Capítulo 1. A Freguesia: Aspectos Gerais
p. 23-36
Texte intégral
I
1Constituído por nove ilhas, descobertas entre 1427 e 1452 por navegadores portugueses ao serviço da Coroa, o arquipélago dos Açores — apesar de um certa diversidade interna — apresenta, do ponto de vista geográfico, algumas grandes constantes. Entre elas destacam-se a sua origem vulcânica — acompanhada na maioria das ilhas pela ocorrência de fenómenos de vulcanismo activo (erupções vulcânicas, terramotos, etc…) — e um clima temperado marítimo caracterizado por variações térmicas anuais fracas, uma forte humidade e nebulosidade e valores de precipitação consideráveis. A humanização da paisagem assenta num regime agrário baseado na agricultura sem rega e na criação de gado vacum. De uma forma geral, a uma faixa litoral com uma ocupação predominantemente agrícola, sucede uma faixa de terrenos de pastagens, e, por fim, em altitudes superiores, um regime misto de pastagens e matas. A propriedade apresenta-se fortemente dividida e o povoamento nas áreas rurais oscila entre o disperso e o disperso-orientado. Em cada ilha, existem um ou mais centros urbanos, de importância variável de acordo com a própria dimensão da ilha, onde se concentram as funções administrativas e comerciais e por onde se processam os contactos com o exterior. A população total do arquipélago era em 1981 de 249.101 habitantes, desigualmente distribuídos pelas diferentes ilhas. Como se pode verificar no Quadro 1, a ilha de São Miguel, com 136.326 habitantes era a mais importante, seguida da Terceira, com 59.204 habitantes. Num grupo intermédio situam-se as ilhas de São Jorge, Pico e Faial — com populações situadas entre os 10.000 e os 15.000 habitantes — e as ilhas de Santa Maria, Graciosa e Flores — com populações da ordem dos 4.000//6.000 habitantes. A ilha do Corvo, com os seus 375 habitantes, é a menos populosa do arquipélago.
2O arquipélago tem conhecido um conjunto de transformações nos últimos 30/40 anos, ligadas sobretudo a dois factores principais: a emigração de uma parte importante da sua população, a partir dos anos 60, para os E.U.A. e Canadá, e a implantação, a partir do final da década de 70, da autonomia político-administrativa regional. A emigração — que se traduziu num decréscimo global da população do arquipélago, entre 1960 e 1981, de 78.378 habitantes — possibilitou um melhoramento geral das condições de vida, em particular nos meios rurais, devido tanto ao abrandamento da pressão demográfica sobre a terra, como ao afluxo de remessas dos emigrantes. Quanto à autonomia político-administrativa, ela permitiu designadamente o lançamento de numerosas infra-estruturas — estradas, aeroportos, portos — que, além de consequências positivas sobre o nível de vida da população, contribuíram para atenuar o isolamento das ilhas entre si e em relação ao exterior.
QUADRO 1. População dos Açores por ilha (1981)
ILHA | POPULAÇÃO |
Santa Maria | 6 338 |
São Miguel | 132 326 |
Terceira | 59 204 |
Graciosa | 5 373 |
São Jorge | 10 255 |
Pico | 15 224 |
Faial | 15 563 |
Flores | 4 393 |
Corvo | 375 |
Fonte: I.N.E., 1981
3Apesar destas transformações, a economia do arquipélago continua a ter uma importante base rural. Simultaneamente, apesar da influência combinada da emigração e da intensificação dos contactos com o exterior, mantem-se nos meios rurais uma cultura popular muito viva e fortemente individualizada. Se o retrato arcaizante dos Açores traçado no final dos anos 20 por Raul Brandão (1926) e Leite de Vasconcelos (1926) pertence em grande medida ao passado, não é menos certo que as principais expressões da cultura popular açoriana — entre as quais ocupam justamente um lugar central as Festas do Espírito Santo — se caracterizam por uma profundidade histórica muito marcada. Não se fechando à mudança, a cultura popular açoriana constitui ao mesmo tempo um lugar privilegiado de diálogo com aquilo a que os historiadores chamam a «longa duração» e os antropólogos preferem designar por «tradição».
II
4Santa Maria constitui a ilha simultaneamente mais meridional e mais oriental do arquipélago dos Açores. Tendo conhecido um período de relativa notoriedade com a implantação, no decurso da II Guerra Mundial, de uma base aérea americana — posteriormente aproveitada para fins civis — a ilha possui uma área total de 97 Km2, a terceira mais pequena dos Açores, a seguir ao Corvo e à Graciosa. Severamente atingida pelo surto emigratório dos anos 60, a sua população era em 1981 de 6.338 habitantes, menos de metade da população de 1960, que atingia então os 13.233 habitantes.
5Do ponto de vista administrativo, Santa Maria constitui um concelho, com sede localizada em Vila do Porto e compreende um conjunto de cinco freguesias: Vila do Porto, São Pedro, Almagreira, Santo Espírito e Santa Bárbara. Destas cinco freguesias, três — Vila do Porto, Santo Espírito e Santa Bárbara — datam dos primórdios do povoamento. A freguesia de São Pedro terá sido criada na viragem do séc. xvi para o Séc. xvii e a de Almagreira remonta por seu turno a finais do século passado.
6Atravessada longitudinalmente por uma cadeia de elevações que atingem a sua altitude máxima no Pico Alto (590m), a ilha apresenta a oeste e a este dessa cadeia dois quadros geográficos distintos e contrastantes. A oeste — numa área coincidente com as freguesias de Vila do Porto, São Pedro e Almagreira — situa-se uma extensa plataforma plana, marcada por uma vegetação mais escassa e por um clima mais seco. Em contraste, a leste — numa área correspondente às freguesias de Santo Espírito e Santa Bárbara e genericamente designada por Serra — o relevo é mais pronunciado, o clima mais húmido e os solos mais profundos e produtivos1.
7A este contraste geográfico, acrescenta-se um contraste de modos de vida. Nas freguesias da parte leste da ilha, a população é mais jovem e, dada a proximidade da Vila e do Aeroporto, é mais notório o impacte do modo de vida urbano. Nas freguesias da Serra, a população é menos jovem e as influências do modo de vida urbana mais filtradas. Até muito recentemente, por outro lado, certas comodidades da vida urbana — electricidade, telefone — eram ainda de difícil acesso2.
III
8Com uma área de 26,65 Km2, a freguesia de Santa Bárbara possuía em 1987 uma população de 617 habitantes correspondentes a 214 grupos domésticos3. Esta população distribuía-se de forma desigual pelos diferentes lugares — ou termos — em que a freguesia se divide (cf. quadro 2).
QUADRO 2. Distribuição da população por lugares em Santa Bárbara (1987)
LUGAR | UNIDADES DOMÉSTICAS | HABITANTES |
São Lourenço | 9 | 29 |
Forno | 4 | 16 |
Arrebentão | 45 | 114 |
Pocilgas | 5 | 13 |
Pico do Penedo | 9 | 37 |
Boavista | 17 | 54 |
Termo da Igreja | 53 | 142 |
Barreiro | 10 | 38 |
Norte | 10 | 24 |
Poço Grande | 11 | 39 |
Outeiro | 5 | 17 |
Lagos | 4 | 12 |
Ribeira do Amaro | 2 | 4 |
Feteiras | 18 | 55 |
Lagoinhas | 12 | 26 |
214 | 620 |
9Destes lugares o mais importante é o Termo da Igreja, que desempenha as funções de lugar central. É lá que se situam a igreja paroquial, o cemitério, a sede da Junta de Freguesia, bem como os principais equipamentos sociais e comerciais existentes na freguesia: escola primária, posto de saúde, posto de correio, casa do povo, três mercearias com loja (taberna), etc… De entre os restantes lugares, destacam-se o Norte, onde se situa uma ermida consagrada a Nossa Senhora de Lourdes, e São Lourenço — ou Fajã, como também é localmente designado4. Este último lugar, situado junto ao mar e onde predomina a cultura da vinha, embora possua uma população fixa baixa, é utilizado como estância de férias durante o Verão por inúmeras famílias da Vila e, mais recentemente, por emigrantes da própria freguesia, que construíram lá casas. Três ermidas — consagradas a Jesus, Maria, José, São Lourenço e Nossa Senhora do Desterro — fazem parte do equipamento religioso do lugar.
10Com excepção do Termo da Igreja, onde se tem vindo a desenvolver recentemente uma certa tendência no sentido de uma maior concentração, o padrão dominante de povoamento é de extrema dispersão, uma das mais elevadas aliás que é possível encontrar em todo o arquipélago dos Açores. As casas situam-se a uma certa distância umas das outras, rodeadas do respectivo casal e separadas entre si por terras de cultura ou pastos. Dispondo-se de forma irregular na proximidade das estradas e caminhos, a sua implantação precisa procura ainda tirar partido do carácter bastante acidentado do terreno.
11Conforme se depreende do quadro 35, os 214 grupos domésticos existentes na freguesia correspondem na sua grande maioria — 771%, — a famílias nucleares ou elementares — modelo ideal de organização do grupo doméstico. O número de unidades domésticas alargadas era de 8,4% e, em toda a freguesia, existia apenas um agregado familiar múltiplo. Os «isolados», finalmente, representavam 13,55% do total de unidades domésticas.
12Genericamente, o grupo doméstico apresenta-se em Santa Bárbara como um agregado de indivíduos unidos por determinadas relações de parentesco, que partilham a mesma residência e operam como uma unidade económica autónoma. Ao contrário do que se passa noutros contextos6, não existe na freguesia nenhuma expressão que sintetize estas várias dimensões do grupo doméstico. As designações mais usadas são as de família e casa. A primeira aplica-se ao grupo doméstico enquanto agregado humano. A segunda é utilizada num sentido restrito e salienta sobretudo a vinculação de cada família a um espaço residencial comum e próprio — a casa enquanto edifício de habitação. A autonomia residencial constitui de facto um dos critérios de plena existência social de cada unidade doméstica. Embora possam ser eventualmente adoptadas soluções de recurso, o objectivo essencial de um novo casal após o casamento é a aquisição ou a construção de uma nova casa. Esta tanto pode situar-se nas proximidades da casa de um dos pais como não. A neolocalidade, designadamente em termos de escolha do lugar de residência, era a solução mais corrente no passado, enquanto hoje em dia se tende a privilegiar a proximidade em relação a uma das famílias de origem.
13Enquanto edifício de habitação, a casa corresponde em Santa Bárbara a dois modelos principais: a) casa térrea de um só piso ou com loja — para armazenagem de alfaias e produtos agrícolas — com quatro águas; b) casa de dois pisos com duas águas. Este último modelo, de acordo com os testemunhos orais, teria sido introduzido na freguesia no início deste século por emigrantes retornados do Brasil e da América. Quer num quer noutro caso, a casa é caiada de branco, sendo as portas e janelas rodeadas de listas coloridas — as chamadas vistas — em verde ou azul7. Estes dois tipos de habitação são largamente dominantes na freguesia, sendo pouco significativa a penetração de tipos de construção mais recentes. Na organização interna do espaço da casa, deve ser salientado o papel da cozinha — onde se situa também o forno de pão. Verdadeiro «centro» da habitação, a cozinha funciona também como espaço de abertura informal para o exterior, em confronto com a sala, que é utilizada em ocasiões de natureza mais cerimonial. A casa é geralmente rodeada do casal, expressão que designa os terrenos adjacentes e os anexos agrícolas neles implantados. Os terrenos adjacentes são fundamentalmente ocupados com culturas hortícolas de consumo corrente, podendo eventualmente alguns deles ser destinados à cultura da batata e do milho. Quanto aos anexos agrícolas compreendem a cerca do porco, um ou dois telheiros — para arrumação de alfaias agrícolas —, o palheiro — utilizado para abrigar o gado no decurso do inverno — e a burra, para secagem e armazenagem do milho8.
QUADRO 3. Composição das unidades domésticas em Santa Bárbara (1987)
CATEGORIA | NÚMERO DE UN. DOMÉSTICAS | PERCENTAGEM DE UN. DOMÉSTICAS |
Isolados | ||
Viúvos/as | 19 | 8,87% |
Solteiros/as | 10 | 4,67% |
Total | 29 | 13,55% |
Agregados não conjugais | ||
Irmãos | 1 | 0,46% |
Outros Parentes | – | – |
Sem Parentesco | – | – |
Total | 1 | 0,46% |
Agregados familiares simples | ||
Casal sem Filhos | 72 | 33,64% |
Casal com Filhos | 82 | 38,31% |
Viúvos com Filhos | 2 | 0,93% |
Viúvas com Filhos | 9 | 4,20% |
Solteiros com Filhos | – | |
Total | 165 | 77,10% |
Agregados familiares alargados | ||
Alargamento ascendente | 11 | 5,14% |
Alargamento descendente | 2 | 0,93% |
Alargamento lateral | 2 | 0,46% |
Outros | 2 | 0,93% |
Não Parentes | 2 | 0,93% |
Total | 18 | 8,41% |
Agregados familiares múltiplos | 1 | 0,46% |
QUADRO 4. Emigração em Santa Bárbara (1967-1987)
TOTAL | CANADÁ | E. U. A. | OUTROS DESTINOS | |
1962 a 1969 | 551 | 279 | 251 | 22 |
1970 a 1979 | 620 | 333 | 298 | 1 |
1980 a 1987 | 65 | 23 | 39 | 3 |
Totais | 1236 | 635 | 588 | 26 |
Fonte: Livros de Registos de Emigrantes da Câmara Municipal de Vila do Porto
IV
14Santa Bárbara é uma freguesia profundamente afectada pelo surto migratório que, a partir dos anos 60, atingiu o conjunto das ilhas dos Açores.
QUADRO 5. Classes etárias na população de Santa Bárbara (1987)
CLASSES ETÁRIAS | PERCENTAGEM NA POPULAÇÃO TOTAL |
0 a 14 anos | 21,48% |
15 a 20 anos | 9,53% |
21 a 40 anos | 22,13% |
41 a 60 anos | 20,51% |
mais de 61 anos | 26,33% |
15Entre 1962 e 1980, abandonaram a freguesia perto de 1200 habitantes. O Canadá e os EUA absorveram respectivamente cerca de 49% e 42% dessa emigração (cf. quadro 4). Nos EUA, os emigrantes fixam-se preferencialmente na costa leste e tanto aí, como no Canadá, as suas ocupações principais situamse em áreas como a construção civil, indústrias sem exigências de mão-deobra qualificada, serviços de limpeza, etc… Posteriormente a 1980 o movimento de saídas decresceu de forma significativa, devido sobretudo ao «congelamento» da emigração nos países de destino.
16Actualmente parece esboçar-se de novo uma maior abertura, designadamente no Canadá, e muitos casais jovens, impedidos de o fazerem antes, falam de novo em emigrar.
17A particular amplitude que atingiu em Santa Bárbara o surto migratório teve consequências demográficas profundas na freguesia. A população actual da freguesia representa pouco mais de 1/3 da população que a freguesia possuía em 1960: 1750 habitantes. Dado tratar-se de uma emigração de famílias inteiras, o número de grupos domésticos sofreu também uma redução da mesma ordem: de um total de 626 em 1960 para 214 na actualidade.
18Os efeitos deste decréscimo extremamente significativo da população fazem-se sentir de forma clara na paisagem da freguesia: em 1981, de acordo com os dados do Recenseamento Geral da População, mais de metade das casas — 211 num total de 4079 — encontravam-se «fechadas». Este processo de despovoamento atingiu dimensões particularmente importantes em certos lugares mais periféricos. Nas Pocilgas, entre 1960 e 1987, a população baixou 80%; em 1981, o número de casas desabitadas era de 18, contra 5 habitadas. No Norte observa-se também uma tendência semelhante: o decréscimo da população atingiu os 85%, e de um total de 53 casas só 11 se encontravam habitadas. No Forno, por fim, o decréscimo populacional foi de 83,5% e num total de 18 casas, só 3 se encontravam habitadas.
19Simultaneamente, a emigração provocou também um sensível envelhecimento da população, expresso quer numa pirâmide de idades desequilibrada (cf. quadro 5), quer ainda na elevada proporção de grupos domésticos sem filhos e de viúvos e viúvas — com ou sem filhos — no total dos grupos domésticos da freguesia: 93 em 214, isto é, cerca de 43%.
20Além das suas consequências estritamente demográficas, a emigração é também responsável por uma certa recessão do modo de vida rural, particularmente bem expressa na situação de subaproveitamento em que se encontra uma parte importante das terras da freguesia. Assim, em contraste com o aproveitamento total e minucioso de que a terra era objecto no período anterior à emigração, cerca de 42% da área da freguesia — de acordo com os dados do Recenseamento Agrícola dos Açores de 1985 (S.R.E.A., 1985) — correspondia a incultos.
V
21Embora afectado pela emigração, o modo de vida rural continua entretanto a ser dominante na freguesia. Mais de metade das suas casas têm na agricultura e na criação de gado vacum a fonte exclusiva ou principal dos seus rendimentos. Quanto às restantes unidades domésticas, dividem-se em três grandes grupos. Num primeiro localiza-se um conjunto de casais ou de viúvos (ou viúvas) já de idade avançada e sem filhos que, embora consagrando-se tradicionalmente à agricultura, se encontram actualmente excluídos da vida activa, dependendo a sua subsistência de reformas e pensões, eventualmente combinadas com remessas de dinheiro de filhos emigrados. Num segundo grupo, situam-se aquelas casas cuja subsistência está sobretudo dependente do exercício — geralmente pelo cabeça de casal — de uma profissão assalariada não agrícola, quer em serviços da administração regional e local, quer no sector da construção. Finalmente, dum terceiro grupo fazem parte as casas de emigrantes retornados à freguesia — que representam cerca de 20% do total das casas — cujos rendimentos derivam sobretudo das poupanças realizadas no decurso da emigração e de reformas pagas a partir dos E.U.A. ou Canadá. Apesar de uma parte significativa dos seus rendimentos provir de actividades não-agrícolas, estas casas mantêm entretanto vínculos importantes com o modo de vida rural. Por um lado, muitas continuam a possuir terra. Por outro, praticam uma agricultura de pequena escala que é designadamente suposta fornecer o essencial dos consumos alimentares do grupo doméstico.
22As principais produções agrícolas da freguesia são constituídas pelo trigo — cuja cultura, embora em declínio, ocupava em 1985 uma área de 20 ha —, o milho — 50 ha —, a vinha — 33 ha — e a batata — 15 ha —, além de produtos hortícolas diversos (inhame, batata doce, etc…) (S.R.E.A., 1985). As técnicas empregues, embora possuam ainda maioritariamente características tradicionais, têm vindo a abrir-se gradualmente a meios mais modernos, existindo actualmente na freguesia três tractores e uma debulhadora de trigo.
23A par destas produções agrícolas tradicionais tem aumentado a importância da criação de gado, em virtude quer da sua menor exigência de mão-de-obra, quer da disponibilidade de terra existente. Cerca de 494 ha — isto é, 70% do total da Superfície Agrícola Útil — corresponde a pastos (S.R.E.A., 1985), elevando-se a 800 os efectivos totais da cabeças de gado.
24Com um aproveitamento de derivados — leite, manteiga, etc… — praticamente irrelevante, o gado destina-se sobretudo a venda para abate. Uma parte importante é exportada, vivo, para o continente, em embarques que têm lugar nos meses de Maio, Junho e Julho. A produção estritamente agrícola, entretanto, destina-se sobretudo aos consumos domésticos.
25A exploração da propriedade é conduzida com recurso dominante ao trabalho familiar, sendo o trabalho à jorna e as trocas de mão utilizadas de forma complementar. Estas últimas baseiam-se em princípios da mais estrita reciprocidade e têm uma importância particularmente acentuada. Certas operações do ciclo agrícola — em particular as relacionadas com as colheitas-exigem por seu turno a formação de grupos de trabalho extensos, também com base em princípios da ajuda gratuita e recíproca. A divisão sexual do trabalho é extremamente rígida. O pai e os filhos solteiros têm a seu cargo tudo o que se refere ao gado e ao trabalho nos campos. As mulheres, de acordo com uma tendência mais geral prevalecente noutras ilhas açorianas-e que, ao longo dos tempos, chamou a atenção de etnógrafos ou simples observadores10 — encontram-se completamente excluídas dessa esfera e movem-se fundamentalmente no interior da casa e no casal. Têm a seu cargo a preparação da alimentação — com relevo para o cozer do pão — cuidam da horta e do porco, etc… O dote tradicional oferecido aos noivos pelos pais-um sacho para o noivo, uma peneira para a rapariga — traduzia de forma particularmente clara esta organização complementar dos mundos masculino e feminino, que se reflecte ainda num ditado frequentemente evocado na freguesia, de acordo com o qual «a mulher conhece-se pelo comer/e o homem pelo andar».
26A estrutura da propriedade baseia-se na pequena e média propriedade. Do total de 214 explorações agrícolas recenseadas em 1985, 96 exploravam uma área inferior a 1 ha, 80 uma área entre 1 a 5 ha e 30 uma área superior a 5 ha11. O arrendamento, cujo relevo aumentou em consequência da emigração, ocupa um papel importante no regime fundiário local, correspondendo as terras arrendadas a cerca de 34% da Superfície Agrícola Útil (S.R.E.A., 1985). A propriedade é bastante fragmentada — sendo de 7,12 o número médio de blocos por exploração — e a área por bloco muito reduzida — cerca de 0,32 ha (id., ibid.).
VI
27A estratificação social dominante na freguesia distribui as casas por três grandes grupos de «status». No topo da hierarquia encontram-se cerca de uma dezena de casas de lavradores, dispondo de uma exploração de área superior a 5 ha e de um efectivo pecuário considerável. Deste grupo fazem ainda parte: um certo número de casas de agricultores a part-time que combinam uma exploração agrícola e um efectivo pecuário importantes com um emprego bem remunerado; algumas casas de ex-emigrantes que a par de uma reforma e de poupanças consideráveis, mantêm uma exploração agrícola relativamente dinâmica; e, por fim, os comerciantes locais. Na camada intermédia — que é a mais numerosa — situam-se: a maior parte das explorações agrícolas de média dimensão; a maioria dos agricultores a part-time; a quase totalidade das casas de ex-emigrantes. Trata-se de um grupo naturalmente muito diversificado. Na base do sistema social, por fim, situam-se sobretudo dois tipos principais de casas: casais de idade sem filhos e viúvos ou viúvas sem condições para trabalhar de forma regular a terra e vivendo sobretudo de pensões; casais jovens sem terra que retiram o seu sustento do trabalho assalariado, combinado com a exploração, para fins de consumo familiar, de algumas terras arrendadas.
Notes de bas de page
1 Para uma apresentação mais detalhada dos aspectos geográficos de Santa Maria, cf. Neves, 1959 e Constância, 1982.
2 No centro de Santa Bárbara, durante os anos iniciais da minha pesquisa — em 1982 e 1983 — apenas 4 ou 5 casas dispunham de telefone e, embora fossem já poucas as que não tinham electricidade, apenas cerca de uma dezena possuía televisão. Como se imagina, nos lugares periféricos, a situação era pior. Em 1987, embora este quadro tenha evoluído favoravelmente, alguns lugares periféricos continuavam a não dispor de electricidade.
3 Os dados aqui apresentados resultam do «levantamento de vizinhos» por mim efectuado na freguesia, no decurso do qual foram recolhidos, para cada unidade doméstica, elementos relativos à sua composição, relações de parentesco, situação económico-social, situação perante a emigração, etc… Salvo indicação em contrário o conjunto de dados que terei ocasião de apresentar ao longo deste capítulo têm a sua origem neste «levantamento de vizinhos».
4 Fajã constitui a designação genérica dada nos Açores a uma extensão de terra baixa e plana, situada junto ao mar, formada em geral por materiais desprendidos de uma quebrada. Cf. a este respeito Costa, Carreiro da, 1989: 34-37.
5 A terminologia usada na análise da estrutura e composição das unidades domésticas, tanto neste Capítulo, como nos Capítulos 9 e 10, é adaptada de Laslett, 1978.
6 É o caso de Trás-os-Montes e do Alto Minho. Para Trás-os-Montes cf. O'Neill, 1984, e para o Alto Minho, cf. Pina Cabral, 1986.
7 A chaminé é um elemento essencial de qualquer um destes tipos de casa, correspondendo a dois modelos centrais: a) chaminé rectangular de «tipo alentejano», que parece ser a mais antiga; b) chaminé redonda de «tipo algarvio» que, de acordo com testemunhos orais, seria de introdução mais recente.
8 Este sistema, em que «as espigas são armazenadas conservando grande parte do folhedo e expostas ao ar livre» (Veiga de Oliveira e Pereira, 1982: 72) numa instalação apropriada, é, no quadro português, específico dos Açores (id., ibid.: 73). Tal como noutras ilhas açorianas, a expressão burra é utilizada em simultâneo com outras: estaleiro, tolda, etc… Em Santa Bárbara — e, de uma forma mais geral, em Santa Maria — existem duas variedades principais de burras, correspondentes aos tipos que Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira designam de «cafuão» e «tolda» (id., ibid.: 77-82).
9 Estes dados excluem São Lourenço, dado o elevado número de casas com ocupação restringida ao Verão existentes neste lugar.
10 É o que se passa na Terceira. «Nunca ali — diz um autor citado por Leite de Vasconcelos — se verão mulheres descalças ou ocupadas em pesados trabalhos agrícolas. A vida delas decorre toda em casa, cuidando do marido e dos filhos» (in Vasconcelos, 1958: 600). Frederico Lopes, também a propósito da Terceira, escreveu por seu turno que «as mulheres (…) pouco eram utilizadas no amanho das terras» (Lopes, 1980c: 427).
11 Estes dados são os fornecidos pelo Recenseamento Agrícola dos Açores e englobam tanto as terras efectivamente detidas por cada casa como as terras arrendadas. Tive ocasião de recolher — junto da Secção de Finanças de Vila do Porto — dados relativos à propriedade efectivamente detida por cada casa, que apontam para valores ligeiramente diferentes. De acordo com esses dados, 23,28% das casas não detinham terra, 31,21% possuíam menos de 1 ha, 40,74% entre 1 a 5 ha e 2,64% possuíam mais de 5 ha.
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