Capítulo 5. A Parte dos Homens II
p. 105-127
Texte intégral
I
1Ao lado desta dimensão sociológica restrita, as formas de circulação cerimonial do alimento que integram a sequência ritual dos Impérios possuem simultaneamente uma dimensão sociológica mais ampla e decisiva. Essa dimensão diz respeito às duas instâncias centrais sobre as quais assenta o sistema social local: o lugar e a freguesia.
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2O lugar constitui, como vimos, uma unidade base do povoamento e da organização espacial da freguesia. Mas constitui também uma unidade sociologicamente relevante. Os termos exactos dessa relevância merecem um exame mais aprofundado. Alguns estudos de etnologia portuguesa habituaram-nos a ver no lugar e em unidades de povoamento similares — apesar da sua irrelevância formal em termos politico-administrativos e religiosos-um quadro estruturador central da vida social nas comunidades rurais. Assim, na região «saloia» estudada por Joyce Riegelhaupt, «a aldeia local é de importância fundamental nas relações sociais» (1973: 846). As aldeias não têm fronteiras administrativas. No entanto, «cada povoação (…) é vista pelos seus habitantes e pelos seus vizinhos como, de algum modo, única e mesmo fechada sobre si própria (…). Pequenas diferenças são cultivadas pelos aldeãos (…) e (…) cuidadosamente consideradas na definição do ‘nós’ da aldeia versus todos os outros ‘eles’» (id.: 845). «Existem rivalidades intensas entre aldeias vizinhas» e «para um rapaz, fazer a corte a uma rapariga de outra aldeia da freguesia é, muitas vezes, uma experiência arriscada» (id.: 848). Debruçando-se sobre as festas patronais, a autora salienta também a sua importância enquanto meios de que as aldeias se socorrem «para afirmar a sua identidade e a sua unidade contra toda a freguesia» (id.: 845). No estudo que dedicou a duas freguesias do Alto Minho, Pina Cabral pôs em evidência um contexto algo similar. Segundo ele, «o lugar é (…) o solo da comunidade sobre o qual são construídos os outros níveis. É ao nível do lugar que o indivíduo aprende a experiência da comunidade e integra os valores que a corporizam na sociedade rural minhota» 1986: (127). Paralelamente, é também possível falar, nestes contextos, de uma menor importância sociológica da freguesia, cujas funções seriam sobretudo de natureza político-administrativa e religiosa. Assim, segundo Joyce Riegelhaupt, em São João das Lampas, «as unidades territoriais da província e da freguesia [os itálicos são meus], tornaram-se menos significativas para os aldeãos e as unidades locais demonstram menos interesse em cooperar entre si» (1973: 845). Pina Cabral salienta também o modo como, ao nível da freguesia, «as relações entre [os seus] membros são mais frágeis do que as relações existentes no interior do lugar (…). De igual modo, a confiança mútua, que é mais acentuada ao nível do lugar, tem menos oportunidade de se manifestar ao nível da freguesia» (1986: 126-127).
3Em Santa Bárbara deparamo-nos com uma situação diferente. Não se pode evidentemente negar ao lugar uma certa «personalidade» sociológica. A maior proximidade física entre as casas no interior do lugar tende a tornar mais fortes os laços de relacionamento e interacção social nesse âmbito. Mas, simultaneamente, nota-se um peso importante da tendência oposta, que se encarrega de projectar permanentemente o lugar para o exterior, inserindo-o numa cadeia mais vasta de relações. Essa tendência pode ser surpreendida em vários planos convergentes.
4No plano económico, ao lado da propriedade detida no âmbito do lugar, é igualmente importante o peso das terras dispersas por outros lugares. De facto, no conjunto da freguesia, cerca de 60% das terras situam-se fora do lugar de residência dos respectivos proprietários. Esta dispersão é aliás enfaticamente valorizada do ponto de vista da complementariedade da exploração agrícola. Considera-se que determinados lugares têm uma aptidão especial para certas culturas e o agricultor ideal é aquele que tem vinha em São Lourenço ou nas Lagoinhas, terras de trigo no Norte, matos nas Pocilgas, milho e hortas mais ao pé de casa e pastos dispersos um pouco por todo o lado.
5No plano matrimonial a tendência prevalecente vai no sentido da exogamia. Essa tendência transparece de forma clara nos números. Assim, num universo de 209 casamentos, correspondente às 214 unidades domésticas existentes em 1987 na freguesia, cerca de metade — 104, isto é, perto de 50%-realizou-se entre indivíduos provenientes de lugares diferentes. Os dados referentes ao total de casamentos realizados na freguesia entre 1917 e 19821 são ainda mais expressivos. Com excepção de três lugares — Forno, Norte, Lagoinhas — a taxa de exogamia de lugar situa-se sempre acima dos 70% (cf. quadro 18).
QUADRO 18. Exogamia de lugar em Santa Bárbara (1917-1982)
LUGARES | % DE CASAMENTOS NO EXTERIOR DO LUGAR | NÚMERO DE LUGARES QUE FORNECEM PARCEIRO MATRIMONIAL |
São Lourenço | 71,4% | 4 |
Forno | 55% | 6 |
Arrebentão | 71% | 10 |
Pocilgas | 84,6% | 8 |
Pico do Penedo | 90,5% | 11 |
Boavista | 94,4% | 9 |
Termo da Igreja | 74,4% | 13 |
Barreiro | 90,9% | 9 |
Norte | 61,7% | 11 |
Poço Grande | 84,4% | 11 |
Lagos | 95,9% | 10 |
Ribeira do Amaro | 91,1% | 7 |
Feteiras | 88,7% | 9 |
Lagoinhas | 62% | 6 |
6Em consequência, existe um forte índice de dispersão parental pelos diferentes lugares: do total de parentes de primeiro grau — pais, filhos e irmãos — de que cada grupo doméstico dispõe na freguesia, cerca de 56% residem em lugares distintos.
7O plano do ritual acusa um perfil similar. Em certas ocasiões — tanto no quadro do ciclo festivo como no quadro dos ritos de morte — o lugar, ou no caso de lugares mais pequenos, o compromisso, surgem como unidades pertinentes. Nos funerais, por exemplo, deveria integrar-se obrigatoriamente um elemento de cada uma das casas do lugar onde residia o morto — hoje em dia essa participação estende-se idealmente ao conjunto de casas da freguesia — e o transporte do caixão era assegurado por três ou quatro dessas casas, escolhidas de acordo com um sistema rotativo. Mas o que é determinante no sistema ritual é o facto de ele exceder as fonteiras do lugar. Por fim, embora cada lugar possua uma certa consciência de si, são particularmente fracas as expressões do facto. Não existem ápodos característicos deste ou daquele lugar e as rivalidades inter-lugares são também muito diluídas.
8A «personalidade» do lugar é pois permanentemente corrigida por uma tendência «exo-prática» que faz dele não uma unidade fechada sobre si própria mas um termo de uma cadeia de relações mais ampla (cf. figura 4).
9Essa cadeia de relações é a freguesia. Se nos contextos que referimos atrás, a força do lugar era directamente proporcional à fraqueza da freguesia, em Santa Bárbara, o lugar, ao prescindir do seu «quant a soi» fá-lo justamente em nome de uma acrescida relevância sociológica da freguesia. Esta, além da sua importância formal em termos político-administrativos e religiosos, opera de facto como um quadro estruturador central das relações sociais.
10No plano económico, à dispersão da propriedade pelos diferentes lugares da freguesia, contrapõe-se a sua concentração no interior da freguesia. Do total de terras detido pelos grupos domésticos da freguesia apenas cerca de 8% se situa fora da freguesia. No plano matrimonial, de forma similar, à exogamia prevalecente no lugar, opõe-se uma forte endogamia ao nível da freguesia. Assim, no total de casamentos realizado entre 1918 e 1982, apenas 12,5% se realizaram com indivíduos de outras freguesias. Da mesma maneira, no universo de 209 casamentos correspondentes às 214 unidades domésticas existentes em 1987 na freguesia, apenas 30 casamentos — isto é, perto de 14% do total — eram casamentos exogâmicos2. No plano do ritual, a freguesia constitui também — como teremos ocasião de verificar mais detalhamente — a unidade central que o protagoniza ou é por ele nomeada. Convergentemente com estes factos, os habitantes de Santa Bárbara possuem uma elevada consciência de si próprios, constantemente reafirmada através do contraste que postulam com as restantes freguesias da ilha. É esse contraste que um dos ditados que todos os marienses conhecem põe em evidência:
«Os da Serra são labregos
os da Vila cidadães
d'Almagreira são lapujas
de São Pedro lambuzães».
11Assumindo-se como labregos, homens da Serra ou serranos, os habitantes de Santa Bárbara mantêm com os habitantes das restantes freguesias uma relação que oscila entre a desconfiança e a rivalidade. A primeira é dominante em relação à Vila «stricto sensu». Era na Vila que, num passado ainda recente, os camponeses de Santa Bárbara pagavam os foros às grandes famílias de Santa Maria ou aos conventos aí estabelecidos. Ainda hoje a Vila começa por ser o sítio onde se pagam impostos e onde residem os intermediários de gado: os novos representantes da exploração de que os camponeses se sentem alvo. Por outro lado, a partir da construção do aeroporto, acentuou-se na metade ocidental da Ilha uma certa tendência para a terciarização da economia que Santa Bárbara não acompanhou. Os ressentimentos passados e presentes, combinados com o fosso entre modos de vida que se instalou mantêm viva a desconfiança entre «serranos» e Vila. Essa desconfiança estende-se ainda, embora de forma menos pronunciada, às freguesias de São Pedro e Almagreira que, situando-se na metade oeste da ilha — «para lá dos Picos» — são consideradas como uma espécie de extensão rural da Vila. Quanto à rivalidade inter-freguesias, além de outras expressões mais genéricas, é sobretudo no quadro das ocasiões festivas que ela se exprime. Além de uma competição surda para fazer «a festa mais bonita», essas ocasiões fornecem também o contexto para o desencadear de conflitos, por vezes violentos, entre grupos pertencentes a freguesias diferentes3.
II
12O vínculo entre os Impérios e estas duas unidades sociais estabelece-se em primeiro lugar por intermédio da participação que elas têm na constituição do fundo cerimonial do Império.
QUADRO 19. Participação das casas da freguesia na irmandade (Santa Bárbara, 1987)
TOTAL DE IRMANDADES | TOTAL DE CASAS QUE FIZERAM IRMANDADE | |
Primeiro Império de Santa Bárbara | 132 | 89 |
Segundo Império de Santa Bárbara | 174 | 108 |
Primeiro Império do Norte | 120 | 55 |
Segundo Império do Norte | 146 | 182 |
Total | 562 | 145 |
13Essa participação começa por associar idealmente aos Impérios o conjunto da freguesia. No passado, uma parte importante dessa contribuição tinha lugar no quadro dos peditórios realizados por ocasião das colheitas e que englobavam, de acordo com os testemunhos orais, a quase totalidade das casas da freguesia: «todos davam; um dava um punhado de trigo, outro um tanto de milho; todos davam». Com o declínio desses peditórios, a participação da freguesia passou entretanto a fazer-se de forma preferencial no quadro da irmandade. Começando por evidenciar — como vimos atrás — uma particular densidade no interior das esferas de parentesco e de vizinhança de perto do imperador, essas ofertas associam simultaneamente aos Impérios um número significativo de casas da freguesia, correspondente a 60 a 70% do total.
14Nos anos em que se realiza um só Império, ele tende a concentrar a totalidade das ofertas. Nos anos em que se realizam vários Impérios, sobretudo se estes têm lugar na mesma altura, essa participação tende a dispersar-se pelo conjunto dos Impérios. Embora exista um grande número de casas que faça ofertas a mais de um Império, muitas optam por «fazer a irmandade» a um deles, com exclusão dos outros. Foi justamente o que se passou em 1987.
15Como se pode verificar no quadro 19, 145 das 214 casas da freguesia — isto é, 68% do total — contribuiram com pelo menos uma oferta para cada um dos quatro Impérios. O Primeiro e o Segundo Impérios de Santa Bárbara receberem o maior número de ofertas, correspondentes respectivamente a 42% e 50% das casas da freguesia. O Primeiro Império do Norte foi o que teve uma irmandade mais baixa — correspondente a 26% das casas da freguesia — e, por fim, o Segundo Império do Norte beneficiou da participação de 39% das casas da freguesia.
16A maior parte dos grupos domésticos que não intervêm na irmandade correspondem — de forma significativa — a casas com uma inserção deficiente na comunidade. Muitas delas são casas com um estatuto económico ou social baixo: casas mais pobres, por um lado, ou casas constituídas por pessoas idosas. Outras correspondem por seu turno a casas que — para utilizar a expressão mais correntemente usada a esse respeito em Santa Bárbara — «estão em si», isto é, que se colocam de forma deliberada à margem da comunidade.
17Não deixa entretanto de ser significativo que, sobretudo em relação às casas citadas em primeiro lugar, exista de alguma forma a preocupação de, por intermédio das esmolas, as reintegrar ficticiamente na irmandade. Embora não participem na irmandade enquanto prestação oferecida ao Império, essas casas, ao serem beneficiadas com a irmandade enquanto contra-prestação assegurada pelo imperador, são tratadas «como se» tivessem realizado essa oferta.
18Alargando-se ao conjunto da freguesia, a participação na irmandade assume, ao nível do lugar de residência do imperador, contornos particulares. É aí que a participação da comunidade é mais enfatizada e idealmente mais constrangente, sobretudo se, no mesmo ano, se realizam vários Impérios cujos imperadores pertencem a lugares diferentes. As casas que nesses lugares não estão em condições de realizar ofertas a todos os Impérios, optam frequentemente por privilegiar o Império promovido no quadro do seu lugar: «se tiver que deixar algum para trás, então deixo um que seja doutro lugar». Alguns dados relativos aos Impérios realizados em 1987 podem ser interpretados a esta luz. Assim, no Primeiro Império do Norte, promovido por um imperador residente nesse lugar, foi aí que foi mais elevada a proporção entre o número de irmandades e o número de casas: seis irmandades em dez casas, contra duas, quatro e cinco respectivamente no Primeiro e Segundo Impérios de Santa Bárbara e no Segundo Império do Norte. O facto de estes Impérios terem sido todos eles realizados por imperadores residentes no Termo da Igreja, embora tenha provocado uma certa dispersão de ofertas, teve também uma tradução numérica relevante. Assim, o Primeiro Império de Santa Bárbara recebeu aí trinta e uma ofertas — correspondentes a 58% das casas do lugar — o Segundo Império de Santa Bárbara, trinta e quatro — correspondentes a 64% das casas-e o Segundo Império do Norte, vinte e cinco — correspondentes a 47% das casas. No conjunto, estes três Impérios contaram com a participação de 81% das casas do lugar contra apenas 19% do Primeiro Império do Norte.
19É possível dar exemplos semelhantes para outros anos. Assim, em 1982, um dos cinco Impérios que teve lugar na freguesia foi promovido por um imperador residente no lugar do Poço Grande, encontrando-se os restantes quatro a cargo de imperadores residentes no Termo da Igreja. Enquanto que as irmandades alcançadas por esses imperadores no Poço Grande não ultrapassaram 50% das casas aí residentes, o outro imperador recebeu um total de vinte e duas ofertas correspondentes à totalidade das doze casas então existentes no lugar. Da mesma forma, em 1986, um dos Impérios realizado na freguesia, foi promovido por um imperador residente nas Lagoinhas. As casas desse lugar que — inclusivamente por razões que teremos ocasião de expor mais adiante — se associam de forma geralmente deficiente à realização dos Impérios, tiveram então uma participação particularmente significativa na irmandade, correspondente a 72% das casas.
20É justamente este empenhamento do conjunto da comunidade nos Impérios que reflecte o cortejo que, no termo da fase preliminar do Império, procede à transferência da sede dos festejos da casa do imperador para a igreja ou ermida para a qual ele foi prometido. Marcado, como vimos, pelo relevo que nele ocupa o transporte cerimonial dos pães de mesa e roscas oferecidos no quadro da irmandade, ele opera como um momento particularmente importante de afirmação da freguesia. Um cuidado muito especial é posto na sua correcta organização, bem como na sua expressividade estética, valorizadas justamente enquanto demonstração do envolvimento colectivo da freguesia nos Impérios.
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21Assumindo um papel determinante no financiamento dos festejos, o lugar e a freguesia constituem simultaneamente as unidades sociais privilegiadas pelos critérios que presidem à circulação ampliada do alimento. Começando por estar ao serviço da reafirmação das relações de parentesco e de vizinhança de perto do imperador, as refeições e distribuições alimentares previstas na sequência ritual dos Impérios actuam num segundo momento como um instrumento ao serviço de um projecto sociológico mais largo — cujo sentido exacto teremos ocasião de precisar no próximo Capítulo — mas que podemos caracterizar provisoriamente como um projecto de reiteração das instâncias mais amplas da organização social local e de asserção da sua identidade. É justamente nessa medida que a comunidade — designadamente por intermédio da irmandade — se empenha em secundar os desempenhos do imperador. E é também ao serviço deste projecto sociológico mais vasto que estes últimos se acabam por colocar.
22Esse projecto começa por esboçar-se, de uma forma ainda tacteante, na fase preliminar do Império, para atingir o seu apogeu em dia de Império.
23Por seu intermédio, começamos de novo por ser confrontados com a figura do lugar. As distribuições alimentares amplas de um Império começam de facto, como vimos, por reservar ao lugar — ou, no caso dos lugares mais pequenos, ao compromisso — um importante papel. Assim, no quadro da distribuição porta-a-porta de Sopas do Espírito Santo que se realiza no início da fase preliminar do Império, os vizinhos do lugar do imperador apresentam direitos alimentares próprios. Esses direitos transitam depois, em dia de Império, para os vizinhos do lugar onde se situa a igreja ou ermida para a qual o Império foi prometido. Tradicionalmente, eles eram ainda beneficiados em dia de Império com uma distribuição especial de massa sovada.
24Mas a figura central que as distribuições alimentares alargadas acabam por fazer emergir com maior clareza é de novo a freguesia. De facto, as distribuições porta-a-porta de Sopas do Espírito Santo, além dos ajudantes e dos vizinhos de lugar, incidem ainda sobre categorias precisas de casas à escala da freguesia. A distribuição que se realiza no início da fase preliminar do Império abrange como vimos o conjunto dos enfermos da freguesia. Quanto à distribuição que tem lugar em dia de Império, além destes, envolve ainda os anojados. Da mesma maneira, em dia de Império, é aos anojados que se destinam as primeiras corridas de massa sovada e de vinho.
25É entretanto no quadro das distribuições generalizadas e abertas de Sopas do Espirito Santo e de massa sovada características de dia de Império que o vínculo entre a circulação cerimonial do alimento e a reiteração da identidade da freguesia se afirma de forma mais expressiva.
26Esta desenha por um lado o quadro preferencial de circulação do alimento. As distribuições abertas de Sopas do Espírito Santo e de massa sovada começam por reunir em seu torno um grande número de vizinhos e é entre eles que os alimentos distribuídos são primeiro que tudo consumidos e partilhados. O dia de Império pode nessa medida começar por ser definido como uma grande refeição colectiva extensiva ao conjunto da freguesia, por intermédio da qual se reafirmam os laços de pertença à comunidade e esta se dá como um corpo social unificado.
27Estas características de dia de Império expressam-se de uma forma particularmente clara na «abertura» de dia de Império, quando são asseguradas, no termo da missa da coroação, as primeiras mesadas de Sopas e as primeiras corridas de massa sovada e de vinho. A concentração das pessoas da freguesia no recinto do Império é então máxima e é sobretudo entre elas que o alimento circula. Os critérios que, ao longo do dia, presidem ao acesso ao quarto da imperatriz põem também em relevo este nexo preferencial entre a comunidade e o alimento distribuído. É sobretudo entre os vizinhos da freguesia que é convidada a maior parte das pessoas que a ele têm acesso.
28É justamente para estas preocupações de efectiva e exaustiva partilha do alimento entre a comunidade que remete também o tratamento especial reservado aos anojados em dia de Império, tanto no quadro da distribuição matinal de Sopas do Espírito Santo, como, depois, no quadro das corridas de massa sovada que têm lugar após o termo da missa da coroação. Num e noutro caso, aquilo que se procura garantir é que, apesar das restrições que o código do luto impõe à participação dessas pessoas nos festejos, elas sejam de qualquer forma abrangidas pela circulação do alimento. Da mesma maneira, nos últimos anos, tem-se vindo a generalizar o hábito de proceder a uma primeira distribuição de massa sovada e de vinho — e por vezes de Sopas — na véspera do dia de Império, no termo da missa antecipada de sábado. Em muitos casos, as pessoas que acorrem a essa missa, sobretudo se moram em lugares mais afastados, não voltarão a deslocar-se ao recinto do Império, procurando justamente essas distribuições antecipadas garantir que também elas partilhem do alimento distribuído.
29A liberalidade e a amplitude que caracterizam a circulação do alimento em dia de Império estende-se em segundo lugar às pessoas de fora da freguesia que, acorrendo em grande número aos festejos, são convidadas a associar-se às distribuições alimentares em curso.
30Essa faceta dos festejos exprime-se desde logo no caldo de meia noite. Esta distribuição de Sopas realizada na véspera de dia de Império abre-se de facto privilegiadamente para o exterior da freguesia: «os de cá nunca vêm ao caldo, isso é para os de fora». Mas é no dia de Império propriamente dito que o afluxo «dos de fora» assume proporções mais importantes. Se nesse dia se realizam vários Impérios na ilha, tendem a organizar-se verdadeiras excursões que percorrem sucessivamente os vários Impérios. Se se trata do único Império, ele torna-se no polo de atracção principal da população da ilha. Esta abertura em relação ao exterior possibilita que a freguesia disponha, no momento em que se afirma como um corpo social unificado, de um parceiro colectivo por referência ao qual pode reivindicar de forma plena a sua identidade. Operando como o instrumento por excelência dessa abertura, o alimento é também o terreno principal sobre o qual assentam essas reivindicações. A lógica sobre a qual estas se fundam possui similitudes flagrantes com aquela que os antropólogos reconheceram a propósito do potlatch. O alimento, e, em particular, a liberalidade e a amplitude com que é distribuído, funciona como um signo do prestígio colectivo da freguesia. Convidados a partilharem o alimento, os forasteiros são também e sobretudo convidados a testemunhar as pretensões a prestigio da freguesia. Esta faceta dos festejos é fortemente enfatizada pelos habitantes da freguesia que reclamam serem os seus Impérios os mais fortes da ilha, aqueles onde é abatido um maior número de cabeças de gado e onde a irmandade é também mais forte4 Simultaneamente, é posta grande ênfase na qualidade dos alimentos distribuídos, assim como na sua apresentação estética. A decoração dos pães de mesa e das roscas — baseada, como vimos, em motivos florais — é, em particular, fortemente acentuada. Começando por se afirmar em torno do cortejo que leva o Império para a copeira, é entretanto em dia de Império que estas reivindicações se exprimem de forma mais clara. O maior ou menor afluxo de forasteiros, os comentários por eles produzidos a respeito do Império, fornecem de facto o contexto principal para que elas se manifestem e actualizem periodicamente.
31Simultaneamente, o dia de Império fornece um quadro propício ao sublinhar das diferenças inter-freguesias, tal como estas se expressam na estrutura ritual dos Impérios. De facto, embora se integrem no modelo genérico de Impérios prevalecente na ilha de Santa Maria, os Impérios de Santa Bárbara apresentam um certo número de diferenças em relação aos Impérios das restantes freguesias da Ilha. Essas diferenças são particularmente acentuadas em relação às freguesias da metade oeste da Ilha — Vila, São Pedro e Almagreira — e começam por dizer respeito à organização da vertente religiosa dos festejos. Assim, nessas freguesias, a coroação, em vez de incidir sobre o imperador, incide sobre uma criança, o menino ou menina da mesa, geralmente um filho (ou uma filha) do imperador, de idade compreendida entre os quatro e os oito anos de idade. A organização dos cortejos processa-se também de forma diferente, designadamente no tocante às posições relativas e funções dos ajudantes grados. Por outro lado, na Vila, generalizou-se o costume de colocar à cabeça do cortejo que leva o Império para a copeira um conjunto de estandartes do Espírito Santo e de pequenas Coroas do Espírito Santo transportadas por grupos de três a quatro meninas ou raparigas vestidas de branco.
32Certos aspectos da vertente alimentar dos Impérios apresentam também, nas freguesias da metade oeste, uma estruturação diferente. É o que se passa, em primeiro lugar, com a composição culinária das Sopas do Espírito Santo. Estas, em vez de serem temperadas com hortelã e canela, são temperadas com endro. Parecendo insignificante, este pequeno detalhe é extremamente valorizado pelas pessoas. Em Santa Bárbara é frequente ouvir-se comentários desvalorizadores do tempero usado nas freguesias da Vila, terminando invariavelmente na afirmação da superioridade das Sopas da Serra: «são mais saborosas», «o endro não dá tanto sabor», etc…
33A retribuição das ofertas feitas ao imperador no quadro da irmandade, processa-se também de forma distinta, compreendendo três tipos principais de contra-prestações: as flores ou pensões, as bandejas e os tabuleiros. As flores ou pensões retribuem as ofertas feitas em pães de mesa e roscas — ou em valor monetário equivalente — e constam de uma posta de carne pequena e de um brindeiro, ou de um pão de trigo. As bandejas correspondem a ofertas intermédias e são integradas por uma posta de carne ligeiramente maior, uma rosquilha de massa sovada — ou um pão de mesa pequeno — e um brindeiro. Finalmente, os tabuleiros retribuem as ofertas maiores — sendo também distribuídos aos ajudantes — e constam de uma posta de carne grande, de duas rosquilhas pequenas — ou de dois pães de mesa pequenos — de um pão leve e de um prato de biscoitos. Algumas das sequências alimentares de dia de Império apresentam também uma estrutura diferente. Assim, o ritual de abertura da mesa é enriquecido por uma cerimónia inédita, centrada justamente no(a) menino(a) da mesa. Antes de se iniciarem as primeiras distribuições de massa sovada e vinho, é-lhe servida no teatro uma pequena refeição cerimonial. Essa refeição consta de Sopas do Espírito Santo, água e três fatias de pão de trigo e é servida pelo trinchante que dá ele próprio de comer ao menino da mesa-, no fim deve também lavar-lhe as mãos. As distribuições de massa sovada e vinho características de dia de Império estruturam-se também de uma forma diferente. Em primeiro lugar, a entrega de pães de mesa e roscas no teatro, não é objecto, como em Santa Bárbara, de qualquer cerimonialização. Em segundo lugar, a sua distribuição pública é feita em grande medida directamente no teatro, e não por intermédio de corridas especificamente organizadas para o efeito: estas são muito mais espaçadas e raras. Por outro lado, entre os alimentos distribuídos no teatro, conta-se também o pão leve.
34Relativamente a Santo Espírito, existe também um certo número de diferenças, respeitantes quer à estrutura do grupo dos ajudantes — não existem pagens da mesa nem menino(a) da mesa e existe ainda um ajudante, conhecido pela designação de velho do canto, que secunda o trinchante nos seus desempenhos no teatro — quer a certas sequências cerimoniais precisas — a distribuição dos pães de mesa e roscas faz-se em moldes similares aos prevalecentes nas freguesias da metade oeste, a entrega destes no teatro não é também objecto de qualquer cerimonialização, etc… Embora menos pronunciadas do que as existentes em relação aos Impérios das freguesias da metade oeste5, estas diferenças são entretanto objecto de uma valorização subjectiva muito forte.
35O dia de Império fornece justamente o contexto adequado para que estas e outras diferenças sejam constatadas e sublinhadas. Fazendo-o, ele não só permite a reafirmação da especificidade da freguesia — tal como ela se expressa nesse acontecimento maior que são os Impérios — como possibilita a introdução de argumentos suplementares na discussão dos méritos relativos dos Impérios em cada uma das freguesias, centrada agora na sua maior ou menor conformidade em relação a esse modelo arquetípico — largamente imaginário, escusado será dizê-lo — constituído pelas Festas do Espírito Santo tal como estas teriam sido instituídas pela Rainha Santa Isabel.
36Neste quadro tão fortemente marcado pela lógica da identidade, não é de admirar que a hospitalidade característica de dia de Império coexista em permanência com as atitudes opostas de reserva e hostilidade em relação ao exterior6. Reserva, em primeiro lugar. Em contraste com a «cerimónia» que os vizinhos da freguesia exibem na sua aproximação ao alimento — «aos de cá, quase que é preciso empurrá-los para a copeira» — «os de fora» são generalizadamente acusados de falta de respeito: «empurram-se à porta da copeira», «querem sempre os melhores bocados», etc… Por outro lado, enquanto que, em relação aos vizinhos da freguesia é salientada uma atitude de respeito para com o alimento, «os de fora» são acusados de desperdiçadores: «agarram num pedaço de pão de mesa e põem-no de lado», etc… Esta atitude geral de reserva e hostilidade em relação ao exterior manifesta-se ainda em torno do caldo da meia noite que, como vimos, reúne sobretudo forasteiros. A sua realização é, por essa razão, objecto generalizado de comentários desfavoráveis e muitos imperadores dizem que é a contragosto e só porque «é um costume da freguesia» que asseguram essa distribuição antecipada de Sopas. Suscitando reserva e desaprovação, os comportamentos que passámos em revista podem, no limite, criar situações em que as hostilidades se desencadeiam de forma mais aberta. Por vezes, ocorrem pequenas escaramuças à entrada da copeira. Do ajudante da porta da copeira diz-se aliás, em tom de brincadeira, que a sua insígnia deveria ser um pau, para usar nessas ocasiões. Muitas pessoas recordam também a frequência com que no passado, o dia de Império dava lugar a confrontos a ajustes de contas entre grupos de rapazes de Santa Bárbara e de Santo Espirito.
37É justamente este misto de hospitalidade e hostilidade que é possível reencontrar nos desafios entre folias ou cantadores pertencentes a freguesias diferentes. As boas-vindas e os elogios iniciais dão rapidamente lugar ao insulto e ao confronto verbal, com expressões que podem atingir por vezes grande violência. Seguidos atentamente pelas audiência, estes desafios permitem a expressão, sob uma forma eminentemente regulada e cerimonial, da rivalidade mútua entre freguesias.
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38Os mecanismos que passámos em revista — descritos a partir do ponto de vista de Santa Bárbara — funcionam nos dois sentidos. Ao mesmo tempo que o afluxo de forasteiros fornece à freguesia o parceiro colectivo indispensável à representação da sua identidade, para os próprios forasteiros essas visitas constituem também um mecanismo importante de reafirmação da pertença à sua própria freguesia.
39Em 1983 realizou-se na freguesia de São Pedro um Império que constitui um exemplo particularmente elucidativo do que acabámos de afirmar. O imperador era casado com uma mulher de Santa Bárbara e, por essa razão, várias casas da freguesia tiveram nele uma participação importante. Cerca de metade dos ajudantes — dez em vinte e dois — eram de Santa Bárbara; de um total de cento e quarenta e duas irmandades, trinta e cinco — isto é, 25% — foram feitas por casas de Santa Bárbara; em dia de Império, por fim, os festejos registaram um afluxo particularmente importante de pessoas de Santa Bárbara. Ao longo do período em que decorreu a sua realização, este Império constituiu um dos assuntos preferidos de conversa na freguesia. Confrontadas com as diferenças existentes quanto à estruturação do Império, as pessoas faziam todo o tipo de comentários críticos, dominados por um «sociocentrismo» muito marcado. Nenhum aspecto do Império era poupado e o balanço final remetia invariavelmente para a afirmação da superioridade dos Impérios de Santa Bárbara.
III
40Esta vocação sociológica dos Impérios reencontra-se de forma enfraquecida nas modalidades menores do culto do Espírito Santo constituídas pelas Esmolas e pelos Jantares. Embora repousem exclusivamente sobre o dispêndio cerimonial dos seus promotores, os critérios que presidem à circulação do alimento privilegiam mais uma vez o lugar e, no caso dos Jantares, a freguesia.
41Mas é no quadro dos Impérios secos — cuja promoção reserva, como vimos, um papel mais importante à intervenção da comunidade — que ela apresenta contornos mais interessantes.
42Comecemos pelo Império de São João. Na sua forma tradicional, ele configurava-se de alguma maneira como uma celebração em que um grupo de idade preciso — os rapazes — tomava a seu cargo a representação da unidade da freguesia. A partir da sua retoma, em 1986, esta sua vinculação ao grupo de idade dos rapazes desapareceu, para dar lugar a formas de intervenção que abrangem idealmente o conjunto das casas da freguesia. É entre elas, como vimos, que são sorteados os detentores dos cargos previstos na sua estrutura ritual e são também elas que são supostas fornecer a massa sovada e o vinho requeridos pela sua realização. Tanto por intermédio destas formas de participação da comunidade como por intermédio das modalidades de distribuição do alimento — similares àquelas que presidem à circulação de massa sovada e vinho em dia de Império —, o Império de São João permite que a freguesia se dê como um todo social unificado. Reunido e partilhado em comum pelas casas da freguesia, oferecido ainda aos forasteiros, o alimento opera mais uma vez como um instrumento de asserção da identidade da freguesia. A sua «recuperação» recente não pode aliás ser desligada da acção de mecanismos de rivalidade inter-freguesias. De facto nas freguesia de São Pedro e Santo Espírito realizam-se também tradicionalmente Impérios deste tipo, em São Pedro no dia de São João e em Santo Espírito no domingo da Trindade. Retomando a realização do Império de São João, a freguesia de Santa Bárbara fê-lo em certa medida para suprir aquilo que era sentido como um «handicap» em relação a essas freguesias. É a este respeito elucidativo que em 1986 — ano em que foi reatada a realização do Império de São João — um dos seus principais motivos de atracção tenha sido fornecido por um «despique» entre a folia do Império e uma folia organizada expressamente para o efeito na freguesia de Santo Espírito.
IV
43Quanto ao Império de São Pedro, o seu estatuto era bastante diferente. Como vimos, a sua realização assentava na cooperação entre os lugares do Forno — pertencente à freguesia de Santa Bárbara — e da Cruz de São Mor — pertencente à freguesia de Santo Espírito.
44A realização deste Império parece constituir, em face de tudo aquilo que foi até agora referido, um verdadeiro paradoxo. Uma das ideias mais laboriosamente construídas pelos Impérios, a freguesia como um «nós social», cuja definição por oposição a um «eles» os Impérios exactamente possibilitam, parece aqui objecto de um desmentido.
45A explicação deste paradoxo só é possível no quadro de uma consideração mais atenta da organização social tal como ela se configura nos lugares geograficamente periféricos da freguesia de que justamente o Forno faz parte, juntamente com as Lagoinhas — encostado à freguesia de São Pedro — e com o Norte — localizado no extremo norte da freguesia e cuja fronteira natural é o mar.
46Nesses lugares, as linhas centrais da organização da estrutura social da freguesia, tal como a descrevemos atrás, conhecem de facto uma significativa inflexão. Por um lado, a tendência «exo-prática» prevalecente ao nível do lugar é ai menos forte. Assim, no plano matrimonial, a exogamia de lugar atinge nesses lugares valores que oscilam entre os 61/62% — Lagoinhas e Norte — e os 55% — Forno —, contra a média de 86% prevalecente nos restantes lugares (cf. quadro 18). Por outro lado, o número de casamentos consanguíneos que, no conjunto da freguesia se situa perto dos 12,5%, atinge nestes lugares valores mais altos: 16% no Norte, 22% no Forno e 63% nas Lagoinhas7. O Norte, apesar da menor taxa de consanguinidade que apresenta, é comumente conhecido como sendo um lugar «onde todos são primos»: «começava-se a pedir a benção na primeira casa e acabava-se na última». Ainda hoje, o conjunto de dez unidades domésticas existentes no lugar formam dois «grupos de parentesco» — cada um deles com cinco casas — unidos entre si por relações de parentesco de primeiro grau. A tendência «endoprática» prevalecente nestes lugares expressa-se também no plano da organização económica. Assim, a concentração da propriedade no interior do lugar é também maior: 72% no Norte, 81% no Forno e 90% nas Lagoinhas. No Norte, por outro lado, existe, para as debulhas, a única sociedade relativamente estável de inter-ajuda no trabalho agrícola. Integrada por cerca de dez casas, esta sociedade remonta a inícios deste século e desde então os direitos e deveres a ela associados têm-se transmitido de pais para filhos. Ora, como teremos oportunidade de sublinhar no próximo Capítulo, um dos aspectos mais marcantes das prestações e contra-prestações de trabalho associadas às debulhas é o seu carácter tendencialmente generalizado ao conjunto das casas da freguesia. Constituindo uma sociedade para o efeito, as casas do Norte como que se furtam a essa rede de trocas estabelecida à escala da freguesia.
47Tudo parece passar-se, num primeiro momento, como se a situação periférica desses lugares os excluísse de alguma forma da rede de relações e trocas sobre as quais se funda a organização social, como se esta, desde a sua zona central, condenasse cada um deles a uma espécie de ensimesmamento, essencial à definição dos seus próprios limites conceptuais.
48Num segundo momento, porém, esta aparente aceitação do convite ao ensimesmamento que é dirigido a cada um destes lugares é objecto de um desmentido. De facto, paralelamente à inversão da tendência, dominante na zona central da freguesia, para a integração recíproca dos lugares, assiste-se ainda, nos dois lugares periféricos que fazem fronteira com as freguesias vizinhas, à afirmação de uma relação privilegiada com estas, que desmente, também ela, as características de «endo-praxis» que, por referência à ideia de freguesia, o sistema social possui na sua zona central. Tanto no Forno, como nas Lagoinhas, de facto, a regra da endogamia ao nível da freguesia possui uma menor expressão. No Forno, por exemplo, os casamentos exogâmicos representam 55% dos casamentos recenseados. No plano da organização económica, detectam-se também tendências similares. Por um lado, é nesses lugares que é mais elevada a proporção de terras situadas fora da freguesia. Certos aspectos da organização do trabalho apontam no mesmo sentido. É o que se passa, mais uma vez com as debulhas do trigo. Em 1983, organizaram-se duas eiras na freguesia de Santa Bárbara: uma na Ribeira do Amaro e outra no Norte, a primeira para as casas da parte norte da freguesia e a segunda para as casas da parte sul. As casas que nas Lagoinhas tinham trigo para debulhar, preferiram fazê-lo numa das eiras situadas na vizinha freguesia de São Pedro. Em 1987 — ano em que se organizou apenas uma eira, no lugar do Norte — essa situação voltou a repetir-se.
49Tudo se passa pois como se, na periferia, o funcionamento das relações sociais invertesse de forma sistemática o que se passa na zona central (cf. mapa 6). Cada um destes lugares está no fundo sujeito aos mesmos constrangimentos que operam na zona central: e a aparente aceitação do convite ao ensimesmamento que lhes é daí dirigido é desmentido, num segundo momento, pela importância que neles assume uma relação privilegiada com as freguesias vizinhas. Fazendo-o, tanto as Lagoinhas como o Forno, introduzem o elemento de exterioridade indispensável à sua definição como unidades sociais em relação.
50É no quadro desta configuração que o Império de São Pedro pode ser, num primeiro momento, vantajosamente pensado. Não como um desmentido da lógica global dos Impérios, mas como uma expressão dessa mesma lógica nas condições de funcionamento da organização social nos lugares periféricos. Por seu intermédio, os lugares do Forno e da Cruz de São Mor celebravam não apenas a sua especificidade no quadro mais geral da freguesia respectiva, como reforçavam os laços «sui generis» que os uniam entre si.
*
51Unindo dois lugares que em relação às respectivas freguesias exibem uma comum condição periférica, o Império de São Pedro, embora se comece por configurar como um Império desses dois lugares, é também um Império das duas freguesias — Santa Bárbara e Santo Espírito — nas quais eles se integram. Em Santa Bárbara, pelo menos, este segundo traço é evidente: apesar das suas carcacterísticas «sui-generis», o Império de São Pedro — significativamente designado na freguesia como o Império do Forno — é apresentado com fazendo parte do património da freguesia. Aliás, de acordo com testemunhos orais, era relativamente importante o número de casas doutros lugares que não o Forno que contribuíam para o Império com pães de mesa e roscas.
52Marcado desta forma com um selo de interioridade, o lugar do Forno contrasta, neste aspecto, com o estatuto de exterioridade que, pelo contrário, rodeia o lugar das Lagoinhas. «Lagoinhas é Espanha», costuma dizer-se em Santa Bárbara. É também nas Lagoinhas que são localizadas as histórias de pessoas que viram «a verdadeira terra de Santa Maria». Conta-se que a actual ilha de Santa Maria não é senão um vestígio de uma terra muito maior, entretanto afundada no mar, devido a um encantamento. Em dias enevoados, afirma-se que se pode ver emergir, por momentos, essa «terra encantada», onde se vêem bois a lavrar e roupa branca estendida. Nesses momentos, seria possível desfazer o encantamento, mas ninguém até agora o fez porque, dizse, ou desapareceria a actual Santa Maria ou desapareceria outra qualquer ilha açoriana com nome masculino. Generalizadamente, estas histórias são referenciadas como tendo-se passado com alguém das Lagoinhas ou com alguém que passava pelas Lagoinhas. Projectada para o exterior do sistema social por intermédio deste tipo de representações, Lagoinhas e os seus moradores excluem-se ainda dele pela sua suposta relutância em frequentarem a missa dominical, principal polo de agregação regular de toda a freguesia. Dessa acusação, defendem-se eles dizendo que, como as igrejas de Santa Bárbara e de São Pedro ficam igualmente longe, umas vezes vão à missa num lado, outras noutro.
53É exactamente essa espécie de atracção simultânea por duas freguesias, em tudo semelhante áquela que esta última frase revela a propósito das Lagoinhas, que se reencontra no Forno. Só que aí essa atitude não é tão fortemente condenada e, diferentemente das Lagoinhas e da sua quase exclusão do círculo da freguesia, o Forno é pensado num registo mais interior (cf. mapa 7).
54A explicação deste facto exige um retorno à natureza das relações que Santa Bárbara mantém com as restantes freguesias da ilha, cujo ponto de partida pode ser de novo fornecido pelo ditado que citámos atrás:
«Os da Serra são labregos
Os da Vila cidadães
D'Almagreira são lapujas
de São Pedro lambuzães.»
55Nele, o epíteto de labregos aplica-se tanto aos habitantes de Santa Bárbara como aos de Santo Espírito. O facto começa por exprimir o contraste que, em Santa Maria, separa as três freguesias situadas a oeste das duas freguesias situadas na parte leste da ilha, as freguesias da Serra. Esse contraste diz respeito, em primeiro lugar, às características geográficas e humanas que distinguem entre si essas duas áreas, como tivemos ocasião de evocar no início do Capítulo 1. Mas exprime-se ainda noutros registos. Vimos atrás que é entre os Impérios das freguesias da parte oeste da ilha e os Impérios das freguesias da Serra que as diferenças são mais pronunciadas. A essa forte diferenciação entre a Serra e a Vila, corresponde inversamente uma maior similitude entre Santa Bárbara e Santo Espírito. Essa maior similitude faz-se entretanto acompanhar de uma rivalidade particularmente pronunciada entre ambas as freguesias, que não deixa de apresentar algumas similitudes com as «rivalidades preferenciais» entre aldeias referidas por Pitt-Rivers a propósito da Andaluzia (Pitt-Rivers, 1971: 11). Em Santa Bárbara são frequentemente rememoradas algumas das facetas mais relevantes dessa rivalidade preferencial. No passado, era usual os rapazes de Santa Bárbara «correrem à pedrada» qualquer rapaz de Santo Espírito que mostrasse intenções de namoro em relação a uma rapariga da freguesia — e vice-versa. No retorno da Festa do Senhor dos Passos — que se realizava na Vila, no decurso da Semana Santa — os habitantes de ambas as freguesias faziam habitualmente em conjunto o caminho de regresso: «mas em chegando aos Picos, arranjavam sempre maneira de pelejarem uns com os outros». Na actualidade, embora com formas mais atenuadas, essa rivalidade preferencial entre as duas freguesias mantém-se viva, como tivemos ocasião de verificar na análise a que procedemos dos Impérios.
56Tudo se passa como se, unidas por um grande número de traços em comum, cada uma das freguesias se configurasse como o parceiro ideal para que a outra se possa definir como tal, por contraste com uma unidade cujas semelhanças devem ser permanentemente contraditadas por traços de separação que a inter-rivalidade mútua se encarrega de introduzir. Cada freguesia convida a outra a definir-se por relação a ela, a meio caminho entre um certo número de semelhanças e contrastes que possibilitem o confronto sem os riscos da dissolução mútua. Os contornos de natureza «dualista» desta forma de representar a organização social são claros8 e é justamente nesse quadro que o Império de São Pedro deve ser também analisado. Unindo dois lugares de fonteira entre as duas freguesias ele funciona como uma espécie de ponto de sutura desse sistema «dualista» que se estabelece entre ambas. Daí o envolvimento que, pelo menos em Santa Bárbara, a freguesia experimenta em relação a ele. Pelo contrário o selo de exterioridade que pesa sobre as Lagoinhas está indissociavelmente ligado à sua situação periférica não só em relação à freguesia de Santa Bárbara, mas também em relação ao sistema de tipo «dualista» em que esta, em conjunto com a freguesia de Santo Espírito, se integra. É porque faz fronteira com uma freguesia da metade ocidental da ilha que Lagoinhas se vê como que projectada para fora do sistema social.
Notes de bas de page
1 Estes dados resultam de um apuramento efectuado nos registos paroquiais de casamentos respeitantes ao período de 1917 a 1982. Por carência de dados não foi possível levar em linha de conta para o cálculo das taxas de endogamia e exogamia a nível de lugar e de freguesia, os anos de 1950 a 1955, inclusive. Por outro lado, os dados referentes a 1939, 1940 e 1958 foram extraídos de séries incompletas. Do total de 633 casamentos celebrados no período em questão foram levados em conta, para estes cálculos, 615 casamentos.
2 Exogamia de lugar e endogamia de freguesia devem ser consideradas em conjunto. A exogamia de lugar, juntamente com as proibições de casamento entre consanguíneos, interdita o casamento nas áreas marcadas por uma proximidade excessiva. A endogamia de freguesia interdita o casamento em círculos sociais onde a distância é considerada também ela excessiva. Adaptando uma formulação de Françoise Zonabend, pode-se também dizer, a propósito de Santa Bárbara, que o jogo da aliança consiste «em manter um compromisso equilibrado (...) entre o muito próximo e o não muito distante» (Zonabend, 1981: 314).
3 A importância destas formas de «sociocentrismo» num contexto, como o de Santa Bárbara, tão fortemente marcado pelo povoamento disperso deve ser sublinhada. Ela desmente o carácter exclusivo da equação, defendida por alguns antropólogos, entre povoamento concentrado e «sociocentrismo» (cf., por exemplo, Tak, 1990).
4 Estas reivindicações, no tocante a Santa Bárbara, possuem um certo fundamento. De facto, enquanto que em Santa Bárbara, o número médio de cabeças de gado abatida por Império é de sete, nas restantes freguesias da ilha ele situa-se por volta das quatro/cinco. Para o cálculo destes números, baseei-me nos requerimentos dirigidos à Câmara Municipal de Vila do Porto respeitantes aos anos de 1965 a 1983.
5 Neste sentido, é possível falar da existência em Santa Maria, de duas grandes variantes dos Impérios, uma predominante na metade oeste da ilha, outra na metade leste. Assim como no interior da variante oriental existem diferenças menores entre Santa Bárbara e Santo Espírito, na variante ocidental podem ser detectadas variações de pormenor de freguesia para freguesia. Para mais detalhes acerca deste aspecto dos Impérios de Santa Maria, cf. Leal, 1984a: 47-56.
6 Esta correlação entre os valores aparentemente antitéticos da hospitalidade e da hostilidade é corrente (cf. Benveniste, 1969 e Pitt-Rivers, 1977) e parece partir, nas línguas latinas, da sua comum origem no termo hostis: inicialmente o estrangeiro e só depois o «inimigo público» (Benveniste, 1969: 321). O «outro» de qualquer forma. Mas um «outro» que começa por desenhar-se de uma forma particular — «não qualquer “estrangeiro”, mas o estrangeiro que é pari iure cum populo Romano» (id. ibid.) — para só depois ganhar as cores antitéticas ora de hóspede, ora de hostil.
7 Os cálculos da taxa de consanguinidade foram feitos a partir dos pedidos de «dispensa eclesiástica» constantes dos registos paroquiais de casamento, relativos ao período de 1917 a 1982.
8 Lévi-Strauss definiu o dualismo como «um sistema no qual os membros da comunidade — tribo ou aldeia — são repartidos em duas divisões que mantêm relações complexas indo da hostilidade declarada até a uma intimidade muito estreita e onde se encontram habitualmente associadas diversas formas de rivalidade e de cooperação» (Lévi-Strauss, 1971: 80). Mas este tipo de relações encontra-se frequentemente entre agrupamentos sociais que não constituem formalmente duas metades de uma determinada unidade social. É o caso — bem conhecido dos antropólogos — dos Nuer e dos Dinka. Embora formem duas «tribos» autónomas, EvansPritchard referiu-se-lhe como «segmentos no interior de uma estrutura comum à semelhança dos segmentos de uma mesma tribo Nuer» (Evans-Pritchard, 1940: 125). Assim, «a estrutura política dos Nuer só pode ser compreendida em relação aos seus vizinhos com os quais eles formam um único sistema político» (id., ibid.). Este tipo de relações pode ser encarado como uma «transformação» da organização clássica dualista: o grupo A defíne-se por oposição ao grupo B da mesma maneira que a metade A se define por oposição à metade B. É neste sentido que é possível utilizar, a propósito das relações entre Santa Bárbara e Santo Espírito, a expressão «dualismo».
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