Capítulo 8. Outras Ilhas, Outras Festas
p. 165-190
Texte intégral
I
1A unidade e a diversidade que caracterizam os Açores têm sido persistentemente sublinhadas.
2Em dois ensaios clássicos de Vitorino Nemésio (Nemésio, 1986a; 1986b) essa dialéctica foi surpreendida por referência à psicologia colectiva dos insulares. Baseada em critérios eminentemente impressionistas, essa forma de encarar a unidade e a diversidade dos Açores reencontra-se em tentativas posteriores de equacionar o problema, oriundas sobretudo da área da literatura (cf., por exemplo, Almeida, Onésimo T., 1980 e 1989). Simultaneamente, aproximações mais parcelares a essa dialéctica têm sido conduzidas a partir do ponto de vista da geografia humana (cf. Ribeiro, Orlando, 1955) e da etnologia (cf. Furtado, 1884 e Ribeiro, Luís 1983 e, mais recentemente, Martins, Rui Sousa, 1989)
3Com argumentos variáveis o que se procura pôr em evidência é, por um lado, a singularidade e unidade dos principais motivos que presidem à cultura açoriana, e, por outro, a diversidade de formas que esses motivos adquirem no interior do arquipélago.
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4É para essa dialéctica entre unidade e diversidade que nos remetem as Festas do Espírito Santo. Presentes em todo o arquipélago, confígurando-se como um dos traços centrais da unidade e da especificidade dos Açores enquanto «área cultural», as Festas do Espírito Santo apresentam simultaneamente uma grande diversidade, entre os diferentes grupos de ilhas, de ilha para ilha, e, mesmo, por vezes, dentro de cada ilha, de freguesia para freguesia.
5Essa diversidade cristaliza-se na existência, ao longo do arquipélago, de cinco grandes variantes das Festas do Espírito Santo. Uma delas é constituída pelos Impérios de Santa Maria. Simultaneamente, é possível detectar a existência no arquipélago de quatro outros grandes modelos de organização dos festejos. O mais difundido e conhecido encontra-se nas ilhas do grupo central. Atingindo a sua forma mais elaborada na Terceira, em São Jorge e no Pico, este modelo reencontra-se ainda na Graciosa. Além de excepções pontuais — designadamente na Terceira — a única ilha que, no grupo central, se afasta deste tipo estrutural, é a do Faial, onde prevalece uma variante distinta de organização dos festejos. Um outro modelo do ritual é o que podemos encontrar em São Miguel. As Flores e o Corvo, por fim, constituem a área de difusão da última variante (cf. mapa 8)1.
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6As diferenças entre estas cinco variantes dizem fundamentalmente respeito aos grandes motivos caracterizadores das Festas do Espírito Santo. As variações mais significativas são as que se relacionam com a estruturação genérica do ritual, com o conteúdo e características principais da sua vertente alimentar e, por fim, com o tipo de cerimónias religiosas que eles compreendem.
7A par destes grandes motivos, existem outros de natureza mais específica, cuja variação ao longo do arquipélago obedece a padrões aparentados, embora não directamente sobreponíveis. É o que passa quanto à composição das folias2. De facto, a par do modelo de folia característico de Santa Maria são ainda detectáveis no arquipélago os seguintes tipos principais de folias: a) a folia do grupo central — que se compõe de um tambor e de um pandeiro, além do «porta-bandeira» — característica das ilhas da Terceira, São Jorge, Pico, Graciosa e Faial e ainda, da parte oriental da ilha de São Miguel3; este tipo de folia apresenta algumas variantes menores — assim, em certos casos, o pandeiro desaparece, podendo ser eventualmente substituído por um tambor suplementar4; b) a folia de São Miguel — de origem recente, é hoje a mais difundida na ilha; integra um pandeiro, viola, rebeca e ferrinhos; c) a folia das Flores e Corvo — composta por um tambor, testos5 e dois cantadores, um dos quais o «porta-bandeira»; tradicionalmente esta folia integrava também um pandeiro, entretanto caído em desuso.
8A arquitectura religiosa de apoio às Festas do Espírito Santo apresenta também alguns pontos comuns com o padrão de distribuição regional das cinco principais variantes das Festas do Espírito Santo. Em Santa Maria, como vimos, existiam dois edifícios vinculados ao culto do Espírito Santo-o teatro e a copeira. Desses edifícios, um deles — o teatro — possui equivalentes em todas as ilhas dos Açores. Entretanto, tanto a sua designação como as suas principais características arquitectónicas e funcionais apresentam variações significativas. Assim no grupo central — com excepção da ilha do Pico, onde a expressão mais utilizada é a de Capela — predomina a designação de Império, sendo este, na sua forma mais simples, um pequeno edifício tipo ermida, de planta rectangular ou quadrada, fechado, com frontaria geralmente decorada e encimada por uma Coroa do Espírito Santo, que, além das funções que desempenha no âmbito dos festejos, alberga ainda durante o ano as Coroas e outras insígnias do Espírito Santo. Nalguns casos, o Império possui ainda uma pequena dispensa anexa, de construção geralmente mais recente. Em certos Impérios do Faial, esses anexos compreendem também uma copeira e uma cozinha, geralmente também de construção recente. Em certas freguesias de São Jorge, além do Império, existe ainda uma Casa do Espírito Santo, de funções similares à copeira de Santa Maria. Embora predominante no conjunto das ilhas do grupo central, é na ilha Terceira que este tipo de Impérios atinge a sua mais elaborada expressão. A sua decoração exterior é particularmente cuidada e a fachada, geralmente encimada por um frontão triangular, apresenta uma mistura de branco e cores vistosas que conferem ao edifício uma personalidade muito marcada6 Em São Miguel, a designação mais antiga, ainda hoje frequentemente utilizada, é, como em Santa Maria, a de teatro; em muitos casos, encontra-se porém a designação de Império. Quanto às características arquitectónicas do edifício, elas oscilam entre uma construção de tipo «alpendre» — similar à usada em Santa Maria — e o tipo de contrução predominante no grupo central7. Nas Flores e no Corvo, finalmente, predomina a designação de Casa do Espírito Santo. Esta, no caso mais usual, é um edifício térreo relativamente amplo, de planta rectangular, no interior do qual existe um altar onde são guardadas as insígnias do Espírito Santo.
II
9No grupo central, as Festas do Espírito Santo encontram-se particularmente bem estudadas na ilha Terceira, graças tanto a um conjunto de contributos de características etnográficas — entre os quais avultam os de Frederico Lopes (1980a) e de Inocêncio Enes (1948) — como a alguns estudos de natureza etnológica — com particular realce para os de Mari Lynn Salvador (1981; 1985)8. Tomando como base esses estudos, a apresentação a que procederemos de seguida incorpora ainda os resultados de algumas recolhas próprias conduzidas nas freguesias das Fontinhas, Quatro Ribeiras e São Sebastião (cf. mapa 9).
10Desenrolando-se ao longo do período de oito semanas que medeia entre o domingo de Páscoa e o domingo da Trindade, as Festas do Espírito Santo compreendem na Terceira dois tipos distintos de cerimónias, conhecidos genericamente sob a designação de Funções e Bodos. As Funções têm lugar ao longo de cada uma das oito semanas do período tradicionalmente consagrado à realização dos festejos. Os Bodos realizam-se, em paralelo com as Funções dessas semanas, nos domingos de Pentecostes e da Trindade. Ambas as celebrações, além de obedecerem a modalidades de organização e a um conteúdo ritual distintos, caracterizam-se ainda por uma certa autonomia mútua. A sua amplitude é também diversa (cf. figura 7).
11As Funções possuem um âmbito mais restrito. Na sua base encontram-se promessas individuais. À frente de cada uma delas está um imperador que é o responsável pelos festejos no decurso da semana que — de acordo com um sorteio realizado no ano anterior e conhecido sob a designação de tirar os pelouros — lhe coube em sorte. Os festejos centram-se em casa do imperador, onde são instaladas, num altar erguido especificamente para o efeito, as insígnias do Espirito Santo: uma ou mais Coroas, acompanhadas das respectivas bandeiras, um certo número de varas e/ou tochas e, eventualmente, um espadim.
12As Funções comportam, em primeiro lugar, um conjunto de cerimónias de características religiosas. Durante a semana tem lugar, junto ao altar, a recitação diária do terço. Este terço obedecia a um padrão tradicionalmente fixado e era em geral cantado9. No domingo, no termo da missa, realiza-se por seu turno a coroação, que constitui a cerimónia religiosa fulcral da Função. Tradicionalmente a coroação incidia ora sobre o imperador, ora sobre uma criança por ele escolhida. Hoje em dia, porém, o imperador só coroa caso tenha feito uma promessa específica nesse sentido. De uma forma geral são uma ou mais crianças ou adolescentes, ora do sexo masculino, ora do sexo feminino, escolhidos geralmente entre os filhos ou filhas do imperador, quem são coroados. Simultaneamente ao terço e à coroação, as Funções articulamse ainda com um conjunto de cortejos, entre os quais avultam os que rodeiam a coroação e aquele que, no termo de cada um dos domingos, procede à mudança das Coroas e outras insígnias do Espírito Santo da casa do imperador cessante para a casa do imperador da semana seguinte10. Embora com diferenças de pormenor de freguesia para freguesia, estes cortejos apresentam um certo número de constantes. O transporte das Coroas — que fecham o cortejo — está a cargo de um ou mais pagens da coroa, enquanto o das bandeiras — que abrem o cortejo — compete a um ou mais alferes da ban deira; as varas e/ou tochas enquadram as Coroas e as bandeiras, sendo o seu transporte confiado, em certas freguesias, aos imperadores das Funções das restantes semanas (Dias, Maria Alice, 1982; Enes, P.e Inocêncio, 1948). O cortejo que se segue à coroação propriamente dita, por fim, possui como traço peculiar o facto de as Coroas seguirem à cabeça das crianças ou adolescentes coroados, sendo cada um deles rodeado por um quadro formado com auxílio das varas. Tanto estes cortejos como outras sequências rituais previstas na estrutura das Funções, eram tradicionalmente dirigidos e acompanhados pela folia. Entretanto, no decurso dos últimos 30/40 anos, a maioria das folias da ilha entrou em declínio e, actualmente, o acompanhamento musical das Funções é generalizadamente feito por filarmónicas.
13Em simultâneo com estas cerimónias de características religiosas, as Funções articulam-se com um conjunto de prestações de natureza alimentar. Estas exigem o abate de uma a três reses — utilizadas na confecção de um certo número de pratos, entre os quais se destacam as Sopas do Espírito Santo e a alcatra — e a preparação de diversas qualidades de pão de trigo, massa sovada e pão de leite11. A confecção destes diferentes alimentos está a cargo de um grupo de mulheres, dirigidas por uma mestra. O abate e a preparação prévia das reses — que aparece rodeada de uma certa cerimonialização, expressa na realização de um desfile prévio de gado, conhecido pela designação de bezerrada — compete por seu turno a um grupo de ajudantes masculinos, orientados por um marchante. Embora o imperador receba algumas ofertas, em géneros ou dinheiro, de parentes e vizinhos, o essencial da despesa é suportada por ele. Em relação ao gado, entretanto, muitos imperadores recorrem com alguma frequência aos préstimos de um criador, um pastor ou criador de gado que, a seu pedido, toma gratuitamente conta, durante um certo período de tempo, das reses adquiridas para a Função. Em sinal de agradecimento, o imperador reserva-lhe depois, no quadro da Função, um tratamento de honra.
14Do conjunto de prestações alimentares que integram a sequência ritual da Função a mais importante é constituída por uma grande refeição colectiva, servida em casa do imperador a seguir à coroação. Esta refeição — conhecida pela designação de jantar — possui como característica distintiva central o facto de ser reservada a convidados do imperador, em números que atingem frequentemente as duas ou três centenas. Em certos casos, é usual o imperador alargar informalmente esses convites às pessoas — designadamente forasteiros — que passam pelas imediações do local onde se realiza o jantar. No decurso dessa refeição são servidas Sopas do Espírito Santo, carnes cozidas, alcatra e ainda massa sovada e pão de leite. Simultaneamente, a estrutura ritual das Funções prevê ainda um certo número de outras prestações alimentares, entre as quais avultam as distribuições de esmolas. Resultantes geralmente de promessas específicas feitas nesse sentido, estas esmolas desdobram-se em duas modalidades principais: a primeira corresponde às chamadas esmolas de mesa e consiste na distribuição, a um certo número de casas mais pobres do lugar ou da freguesia, de um sopa com carne cozida e de um pão; a segunda consiste na distribuição, a crianças e a pobres, de um pão de trigo conhecido pela designação de pão dos inocentes. Na generalidade dos casos, os festejos integram também prestações alimentares de carácter mais restrito destinadas quer aos ajudantes quer às casas que fizeram ofertas em géneros ou dinheiro como contributo para as despesas da Função.
15O esquema genérico que acabámos de apresentar é comum à grande maioria das freguesias da Terceira. Nos últimos anos, entretanto, a par de uma generalização das Funções fora do tempo — promovidas em geral por emigrantes — tem-se verificado um certo declínio das Funções realizadas ao longo do período tradicionalmente previsto para o efeito. Esse processo tem afectado em particular as seis semanas anteriores ao Pentecostes e à Trindade. Em vez das Funções realizam-se então sucessivas estadas das Coroas em casas que se oferecem para o efeito e, embora a coroação e a recitação diária do terço se continuem a realizar, todo o restante cerimonial — designadamente o conjunto de formas de circulação do alimento que acabámos de passar em revista — é suprimido.
16Em confronto com o carácter algo restrito das Funções, os Bodos constituem celebrações de características mais amplas. O seu ponto alto é constituído por uma distribuição de alimentos — massa sovada ou pão de trigo e vinho — que se realiza nos domingos de Pentecostes e da Trindade e que possui como traço distintivo o seu carácter generalizado. Quem quer que o solicite é convidado a servir-se do alimento distribuído. Nalguns casos, além desta distribuição ampla de alimentos, realiza-se ainda, na 2.a feira seguinte, uma distribuição porta-a-porta de pão e vinho restrita às casas da freguesia ou do lugar. Simultaneamente a estas distribuições de alimentos, têm lugar um conjunto de outras festividades de carácter variado: arraial, bailes, exibições de filarmónicas, arrematações de promessas oferecidas por devotos ao Espírito Santo, etc…
17Este conjunto de festividades centra-se, em cada freguesia ou lugar, no Império respectivo, onde a Coroa fica depositada durante o dia. A sua promoção — particularmente o financiamento e a preparação dos alimentos distribuídos no decurso do Bodo — assenta em formas de mordomia colectiva, articuladas com modalidades de intervenção do conjunto da comunidade, variáveis de freguesia para freguesia. Demos alguns exemplos. Nas Fontinhas, a realização do Bodo assenta num grupo de cerca de vinte mordomos designados por um período de oito a dez anos. Ao longo desse período, a direcção dos festejos e respectivos preparativos compete, à vez, a dois desses mordomos, um responsável pelo Bodo do Espírito Santo e outro responsável pelo Bodo da Trindade. Os restantes mordomos, por seu turno, devem entregar anualmente para cada um do Bodos um total de vinte e cinco pães e 3.000$00. O resto dos alimentos é financiado com recurso a um peditório realizado pela freguesia. Na Vila Nova, por seu turno, os festejos assentam num grupo de irmãos — ou irmandade — de entre os quais são escolhidos, de sete em sete anos, um conjunto de oito mordomos, quatro por cada um dos Bodos. Além de terem a seu cargo a realização de um peditório pela freguesia, estes mordomos devem ainda cozer em sua casa duzentos e cinquenta pães de trigo, dois pães de massa sovada e dez rosquilhas. Quanto aos irmãos devem contribuir para as despesas do Bodo com dez pães e 2.400$00 (Ormonde, 1985/6: 84-87). Nas Quatro Ribeiras, por fim, os Bodos compreendem, além de uma distribuição generalizada de pão e vinho, uma distribuição de carne crua, restrita às casas da freguesia. Esta última tem lugar nos sábados de Pentecostes e da Trindade e a sua organização compete a três procuradores. Quanto à distribuição de pão e vinho, está a cargo de dois mordomos e assenta em ofertas em pão e em dinheiro — utilizado na compra do vinho — realizadas por casas da freguesia.
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18O modelo de Festas do Espírito Santo que acabámos de descrever reencontra-se, nas suas linhas gerais, na grande maioria das restantes ilhas do grupo central12.
19As expressões que designam os dois tipos de festejos em que elas se desdobram apresentam entretanto algumas variações significativas. Assim, em São Jorge, as Funções terceirenses são conhecidas pela designação usual de Jantares; e, a par da designação de Bodo — referente ao segundo tipo de festejos — surge também a expressão genérica de Festa. No Pico, as expressões por que são conhecidos os dois tipos de festejos são respectivamente as de Coroação e Império. Na Graciosa, por fim, as designações mais utilizadas são as de Coroação e Bodo (cf. quadro 22).
QUADRO 22. Designações dos festejos no grupo central
TERCEIRA | SÃO JORGE | PICO | GRACIOSA |
Função | Jantar | Coroação | Coroação |
Bodo | Bodo/Festa | Império | Bodo |
20O nome dado ao promotor individual do primeiro tipo de festejos é também variável. Assim, a par da designação de imperador — prevalecente na Graciosa — encontra-se também a expressão de mordomo — mais usual em São Jorge e no Pico. De uma forma geral a sequência deste primeiro tipo de festejos é, nas suas linhas gerais, idêntico ao que encontrámos na Terceira, embora existam naturalmente variações quer quanto a aspectos da organização da sua vertente religiosa — em particular no tocante à composição e organização dos cortejos que rodeiam a coroação — quer no referente à sua vertente alimentar — alimentos utilizados, modalidades da sua distribuição, etc… Entretanto, em certos casos, registam-se particularidades locais importantes. Assim, em muitas freguesias do Pico e de São Jorge, a escolha do mordomo ou imperador faz-se no quadro de irmandades especificamente ligadas ao culto do Espírito Santo e completamente autónomas da Igreja. Essas irmandades, que podem em certos casos funcionar no âmbito de cada um dos domingos que medeiam entre a Páscoa e o Pentecostes, surgem, na maioria dos casos, preferencialmente vinculadas aos festejos das semanas do Pentecostes e da Trindade e desempenham um papel particularmente importante no seu decurso. Os seus membros, além de coadjuvarem o mordomo ou imperador nos seus desempemhos cerimoniais — em particular nos que se ligam à coroação — têm ainda uma comparticipação importante nas despesas associadas aos festejos, mediante a entrega — em géneros ou em dinheiro — de uma oferenda tradicionalmente fixada. Em contrapartida, eles constituem um dos destinatários principais das prestações alimentares asseguradas pelo mordomo ou imperador. Ainda em certas freguesia de São Jorge e do Pico, a estrutura básica dos Jantares e das Coroações apresenta também, nas semanas do Pentecostes e da Trindade, um certo número de enriquecimentos.
21Esses enriquecimentos incidem, em primeiro lugar, na vertente propriamente religiosa das festas. A coroação e os cortejos que a rodeiam apresentam geralmente uma maior complexidade cerimonial e, na ilha de São Jorge, são ainda integrados por um certo número de personagens conhecidos pela designação de cavaleiros. A vertente alimentar dos festejos é também mais elaborada. Os alimentos são preparados em maiores quantidades e a sua esfera de circulação é mais ampla. Em certos casos, como na ilha de São Jorge, é inclusivamente confeccionado um conjunto variado de doces e sobremesas específicas, variáveis de freguesia para freguesia13.
22Por fim, há a considerar que, na maioria destas ilhas, é mais notório o movimento de recuo deste primeiro tipo de festejos. Assim, na Graciosa, as Coroações comportam hoje em dia uma vertente exclusivamente religiosa, mesmo nos domingos de Pentecostes e da Trindade. No decurso de cada uma das semanas, as Coroas e outras insígnias do Espírito Santo são sucessivamente confiadas a várias casas, mas a sequência das cerimónias envolve exclusivamente a recitação do terço e, no domingo respectivo, a coroação. Embora no termo desta, possa eventualmente ser servido um lanche informal, não está prevista nenhuma outra forma de circulação cerimonial do alimento14. No Pico e em São Jorge predomina uma tendência para a concentração das Coroações, num caso, e dos Jantares, no outro, nas semanas do Pentecostes e da Trindade, com abandono dos domingos anteriores. Simultaneamente, e tal como na Terceira, tornou-se mais corrente a realização — também geralmente por emigrantes — de Coroações e de Jantares ao longo do Verão.
23Quanto ao segundo tipo de festejos, são também importantes as suas similitudes com os Bodos terceirenses. No seu centro encontra-se uma distribuição generalizada de alimentos e vinho, centrada no Império, combinada com arraial, baile, exibições de filarmónicas, arrematações de promessas ao Espírito Santo, etc… Notam-se entretanto diferenças importantes quer quanto ao tipo de alimentos distribuídos, quer quanto à estrutura organizativa dos festejos. Na Graciosa, os Bodos realizam-se em geral no domingo do Espírito Santo e ainda, em casos isolados, na 2a. Feira do Espírito Santo — caso do Império de Nossa Senhora da Guia, na freguesia da Praia — e no domingo da Trindade — caso do Império de Nossa Senhora dos Remédios, nos Fenais, também na freguesia da Praia — e constam de uma distribuição generalizada de rosquilhas15 e vinho. Na sua base encontra-se um conjunto de irmãos que contribuem para os festejos com uma determinada soma em dinheiro (entre 600 e 1.000 escudos, conforme as freguesias). O produto dessa contribuição é centralizado por uma comissão que assume designadamente o encargo de cozer as rosquilhas e de comprar o vinho para o Bodo16. Como contrapartida, cada irmão recebe, além da rosquilha usual, uma rosquilha maior. No dia imediato ao Bodo, realiza-se ainda uma distribuição porta-a-porta de rosquilhas e de vinho entre os irmãos que, por estarem de luto, não poderam deslocar-se ao recinto da festa. Em São Jorge, por seu turno, os Bodos ou Festas recaem nos domingos do Espírito Santo e da Trindade e, ainda, nalgumas freguesias, na 2.a feira do Espírito Santo. Constam da distribuição generalizada de bolos ou vésperas17, de vinho e ainda, em certas freguesias, de tremoços e de fatias de queijo. Nas freguesias da ponte sudeste da ilha — Santo Antão e Topo — os festejos compreendem ainda a realização de um bodo de leite. Na base destas distribuições, encontra-se um conjunto de ofertas feitas por um grande número de casas de cada freguesia, em géneros ou numa quantidade tradicionalmente estipulada de bolos, centralizadas por uma comissão com designação e composição variável de freguesia para freguesia. Em certos casos, as freguesias são para o efeito divididas em duas metades, uma vinculada ao Bodo ou Festa do Espírito Santo, outra vinculada ao Bodo ou Festa da Trindade. No Pico, os Impérios realizam-se no domingo, na 2.a, e, por vezes, na 3.a feira do Espírito Santo e no domingo da Trindade e constam de uma distribuição generalizada de bolos, semelhantes aos utilizados em São Jorge, ou de rosquilhas — também designadas por argolas — e de vinho. A estrutura organizativa das festas é também bastante similar à de São Jorge e assenta em ofertas feitas por casas da freguesia centralizadas por uma comissão nomeada para o efeito. Tal como em São Jorge, é corrente a divisão de cada freguesia em duas ou mais circunscrições rituais, que assumem em cada um dos dias, a responsabilidade dos festejos. Estes envolvem, por fim, a realização de cortejos no decurso dos quais os irmãos procedem à entrega cerimonial, em açafates decorados, dos alimentos que serão distribuídos no quadro do Império.
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24Apesar da relativa difusão que esta variante das Festas do Espírito Santo conhece nas ilhas do grupo central, algumas áreas apresentam entretanto modelos distintos de organização do ritual.
25É o que acontece num certo número de freguesias, predominantemente urbanas, da Terceira, onde o Bodo desaparece para dar lugar a uma distribuição porta-a-porta de carne crua de rês, pão e vinho. Esta distribuição tem lugar nos sábados de Pentecostes e da Trindade e incide sobre um conjunto de irmãos — ou irmandade — que contribuem previamente com uma determinada quantia em dinheiro — entre 1.000 e 2.000 escudos. A sua organização está a cargo de um número variável de mordomos18. Simultaneamente a esta distribuição de alimentos, os festejos compreendem ainda uma vertente religiosa própria, expressa na organização de grandes coroações colectivas de crianças, geralmente do sexo feminino, escolhidas entre as famílias que pertencem à irmandade: «elas vestem-se de branco e cada criança que vai ser coroada pode convidar duas outras crianças para caminhar a seu lado a fim de ajudar a segurar a coroa. Os rapazes e as raparigas mais velhos, vestidos de cerimónia, transportam as coroas para a igreja» (Salvador, 1981: 76).
III
26As Festas do Espírito Santo no Faial — apesar da colocação geográfica da ilha e das relações muito fortes que ela mantem com a vizinha ilha do Pico-afastam-se em numerosos aspectos da variante dominante nas ilhas do grupo central19.
27Nesta ilha, as Festas do Espírito Santo são caracterizadas pela inexistência, pelo menos na actualidade, de quaisquer festejos específicos ao longo das seis semanas que antecedem a semana do Pentecostes. Estes tendem em consequência a concentrar-se no domingo do Espírito Santo, na 2,a e 3.a feiras seguintes e, ainda, em certos casos, no domingo da Trindade.
28Na sua base encontra-se um conjunto de irmãos do Espírito Santo organizado em torno de um Império. É entre os irmãos que são escolhidos — de acordo com um sorteio realizado no ano anterior — os responsáveis individuais pelos festejos em cada um dos dias, designados indiferentemente por imperador ou mordomo.
29Além de darem o serviço no dia que lhes coube em sorte, os imperadores repartem também entre si a responsabilidade de guardarem em suas casas, durante o ano, a(s) Coroa(s) e outras insígnias do Espírito Santo.
30A estrutura básica do cerimonial é relativamente simples e compreende duas cerimónias principais: a coroação, por um lado, e o jantar, por outro. A coroação — rodeada mais uma vez por um conjunto de cortejos organizados para o efeito — incide sobre o imperador. O jantar, por seu turno, tem lugar a seguir à coroação e realiza-se, consoante as freguesias, ora na casa do imperador, ora numa copeira situada junto ao Império. Além dos irmãos, participam nele algumas dezenas de convidados do imperador. No seu decurso são servidas Sopas do Espírito Santo, massa sovada e vinho. O essencial da despesa compete ao imperador, que recebe entretanto um contributo — tradicionalmente fixado — em dinheiro ou em géneros dos irmãos, assim como outras ofertas de parentes e vizinhos. Em certas freguesias, realiza-se ainda uma distribuição de esmolas, geralmente em massa sovada, entre pobres ou crianças.
IV
31Em São Miguel — à semelhança do que ocorre na generalidade das ilhas do grupo central — a estrutura genérica das Festas do Espírito Santo compreende também dois tipos distintos de festejos: as Domingas, que têm lugar ao longo de cada uma das oito semanas que medeiam entre a Páscoa e a Trindade, e os Impérios, que se realizam no domingo de Pentecostes ou no domingo da Trindade. As modalidades de organização e o conteúdo destes dois tipos de cerimónias apresentam porém diferenças importantes em relação ao modelo prevalecente no grupo central20.
32Na base tanto das Domingas como dos Impérios encontra-se uma irmandade de características informais integrada idealmente pelo conjunto das casas correspondentes a uma freguesia ou a diferentes lugares de uma mesma freguesia. Cada irmandade está ligada a um teatro — ou Império — que possui uma ou mais Coroas, assim como outras insígnias do Espírito Santo: bandeiras, e, em certas freguesias, um espadim.
33É entre os irmãos que se oferecem para o efeito — por promessa ou por devoção — que são anualmente sorteados os responsáveis individuais por cada Dominga, cujas designações são bastante variáveis de freguesia para freguesia: mordomo, irmão da coroa, imperador, etc…
34As Domingas caracterizam-se por uma estrutura particularmente simples, marcada pela ausência de prestações alimentares significativas. Durante a semana, a(s) Coroa(s) e outras insígnias do Espírito Santo são instaladas em casa do mordomo, num altar erguido especificamente para o efeito, junto do qual era tradicional rezar-se ou cantar-se o terço. Estes altares distinguemse, no quadro mais geral dos Açores, pela sofisticação que têm vindo a atingir nos últimos anos. Além de uma utilização profusa de todo o tipo de elementos decorativos — flores naturais e artificiais, rendas e toalhas, decorações natalícias, «bibelots» de todo o género — são também utilizados dispositivos especiais de iluminação e, por vezes, há mesmo casas que instalam mecanismos que permitem que o altar rode sobre si próprio. No domingo, por seu turno, tem lugar a coroação que, hoje em dia, incide geralmente sobre uma ou mais crianças21. No termo desta realiza-se um lanche relativamente informal em casa do mordomo, reservado às pessoas que o acompanharam no decurso da coroação. Quanto aos cortejos que a rodeiam, obedecem a um padrão tradicional variável de freguesia para freguesia. Possuímos uma boa descrição de alguns aspectos da sua nomenclatura e organização para as freguesias de Vila Franca do Campo (cf. Dias, Urbano Mendonça, 1946: 218-222). De acordo com essa descrição, o transporte da Coroa competia tradicionalmente a um vedor, enquanto o da bandeira era assegurado por um alferes da bandeira. O espadim, pelo seu lado, estava a cargo do chamado condestável ou pagem do estoque e existia ainda um pagem do coxim «que levava à igreja a almofada onde ajoelhava o imperador» (id., ibid.: 220). Finalmente, o transporte das varas com que no termo da coroação era formado o quadrado que rodeava o imperador coroado competia a quatro senhores das varas.
35Os Impérios, por seu turno, são caracterizados por uma distribuição de alimentos que, em vez de assumir características abertas e públicas, intervêm exclusivamente junto de cada uma das casas da irmandade. Esta distribuição consta em geral de uma posta de carne crua de rês, de um pão de trigo e, ainda, em certos casos, de um pão de massa sovada e de um litro de vinho. A designação mais corrente atribuída a esta prestação é a de pensão. Em certas freguesias, para além destas pensões, são ainda distribuídas prestações de natureza similar, mas em quantidades diferentes, conhecidas por meias pensões, esmolas, presentes, etc…
36O financiamento desta distribuição — que pode envolver, nos casos mais expressivos, o abate de dezassete a vinte reses e o dispêndio de quantidades importantes de farinha, açúcar, ovos, vinho, etc… — assenta, por um lado, na contribuição monetária dos irmãos, cujo valor pode ir hoje em dia até 5.000$00 e, por outro, nas receitas próprias do Império, entre as quais avultam as resultantes da arrematação de um certo número de reses adquiridas previamente para o efeito. Quer estas reses, quer aquelas que são abatidas para distribuir entre os irmãos, são mantidas e engordadas por um certo número de criadores que, por devoção, se oferecem para o efeito. Quanto à preparação dos alimentos, assim como outros aspectos relacionados com a organização geral dos festejos, a sua responsabilidade recai ora sobre um dispenseiro ou depositário nomeado expressamente para o efeito, ora sobre o mordomo da Dominga que coincide com o Império. Em qualquer dos casos, o responsável pelos festejos é auxiliado por um numeroso grupo de homens e mulheres que repartem entre si as diferentes tarefas, nomeadamente de natureza culinária. Entre estas merece particular realce o abate das reses, que é rodeada — como nas ilhas do grupo central — de uma certa cerimonialização.
37A distribuição das pensões realiza-se, consoante os Impérios, no sábado de Pentecostes ou no sábado da Trindade e era tradicionalmente feita portaa-porta, com acompanhamento da(s) Coroa(s) e da folia, em carros de bois especificamente decorados para o efeito. Hoje em dia, porém, em certos casos, são já os próprios irmãos que se dirigem ao local onde a carne está guardada, para levantarem a sua pensão.
38Além desta distribuição central de alimentos, a estrutura ritual dos Impérios prevê ainda um certo número de outras cerimónias, entre as quais avulta uma refeição de características rituais — a chamada Ceia dos Criadores — que reúne, em dias variáveis de freguesia para freguesia, o dispenseiro ou o mordomo, os criadores e ainda o conjunto dos ajudantes do Império. No domingo, por seu turno, têm lugar, junto ao teatro — onde a(s) Coroa(s) se conservam durante o dia — um certo número de festejos: arraial, arrematação de promessas ao Espírito Santo, etc…
V
39Nas Flores e Corvo, a par de um certo número de similitudes com o modelo prevalecente em São Miguel, as Festas do Espirito Santo apresentam um conjunto de traços próprios22.
40A estrutura genérica dos festejos assenta na distinção entre Domingas, ou Semanas — que se realizam ao longo das oito semanas que medeiam entre a Páscoa e a Trindade — e Impérios — que recaem no domingo de Pentecostes ou no domingo da Trindade. Na base de ambos os festejos encontra-se uma irmandade, centrada numa Casa do Espírito Santo, que possui uma ou mais Coroas, assim como um certo número de bandeiras. À frente de cada irmandade encontra-se um número variável de cabeças — também designados em certas freguesias por cabeceantes — escolhidos de acordo com critérios variáveis de freguesia para freguesia.
41As Domingas obedecem a dois modelos organizativos distintos. Nas freguesias do norte da ilha — numa área «grosso modo» correspondente ao concelho de Santa Cruz — eles filiam-se no modelo mais comum nos Açores: à sua frente encontra-se um imperador que, durante a semana que lhe coube em sorte, instala a(s) Coroa(s) em sua casa, assumindo a responsabilidade pelo conjunto de cerimónias tradicionalmente previsto. Nas freguesias do sul das Flores — concelho das Lajes — -essa responsabilidade é por seu turno assegurada, em cada uma das oito semanas, pelos cabeças da irmandade, tendo os festejos lugar na Casa do Espírito Santo.
42A estrutura propriamente cerimonial das Domingas é, entretanto, em ambos os casos, similar. Durante a semana, têm lugar, num certo número de dias tradicionalmente fixados — geralmente 3.as feiras, 5.as feiras e sábados, à noite — as alvoradas. Estas constam basicamente de um conjunto de cantares entoados pela folia junto ao altar do Espírito Santo. Esses cantares — alguns dos quais variam consoante o dia da alvorada, e, por vezes, consoante a própria semana — tratam temas de natureza predominantemente religiosa e possuem um carácter tradicional muito vincado23. Em cada um dos domingos, por seu turno, as Coroas são levadas à igreja, isto é são cerimonialmente transportadas, à hora da missa, à igreja, finda a qual retornam para casa do imperador ou para a Casa do Espírito Santo. Não se realiza porém a coroação; de facto, esta, enquanto prática regular e institucional é desconhecida nas Flores. Apesar deste facto — inédito no conjunto dos Açores, onde a coroação constitui sempre uma das sequências centrais das Festas do Espírito Santo — esta pequena cerimónia é rodeado de um aparato similar àquele que encontrámos noutras ilhas. À frente dos cortejos segue a folia, seguindo-se-lhe as bandeiras, e, por fim, as Coroas. As primeiras são transportadas por um ou mais alferes da bandeira, enquanto as Coroas estão a cargo de um ou mais reis da Coroa. Tradicionalmente, estes desempenhos eram assegurados por homens feitos, mas hoje em dia são sobretudo crianças ou adolescentes os preferencialmente escolhidos.
43Em caso de promessa, as Domingas podem ainda envolver, para além das cerimónias religiosas que acabámos de passar em revista, uma vertente alimentar. Esta pode assumir duas modalidades principais: a) o jantar cozido, cuja prestação central é constituída por uma refeição colectiva, à base de Sopas do Espírito Santo, massa sovada e vinho, reservada aos convidados do imperador ou extensiva ao conjunto da freguesia e a eventuais forasteiros; b) o jantar cru, em que avulta uma distribuição porta-a-porta de carne crua de rês e de pão de trigo a um certo número de casas escolhidas pelo imperador. Tal como sucede na generalidade dos Açores, embora um certo número destes jantares se continue a realizar no período tradicionalmente previsto para o efeito, a maior parte tem lugar ao longo do verão.
44Os Impérios, por seu turno, recaem, consoante as freguesias e/ou lugares, ora no domingo de Pentecostes, ora no domingo da Trindade e, tanto nas freguesias do sul da ilha como nas do norte, centram-se na Casa do Espírito Santo e estão a cargo dos cabeças.
45No plano religioso, a sua estrutura é idêntica à das domingas: às 3.as feiras, 5.as feiras e sábados realizam-se as alvoradas e, no domingo as Coroas são levadas à igreja, por intermédio de um cortejo organizado em moldes similares aos referidos atrás, mas cuja composição é mais sofisticada: além de uma filarmónica, integram-se nele algumas dezenas de meninas vestidas de branco, entre as quais são escolhidas as rainhas da festa, encarregues do transporte das Coroas. Simultaneamente têm lugar um conjunto de festejos suplementares, com relevo para uma distribuição de carne crua de rês entre todos os membros da irmandade. As prestações distribuídas possuem designações variáveis de freguesia para freguesia — enfiadas, oitavas, mordomos, etc… — e retribuem uma contribuição monetária feita previamente pelos irmãos, cujo valor oscila entre os 2.500 e os 3.000 escudos. Tal como em São Miguel, esta distribuição tem lugar a um sábado e dava tradicionalmente lugar à organização de um cortejo que percorria as casas de todos os irmãos. Dirigido musicalmente pela folia, esse cortejo era integrado pelas Coroas e por dois ou três carros de bois decorados, que asseguravam o transporte da carne. Em cada uma das casas, além de procederem à entrega da carne, os cabeças davam ainda a Coroa a beijar às pessoas presentes e recebiam qualquer eventual oferta ao Espírito Santo que a casa quisesse fazer — batatas ou outros géneros agrícolas, massa sovada, etc… Nas casas dos cabeças, alferes da bandeira e reis da Coroa, tinham lugar paragens mais demoradas: a folia entrava e cantava e os acompanhantes do cortejo eram convidados e servir-se de uma mesa posta para o efeito. Pese embora o facto de na maioria dos Impérios a distribuição de carne ser já assegurada em moldes diferentes — cada irmão levanta individualmente a sua prestação na Casa do Espírito Santo — os restantes aspectos deste cortejo têm-se mantido intactos. No domingo, por seu turno, os festejos compreendem ainda a realização de um arraial e a arrematação de promessas. Nalgumas freguesias tem também lugar um cerimonial conhecido pela designação de dispender o bodo, que consiste no oferecimento formal ao Espírito Santo das promessas recolhidas na véspera, seguido de uma eventual repartição, entre as pessoas presentes, de algumas fatias da massa sovada oferecida.
VI
46As sucessivas variantes das Festas do Espírito Santo que passámos em revista expressam a diversidade de soluções que caracteriza o ritual em todo o arquipélago. Trata-se de um traço frequentemente sublinhado tanto pelos etnógrafos como pelos próprios protagonistas do ritual. A expressão «A cada canto/seu Espírito Santo» — frequentemente utilizada por estes últimos — remete justamente para esta faceta das Festas do Espírito Santo no arquipélago. Entretanto, a par desta diversidade, é possível reconhecer às Festas do Espírito Santo uma grande unidade. Por detrás das variações que tivemos ocasião de reconstituir, reencontramos, estruturados de forma diferente, os mesmos grandes motivos etnográficos. A longa duração dos festejos e a sua complexidade cerimonial, o modo como a sua organização resulta da articulação de formas de mordomia individual com modalidades de intervenção mais ampla da comunidade, o carácter central que neles ocupa um conjunto de cerimónias religiosas estruturadas em torno da Coroa do Espírito Santo, a articulação desta vertente mais estritamente religiosa do ritual com um conjunto amplo e diversificado de formas de circulação cerimonial do alimento, são os aspectos principais desse fundo etnográfico comum aos festejos.
47Por detrás desta unidade propriamente etnográfica, perfila-se uma unidade mais profunda, referente às grandes ideias estruturadoras do ritual. Tivemos ocasião de proceder, na primeira parte do livro, em torno dos Impérios de Santa Bárbara, a uma análise dessas ideias. Salientámos então as características religiosas das Festas, e o modo como elas articulavam entre si formas de religiosidade de características individuais com formas de religiosidade de natureza colectiva. Vimos também como, simultaneamente, os Impérios se entregavam a um importante trabalho de reiteração das relações sociais — assente nas potencialidades significantes da linguagem da dádiva alimentar — que, começando por dizer respeito às esferas sociais de cada um dos imperadores — parentesco, vizinhança de perto — se estendia, num segundo e decisivo momento, às instâncias centrais da organização social local — o lugar e, sobretudo, a freguesia. Finalmente, tivemos ocasião de acentuar as características cíclicas dos Impérios, a sua ligação não apenas a ideias de renascimento da natureza mas de reorganização e regeneração das relações sociais. São justamente estes grandes temas, formulados de forma diferente consoante os contextos, que podemos encontrar no conjunto do arquipélago. É precisamente a uma demonstração mais detalhada desta dialéctica entre diversidade e unidade que iremos proceder nos próximos capítulos, baseados em dois estudos de casos conduzidos nas freguesias de Santo Antão (São Jorge) e Nossa Senhora da Piedade (Pico).
Notes de bas de page
1 É difícil encontrar estudos de carácter geral sobre as Festas do Espírito Santo no conjunto dos Açores. De uma forma geral, de facto, a tradição etnográfica existente no arquipélago tem privilegiado contextos mais restritos, como a ilha ou a freguesia. Veja-se de qualquer forma Costa, Carreiro da (1957) e Breda Simões (1987). O primeiro constitui uma tentativa de apresentação, ilha por ilha, das Festas do Espírito Santo no conjunto do arquipélago; o carácter restrito da bibliografia em que se apoia, torna-o entretanto bastante incompleto. O segundo é um «roteiro lexical» das Festas do Espírito Santo nos Açores. Em Oliveira Martins (1985), além de abundante e diversificada documentação fotográfica, pode-se encontrar também a reprodução de alguns estudos etnográficos parcelares sobre as Festas do Espírito Santo em cada uma das ilhas. Quanto à tentativa de síntese ensaiada no presente capítulo, ela baseia-se simultaneamente em recolhas próprias conduzidas nas diferentes ilhas e na consulta da bibliografia disponível. Embora os dados provenientes de ambas as fontes possam ser considerados suficientemente representatativos, certamente que estudos posteriores permitirão afinar, ou, mesmo, nalguns casos, rectificar, a tipologia proposta. Para não tornar o capítulo excessivamente denso, circunscrevi-me, em relação a cada uma das variantes, às suas principais linhas caracterizadoras, com abandono de aspectos de carácter mais detalhado.
2 Uma apresentação mais detalhada das folias dos Açores — com particular destaque para o instrumental utilizado — pode encontrar-se em Veiga de Oliveira, 1986: 26-29. A tipologia que em seguida propomos difere entretanto nalguns pontos da defendida nesse texto. Para alguns aspectos gerais relacionados com as folias nos Açores, cf. também Ribeiro, Luís Silva, 1982.
3 A respeito da difusão deste tipo de folia em São Miguel, cf. Veiga de Oliveira, 1986: 27.
4 Assim, em São Jorge, nas freguesias dos Rosais — cf. Veiga de Oliveira, 1986, 27 — de Santo Antão e do Topo, e, no Pico, nas freguesias da Piedade e da Ribeirinha, a folia compunha-se exclusivamente de um cantador e de um tambor; no Pico, na freguesia da Candelária — cf. Veiga de Oliveira, id. ibid. — compunha-se de dois tambores.
5 Os testos usados nas Flores, embora genericamente similares aos de Santa Maria, diferenciam-se destes pelo facto de um dos pratos ser de dimensão mais pequena; o tipo de toque é também diferente do usado em Santa Maria.
6 É talvez por esta razão que José Manuel Fernandes (1989: 67) considera os Impérios da Terceira uma categoria própria, distinta dos restantes Impérios do grupo central, por ele designados através da expressão Impérios-capela. Esta distinção tem entretanto um cunho sobretudo arquitectónico: de um ponto de vista funcional não parece de facto haver diferenças de fundo entre os diferentes Impérios das ilhas do grupo central.
7 Acerca dos teatros em São Miguel, cf. Leite de Ataíde, 1973: 250-256.
8 O estudo de Frederico Lopes possui carácter geral. Quanto ao de Inocêncio Enes diz respeito à freguesia dos Altares. Os textos de Mari Lyn Salvador, por fim, embora possuam carácter geral, apoiam-se sobretudo em elementos recolhidos nas seguintes freguesias: Santa Luzia, Quatro Cantos, Corpo Santo, São João de Deus e São Carlos na área urbana de Angra do Heroísmo, e Ribeirinha, São Sebastião, Altares, Lajes e Vila Nova, na área rural (Salvador, 1985: 244). Além destes textos, integram ainda a bibliografia disponível acerca das Festas do Espírito Santo na Terceira: Costa, Antonieta (1987) — centrado no Império de São Carlos — Dias, Maria Alice (1982: 132-153) e Lima, Gervásio (1932: 33-46 e 73-78) — ambos estudos de características gerais — e ainda Ormonde, Maria Helena (1985/6: 79-95) — acerca da freguesia de Vila Nova. No mapa 2 e seguintes, além da indicação das freguesias em que conduzi recolhas próprias, são também identificadas as freguesias sobre as quais é possível dispor de estudos específicos.
9 Para uma apresentação mais detalhada do terço na Terceira, cf. Lopes, 1980a: 267-278
10 As mudanças de Coroa realizavara-se geralmente ao fim da tarde ou ao princípio da noite; parece ser nessa circunstância que se filia o uso, entre as insígnias do Espírito Santo, de tochas que, acendidas para o efeito, iluminavam o percurso do cortejo.
11 Para mais detalhes acerca dos aspectos culinários destes diferentes alimentos cf. Lopes, 1980a: 230-231.
12 Os elementos referente a esta secção baseiam-se em recolhas conduzidas nas freguesias de Topo, Santo Antão, Manadas e no lugar da Beira, na freguesia das Velas, em São Jorge (cf. mapa 10); nas freguesias da Piedade e da Ribeirinha, no Pico (cf. mapa 11); e nas freguesias da Praia, da Luz e do Guadalupe, na Graciosa (cf. mapa 12). Em São Jorge existe ainda uma boa bibliografia acerca das Festas do Espírito Santo, em que se destacam os estudos de Cunha,P.e Manuel da (1981) — que embora contenha materiais respeitantes a outras freguesias, se baseia sobretudo na freguesia da Ribeira Seca — e Canto e Castro (1946) — referente às Festas do Espírito Santo em Santo Amaro; embora com características mais gerais refiram-se também Mendonça (1961/2) e Avellar (1902). Para a Graciosa não consegui encontrar qualquer estudo específico e, em relação ao Pico, os únicos textos disponíveis são Coelho. M. A. (1961: 314320 e 344-348) — material referente também à freguesia da Piedade — e a secção do ensaio genérico de Carreiro da Costa referente ao Pico (1957: 31-35).
13 Entre essas sobremesas, destacam-se nas freguesias do Topo e de Santo Antão, além do pão leve, as espécies, as rosquilhas brancas e os suspiros; para mais detalhes cf. p. 203 do Capítulo 9. Nas freguesias da Ribeira Seca e Norte Pequeno, além de alguns dos doces atrás referidos surgem também os fartes; para mais detalhes cf. Soares, Micaela, 1982: 61-62.
14 Esta fraca marcação alimentar das Coroações na Graciosa parece ser recente. Tradicionalmente realizava-se também um jantar (cf. Pacheco, 1986: 30). Hoje em dia, entretanto, as Coroações com jantar realizam-se exclusivamente fora do tempo e estão dependentes de uma promessa específica nesse sentido.
15 «As rosquilhas são feitas de trigo e de leite, e não levam açúcar. A massa é dura e, quando se fazem, são marcadas por um chavão que tem o símbolo do Espírito Santo» (Pacheco, 1986: 30).
16 Tradicionalmente a confecção das rosquilhas competia a cada uma das casas que pretendia contribuir para o Bodo.
17 Para mais detalhes acerca dos bolos e vésperas, cf., no próximo capítulo, p. 204.
18 Devem ser destacadas as similitudes entre este modelo dos festejos e as variantes prevalecentes em São Miguel e nas Flores e Corvo. Cf. pp. 186 a 189 do presente capítulo.
19 Os elementos referentes às Festas do Espírito Santo no Faial apoiam-se em recolhas conduzidas nas freguesias do Salão, Cedros, Castelo Branco — onde os festejos possuem actualmente uma expressão muito fraca — e no lugar do Norte Pequeno, freguesia do Capelo (cf. mapa 13). Quanto à bibliografia sobre as Festas do Espírito Santo no Faial limita-se a um estudo geral de características sobretudo históricas (Lima, Marcelino, 1940: 487-505). Esse facto impede que se tirem conclusões quanto ao carácter do actual modelo dos festejos, que representa, como veremos, um tipo pouco corrente no quadro mais geral dos Açores. A hipótese de ele se inscrever num processo de declínio de um modelo inicialmente mais elaborado não deve, entretanto, ser liminarmente excluída.
20 Os elementos referentes às Festas do Espírito Santo em São Miguel baseiam-se em recolhas próprias conduzidas nas freguesias das Sete Cidades, Remédios da Bretanha, Capelo, Achadinha e Ponta Garça (cf. mapa 14). Entre a bibliografia disponível destacam-se os estudos de Dias, U. Mendonça (1946: 209-226) — referente sobretudo às freguesias do concelho de Vila Franca do Campo — de Cortes Rodrigues (1924) — freguesia da Ribeira Seca, também no concelho de Vila Franca do Campo — e de Tavares (1979) — referente ao concelho da Lagoa. Embora com características mais genéricas veja-se também Nogueira, 1894, 45-50; Lima, Gervásio, 1932, 79-92; Dias, Tenente Francisco J., 1981, 51-63 e Pavão, 1981, 272-276. Estes três últimos textos contêm sobretudo informação referente aos cantares usados pelas folias no decurso das Festas do Espírito Santo. Entre os materiais de Leite de Vasconcelos publicados postumamente existem também algumas notas soltas àcerca das Festas do Espírito Santo em São Miguel (1982: 345-346 e 349).
21 Nalguns casos, é esta criança que recebe a designação de imperador (cf. Dias, U. Mendonça, 1946: 217; Cortes Rodrigues, 1924: 306). Pelo seu lado, Mendonça Dias refere também ser do seu tempo «ser coroado e andar em acto processional pelas ruas um velho, um pobre, vestido no seu melhor fatito, mas um miserável no entanto» (id., ibid.).
22 A recolha acerca das Festas do Espírito Santo nas Flores incidiu sobre as freguesia das Lajes, Fajã Grande, Santa Cruz — Vila e lugar da Fazenda — e Ponta Delgada (cf. mapa 15). A bibliografia disponível inclui, além do estudo clássico de Francisco Chaves (1904), os textos mais recentes do etnólogo francês Daniel-Francis Laurentiaux (1979; 1983). Trata-se, em ambos os casos de estudos de carácter genérico. Em Leite de Vasconcelos (1982: 340-345) pode encontrar-se também um pequeno apontamento de carácter genérico sobre as Festas do Espírito Santo nas Flores. Finalmente em Legoupil (s/d: 154-159), existe uma secção consagrada às Festas do Espírito Santo na Vila das Lajes.
23 Para uma descrição mais detalhada das alvoradas cf. Chaves, 1904: 17-35.
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