Capítulo 6. O Tempo dos Impérios
p. 129-148
Texte intégral
I
1Constituindo, como vimos, a designação reservada ao período tradicionalmente consagrado à realização dos festejos, a expressão tempo do Impérios transporta consigo um convite: o de examinar o vínculo existente entre o ritual e as formas de representação e conceptualização do tempo que lhe estão subjacentes.
2Esse vínculo começa por ter uma dimensão sazonal muito forte. De facto, estendendo-se tradicionalmente ao longo do período que medeia entre o domingo de Páscoa e o domingo da Trindade o tempo dos Impérios coincide, de um ponto de vista sazonal, com o início da Primavera. De um período do ano dominado pelo adormecimento da natureza e pela exaustão da fertilidade vegetal e animal, a sociedade acede então a uma fase do ciclo anual marcada pelo renascimento da natureza e pela regeneração da fertilidade.
3É justamente à luz deste enquadramento sazonal que pode ser entendido o relevo que na estrutura dos Impérios têm um conjunto de motivos relacionados com a vegetação em que avultam decorações de vário tipo, baseadas em plantas e flores próprias da época: giestas, alecrim, bordões de São José, novelãs, malmequeres, etc… Essa presença da vegetação exprime-se em primeiro lugar em associação com o próprio cenário físico em que se desenrolam os Impérios. Assim, durante a fase preliminar do Império, a porta da casa do imperador é enfeitada com giestas. A decoração tradicional do altar onde é instalada a Coroa e o próprio quarto do Espírito Santo possuem também uma importante componente floral, sendo o altar do Espírito Santo recorrentemente referido nos cantares da folia como jardim. Este elemento vegetal reencontra-se também em dia de Império. A entrada da porta da copeira — à semelhança da porta da casa do imperador — é ornamentada com giestas, e o pequeno altar situado no teatro onde, depois da coroação, é instalada a Coroa, é também decorado com flores. Esta associação dos Impérios à vegetação reencontra-se ainda nas insígnias do imperador, dos pagens da mesa e dos ajudantes grados. Os fruteiros que eles usam no braço esquerdo têm na sua origem uma decoração floral. Da mesma maneira, em dia de Império, as varas dos ajudantes grados são também enfloradas. Mas é sobretudo em associação com o alimento que é mais importante esta associação dos Impérios à vegetação. Antes de serem abatidas, as reses são geralmente enfeitadas, em volta dos chifres, com novelãs e malmequeres. Por seu turno, quer as escaldadas quer os pães de trigo distribuídos no decurso da irmandade são encimados por um pequeno ramo de alecrim. É entretanto em torno dos pães de mesa e roscas que, como vimos, é mais expressiva esta associação entre o alimento e a vegetação. Estes são profusa e artisticamente decorados com bordões de São José, novelãs, malmequeres, etc… Justamente por essa razão, uma das expressões mais utilizadas para os designar, quer nos cânticos da folia, quer inclusivamente no discurso corrente é o de flor, ou, ainda, flor do Espírito Santo. Contribuindo para ligar os Impérios a ideias de renascimento da natureza próprias da Primavera, esta recorrente associação dos Impérios à vegetação desempenha também um papel estético muito importante. Deste ponto de vista, deve ser realçada a particular relevância do cortejo que leva o Império para a copeira. Reservando um importante papel ao transporte cerimonial dos pães de mesa e roscas para a ermida ou igreja em que tem lugar o dia de Império, ele constitui-se de facto na melhor expressão estética desta associação entre os Impérios e a vegetação.
4Marcados com sinais do renascimento da natureza, os alimentos cerimoniais dos Impérios corporizam também de forma emblemática o retorno da fertilidade que a Primavera assinala. O papel que nos Impérios têm os alimentos cerimoniais feitos à base de carne de rês — com relevo para as Sopas do Espírito Santo — liga-se directamente ao «pico» que conhece então — depois do período de recessão coincidente com o Outono e o Inverno, marcado pela escassez de erva nos pastos — a criação de gado. O relevo da massa sovada — em cuja preparação intervêm quantidades extremamente importantes de ovos — reflecte um padrão idêntico: é na Primavera que a abundância de ovos é maior.
5Dada esta sua ligação a ideias de renascimento da natureza e de regeneração da fertilidade próprias da Primavera, não é de estranhar que os Impérios se constituam por fim numa espécie de garante da preservação de algumas das principais produções agrícolas da freguesia. De facto, como vimos, no quadro dos peditórios de géneros — trigo, vinho, milho — que ocorrem por ocasião das debulhas, das vindimas e das desfolhas, a imposição do ceptro possuía um valor mágico de protecção dessas produções.
II
6Esta referência sazonal a que os Impérios obedecem é reforçada pela significação ampla dada à expressão tempo dos Impérios. Esta, além do significado restrito de período de tempo consagrado aos Impérios, evoca ainda, nas verbalizações das pessoas, uma fase claramente demarcada do ciclo anual, caracterizada por um conjunto de actividades unidas por um comum denominador sazonal: arrumação, limpeza e caiação das casas, início dos trabalhos de acompanhamento do crescimento das principais produções agrícolas, regresso do gado às pastagens, etc…
7Simultaneamente, neste sentido amplo que acabámos de referir, a expressão tempo dos Impérios inscreve-se num eixo sintagmático que pressupõe a existência ao longo do ano de um conjunto de outros tempos também eles individualizados por referência a um conjunto de actividades específicas. Alguns desses tempos são designados de acordo com um registo que nos remete para o calendário agrícola: tempo dos trigos — aplicado ao período do ano coincidente com a ceifa e a debulha do trigo (fins de Julho/princípio de Agosto) — tempo dos milhos — que designa o período em que se realiza a apanha e a desfolha do milho (Setembro/ Outubro) — etc… Mas outras remetem para o registo do calendário cerimonial: tempo da Quaresma, mês das almas — que se reporta ao mês de Novembro, que abre com as comemorações dos Finados e Todos-os-Santos — mês da Festa — que, aplicandose em primeiro lugar ao mês em que se realiza a Festa de Santa Bárbara, designa também o período em que recaem as matações, etc…
8Este último registo é particularmente importante para a análise das cerimónias cíclicas. De facto, como diversos antropólogos têm sublinhado, as cerimónias cíclicas devem ser encaradas como unidades de um sistema mais vasto, no interior do qual cada uma delas ganha o seu sentido.
9Implicitamente presente no esforço de sistematização a que Van Gennep procede no seu «Manuel de Folklore Français Contemporain» (1947), esta perspectiva encontra-se mais explicitamente argumentada na obra que Propp consagrou à análise das festas agrárias russas (1978). Demarcando-se de estudos que prescindem desta dimensão das cerimónias cíclicas, Propp sublinha que «uma festa particular (…) só pode ser correctamente compreendida quando se estuda todo o ciclo anual das festas» (1978: 42). É também numa direcção similar que se inscreve a reflexão de E. Leach (1961: 124-143). Depois de chamar a atenção para a importância das festas na construção do tempo, Leach sublinha que «para apreciarmos de forma nítida o modo como a festividade serve para ordenar o tempo, devemos considerar o sistema como um todo e não apenas festas isoladas» (id.: 135). Alguns dos exemplos são retirados do calendário cerimonial europeu: «os 40 dias entre o Carnaval (a TerçaFeira de Entrudo) e a Páscoa são contrabalançados pelos 40 dias entre a Páscoa e a Ascensão» (id., ibid.), etc…
10Foi entretanto com o estruturalismo que esta perspectiva se impôs de forma mais decisiva. Lévi-Strauss, nalgumas passagens das suas «Mythologiques», sugere a possibilidade de aplicar ao ritual de uma forma geral e às cerimónias cíclicas em particular um modelo inspirado na análise estrutural do mito, onde justamente o que conta não é cada elemento encarado isoladamente mas a teia de relações — de oposição, de complementariedade, de simetria, de inversão — que une entre si os diferentes elementos e por referência à qual cada um recebe o seu significado. As páginas que este autor dedicou ao exame dos rituais europeus ligados ao Carnaval, à Quaresma e à Páscoa constituem uma demonstração das virtualidades dessa grelha na análise das cerimónias cíclicas em contexto europeu (cf., em particular, LéviStrauss, 1967: 347-363).
11Um tratamento mais argumentado desta grelha analítica encontra-se em dois textos expressamente consagrados ao problema por Pierre Smith (Smith, P., 1979; 1981). No primeiro desses textos, P. Smith chama a atenção para o facto de as cerimónias cíclicas formarem entre si um sistema: «qualquer rito está ligado a uma circunstância que determina a sua ocorrência e estas circunstâncias fazem, elas próprias, parte de séries. Os diferentes ritos associados a circunstâncias que dependem de uma mesma série tendem a formar um sistema, ou seja, eles respondem-se, opõem-se, completam-se ou repetem-se de uma forma que, sob todos os aspectos, é mais evidente do que no caso dos ritos ligados a circunstâncias que dependem de séries diferentes» (Smith, P., 1979: 145). No caso das cerimónias cíclicas as circunstâncias a que elas responderiam seriam de tipo periódico e elas formariam «sistema segundo um eixo sintagmático; cada rito da série será necessariamente precedido e seguido por um outro, segundo uma ordem bem determinada que se repetirá a cada recorrência do ciclo» (id., ibid.). Dois anos mais tarde, num artigo consagrado ao exame da noção de «festa» (Smith, P., 1981), P. Smith voltaria a argumentar em favor desta perspectiva. «As festas — sublinha ele — definem-se primariamente por oposição a outros momentos do sistema ritual que determinam a sua ocorrência» (Smith, P., 1981: 219). Os exemplos são mais uma vez retirados do ciclo cerimonial nas sociedades europeias: «assim, a TerçaFeira Gorda opõe-se à Quarta-Feira de Cinzas, o dia de Páscoa à Sexta-Feira Santa, etc…» (id., ibid.).
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12É justamente a partir deste quadro interpretativo que se torna possível começar por analisar aquele que considerámos ser um dos aspectos mais relevantes dos Impérios: a sua ligação a ideias de reiteração das relações sociais.
13De facto, desenvolvendo-se tradicionalmente ao longo do período compreendido entre o domingo de Páscoa e os domingos de Pentecostes e da Trindade, os Impérios sobrevêm não apenas na sequência imediata de dois «ciclos» cerimoniais particularmente importantes para o imaginário local-o Carnaval e a Quaresma (cf. figura 5) — como é justamente no interior desse quadro cerimonial alargado que eles podem começar por ser interpretados, como uma peça essencial de um discurso que relaciona entre si tempo e estrutura social.
14Passemos rapidamente em revista alguns aspectos etnográficos mais relevantes desses dois «ciclos» cerimoniais. Tal como na tradição geral europeia e portuguesa, o Carnaval em Santa Bárbara pode ser visto como um período de excesso e licenciosidade autorizados. Essas suas características expressamse, em primeiro lugar, na preparação e no consumo abundante de mal assadas — feitas à base de farinha frita em gordura de porco — que marcam em plano de relevo a quadra. Simultaneamente, os festejos dão lugar — em Domingo Magro, em Domingo Gordo e na Terça-feira de Carnaval — à aparição de personagens mascarados. Conhecidos sob a designação de velhos, esses personagens percorrem em bandos a freguesia, visitando as casas e entregando-se a todo o tipo de excessos, com particular incidência no «roubo», simulado ou real, das mal assadas e de outros alimentos que apanham à mão em cada casa. Mais recentemente, generalizou-se também na freguesia o costume das danças de Carnaval: formam-se um ou mais ranchos de rapazes e raparigas que, geralmente no Domingo Gordo e na Terça Feira de Carnaval, exibem danças especialmente montadas para o efeito. Os cantares que acompanham essas danças assumem frequentemente um marcado tom jocoso, designadamente por intermédio da passagem em revista crítica de alguns acontecimentos e personagens mais marcantes da vida da freguesia. No seu quadro, os mascarados desempenham um papel importante, interrompendo as danças com gritos de efeito cómico, «provocando» os assistentes, «forçando-os» a fazerem contribuições monetárias, etc…
15Seguindo-se ao Carnaval, a Quaresma surge tradicionalmente associada a ideias de contenção e severidade contrastantes com os excessos e a licenciosidade carnavalescas. Em contraponto ao consumo obrigatório e abundante de alimentos gordos, generalizam-se então os jejuns e abstinências alimentares, com particular realce para aquelas que têm lugar em todas as 6.as Feiras de cada uma das sete semanas da Quaresma e ainda na 6.a Feira e Sábado Santos. Em contraste com a licenciosidade carnavalesca a vida ritual é então dominada por uma espécie de «tristeza obrigatória». Centrada na evocação da morte de Cristo, a Quaresma constitui de facto um período do ciclo cerimonial anual predominantemente estruturado em torno de um marcado despojamento litúrgico, por um lado, e da penitência e da oração, por outro. O tom começa por ser dado na 4.a Feira de Cinzas. Nesse dia, através da cerimónia da imposição das Cinzas, a Igreja relembra aos fiéis a sua condição mortal: «lembrate que és pó / e em pó te hás-de tornar». A liturgia coloca-se a partir daí sob o signo de uma contenção — expressa, por exemplo, na cor violeta dos paramentos sacerdotais ou na supressão de certas orações e cânticos da missa mais vinculados a ideias de vida — que atingirá o seu ponto culminante no decurso da 6.a Feira e Sábado Santos. A missa não é então celebrada e, na igreja, as imagens eram tapadas, as luzes extintas, os sinos silenciados, sendo substituídos, até há cerca de dez anos atrás, pelos chamados instrumentos das trevas1. E também nesses dias que a penitência e a oração ganham a sua expressão mais enfática. Têm então lugar na igreja paroquial algumas vias-sacras e até há cerca de 30/40 anos era ainda usual realizar-se num desses dias a procissão do Senhor dos Passos — que percorria o Termo da Igreja — caracterizada justamente por um tom penitencial fortemente marcado.
16Unidos por laços de contiguidade temporal, os dois «ciclos» cerimoniais que acabámos de passar em revista mantêm com os Impérios relações privilegiadas de oposição e complementariedade. Pensadas localmente sobretudo por referência ao alimento ou ainda em termos da ambiência subjectiva que cada um desses «ciclos» evoca — folia / tristeza / alegria —, essas relações estendem-se também ao plano sociológico. Antecedendo imediatamente os Impérios, o Carnaval e a Quaresma são de facto caracterizados por uma orientação sociológica contrastante com a dos Impérios. Enquanto estes nos apareceram privilegiadamente ligados a ideias de reiteração dos principais círculos de relacionamento social, o Carnaval e a Quaresma tendem a identificar-se inversamente com ideias de desestruturação e latência das relações sociais.
17A ligação do Carnaval a ideias de desestruturação das relações sociais transparece antes do mais, no ambiente geral de excesso e licenciosidade que o caracteriza. Por seu intermédio, é a ordem social no seu conjunto que é momentaneamente posta em questão. Alguns dos motivos mais específicos em que se desdobram os festejos carnavalescos remetem também para o mesmo horizonte simbólico. Assim, a circulação do alimento aparece articulada, como vimos, com uma momentânea subversão das regras de etiqueta e reciprocidade que rodeiam a dádiva alimentar: em vez de trocados, os alimentos são exigidos ou roubados. O papel dos personagens mascarados, por seu turno, liga-se directamente ao tema da ocultação da identidade. Por seu intermédio, o Carnaval define-se como um período de suspensão e confusão do jogo de identidades sobre que assenta a vida social. Quanto às danças de Carnaval, elas articulam-se também, pelo modo como possibilitam a crítica e a troça públicas em níveis usualmente não admitidos, com uma momentânea suspensão das regras que presidem ao relacionamento social.
18Precedida por este período de desestruturação das relações sociais, a Quaresma surge pelo seu lado associada a dispositivos simbólicos que tendem a conotá-la com ideias de margem ou liminaridade das relações sociais, para empregar as expressões clássicas de Van Gennep (1909). Período de oração e de penitência, de supressão da festa, de jejum e de abstinência, a Quaresma, centrada na evocação da morte da divindade, como que convida a sociedade a um período de luto no decurso do qual a vida social deve ela própria rarefazer-se. De facto, em consequência da especial orientação da sua espiritualidade para as «coisas de Deus», a vida social no decurso da Quaresma tende a aparecer associada — em particular na sua versão pré-conciliar — a ideias de contenção, como salientam os liturgistas católicos quando a apresentam como um período de «afastamento e separação do mundo» (Béranger, 1949: 179) ou de «recolhimento unânime» (Spiritualité Pascale, 1957: 55). Nessa época do ano, diziam-me a propósito em Santa Bárbara, «cada um parece que está mais em si». Este estado de latência — de acordo com a própria organização interna da Quaresma-atinge uma expressão particularmente significativa na Semana Santa e, em especial, na 6.a Feira e Sábado Santos. O Triduum faz-se de facto acompanhar «idealmente» da suspensão de toda a actividade «profana», dobrada em muitos casos, por tradições propriamente populares que sublinham essas ideias de liminaridade2.
19É justamente por referência a esta latência social quaresmal — relativamente à qual o Carnaval, com a desestruturação das relações sociais a que se entrega, opera como prólogo — que pode começar por ser entendido o trabalho sociológico que caracteriza os Impérios. Sucessivamente submetidas a um processo de desorganização e latência, as relações sociais conhecem então um movimento de reorganização e renovação.
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20Desestruturação e latência devem ser nessa medida encaradas como expressões provisórias de uma lógica que é a da reiteração cíclica das relações sociais. Este aspecto foi fortemente enfatizado por M. Bakhtine que, na sua obra clássica sobre o Carnaval (1970), pôs em evidência o modo com a ruptura, a inversão e a transgressão próprias da linguagem carnavalesca devem ser interpretadas como dispositivos simbólicos ao serviço de ideias de regeneração periódica da ordem social. É de acordo com pressupostos similares que podem ser encaradas as ideias de latência e margem próprias da Quaresma. Assim como no plano litúrgico a evocação da morte da divindade não é senão um preliminar indispensável à comemoração da sua ressurreição, também no plano sociológico a latência das relações sociais prepara a sua renovação. Citando Bloch e Parry, a morte deve também aqui ser vista como «um acto de regeneração universal que renova o tempo» (1987: 15).
21É no quadro desta perspectiva que pode ser examinado o modo como o Carnaval e a Quaresma, ao mesmo tempo que surgem associados, no plano sociológico, a ideias de desestruturação e margem próprias de um período de fim de ciclo, prenunciam, no plano sazonal, ideias de renascimento da natureza e de regeneração da fertilidade próprias do início de um novo ciclo natural. Assim, no Carnaval, a circulação do alimento, ao mesmo tempo que remete para ideias de desestruturação social antecipa também as ideias de abundância alimentar próprias dos Impérios e, na Quaresma, a componente vegetal que, também em Santa Bárbara, caracteriza o Domingo de Ramos, opera como um prólogo às ideias de renascimento da natureza a que os Impérios aparecem vinculados.
III
22Conotados na sua adscrição sazonal com ideias de renascimento da natureza e de regeneração da fertilidade, os Impérios recebem pois, em virtude da sua colocação no interior do ciclo cerimonial anual, um significado suplementar de renovação cíclica das relações sociais.
23É no interior deste quadro que pode ser explicado o peso que na sua sequência têm um conjunto de desempenhos assegurados por crianças ou jovens. Trata-se de, com recurso ao código etário, sublinhar a estreita relação existente entre o ritual e as ideias de regeneração da ordem natural e social nele inscritas. Este aspecto é particularmente importante, no quadro mais geral de Santa Maria, nos Impérios que se realizam nas freguesias da metade oeste da ilha. De facto, como tivemos ocasião de verificar, a coroação incide aí sobre o chamado menino da mesa, uma criança de quatro a oito anos de idade.
24Em Santa Bárbara esta solução é exclusivamente utilizada no quadro dos Impérios secos. De facto, tanto no Império de São João como no de São Pedro, era sobre uma criança ou sobre um jovem que incidia a coroação. Para além disso, como tivemos oportunidade de verificar, o Império de São João definia-se também no passado pela sua ligação ao grupo de idade dos rapazes. Mas, embora sob formas menos directas, os Impérios propriamente ditos acolhem também ideias similares. É a essa luz que pode ser entendido o relevo que no séquito do imperador têm não apenas os pagens da mesa, mas também os briadores, escolhidos respectivamente entre crianças de quatro a oito anos de idade e entre os rapazes solteiros da freguesia. Simultaneamente, pode-se também falar de uma associação privilegiada das crianças e rapazes à esfera da circulação do alimento, tanto mais significativa quanto é sobre o alimento que assenta o trabalho de renovação das relações sociais a que os Impérios se entregam. De facto, um certo número das distribuições alimentares dos Impérios encontram-se a cargo destes grupos etários. É esse o caso das distribuições porta-a-porta de Sopas do Espírito Santo, asseguradas, como vimos, por crianças e rapazes de idades geralmente compreendidas entre os seis e os doze anos. Dentro da mesma ordem de ideias, devem ser destacadas as responsabilidades que os briadores têm também nessa esfera. Como vimos, as corridas de biscoitos de orelha e vinho que têm lugar no decurso das alumiações estão a seu cargo e, no passado, eram também eles que asseguravam a distribuição porta-a-porta da irmandade. Finalmente, em dia de Império, são também os briadores que conduzem as corridas de massa sovada e de vinho que se realizam no exterior do recinto.
IV
25A sequência ritual formada pelo Carnaval, Quaresma e Impérios mantém uma relação estreita com os ritmos e temporalidades de natureza sociológica que estruturam o ciclo anual no seu conjunto. Situados no termo do Inverno e associados a ideias de desestruturação e latência das relações sociais, o Carnaval e a Quaresma põem fim a uma fase do ciclo anual, coincidente com o Outono e o Inverno, caracterizada pela gradual dominância de ideias de desaceleração e contenção das relações sociais.
26Esta tendência pode começar por ser surpreendida em torno do calendário agrícola (cf. quadro 20). Este é marcado, antes do mais por uma desaceleração da actividade produtiva nos campos. Os trabalhos tornam-se mais espaçados e relacionam-se sobretudo com a preparação prévia das terras e com as sementeiras. O mês de Outubro é dedicado à primeira lavra — seguida de gradagem — das terras destinadas ao trigo. Ainda no fim desse mês ou já no princípio de Novembro, inicia-se por seu turno, com os outonos, a preparação das terras destinadas ao milho e à batata. As terras são então semeadas com tremoço (ou fava); depois deste ter crescido, são de novo lavradas de modo a que o tremoço (ou a fava), enterrado no solo, possa funcionar como adubo natural. No decurso desse mês, realizam-se ainda a segunda e a terceira lavra das terras destinadas ao trigo que é semeado um mês depois, em Janeiro. Janeiro é também o mês em que são «estercadas» as terras destinadas à batata, que é plantada mais tarde entre Fevereiro e Março. Quanto às terras destinadas ao milho, são lavradas por duas vezes, respectivamente em Janeiro e Fevereiro, sendo depois semeadas entre princípios de Março e meio de Abril.
27Simultaneamente a esta desaceleração do ritmo produtivo no exterior, ganham maior importância as actividades centradas no marco físico da casa. Entre elas destacam-se as desfolhas do milho e, sobretudo, a matação do porco. As desfolhas do milho têm lugar a partir de finais de Setembro e estendem-se por todo o mês de Outubro: realizam-se no palheiro ou numa das divisões da casa. A matação do porco recai por seu turno, como vimos, nos meses de Dezembro e Janeiro. Antes disso, porém, e desde finais de Setembro, o porco ocupava já o centro das preocupações de cada casa: é então que decorre o período da engorda, no decurso do qual a sua alimentação é substancialmente reforçada e melhorada. Outubro, Novembro e Dezembro são também os meses de apogeu das produções cultivadas nos terrenos situados nas imediações de cada casa, no respectivo casal: é nessa altura que se procede à apanha dos nabos, inhames e batata doce, que têm um peso muito grande na dieta alimentar dessa época do ano. As próprias reses, dado o facto de este ser o período do ano em que os pastos produzem menos erva, são também deslocadas para os currais ou pastos situados nas imediações de cada casa, onde é mais fácil alimentá-las3.
QUADRO 20. Organização do calendário agrícola anual em Santa Bárbara
MÊS | TRIGO | MILHO | BATATA | VINHA |
Outubro | lavra/ | desfolha | ||
gradagem | outonos | |||
Novembro | lavra | outonos | outonos | |
lavra | ||||
Dezembro | ||||
Janeiro | sementeira | lavra | estercar | |
Fevereiro | lavra | plantar | ||
Março | mondar | semear | plantar | podar |
Abril | mondar | semear | sachar | |
Maio | sachar | sulfatar | ||
apanhar | ||||
Junho | apanhar | podar | ||
Julho | ceifas | abrir/ | ||
levantar | ||||
Agosto | debulhas | vindimas | ||
Setembro | vindimas | |||
apanha |
28Esta tendência para a desaleração da actividade produtiva e para o seu refluxo para o espaço da casa possui importantes consequências sociológicas. As actividades agrícolas no exterior, além de menos intensas, possuem também um carácter marcadamente individualista, envolvendo sobretudo a mão de obra da própria unidade doméstica. O recurso ao trabalho exterior é de facto bastante raro e quando ocorre baseia-se sobretudo no jornal, utilizado designadamente para pagar o trabalho assegurado pelo tractor ou pela junta de bois no âmbito das lavras. As actividades centradas no espaço físico da casa envolvem também formas de cooperação sociologicamente limitadas, centradas sobretudo nos parentes mais chegados e nos vizinhos de perto. As desfolhas e a matação do porco são, a esse respeito, emblemáticas. As desfolhas, pelo seu lado, dão sobretudo lugar a trocas recíprocas de trabalho, de carácter restrito, entre vizinhos de perto. Quanto à matação do porco ela liga-se, como tivémos oportunidade de examinar, ao núcleo mais básico e íntimo de relacionamento social de cada casa. Isto é: ao mesmo tempo que as ocasiões de encontro e de relação se tornam mais escassas, o espectro sociológico por elas coberto tende a confinar-se a círculos sociais mais próximos.
29Presente ao nível do calendário agrícola, a ligação do Outono e do Inverno a formas de sociabilidade mais espaçadas e envolvendo sobretudo os círculos de relacionamento social mais próximos, reencontra-se ao nivel do calendário cerimonial (cf. figura 6). De facto, as principais ocasiões cerimoniais deste periodo do ano aparecem predominantemente associadas a ideias de contracção das casas e das relações sociais.
30Recebendo uma expressão particularmente enfática no tempo da Quaresma, estas ideias reencontram-se ainda nos Finados e Todos-os-Santos e no Natal, por intermédio da marcação essencialmente doméstica que caracteriza ambas as ocasiões. Os Finados e Todos-os-Santos, a 30 de Outubro e 1 de Novembro, constituem, pelo seu lado, uma celebração única dominada pela evocação dos mortos, ou das almas, que assinala, do ponto de vista do ciclo cerimonial, o início do Outono. Esta celebração possui, antes de mais, uma vertente religiosa. No dia 1 é celebrada uma missa pelos defuntos — -antecedida pelo toque «a finados» dos sinos — seguida de uma romagem ao cemitério. Lá, depois de uma oração colectiva, cada família reúne-se de seguida junto das campas dos seus parentes falecidos, para uma oração de características mais pessoais. Estes actos têm uma participação importante das casas da freguesia e a sua sequência faz lembrar a dos funerais. No passado, era inclusivamente usual — à semelhança daquilo que acontecia nos funerais — que certas casas procedessem, no termo da missa, à distribuição, junto de pessoas mais pobres, de brindeirinhos pelas almas. Simultaneamente a estas cerimónias religiosas esta data é sobretudo marcada pela realização de um pequeno ritual de características alimentares cuja orientação sociológica não poderia ser mais expressiva. No próprio dia 1 ou nas imediações desse dia, cada casa coze um certo número de maçarocas de milho, o chamado milho para os santos. Mas, em vez de, como noutras ocasiões cerimoniais, esse alimento circular entre casas, é sobretudo no quadro de cada unidade doméstica que ele é consumido ou partilhado4.
31No Natal, reencontra-se uma orientação idêntica. Como vimos, é nessa ocasião que os padrinhos realizam a oferta cerimonial aos afilhados, integrada por um biscoito de orelha ou por um bolo talhado. Hoje em dia, a par dessa oferenda, generalizou-se também o hábito, sob a influência do modo de vida urbana, de promover uma refeição melhorada. Mas, mais uma vez, as suas características são fundamentalmente familiares.
32Situando-se no princípio da Primavera e associados a ideias de reiteração das relações sociais, os Impérios dão inversamente início a uma fase do ciclo anual em que se tornam gradualmente dominantes formas de sociabilidade mais intensa e envolvendo círculos de relacionamento social mais amplos e numerosos.
33Mais uma vez esta orientação pode começar por ser surpreendida em torno da estruturação do calendário agrícola. De facto, em contraste com o carácter espaçado dos trabalhos agrícolas no decurso do Outono e do Inverno, a partir do início da Primavera, o ritmo da actividade agrícola torna-se mais exigente. Como vimos anteriormente, é a partir dessa altura que a criação de gado entra no seu «pico» anual. Simultaneamente, as actividades relacionadas com as principais produções agrícolas conhecem uma aceleração decisiva. Março e Abril são os meses da monda do trigo. Ainda em Abril a batata deve ser sachada e abarbada. Maio é por seu turno o mês dedicado às sachas do milho. É também nesse período que decorre uma parte importante dos trabalhos de conservação das vinhas: podas, sulfatagens, etc… Entretanto, nos campos, inicia-se o ciclo das colheitas. A parte final do mês de Maio e o mês de Junho dão lugar à apanha da batata. Julho por seu turno, é o mês da ceifa do trigo, à qual se segue, muitas vezes já no princípio de Agosto, a sua debulha. No final de Agosto e no início de Setembro realizam-se por sua vez as vindimas. E o ciclo das colheitas é encerrado, em Setembro, com a apanha e a desfolha do milho. Com elas, é também esta fase mais exigente do ciclo agrícola que chega ao seu termo.
34Mais intensa, a actividade agrícola no decurso desta fase do ano requer também formas de cooperação relativamente assíduas e largas. Contrariamente ao «individualismo» prevalecente no Outono e no Inverno, a maior parte das tarefas passa a requerer trocas de mão ou a formação de grupos de trabalho mais extensos. Estes, podendo fazer a sua aparição no quadro dos diversos trabalhos de acompanhamento do crescimento da produção agrícola — mondas, sachas, trabalho nas vinhas, etc… — tornam-se norma no âmbito das colheitas. A apanha da batata faz-se em geral com grupos de trabalho de três a quatro homens. A ceifa do trigo dá também lugar à formação de grupos de trabalho que podem ir até cinco/seis indivíduos. É entretanto no quadro das debulhas de trigo que as formas de cooperação inter-casas assumem formas mais significativas. Estas dão lugar, por um lado, à formação de um dos mais extensos grupos de trabalho requeridos pela actividade agrícola, integrado por cerca de nove a dez indivíduos. Por outro lado, em seu tomo estabelece-se uma espécie de reciprocidade generalizada entre as diferentes casas que debulham no mesmo dia. Sem que haja qualquer combinação prévia nesse sentido, membros dos vários grupos de trabalho das diferentes casas vão acorrendo de forma informal às debulhas de outras casas5. Devido a estes factores, as debulhas tendem a ser localmente encaradas como uma ocasião de natureza quase festiva, em que a cooperação e o convívio intervicinais atingem uma dimensão sociológica extremamente alargada. Embora os grupos requeridos para o efeito não sejam em geral tão amplos, e não existam formas de cooperação alargadas como as que acabámos de pôr em evidência, as vindimas participam também de uma atmosfera semelhante à das debulhas. De facto, a sua realização dá lugar, no fim do dia, a visitas às adegas, com provas de uvas e abundante circulação dos restos do vinho do ano anterior. Sobrevindo após estas duas ocasiões particularmente marcantes de um ponto de vista sociológico, a apanha do milho, situada no limiar do Outono, baseia-se já em formas mais limitadas de cooperação, antecipando de certa maneira essa espécie de «individualismo» que irá prevalecer durante o Outono e o Inverno.
35Presente ao nível do calendário agrícola, a ligação da Primavera e do Verão a formas de sociabilidade mais frequentes e intensas e envolvendo círculos de relacionamento social mais amplos reflecte-se também na organização do calendário cerimonial. De facto, em contraste com a orientação essencialmente doméstica que caracteriza as principias ocasiões rituais ligadas ao Outono e ao Inverno, o calendário cerimonial no decurso da Primavera e do Verão fornece sucessivas ocasiões para o estreitamento de laços sociais mais amplos. Sobrevindo na sequência do tempo dos Impérios, o Império de São João prolonga, como vimos, as ideias de reiteração da unidade e da identidade da freguesia presentes nos Impérios propriamente ditos. Os festejos mais gerais do São João — no decurso dos quais muitas casas acendem fogueiras, ao redor das quais se concentram grupos de vizinhos, conversando e saltando a fogueira — reforçam a adscrição desta data a uma sociablidade alargada. Integrando tradicionalmente o calendário tradicional da freguesia, o Império de São Pedro possuía também, como vimos, um importante papel na reafirmação do sistema social de tipo «dualista» em que Santa Bárbara, em conjunto com a vizinha freguesia de Santo Espírito, se inscreve.
36Na Festa do Sagrado Coração de Jesus — festa «patronal» da freguesia — é uma orientação similar que é possível reencontrar. Apresentando a estrutura típica das festas patronais, a Festa envolve, do ponto de vista religioso, a realização, da parte da manhã, de uma missa solene, concelebrada pelos párocos de toda a ilha. Contando com uma participação excepcionalmente elevada, esta missa é geralmente aproveitada para a realização de cerimónias religiosas suplementares, como a primeira comunhão, ou a comunhão solene. Ao fim da tarde, tem lugar uma procissão que percorre a totalidade do lugar do Termo da Igreja e à qual se associam o conjunto das casas da freguesia. A par desta vertente religiosa, a Festa do Sagrado Coração de Jesus comporta também a realização, durante todo o dia, de um arraial, integrado por barracas de comes e bebes, jogos e divertimentos, leilões, etc… A organização da festa está a cargo de uma comissão de seis membros, designada pela comissão cessante. Embora assegure um grande número das tarefas relacionadas com a festa, a comissão apoia-se também no trabalho fornecido «idealmente» pela totalidade das casas da freguesia. Estas têm designadamente a seu cargo tudo aquilo que diz respeito à decoração do itinerário da procissão. Para o efeito, a freguesia é repartida em três partidos — cada um deles agrupando um certo número de lugares — que têm a seu cargo a decoração de um troço específico desse itinerário. Esta associação do conjunto da freguesia às tarefas relacionadas com a organização da festa, bem como a participação importante que o conjunto das casas tem tanto na missa como na procissão, devem ser salientadas. Por seu intermédio, a Festa defíne-se como um momento particularmente importante de afirmação da freguesia. Simultaneamente, ela constitui também uma ocasião importante do relacionamento da freguesia com o exterior, expressa não apenas no afluxo genérico de pessoas de fora ao arraial, mas ainda nas inúmeras visitas informais que, nessa ocasião, os forasteiros fazem às casas de parentes ou conhecidos seus da freguesia.
V
37É no interior desta configuração sociológica do ciclo anual — que, em certos aspectos, não deixa de evocar o quadro esboçado por Mauss a respeito das sociedades rurais europeias no final do «Essai sur les Variations Saisonnières des Sociétés Eskimos» (Mauss, 1983b)6 — que se torna possível examinar as novas formas de articulação entre Impérios, estrutura social e tempo decorrentes de um conjunto de mudanças que se têm vindo a esboçar na freguesia nos últimos anos.
38Entre essas mudanças conta-se uma tendência para uma menor marcação ritual da Quaresma resultante da gradual implementação local das reformas litúrgicas post-conciliares. Em consequência tem-se vindo a registar um certo enfraquecimento das relações de complementariedade tradicionalmente existentes entre o Carnaval, a Quaresma e os Impérios, que, no caso de Santa Bárbara, é ainda facilitado por um outro factor: o alargamento do tempo dos Impérios e o modo como este tende a pôr em causa as relações de contiguidade temporal existentes entre estes três «ciclos» cerimoniais.
39Em consequência deste último factor, os Impérios, de uma ligação exclusiva e formal à Primavera, tendem a vincular-se de modo informal ao período constituído pela Primavera e o Verão. É justamente no quadro da associação privilegiada dessa época do ano a formas mais alargadas de sociabilidade que podem começar por ser entendidas as novas modalidades de articulação entre Impérios, estrutura social e tempo decorrentes do alargamento do tempo dos Impérios. Continuando ligados, na sua adscrição tradicional, a ideias de reiteração cíclica das relações sociais, os Impérios actuam agora também como uma das expressões emblemáticas do tipo de sociabilidade predominante na Primavera e no Verão.
40Mas é sobretudo no quadro das transformações que a emigração — principal responsável pelo alargamento do tempo dos Impérios — produziu nesse tipo de sociabilidade que é possível interpretar as novas formas de articulação entre Impérios, estrutura social e tempo decorrentes do alargamento do tempo dos Impérios.
41Entre elas avulta a gradual afirmação do Verão como um tempo de momentânea reconstituição da unidade de uma comunidade dividida pela emigração. Esta introduziu de facto uma cisão entre a comunidade real formada pelos habitantes efectivos de Santa Bárbara e a comunidade virtual constituída por estes e por todos aqueles que, embora emigrados, mantêm intactas as suas ligações e o seu sentido de pertença à freguesia. É esta «dipolaridade» da freguesia — para empregar a expressão de Beatriz Rocha-Trindade (1976) — que é momentaneamente posta entre parêntesis nos meses de Verão — em particular Julho e Agosto — devido ao afluxo de um número significativo de emigrantes à freguesia. Acompanhando esta tendência, os Impérios tendem a constituir-se numa peça central desse cíclico «refazer» da comunidade. Da mesma forma que, a um nível mais restrito, eles fornecem, como vimos, uma ocasião para a momentânea reconstituição das relações de parentesco e vizinhança de perto do imperador, a este nível mais amplo eles propõem como que uma plataforma ritual de encontro entre a comunidade real e a comunidade virtual em que se desdobra Santa Bárbara.
42É aliás a essa luz que se pode explicar o particular empenho que muitos emigrantes — não aparentados aos diferentes imperadores — colocam na sua participação nos Impérios designadamente por intermédio da irmandade. Essa participação estende-se, por uma lado, à maioria dos emigrantes que se encontram de visita à freguesia nos meses de Verão, caso durante estes meses tenha lugar algum Império. Mas estende-se também, como vimos anteriormente, a muitos emigrantes que, mesmo ausentes, fazem questão em se associar aos Impérios. Fazendo-o eles tornam clara a sua vontade de, mesmo à distância, marcarem a sua condição de membros da freguesia.
43Seja na sua expressão tradicional, seja através destas novas modalidades os Impérios aparecem-nos em Santa Bárbara como um dos «marcadores» por excelência do tempo, em particular das configurações sociológicas que este desenha.
VI
44A importância deste vínculo entre Impérios, tempo e relações sociais deve ser tanto mais sublinhada quanto uma persistente tradição em Antropologia Social tem interpretado as características sociológicas das cerimónias cíclicas de acordo com uma caracterização de contornos funcionalistas da vida social nas comunidades camponesas. Essas comunidades seriam caracterizadas por uma espécie de deficit crónico de coesão e o papel das cerimónias cíclicas em particular e do ritual em geral seria justamente o de injectar coesão e ordem na estrutura social. Esta forma de encarar o ritual é particularmente bem ilustrada nas concepções de Eric Wolf que, num texto que se tornou num «clássico» da reflexão antropológica sobre as sociedades camponesas, encara o cerimonial como uma espécie de contraponto às tendências corrosivas que ameaçam a coesão da estrutura social: «as relações sociais criam ordem, mas, por vezes, no próprio acto de criação de ordenação, elas criam desordem» (1966: 97). O cerimonial «age de modo a confirmar (…) a ordem social comum, a depurá-la da desordem, a restaurar a sua integridade» (id.: 98). Formulações idênticas podem reencontrar-se em várias monografias ou ensaios especificamente consagrados ao exame das festividades populares europeias. Salientando o papel coesivo das festas na aldeia castelhana de Valdemora, Susan Freeman interpreta-o como um meio de contrabalançar as tendências centrífugas da organização social: «o complexo missa-festa-reunião, que transmite às fiestas do pueblo o seu carácter especial, é crucial para obter a união dos grupos domésticos separados nas ocasiões em que eles devem funcionar em conjunto. Os laços de sentimentos, interesse mútuo, cooperação e obrigação que unem a família nuclear nas suas actividades quotidianas, não são suficientemente fortes para colmatar a distância entre os grupos domésticos, e é precisamente nos momentos que exigem uma participação colectiva que as sanções religiosas se tornam operativas» (1970: 97). Num texto consagrado à análise das festas na aldeia portuguesa de São João das Lampas a que já enteriormente fizemos alusão, Joyce Riegelhaupt desenvolve pressupostos similares. Depois de sublinhar «a importância que as festas e os lugares sagrados desempenham na definição da comunidade» (1973: 835), a autora insiste em que «tradicionalmente, têm sido as práticas religiosas — as festas — que fornecem a definição tangível da comunidade — as suas fronteiras, os seus vínculos internos assim como as suas relações externas» (id.: 837).
45Postulando uma relação de contornos funcionalistas entre o ritual e a ordem social, este tipo de análises tende a silenciar esse vínculo fundamental entre cerimónias cíclicas e as formas de conceptualização do tempo nas sociedades rurais.
Notes de bas de page
1 Em Santa Bárbara existe ainda na sacristia um desses instrumentos, uma matraca.
2 Leite de Vasconcelos (1982: 217 e 218) refere por exemplo entre essas tradições, a interdição, durante a 6.a Feira Santa, de actividades como cozinhar, fiar, cozer, lavar a roupa, etc... No caso de Santa Bárbara, algumas dessas interdições reencontram-se mas em articulação com a 4.a feira da Semana Santa — a 4.a feira de trevas, como é localmente designada.
3 No passado, esta orientação de cada casa para uma actividade eminentemente interior era ainda reforçada pela ligação preferencial desta época do ano a um certo número de outras actividades, entretanto caídas em desuso. Entre elas merece especial referência a fiação do linho e da lã, que dava lugar à organização de serões num grande número de casas.
4 Os Finados e Todos-os-Santos ocupam, no calendário anual uma posição simétrica e inversa à dos Impérios. Assim, enquanto os Impérios, situados no início da Primavera e ligados ao tema vida, se colocam sob o signo de ideias de reiteração das relações sociais mais amplas, os Finados e Todos-os-Santos, situados no início do Outono e articulados em torno do tema da morte, inauguram uma fase do ciclo anual marcada por ideias de contracção das relações sociais. Não deixa a este respeito de ser interessante notar que, no plano culinário, enquanto os Impérios trabalham essas ideias com recurso a um cereal rico — o trigo — tratado — sob a forma de massa sovada — de um modo culinariamente elaborado, nos Finados e Todos-osSantos se recorra inversamente a um cereal pobre — o milho — tratado sob uma forma que, do ponto de vista do tratamento usualmente reservado aos cereais, pode ser considerada como para-culinária — o milho, em vez de ser cozinhado sob a forma de pão, é cozido em água ainda na maçaroca.
5 Esta espécie de reciprocidade generalizada que se estabelece nas debulhas pode ser exemplificada por intermédio do mapa de um dos dias da debulha de 1987.
Nesse dia, debulharam na eira do Norte, um total de doze casas. Como se pode verificar, essas casas apresentaram-se na eira com grupos de trabalho de dimensão variável compreendendo entre dois a sete elementos. Entretanto ao debulhar, cada casa — com excepção da casa 1 — pôde contar com o concurso informal de elementos pertencentes a outros grupos de trabalho. Nos casos mais expressivos — cf. as debulhas das casas 7, 8 e 11 — esse concurso representou entre 40 a 60% das necessidades em mão-de-obra e envolveu entre três a quatro outros grupos de trabalho.
6 Como se sabe a ideia central desse ensaio é a de que «a vida social não se mantém ao mesmo nível nos diferentes momentos do ano: mas passa por fases sucessivas e regulares de intensidade crescente e decrescente, de repouso e de actividade, de dispêndio e de reparação» (Mauss, 1983b: 473). Referindo-se, no final do ensaio, às sociedades rurais europeias, Mauss sublinha designadamente o modo como «no Inverno, o campo está mergulhado numa espécie de torpor, as migrações sazonais rarefazem, nesse momento, a população; em todo o caso, cada pequeno grupo, familiar ou territorial, vive recolhido sobre si próprio; faltam as ocasiões e os meios de reunião: é a época da dispersão. No Verão, pelo contrário, tudo se reanima; os trabalhadores regressam aos campos; vive-se no exterior em contacto constante com os outros. É o momento das festas, dos grandes trabalhos e dos grandes excessos» (id., ibid.).
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