Conclusão
p. 277-282
Texte intégral
Nós caminhamos sempre na vida entre duas visões; uma precede-nos esplêndida e brilhante como a luminosa aparição que dirigia no deserto a mancha do povo hebreu; outra segue-nos formosa e pálida, como as virgens ideais dos cantos escoceses. São a esperança e a saudade.
(Júlio Dinis 1947:24-25)
1A antropologia cultural é uma disciplina que se debruça sobre os pormenores da vida quotidiana e sobre a maneira como as pessoas dão significado às suas experiências. De certo modo, a emigração e especialmente a «emigração para voltar» pode ser considerada, no contexto português, como uma ideologia que define ou dá significado à experiência. Embora a emigração para voltar não seja desconhecida noutras zonas do Sul da Europa, é particularmente forte em Portugal, onde é expressa por meio do sentimento profundamente cultural de saudade. Saudade pode ser traduzido aproximadamente por nostalgia — nostalgia da pátria e em especial da aldeia onde se nasceu e onde se deixou a família. A saudade representa uma abordagem dupla da vida — voltada simultaneamente para o passado e o futuro. É muito diferente do ethos de la miseria que tem sido utilizado para caracterizar a visão do mundo dos camponeses do Sul de Itália (Friedman 1953, Bell 1979). A saudade é melancólica, mas também esperançosa.
2No entanto, a emigração para voltar representa mais do que um sentimento cultural ou uma visão do mundo. É também uma estratégia socialmente determinada, seguida por grupos de indivíduos dentro de um certo contexto social e cultural. O carácter da emigração varia de uma parte de Portugal para outra. A emigração para regressar é sobretudo característica do Noroeste, onde tem sido um meio através do qual a população da região tem preservado as pequenas heranças e evitado a penúria total. A emigração tornou a sobrevivência possível, não obstante os recursos limitados e a constante pressão da população. Neste sentido, serviu de facto para perpetuar uma maneira de viver. Mas a emigração também foi, para os poucos que tiveram mesmo sorte, uma via para a mobilidade social e económica, e, neste segundo sentido, também representou e representa a ambição. Ou seja, adoptou a estrutura socioeconómica mais fluida e escalonada que distinguiu esta região do Norte de Portugal durante vários séculos.
3Este livro procurou demonstrar o impacte da emigração tanto como ethos cultural como na qualidade de estratégia social sobre uma série de outros fenómenos demográficos, e, por conseguinte, o seu impacte nos papéis das mulheres na sociedade do Noroeste de Portugal. A saudade e a estratégia social contribuem igualmente para uma explicação para as mulheres solteiras de trinta e cinco ou quarenta anos que esperam pacientemente que o namorado volte para elas; ou para as «viúvas dos viúvos», que se encarregam o melhor que podem das terras e dos filhos até que os maridos voltem. Se os dados de Santa Eulália são de algum modo representativos, a emigração do Noroeste de Portugal está estreitamente ligada (embora nem sempre haja uma relação de causalidade) a idades elevadas no casamento, elevado celibato feminino, baixa fecundidade e elevada ilegitimidade. Do ponto de vista estritamente demográfico, tão bem formulado por Guttentag e Secord (1983), foi a desfavorável ratio de sexo (um excesso de mulheres) resultante de uma emigração predominantemente masculina que influenciou tanto o comportamento sexual como os costumes culturais. Contudo, reconhecem que esta razão de masculinidade deve ser encarada no contexto cultural que toma em consideração factores tais como a distribuição do poder político e económico, o grau de abertura ou fluidez de uma sociedade e o equilíbrio entre o sagrado e o secular. Todos estes factores afectam as relações entre homens e mulheres — por exemplo, em que medida a virgindade das mulheres é valorizada, ou a liberdade e autonomia que as mulheres podem esperar. Guttentag e Secord (1983) propuseram uma estrutura teórica que transcende os locais, para focar os elementos comuns gerados por condições demográficas e estruturais semelhantes.
4A antropologia é, por natureza, uma disciplina comparativa. Embora este livro se tenha debruçado sobre o comportamento demográfico da população de uma determinada freguesia do Noroeste de Portugal, este comportamento foi constantemente comparado com o de muitas outras populações europeias. Por conseguinte, os objectivos deste volume foram mais do que monográficos. É fundamentalmente através deste processo de comparação que se podem determinar as semelhanças e diferenças estruturais e culturais subjacentes aos processos de população (incluindo o aparecimento de uma ratio de sexo desequilibrada). É só no contexto comparativo que se pode abordar a questão de saber se as regiões que partilham condições geoculturais e estruturais também partilham modelos de comportamento demográfico, talvez apesar de histórias políticas bem distintas. Só graças a uma tal abordagem poderemos começar a resolver alguns dos enigmas da associação demográfica. Por exemplo, por que será que algumas regiões caracterizadas pelo casamento tardio, baixa nupcialidade e herança indivisível têm uma ilegitimidade elevada, enquanto outras apresentam uma baixa ilegitimidade? Ou por que é que em algumas populações, entre as quais é habitual a herança divisível, as pessoas casam cedo e mais frequentemente e, por conseguinte, têm menos filhos fora do casamento, enquanto, noutras, a herança divisível conduz ao casamento tardio, à baixa nupcialidade e elevadas taxas de ilegitimidade? Sabemos hoje que estas relações não são tão definidas como quando foram originalmente propostas por Habakkuk (1955).
5Ainda que as questões anteriores tenham sido postas hipoteticamente nesta altura, sem qualquer intenção ou capacidade de lhes responder por inteiro, neste livro sugeriu-se que as correntes migratórias, a composição socioeconómica da população e os papéis das mulheres que surgiram com base nos dois primeiros factores e até o carácter de religiosidade podem funcionar como variáveis actuantes e merecem, com certeza, ser tomados em consideração. Na realidade, pode ser vantajoso estabelecer uma comparação entre as regiões da Europa ocidental que podem ser facilmente classificadas de matricêntricas. Nessas regiões, as mulheres gozam de um certo grau de autonomia, porque são proprietárias de bens por direito próprio e porque, geralmente, formam um agregado independente depois do casamento, em vez de se tornarem membros de um grupo de parentes associados. São essencialmente sócias do chefe de família e o seu trabalho é valorizado tanto pela família de orientação (daí os casamentos tardios) como pela de procriação (daí que a produtividade comprovada possa ser mais apreciada do que a virgindade).
6Se adoptarmos uma tal abordagem, o Noroeste de Portugal e as regiões costeiras da província da Galiza, em Espanha, deveriam ser considerados como uma única região demográfica. Não só são semelhantes geograficamente, como partilham condições socioeconómicas e tradições de migração semelhantes. Os papéis das mulheres nestas duas regiões são, de certo modo, parecidos. Mas esta comparação pode ser levada mais longe. Boissevain (1979:92), por exemplo, refere-se à forte orientação feminina da sociedade de Malta e sugere uma hipótese promissoramente testável, segundo a qual «onde a ligação à propriedade da terra para fins económicos é mínima e onde há uma orientação económica para fora da aldeia, o laço mãe-filha tem uma acção mais livre e resulta numa uxorilocalidade matrifocal.
7Tratado em termos ainda mais amplos, o sistema demográfico descrito para Santa Eulália partilha muitos aspectos com o descrito por Lee (1977), que utiliza o termo «matrifocal» para caracterizar certos modelos demográficos da Baviera. Precisamos de saber mais do que Lee nos diz acerca dos modelos de migração, embora outras fontes, em especial alguns dos trabalhos de John Knodel, tenham apontado para uma ratio de sexo desequilibrada no Sul da Alemanha, semelhante à que existe no Noroeste de Portugal. Também precisamos de saber mais acerca dos papéis económicos, sociais e culturais das mulheres bávaras e da sua relação com a terra e herança, antes de podermos estabelecer uma comparação mais sistemática. Em que medida, por exemplo, são os filhos referidos, na Baviera, em relação às mães e mulheres, como acontece no Noroeste de Portugal? (Por exemplo, em Santa Eulália, todos os descendentes de uma certa Clara de Sousa, que casou na passagem do século, são conhecidos pelos «claras».) As práticas de atribuição de nomes, quer formais quer informais, não surgem por acaso. O facto de ter havido uma tendência, no Noroeste de Portugal, para dar às filhas os apelidos das mães e aos filhos, os dos pais (ver «Nota sobre os nomes» no Apêndice I) não só sublinha a importância dos laços entre mãe e filha nesta região, como aponta para um sistema de herança flexível, no qual a noção de preservação do património é fraca.
8A variável da religiosidade talvez possa ser mais adequadamente tratada por meios dessas análises comparativas de regiões «extranacionais». Em vários pontos deste livro, estabeleceu-se um contraste entre o Noroeste de Portugal e a Irlanda, para descobrir as diferenças que pudessem explicar variações das tendências demográficas. Uma dessas diferenças (embora não seja de modo algum a única) entre países caracterizados por uma emigração generalizada e também por uma idade elevada no casamento durante a última parte do século XIX, reside no carácter do catolicismo. A menor influência da Igreja Católica é também uma variável analisada resumidamente por Lee no contexto bávaro, embora ele não conclua que possa explicar por si só os elevados níveis de ilegitimidade que caracterizam o Sul da Alemanha. A Bretanha, onde as taxas de celibato feminino são elevadas e as de ilegitimidade, baixas, poderia também servir de região apropriada para considerar à mesma luz, ainda que não exista qualquer estudo sistemático que contenha dados sobre uma série de aspectos demográficos, socioeconómicos e culturais, como os incluídos neste livro, que permitam uma comparação nesta altura.1
9Num certo sentido, proponho um tratamento ecológico-cultural do conhecimento dos regimes demográficos da Europa, que ultrapasse a consideração de factores simples, para se basear na consideração de todo o meio cultural. McQuillan (1984) abriu o caminho, com o seu recente estudo sobre os modos de produção e os modelos demográficos da França do século XIX. Mesmo nas regiões mencionadas até aqui, há diferenças subtis que não podem ser ignoradas. Lison-Tolosana (1976) descreveu três modelos diferentes de herança e os correspondentes sistemas de famílias, só na província espanhola da Galiza. Estas diferenças parecem conhecer variações numa paisagem em que se passa da pesca costeira no oeste para um agro-pastorismo de montanha, no Leste. Embora a população agro-pastoril de Baeur, que vive na Serra do Caurel, no Leste da Galiza, partilhe algumas das características dos lavradores de Santa Eulália, pratica um tipo de herança preferencial, que é muito diferente das tendências verificadas em Santa Eulália. Na Serra do Caurel, parece que a emigração é mais uma alternativa do que um complemento e as mulheres só são escolhidas como herdeiras quando não existem herdeiros apropriados do sexo masculino. No entanto, só por si, uma distinção entre culturas de vale de montanha e costeiras não abrange todas as diferenças. É notável como são impressionantemente semelhantes os modelos de comportamento demográfico de Santa Eulália e do vale de montanha de Ticino, na Suíça (Van de Walle 1975). Por último, as próprias gentes de Santa Eulália dão algumas sugestões sobre a maneira como fazem as coisas e como são feitas em freguesias vizinhas muito próximas. Embora, nesta altura, essas diferenças não possam ser verificadas nem explicadas, proporcionam-nos mistérios cuja resolução constitui um desafio para a investigação futura.
10É evidente que um tratamento comparativo tão amplo sacrificará o pormenor de um estudo local exaustivo, embora seja apenas com base neste que aquele pode avançar. Neste volume apresentei uma análise de uma população local, mas, muitas vezes, fi-lo num contexto comparativo, para que possam surgir processos, modelos e ligações. Ainda que as tendências da população de Santa Eulália nos últimos dois séculos e meio revelem numerosas mudanças a curto prazo, até há bem pouco tempo também demonstram uma longa linha de continuidade que une a população actual de Santa Eulália ao seu passado histórico. Este elemento de continuidade gira à volta da escolha repetida da emigração como uma estratégia de sobrevivência dos que partiram e dos que ficaram. A migração sazonal, a temporária e a internacional fazem todas parte de um sistema social lógico, que está profundamente enraizado na cultura portuguesa. Qual será, pois, o futuro de Santa Eulália e de Portugal, num mundo de mercados de trabalho em contracção e de possibilidades de emigrar cada vez menores? Ainda que a ideologia do regresso seja tão forte entre os imigrantes portugueses em França como entre os seus pais, avós e bisavós que foram para o Brasil e Espanha, pela primeira vez em quase oitenta anos, Santa Eulália conheceu uma queda definitiva da população na década de 1960. Além disso, a taxa de natalidade desceu para valores inferiores a vinte, uma consequência não só do aumento do recurso ao controlo da natalidade mas também do facto de a estrutura etária e por sexo da população ter mudado. Há mais mulheres que emigram e têm filhos noutros locais.
11Como referimos num capítulo anterior, nos finais da década de 1970, o planeamento familiar tornou-se uma opção apoiada pelo Estado. Esta foi, na realidade, a primeira tentativa ao nível do governo de desempenhar um papel activo no controlo da população. Todavia, isto não significa que o problema da pressão da população esteja solucionado e que o coorte nascido na década de 1960 não se veja, em virtude de ser menor, perante a necessidade de emigrar nos finais da década de 1980 e na de 1990, se a emigração então for possível. Trata-se de um coorte muito mais instruído, que já não está disposto a trabalhar na terra. Hoje em dia, o seu problema é o desemprego puro e simples, e não o subemprego. Acresce que a emigração para França trouxe um tipo de modernismo de consumo que ultrapassa largamente o desenvolvimento local, tanto industrial como agrícola. Cava-se cada vez mais o abismo entre, por um lado, necessidades e aspirações e, por outro, oportunidades.
12Devemos, portanto, perguntar a nós próprios se uma cena a que assisti no Verão de 1978 era muito diferente de uma cena que poderia ter ocorrido mais de um século atrás, no agregado constituído por uma outra família de Santa Eulália. O jovem Zezinho ia partir para a Venezuela, a fim de trabalhar no restaurante do tio. Tinha catorze anos e era um dos dois filhos de Rosa da Silva e Joaquim Fernandes. Tinha desistido de frequentar a escola e não arranjava emprego em Santa Eulália. Para secar as lágrimas da mãe, disse-lhe que ia fazer muito dinheiro e que voltaria para construir uma casa nova na parcela adjacente à da casa dos pais. Ela pediu-lhe que escrevesse, sabendo que o não faria frequentemente e que quando as cartas dele chegassem teria de as dar a ler à filha ou ao marido, pois não sabia ler. Era o seu único filho e apesar da intenção de regressar que ele anunciara, perguntava a si própria se voltaria. Quando o carro que o levava, bem como a outros dois jovens de Santa Eulália, para o Porto, a fim de aí apanharem o avião, se afastou, Rosa, a filha e outros membros da família pouco disseram. Mas as lágrimas que lhes escorriam pelas faces falavam muito da angústia da emigração, um fenómeno em que os Portugueses há muito investiram tanto a sua esperança como a sua nostalgia.
Notes de bas de page
1 Esta lacuna deveria ser corrigida pela publicação recente do livro de Martine Segalen Quinze Générations de Bas Bretons (1720-1980) (Paris: Presses Universitaires de France, 1985).
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