no tempo pascal declarado, ou com a necessária licença (…). 7.° É inteiramente proibido coroar mulheres, ainda menores, e de qualquer modo que seja» (id. ibid.: 251). Ainda no mesmo ano, numa nova Circular, são por seu turno proibidas as mascaradas a que, nalguns lugares, as Festas do Espírito Santo dariam origem (Circular…, 1881b: 274-275).
8Alguns anos depois, em 1894, no seguimento das «Conferências do Clero» de Angra, são tomadas também um conjunto de «Resoluções» relativas às Festas do Espírito Santo. A linguagem é porém muito diferente da utilizada nas «Circulares» que acabámos de referir. Depois de constatarem «que a devoção mais simpática e que se manifesta com mais entusiasmo de fé ardente no povo açoriano é, sem dúvida alguma, a devoção à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade» (Resoluções…, 1895: 129), as Resoluções acrescentam que «com esta devoção tão popular se dá uma especialidade, que não se encontra em qualquer outra, e consiste ela em que o povo é que tem legislado, permita-se o termo, sobre o modo de prestar este culto, e que por isso não admira que haja alguns abusos filhos do seu delírio religioso» (id., ibid.: 130). Entre esses abusos contar-se-iam: a) «o andar a coroa do Espírito Santo, levada por homens ou rapazes, em peditório pelas ruas e praças públicas e até pelas tabernas» (id. ibid.); b) «não só deixar de se prestar o costumado culto do Espírito Santo nas casas que recebem a coroa, mas praticar-se ali actos bem pouco próprios da ocasião, tais como danças, jogos, descantes populares e outros divertimentos profanos» (id., ibid.); c) «levantarem-se impérios nos cantos das ruas e nos quais quase sempre se expõem ao culto público coroas de lata e portanto profanadas» (id. ibid.: 131); d) «o costume de serem feitas em casa as coroações» (id., ibid.); e) «o modo pouco regular como muitas vezes são feitas as mudanças de coroas», como «quando o acompanhamento se realiza à noite, à luz dos archotes, com mulheres em cabelo» (id., ibid.: 132). Considerando serem de combater estes e outros abusos — todos eles já denunciados e até proibidos em documentação anterior — as Resoluções entendem entretanto que, para o efeito, «não há outro meio senão o zelo religioso do pároco, manifestado em exortações paternais, feitas com prudência, de modo a calar profundamente no ânimo dos paroquianos» (id., ibid.: 130), acrescentando — em contradição com o estipulado numa das Circulares de 1881 — que «o pároco deve sempre prestar as honras devidas ao emblema do Divino Espírito Santo, não obstante a existência de qualquer abuso, e mesmo quando a desobediência às suas determinações seja motivo para deixar de coroar o respectivo imperador» (id., ibid.: 135). Na mesma linha, as Resoluções insistem ainda que «o pároco deve ser completamente estranho a tudo o que diz respeito à administração dos impérios» só lhe cabendo «olhar pelos actos que se praticam diante da coroa, a fim de evitar irreverências» (id., ibid.: 134). Por fim, as Resoluções procedem à regulamentação litúrgica da cerimónia da coroação1, insistindo em que «é conveniente que a pessoa que tem de ser coroada se confesse e comungue nesse dia para assim dar testemunho bem claro de que o sentimento religioso foi quem promoveu aquele acto» (id., ibid.: 132) e especificam que «todo e qualquer fiel do sexo masculino poderá ser admitido à coroação; e do sexo feminino até à idade de dez anos» (id., ibid.: 133).
9Em 1924, a cerimónia da coroação é de novo alvo de uma determinação episcopal que a torna indissociável da missa, sendo novamente proibidas as «coroações em casas particulares e impérios» (Coroações, 1924: 273). Em 1925, uma outra Provisão, ao mesmo tempo que confirma estas determinações, especifica que, quando eventualmente autorizadas «fora do tempo da missa», as coroações «serão efectuadas em seguida a qualquer outro acto de devoção e piedade, como a recitação do Terço de Nossa Senhora, a Hora de Adoração ao Santíssimo Sacramento, etc…» (Provisão, 1925: 43).
10Em 1959, é de novo adoptada legislação referente às Festas do Espírito Santo. A linguagem usada é, tal como nas Provisões de 1895, bastante moderada. Pondo em evidência a religiosidade do povo açoriano, o Bispo Dom Manuel Afonso de Carvalho refere que «neste ambiente de alta religiosidade, uma devoção há que se distingue das demais, já pelo seu fundamento, pois é a base de toda a santidade, já pela importância do seu objecto, indo directamente à SSma. Trindade — a devoção ao Divino Espírito Santo. Não há certamente terra nos Açores, lugar por mais recôndito ou afastado onde se não tenha ouvido falar, fiel por mais rude, que não conheça o Divino Espírito Santo. Aqui, graças sejam dadas ao Senhor, não acontece o que nos vem descrito nos Actos dos Apóstolos, quando S. Paulo visitou os Efésios e, tendolhes perguntado se haviam recebido o Espírito Santo, obteve como resposta: nem sequer ouvimos se o Espírito Santo existe [Act. XIX, 2], Todos os fiéis, felizmente conhecem, amam e honram o Divino Espírito Santo com um culto especial» (O Culto do Divino Espírito Santo, 1959: 431). Entretanto, refere o documento, a «forma exterior» desse culto «nem sempre e em todos os lugares estará conforme à doutrina da Santa Igreja. Urge, portanto, não destruir, não menosprezar ou censurar as atitudes do povo bom, mas orientá-lo, formálo nos princípios da verdadeira doutrina, para que, mais e melhor, preste culto à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade» (id., ibid.: 432). Com esse objectivo são, em primeiro lugar, confirmadas algumas censuras e leis anteriores. Assim, «não serão permitidos, por ocasião das festas do Espírito Santo, divertimentos profanos que redundem em ofensa de Deus nem tolerados cortejos com meninas de idade superior a 12 anos completos e não decentemente vestidas» (id., ibid.: 433). Quanto às coroações deverão realizar-se «imediatamente antes da missa ou no fim da mesma, conforme os costumes locais, apenas durante o tempo pascal, a não ser em casos especiais mediante licença nossa dada por escrito» (id., ibid.). Simultaneamente — e no seguimento de uma recomendação já formulada por ocasião das Resoluções de 1895 — é instituída a criação obrigatória, em todas as paróquias, de uma «Irmandade do Espírito Santo, com personalidade jurídica» (id., ibid.: 432) à qual deverão pertencer todos aqueles que tomem «parte activa em actos de culto ao Divino Espírito Santo» (id., ibid.: 433). Inspiradas num modelo estatutário único, inserido em anexo, essas irmandades parecem ter como objectivo proceder a um enquadramento eclesiástico do culto do Espírito Santo. É aliás conhecido que no decurso da prelatura do Bispo Dom Manuel Afonso de Carvalho houve algumas tentativas, baseadas em directrizes episcopais, de colocar sob a alçada da Igreja os fundos administrados pelos Impérios.
III
11Ao nível local, são também conhecidas tentativas de interferência do clero relativamente a aspectos da organização tradicional das Festas do Espírito Santo, usualmente geradoras de incidentes com as populações.
12Um desses incidentes foi objecto de uma «Pastoral aos Fiéis da Freguesia de N. S. dos Remédios da Fajãzinha das Flores», assinada por Dom João Maria Pimentel (Pastoral aos Fiéis…, 1876: 289-292). Depreende-se do texto da Pastoral que teria havido um conflito entre parte da população e o pároco local sobre o papel que este deveria desempenhar nos festejos. No seguimento, a freguesia parece ter-se dividido em dois «partidos» rivais, cujas hostilidades teriam desencadeado uma intervenção policial da autoridade administrativa (id., ibid.: 290). Incidentes com características similares são reencontráveis noutras freguesias açorianas. Sem preocupação de exaustividade, vale a pena referir alguns dos que tomámos conhecimento no decurso da nossa pesquisa de terreno nos Açores.
13Ainda nas Flores, mas na freguesia de Ponta Delgada, teve lugar nos anos 60 e 70 um conflito de longa duração entre a população da freguesia e o pároco, aparentemente provocado por tentativas de ingerência deste na administração dos fundos dos Impérios. Na freguesia existiam quatro Casas do Espírito Santo que promoviam festejos distintos e, entre 1967 e 1974, três delas, como forma de protesto contra a acção do padre, deixaram de promover os respectivos Impérios. Formaram-se dois «partidos» na freguesia, um a favor do padre, outro contra ele, e, no decurso desse período, os elementos mais em evidência do «partido» contrário ao padre nem sequer frequentavam a missa dominical.
14Em Santo Antão (São Jorge), nos anos 40, o pároco local tomou também algumas iniciativas contra as Festas do Espírito Santo. Entre elas, conta-se a retirada de circulação, à revelia da população, das tochas usualmente utilizadas no acompanhamento das mudanças de Coroa. Mais tarde, tirando partido de um incidente ocorrido no decurso da estada das Coroas em casa de um mordomo — o soalho da divisão em que estava instalado o altar do Espírito Santo cedeu devido ao peso das pessoas que lá se encontravam — o padre proibiu a instalação das Coroas em casa dos mordomos que tinham a seu cargo a promoção dos festejos. Embora tenham sido invocadas razões de segurança, o verdadeiro propósito do padre era, segundo é afirmado localmente, o de pôr termo aos «divertimentos» a que dava tradicionalmente lugar a realização do terço. Embora, nestes dois casos, não tenha existido uma reacção organizada da população contra essas medidas, elas foram exploradas — no âmbito de um conflito que tivémos ocasião de referir no Capítulo 9 — pelo «partido do médico» como forma de aprofundar a contestação ao «partido do padre».
15Em Santa Bárbara (Santa Maria), os anos 40 foram também assinalados por um conjunto de incidentes entre o pároco e a população da freguesia em torno dos Impérios. Apresentado como particularmente adverso ao culto do Espírito Santo — «aquele homem não tinha fé no Espírito Santo» — esse padre tomou um conjunto de iniciativas contra os Impérios: violentas prédicas na Igreja contra os festejos, pressões sobre pessoas que estavam «devendo promessas ao Espírito Santo» para que as satisfizessem de outra forma, recusas em coroar imperadores, e, sobretudo, a destruição de uma das duas Coroas então afectas à Igreja paroquial, com o argumento de que a prata poderia ser melhor utilizada para o fabrico de alfaias litúrgicas de que a Igreja estava carecida; a Coroa veio efectivamente a ser fundida com esse objectivo e, devido ao facto, esse padre ainda hoje é referido, entre as pessoas mais idosas, como «o padre que conseguiu levar o Espírito Santo à frigideira». Mais recentemente, no decurso dos anos 80, um outro padre que esteve à frente da freguesia tomou também algumas atitudes de hostilidade em relação aos Impérios, tecendo publicamente críticas a alguns dos seus aspectos, pressionando igualmente alguns imperadores para mudanças de promessa e chegando mesmo ao ponto de se recusar a benzer um Jantar. Esta última atitude suscitou na altura uma forte celeuma na freguesia: além de críticas generalizadas, houve mesmo quem de forma velada falasse na necessidade de «dar uma lição ao padre».
IV
16A partir de factos idênticos a estes, certos autores têm proposto uma caracterização particularmente radical da relação entre as Festas do Espírito Santo e a Igreja nos Açores. É o caso de Mari Lynn Salvador. Para ela, «a crença no Espírito Santo baseia-se na teologia católica. No entanto, as celebrações açorianas do Espírito Santo são sancionadas, apenas de forma relutante, pela Igreja. Elas têm uma longa história de conflito com a Igreja e resistiram, com sucesso, às tentativas deliberadas de as banir» (Salvador, 1981: 46). «Estas celebrações não são aceites pela Igreja Católica, apesar da participação ocasional de padres isolados. Ao longo dos séculos e, mais recentemente, nos anos 50, os esforços sistemáticos para erradicar o ritual encontraram uma resistência firme e bem sucedida nos Açores» (id., ibid.: 49).
17Torna-se difícil subscrever este tipo de formulações. Ao nível da legislação episcopal, não só não se descortina um propósito explícito de proibir ou erradicar as Festas como uma análise mais cuidada dessa produção legislativa se encarrega de pôr em evidência o seu alcance algo limitado. De facto, as «censuras e leis» adoptadas ao longo dos tempos pela Igreja açoriana acabam por se concentrar num número restrito de aspectos da organização ritual das Festas do Espírito Santo. No plano repressivo, as suas preocupações centrais são, por um lado, a de evitar o que é definido como atitudes de «desrespeito» e «irreverência» em relação à Coroa do Espírito Santo, e, por outro, a de disciplinar ou mesmo eliminar alguns «divertimentos profanos» a que os festejos dariam lugar e que a Igreja considera incompatíveis com os propósitos religiosos do culto do Espírito Santo. No plano normativo, essas «censuras e leis» têm como objectivo central inscrever algumas formas de religiosidade próprias do culto do Espírito Santo no quadro das formas oficiais de devoção católica: as diversas tentativas de regulamentação da cerimónia da coroação são particularmente expressivas desta última linha de acção.
18Isto é: no fundamental, e tendo em conta a estrutura geral das Festas do Espírito Santo, pode-se dizer que a intervenção da Igreja mantém intocáveis os aspectos estruturadores centrais do ritual, em particular aqueles em relação aos quais se poderia esperar uma actuação mais firme da Igreja. É o que se passa com a marcada autonomia das Festas do Espírito Santo face ao aparelho religioso. Esta não só não é posta em causa como é explicitamente admitida pela Igreja, quando, por exemplo, esta constata, nas «Resoluções das Conferências do Clero de Angra» de 1894 que em matéria do culto do Espírito Santo «o povo é que tem legislado» (Resoluções…, 1895: 130), ou, quando nas mesmas «Resoluções…» se recomenda ao clero que se afaste da administração dos Impérios. Postura idêntica havia aliás sido adoptada já em 1876, pelo Bispo Dom João Maria Pimentel. No seguimento dos incidentes registados em torno das Festas do Espírito Santo da freguesia da Fajãzinha (Flores) a que atrás fizemos alusão, determinou-se que «os párocos não se intrometam (…) nos negócios temporais» das irmandades do Espírito Santo, «nem se encarreguem ou tomem parte na administração de seus fundos e rendimentos» (Pastoral aos Fiéis…, 1876: 330). Mais recentemente, em 1959, é significativo que a criação de Irmandades do Espírito Santo de acordo com um modelo eclesiasticamente definido não tivesse como objectivo a substituição das estruturas tradicionais de enquadramento institucional das Festas, que se mantiveram intactas. De forma idêntica, o conjunto de formulações que de uma forma mais clara tendem a adscrever as Festas do Espírito Santo ao terreno da «religiosidade popular» são também ignorados pela legislação episcopal. A este respeito é elucidativo o confronto com a situação existente na Madeira. Aí, segundo Nelson Veríssimo, que transcreve alguns documentos alusivos, «as proibições das autoridades eclesiástica e civil mutilaram os festejos: regulamentações do Governo Civil limitaram a exteriorização da Festa, o arraial; provisões episcopais restringiram as insígnias das visitas domiciliárias do Espírito Santo, proibiram músicas e cantigas, baniram as cerimónias da coroação» (Veríssimo, 1988: 5).
19Por outro lado, mesmo circunscrevendo a sua acção a um número limitado de problemas, a Igreja tem consciência das dificuldades de implementação da sua própria legislação. Não é por acaso que uma parte importante das «censuras e leis» que passámos em revista é algo repetitiva. Por exemplo, parte das medidas tomadas em 1959 pelo Bispo Dom Manuel Afonso de Carvalho, reedita disposições anteriormente adoptadas pelas «Conferências do Clero de Angra» de 1884, que, por sua vez, repetem parte substancial da legislação contida na Circular de 1881 do Bispo Dom João Maria Pimentel. Neste documento, essa ineficácia da legislação episcopal é aliás explicitamente admitida: depois de se fazer alusão a providências anteriormente tomadas em relação aos abusos a que as Festas do Espírito Santo dariam lugar, constata-se não apenas a inoperância dessas providências como se refere o aparecimento de «novos abusos» (Circular, 1881a: 250). Esta dificuldade de implementação da legislação adoptada transparece também na mudança de linguagem que ocorre entre a Circular de 1881 e as «Resoluções das Conferências do Clero de Angra» de 1894. Enquanto que na primeira, se estipula a recusa da coroação para todos aqueles que infringirem as medidas aí definidas, na segunda, admite-se, de uma forma mais realista, que «o pároco deve sempre prestar as honras ao emblema do Divino Espírito Santo» (Resoluções…, 1895: 135) e que o único meio de combater os «abusos» é o «zelo religioso do pároco, manifestado em exortações paternais, feitas com prudência» (Id., ibid.: 130).
V
20Quanto à actuação do clero ao nível local, há que levar em conta que os incidentes relatados são mais as exepções do que a regra. Em Santa Bárbara, por exemplo, a actuação dos dois párocos que se destacaram nas suas tentativas de combate ao culto do Espírito Santo não invalida um ambiente geral de coexistência entre povo e clero em torno dos Impérios. Não deixa aliás de ser significativo que esses dois párocos, como é referido localmente, «não tenham durado muito à frente da freguesia»: o primeiro viu-se forçado a abandoná-la ao fim de um ano e meio e o segundo deixoua após cinco anos de ministério, não sem que no decurso desse período se tivesse criado um forte movimento de opinião contra ele. No caso de Santo Antão, é também significativo que a par do padre que referimos acima, as pessoas recordem igualmente um outro padre — oriundo da Terceira — que teve em relação às Festas do Espírito Santo uma actuação completamente distinta; não só era «muito amigo do Espírito Santo», estimulando o desenvolvimento dos festejos, como lhe é geralmente atribuída a iniciativa de introduzir, na estrutura das Festas propriamente ditas, o bodo de leite. Em Santa Bárbara, aliás, existe um caso muito similar a este: o de um padre que tendo paroquiado a freguesia durante cerca de duas dezenas de anos, ao ser-lhe atribuída uma nova paróquia em São Miguel, tomou a iniciativa de promover «Impérios à moda de Santa Maria»2. Isto é: se uma porção do clero local tem em relação às Festas do Espírito Santo uma atitude hostil e conflituosa, a maioria mantém uma postura mais consensual, registando-se mesmo casos, como acabámos de verificar, de padres que possuem uma certa empatia em relação ao ritual.
21É à luz deste quadro que é possível entender em grande medida o baixo índice de implementação da legislação eclesiástica que referimos atrás. De facto, embora grande parte dessa legislação — em particular a que foi publicada no «Boletim do Governo Eclesiástico dos Açores» a partir da segunda metade do séc. xix — se encontre ainda em vigor e seja do conhecimento geral dos párocos — que possuem nas suas paróquias uma colecção completa do referido Boletim — numerosas disposições são correntemente infringidas, perante a atitude contemporizadora do clero local. É o que se passa, em quase todo o arquipélago, com a articulação das alumiações, terços ou alvoradas com divertimentos e cantigas de carácter não-religioso. É o que se passa, em inúmeras freguesias do arquipélago, com a participação da Coroa em peditórios «pelas ruas e praças públicas», ou, ainda, com as disposições relativas à participação na coroação — ou nos cortejos que a rodeiam — de raparigas maiores de 12 anos. A própria existência de Irmandades do Espírito Santo, de acordo com o modelo estatutário adoptado em 1959, é também muito irregular: a par de freguesias onde estas foram efectivamente criadas, em muitas outras, nunca existiu nenhum esforço consistente nesse sentido. Assim, das cinco freguesias da ilha de Santa Maria, só duas delas — Santa Bárbara e Santo Espírito — possuíam, em 1987, irmandades desse tipo.
22Finalmente, há ainda que considerar que alguns dos conflitos entre clero local e povo em torno das Festas do Espírito Santo que recenseámos atrás se inscrevem num quadro mais global onde avultam questões que têm antes do mais a ver com a esfera do político — em particular com questões de liderança local — e só secundariamente assumem a natureza de um conflito centrado na maior ou menor conformidade das Festas do Espírito Santo em relação à doutrina da Igreja. Mais uma vez, Santa Bárbara fornece um bom contexto de exemplificação. As iniciativas hostis relativamente aos Impérios tomadas pelo pároco que referimos em segundo lugar, inseriam-se de facto num contexto global de afrontamento com alguns dos líderes locais mais em evidência aquando da chegada do padre à freguesia. Visando o reforço da sua posição política, o padre moveu-lhes um combate surdo mas contínuo, ao mesmo tempo que procurava estimular o aparecimento de uma nova elite política local, colocada sob o seu controlo e favorável à sua acção. Ora alguns dos líderes que o padre hostilizava ocupavam posições de relevo na estrutura local dos Impérios, uma vez que exerciam com regularidade a função de copeiros (cf. a este respeito as pp. 43 e 44 do Capítulo 2). É sobretudo nesse quadro que se deixam compreender algumas das iniciativas tomadas pelo padre em relação aos Impérios. O que estava em causa não era tanto o culto do Espírito Santo e a sua maior ou menor conformidade em relação à «religião oficial», mas sobretudo uma estratégia de erosão de uma das bases em que assentava a autoridade dos líderes tradicionais. Não deixa a este respeito de ser significativo que simultaneamente a essas iniciativas hostis em relação aos Impérios, o referido padre tenha sido uma das figuras determinantes no relançamento do Império de São João (cf. Capítulo 2, p. 63). Quer dizer: a hostilidade contra os Impérios era menos uma hostilidade contra os Impérios em si, mas mais um instrumento, dotado de uma certa ambivalência, na luta pelo poder político ao nível local.
23Algo similar parece ter-se passado em Santo Antão, nos anos 40. Comentando a acção do padre relativamente às Festas do Espírito Santo, as pessoas tendem de facto a sublinhar o modo como, por detrás dela, mais do que uma simples animosidade em relação aos festejos, se perfilava uma estratégia de afirmação da autoridade do padre em relação ao «partido do médico». É aliás elucidativo que o incidente que levou à interdição da estada das Coroas em casa dos mordomos tenha tido lugar em casa de um dos mais proeminentes activistas do «partido do médico».
VI
24Uma parte da produção recente em Antropologia e História das Mentalidades acerca das práticas e crenças colocadas debaixo do epíteto de «religiosidade popular» tem encarado esta como uma espécie de «corpus» passivo invariavelmente submetido à repressão da «religião oficial».
25Os dados respeitantes às Festas do Espírito Santo nos Açores mostram entretanto um quadro mais complexo. Sem que a animosidade e a repressão estejam ausentes, elas estão longe de resumir a atitude da Igreja em relação às Festas do Espírito Santo. Esta, tanto ao nível central como ao nível local, assume um tom predominantemente ambivalente, que oscila entre os pólos opostos da repressão — mas de um repressão algo limitada nos seus objectivos — e da tolerância.
26Uma constatação similar foi feita, para o período da Contra Reforma, por Fernanda Enes. Depois de passar em revista um conjunto de proibições relativas às Festas do Espírito Santo3, a autora sublinha que estas não põem em questão as bases mesmas do culto: «é estranho que a actuação da hierarquia nesta diocese, mesmo daqueles cujo espírito é nitidamente reformador, não enverede pela repressão dessas confrarias [do Espírito Santo], Não há, aliás, qualquer citação às irmandades do Espírito Santo nas visitação pastorais analisadas, ao contrário do que acontece com outras irmandades e confrarias (…). Nenhum visitador proíbe as irmandades do Espírito Santo ou as suas festas» (Enes, 1985: 160). A autora interroga-se em seguida sobre as razões desta situação: «procurariam os reformadores controlar uma expressão da piedade popular, sem pôr em risco o decréscimo da devoção ao Espírito Santo? Ou o enraizamento e o papel de sociabilidade que elas desempenhavam no seio das comunidades não permitiam maior rigor repressivo? Ou, por outro lado, os visitadores não eram sensíveis às contradições que os ritos desta festa apresentavam em relação à pastoral tridentina?» (id., ibid.).
27Formuladas a propósito do relacionamento entre a Igreja açoriana e as Festas do Espírito Santo no período da Contra Reforma, algumas das razões sugeridas por esta autora são susceptíveis de se aplicarem ao material que temos vindo a analisar. Assim, o fortíssimo enraizamento das Festas do Espírito Santo nas populações do arquipélago — tanto do ponto vista religioso, como do ponto de vista sociológico — parece ter funcionado ao longo dos tempos como um importante obstáculo a eventuais veleidades repressivas ou mesmo reformadoras, explicando designadamente o limitado alcance das «censuras e leis» emitidas pelas autoridades eclesiásticas. Quanto à insensibilidade do clero relativamente às contradições entre as Festas do Espírito Santo e certos aspectos da pastoral oficial da Igreja, ela é particularmente evidente ao nível local. De facto, maioritariamente de extracção local e de origem camponesa, «demasiado bem integrado na comunidade rural» (Vovelle, 1982: 150), educado num ambiente religioso e social marcado pela importância das Festas do Espírito Santo, o clero local açoriano parece particularmente mal colocado para se preocupar com as eventuais contradições entre as Festas do Espírito Santo e a «religião oficial».
Notes de bas de page
1 Essa regulamentação litúrgica ainda se encontra em vigor. Tivemos ocasião de referir alguns dos seus aspectos mais importantes aquando da descrição da cerimónia da coroação na freguesia de Santa Bárbara (cf. Capítulo 2, p. 46).
2 Esses Impérios têm tido lugar na freguesia do Cabouco. O primeiro realizou-se em 1987 e contou com a participação de alguns especialistas rituais de Santa Bárbara: copeiro, foliões, mestra, etc...
3 Além de algumas das «censuras e leis» referidas por J. A. Pereira (Pereira, J. A., 1950), Fernanda Enes acrescenta a proibição decretada em 1678 por D. Fr. Lourenço de Castro, de se coroarem «imperadores antes de acabada a missa» ou de lhes permitir «a entrada na igreja com a cabeça coberta» (Enes, Fernanda, 1985: 161). Do Livro de Visitas de São Pedro Nordestinho (São Miguel) de 1743, a autora extrai ainda a seguinte menção: «tivemos notícia que quando os Imperadores do Espírito Santo se iam coroar à Igreja ou ermidas entravam com o chapéu na cabeça, e que depois de se entrar ao canon da Missa estavam com as Coroas na cabeça, e que se lhe dava o Evangelho a beijar as quais coisas reprovamos como abusos introduzidos e não praticáveis; em cujos termos mandamos ao reverendo vigário sob pena de muito lhe entrarmos não consinta que os imperadores usem as referidas cerimónias» (id., ibid.).
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