Capítulo IV. Ter filhos: fecundidade em Santa Eulália
p. 183-235
Texte intégral
«Todas as sociedades humanas têm de enfrentar não só um mas sim dois problemas de população: como gerar e criar os filhos suficientes e como não gerar e criar demasiados.»
(Margaret Mead 1949:224)
Introdução
1No contexto da Europa ocidental, a história da fecundidade em Portugal é, ao mesmo tempo, comum e única. Embora se tenha verificado uma descida, deu-se bastante tarde — depois de 1920 e em especial depois de 1930, ou seja, mais de um século depois de os historiadores demógrafos terem detectado o declínio em França, com um atraso de perto de meio século em relação a outras partes do Norte da Europa (Alemanha, Inglaterra) e uma ou duas décadas depois de Espanha e Itália. Além do atraso da chamada transição demográfica, Portugal também revela diferenças regionais quanto à queda da fecundidade. É certo que também houve diferenças regionais noutros países da Europa ocidental e que elas levaram a economistas da população como Ansley Coale e demógrafos especialistas em medições como Etienne Van de Walle a introduzir uma explicação cultural nos seus modelos de transição. «O contexto cultural» — afirmam Knodel e Van de Walle (1967), «influencia o início e a difusão do declínio da fecundidade, independentemente das condições socioeconómicas».1 Estes especialistas delimitam as culturas fazendo quase coincidir as suas fronteiras com as da língua ou comunicação. Assim, as regiões de língua francesa e flamenga apresentam diferenças (Lesthaeghe 1977) e os grupos de províncias de Espanha com níveis de fecundidade semelhantes estão próximos das diversas regiões linguísticas do país (Leasure 1963).
2Em Portugal, no entanto, a demarcação (mesmo em 1970) é feita por linhas geográficas grosseiras: o Norte (incluindo os distritos de Bragança, Vila Real, Viana do Castelo, Braga, Porto e Viseu) caracteriza-se por uma fecundidade comparativamente elevada; o centro (Aveiro, Guarda, Coimbra, Castelo Branco e Leiria), por uma fecundidade média; e o Sul (Portalegre, Santarém, Lisboa, Évora, Setúbal, Beja e Faro) por uma baixa fecundidade. Em resumo, embora todas as regiões de Portugal a nível global, tenham reduzido os níveis de fecundidade significativamente entre 1930 e 1970 (a partir de taxas que eram mais ou menos semelhantes no começo do século), os distritos do Sul (incluindo o Sul rural) reduziram-na em média em 41%, enquanto os do Norte (incluindo aquilo que é considerado o Norte «industrializado») experimentaram em média uma redução de apenas 21% (Livi Bacci 1971). Sobretudo nas zonas rurais do Norte e do Sul, isto aponta para a existência de importantes variações dos sistemas socioculturais regionais, as quais influenciaram e continuam a influenciar o comportamento em relação à fecundidade. De facto, mesmo no Norte, demógrafos como Cândido (1969) descreveram importantes variações locais — por exemplo, um nível inferior de fecundidade nos concelhos de Viana do Castelo que têm fronteiras com Espanha, e um nível superior nos concelhos mais próximos do centro religioso, que é Braga.
3Livi Bacci estudou algumas destas variações a nível global, recorrendo a uma análise de correlação quer múltipla quer parcial. Conclui que os contrastes entre o Norte e o Sul de Portugal não podem ser explicados satisfatoriamente por qualquer dos «índices brutos» (mortalidade infantil, proporção da população ligada ao trabalho na agricultura, alfabetismo, emigração) que utiliza.2 Apresenta como uma explicação alternativa a «variável não susceptível de ser estatisticamente medida» da religiosidade, que, como muitos estudiosos de Portugal têm defendido, é maior no Norte do que no Sul.3
4O impacte da religiosidade (em especial do catolicismo) na fecundidade é muito controverso. Será que os «aspectos mensuráveis» desta variável (o frequentar a igreja ou a filiação religiosa declarada) têm alguma coisa que ver com a fé e com as maneiras como esta afecta o comportamento (neste caso o comportamento em relação à fecundidade)? Será só uma questão de fé ou de inúmeras outras facetas subtis da vida sociocultural ligadas à religião, a Igreja, ou de um modo geral à vida de uma pequena comunidade? Será que estamos não só perante uma questão de crenças, mas também perante um impacte diferenciado regionalmente da Igreja Católica como uma instituição que domina, por exemplo, o fluxo da informação sobre o controlo da natalidade e talvez, o que é ainda mais importante, toda a vida social e a educação numa comunidade rural? Com a sua sede na cidade nortenha de Braga e uma apertada rede de padres em quase todas as aldeias, a Igreja Católica está, apesar das mudanças políticas recentes, muito melhor organizada no Norte do que no Sul.
5Ainda que, em Portugal, a descida da fecundidade global e da taxa bruta de natalidade fosse lenta, e quase imperceptível até às décadas de 1920 e 1930, a taxa de natalidade e a fecundidade conjugal no Portugal do século XIX eram relativamente baixas — um factor que se inverteu recentemente. (Em 1960, o país tinha uma das mais elevadas taxas de fecundidade conjugal da Europa). A emigração foi apontada como uma causa possível desta característica demográfica. Na verdade, como ficou demonstrado no Capítulo II, já antes do século XX aqueles que estudavam as tendências da população portuguesa se aperceberam de uma possível ligação entre a emigração e uma taxa de natalidade mais baixa. Contudo, Livi Bacci rejeitou, a um nível global, as diferenças das taxas de emigração (altas no Norte e baixas no Sul) como uma variante significativa capaz de explicar as variações regionais da fecundidade em Portugal. Em vez disso, conclui que «em face dos escassos elementos de que dispomos, torna-se difícil proceder a uma avaliação cuidadosa do carácter da emigração portuguesa e é impossível determinar qual o seu papel e impacte sobre a fecundidade» (Livi Bacci 1971:86). Mais adiante, noutra secção deste capítulo, procurarei investigar mais a fundo este impacte no contexto, ao micro-nível de Santa Eulália, na medida em que os dados o permitam. Ainda que por vezes mais intuitivamente do que estatisticamente, julgo que podemos fornecer uma imagem bastante clara da relação entre emigração e fecundidade conjugal. Se existe de facto uma relação, ajudará a explicar mais baixa fecundidade global (conjugal e geral), algumas das diferenças individuais nas histórias das gestações e pode, talvez, darmos mais elementos sobre os tipos de migração a nível local.
Casamento e Fecundidade. Relações Demográficas
6Em Junho de 1718, dois jovens primos em terceiro grau de vinte e três anos, Domingos Alves e Maria Pereira, casaram em Santa Eulália. A sua vida em comum durou vinte e dois anos, terminando com a morte de Maria, com quarenta e quatro anos, em 1741. Durante esse período, Domingos e Maria tiveram seis filhos. Embora o primeiro filho tenha nascido pouco tempo depois de os pais terem feito nove meses de casados, os cinco filhos seguintes nasceram com intervalos bastante grandes, que rondavam aproximadamente os três anos. Só os três filhos mais novos casaram na freguesia, entre eles uma filha chamada Boaventura. Esta tinha vinte e oito anos quando casou com Domingos da Costa, em 1760. O casamento durou quase o dobro do tempo do dos pais (quarenta e um anos), mas só tiveram quatro filhos, o último dos quais nascido em 1772, quando Boaventura tinha quarenta anos.
7O filho mais velho de Boaventura e Domingos, Francisco da Costa Pereira, casou com a sua prima em terceiro grau Maria Josefa de Castro em 1796. Francisco, que estivera em Espanha antes de casar, já tinha trinta e dois anos e a noiva, trinta. Maria teve três filhos: o primeiro quase nove meses depois de ter casado, o segundo, quatro anos depois do primeiro, e o terceiro, cinco anos depois daquele. Eram os três rapazes e todos casaram na freguesia, o mais velho, Manuel, em 1819, com vinte e dois anos, o do meio, José, em 1829, com vinte e oito, e o mais novo, António, em 1826, com vinte. A mulher de António, que contava apenas dezasseis anos à data do casamento, morreu menos de dois anos depois, ao dar à luz um rapaz. António voltou a casar em 1839, com trinta e três anos, com uma mulher de trinta e quatro, e teve mais três filhos. Porém, nenhum destes filhos da sua segunda união casou na freguesia — dois morreram já adultos, mas ainda jovens, e o terceiro emigrou. Assim, só o filho que teve da primeira mulher continuou a linha familiar, casando, em 1850, com vinte e dois anos, com uma mulher de vinte e cinco. Tiveram sete filhos, quatro dos quais casaram na freguesia, três deles com vinte e muitos anos e um com trinta e cinco. Entre todos, tiveram apenas cinco filhos.
8O irmão mais velho de António, Manuel, casou com Domingas da Costa. Ela tinha vinte e dois anos e, durante os trinta anos que durou o casamento, gerou onze filhos. Apenas dois deles casaram na freguesia, o segundo filho mais novo, Manuel, em Outubro de 1870, quando tinha trinta e três anos com a sua prima direita, Maria da Costa Pereira. A noiva tinha trinta anos e teve três filhos, o primeiro, quinze meses após o casamento, o segundo três anos mais tarde e o terceiro, aproximadamente dois anos e meio depois do segundo, em 1877. Embora Manuel fosse apontado como ausente da paróquia em 1881 e 1887, o seu falecimento aparece no registo de óbitos em 1914, três anos depois de ter morrido. A filha mais velha Maria e o filho mais novo Manuel casaram na freguesia, a primeira, em 1900, quando tinha vinte e oito anos e o segundo, em 1915, com trinta e oito. Depois de ter dado à luz um filho em Santa Eulália, a filha e o marido, natural de uma freguesia vizinha foram viver para esta freguesia. O filho Manuel e sua mulher, que casou com trinta e quatro anos, tiveram quatro filhos em dez anos. Três deles casaram com pessoas naturais da freguesia do pai, mas apenas um, o filho mais velho, Manuel, trouxe a mulher para Santa Eulália, onde ficaram a viver. Tiveram seis filhos entre 1944 e 1953, dois dos quais casaram em Lisboa, um que casou em França e outro que morreu com quatro meses.
9O breve resumo de alguns dos membros de uma família de Santa Eulália ao longo de várias gerações, entre o começo do século XVIII e meados do XX, demonstra a existência de certas variações dos modelos de fecundidade em Santa Eulália no decurso do tempo, e tende a sugerir que as flutuações relativas à idade no casamento abordadas no capítulo anterior são importantes para compreender a direcção dessas variações. Como numerosos demógrafos históricos referiram, o aumento da idade média com que os indivíduos de uma população ou comunidade casam faz diminuir o número de anos durante os quais uma mulher pode gerar filhos — o seu chamado «período de risco» — e, portanto, afecta o nível de fecundidade global. Nesta secção, investigarei o impacte das tendências da idade no casamento sobre a fecundidade, em Santa Eulália. O objectivo subjacente é determinar se na origem do que são, pelo menos em alguns dos casos individuais anteriormente expostos, histórias de fecundidade moderada está qualquer estratégia, quer directa quer indirecta, de controlo de natalidade.
10Podem calcular-se as taxas brutas de natalidade da paróquia relativas aos finais do século XIX e ao XX. Estas taxas foram expostas no Quadro 1.1 e mostram que, tal como a maior parte do Noroeste de Portugal, Santa Eulália não «sofria» na altura de uma fecundidade em acentuada ascensão. Na realidade, essas taxas locais eram inferiores à da nação como um todo até 1930, e depois tornaram-se superiores a ela. Além disso, enquanto a taxa de natalidade nacional começou a experimentar uma descida geral depois de 1930, a de Santa Eulália aumentou temporariamente. Só depois de 1960 é que houve uma queda acentuada.
11Embora os censos nacionais só forneçam dados a partir dos finais do século XIX, a reconstituição de famílias com base nos registos paroquiais permite uma análise histórica mais profunda da fecundidade. Com base nestes dados, há várias medidas de fecundidade conjugal que podem ser investigadas. O Quadro 4.1 apresenta as taxas específicas etárias de fecundidade conjugal, baseadas em famílias reconstituídas e completas correspondentes aos coortes que casaram durante o mesmo período de vinte anos, entre os século XVIII e meados do XX. Os números deste quadro mostram que, durante esses dois séculos, nos encontramos perante uma população que se caracteriza pela «fecundidade natural». O principal traço que distingue o modelo de idade da fecundidade natural de qualquer forma de fecundidade controlada é a razão a que as taxas de fecundidade conjugal diminuem com a idade. As taxas relativamente constantes apresentadas nestes dados sugerem uma fecundidade natural.
12Essa constância é mais evidente graficamente na Figura 4.1 que, além de ilustrar a inclinação gradual da descida destas taxas, também demonstra que, com excepção das mulheres que casaram com menos de vinte anos, as taxas específicas etárias de fecundidade conjugal agregadas por intervalos de meio século eram muito semelhantes ao longo do período entre 1700 e 1949. Contudo, o Quadro 4.1 mostra de facto que, tal como acontece com a taxa bruta de natalidade, houve um aumento quer da taxa específica etária de fecundidade conjugal quer da taxa de fecundidade conjugal total, depois de 1920. Na verdade, as flutuações da taxa de fecundidade conjugal total, embora pequenas, são importantes e merecem ser consideradas. Em geral, parece que houve uma descida da fecundidade global cerca dos finais do século XVIII, seguida por uma subida até meados do XIX, à qual, por seu turno, se seguiu uma outra descida entre aproximadamente 1840 e 1880. Essa taxa subiu durante as últimas duas décadas do século XIX, mas desceu de novo nas primeiras duas décadas do XX. Obviamente, existe uma relação entre as taxas de fecundidade e a idade das mulheres no casamento. Não é por uma coincidência que a idade das mulheres no casamento atingiu um ponto alto na década de 1770 e um segundo, nas de 1860 e 1870. Embora não seja da opinião de que retardar o casamento fosse necessariamente uma opção consciente feita com o objectivo expresso de reduzir o número de filhos de um casal, tinha, sem dúvida, esse resultado. O aspecto mais curioso destas taxas de fecundidade conjugal é a descida, durante as primeiras duas décadas do século XX, precisamente na altura em que a idade no casamento desceu acentuadamente. Além da idade da mulher, havia provavelmente outro factor que afectava as taxas de fecundidade da época. Voltarei a este ponto na secção seguinte.
13O Quadro 4.2 fornece as taxas de fecundidade conjugal segundo a duração do casamento por intervalos de cinco anos até à idade de quarenta e quatro anos. Embora este quadro não distinga as mulheres de acordo com a idade no casamento, os períodos em que a idade média global das mulheres no casamento subiu tendem a coincidir com taxas de fecundidade mais baixas, independentemente da duração do casamento. O Quadro 4.3 agrega essas taxas de fecundidade segundo a duração do casamento e idade no casamento, por períodos de cinquenta anos. Algumas das variações relativas a períodos mais pequenos perdem-se provavelmente neste quadro, e, portanto, é difícil extrair dele conclusões precisas. Parece haver uma diferença entre as taxas de fecundidade de mulheres que casaram entre os vinte e vinte e quatro anos, depois de quinze a vinte anos de casadas, e as que casaram entre os trinta e os trinta e quatro, após cinco a nove anos de casamento; este último grupo apresenta taxas de fecundidade mais elevadas na mesma idade biológica, em todos os períodos, excepto na segunda metade do século XVIII. Contudo, afirmar que isto representa necessariamente uma tentativa da parte do grupo das que casaram mais cedo, com vista a controlar a fecundidade é arriscado. Pode ser uma consequência de uma actividade sexual menos frequente dentro do casamento ao fim de quinze anos — que pode ou não ser vista como uma forma deliberada de limitação da família — ou ter que ver com algum factor exógeno. Os efeitos do período do casamento nos finais do século XVIII e nos do XIX estão também patentes neste quadro.
14O Quadro 4.4 apresenta o número médio de filhos por casamento segundo a idade no casamento de todas as mulheres, de famílias completas. Ao longo dos dois séculos e meio compreendidos entre 1700 e 1949, parece que, quanto mais nova era uma mulher quando casou, mais provável era que tivesse mais filhos. Se se praticava algum tipo de controlo de natalidade aparentemente não era eficaz, por não permitir às mulheres que haviam casado mais jovens reduzir a sua fecundidade quando tinham conseguido o desejado número de filhos. Isto pode ser também comprovado, embora de uma forma não tão retumbante, no Quadro 4.5, que apresenta a idade média no último nascimento relativa às mulheres que casaram com menos e mais de trinta anos segundo períodos de vinte anos em que se realizou o seu casamento. Este quadro só inclui mulheres que atingiram pelo menos os quarenta anos e é difícil extrair daí qualquer conclusão. Em geral, as mulheres que casaram com mais de trinta anos durante os dois séculos entre 1700 e 1900 eram ligeiramente mais velhas quando do último nascimento — o que pode sugerir quer uma prática de limitação da família quer, mais uma vez, a redução da actividade sexual dos casais que se tinham unido mais cedo e que, portanto, viviam em comum havia mais tempo. Os dois períodos em que as mulheres que casaram em média com menos de trinta anos têm filhos até mais tarde — as décadas de 1760 e 1880 — são precisamente aqueles que se revelam fora do comum noutras medidas do comportamento perante a fecundidade. O período posterior a 1920 é particularmente interessante, uma vez que a diferença aumentou muitíssimo, mais de três anos. Será isto uma prova de que as mulheres que casavam mais cedo começaram a tentar controlar ou limitar o tamanho da sua família?
15Outra medida, ainda que grosseira, do alcance da limitação da família é o índice de Coale e Trussell, «o pequeno m» que compara a estrutura etária de uma dada tabela de fecundidade conjugal com a de uma tabela de fecundidade natural «normal» (1974). Quanto maior for o valor do «pequeno m», maior o nível de controlo da fecundidade. Inversamente, valores negativos demonstram que a fecundidade está a descer com a idade mais lentamente do que numa tabela normal. Os valores do «pequeno m» relativos aos dados de Santa Eulália estão incluídos no Quadro 4.6. Os valores negativos tendem a predominar sobre os positivos e não se pode certamente dizer que uma mudança de um valor negativo, por exemplo de-.110 na década de 1720 e 1730 para um valor positivo de.046 nas de 1740 e 1750 seja necessariamente uma prova de haver mais limitação da família nestas duas décadas do que nas anteriores. Devemos recordar que estamos perante uma população relativamente pequena e que, além disso, os próprios Coale e Trussell sugerem que qualquer valor inferior a 0,200 pode ser tomado como prova de pouco ou nenhum controlo. Isto torna o valor de.274 durante as últimas duas décadas do século XIX particularmente intrigante. Por detrás deste número estão provavelmente os valores extraordinariamente elevados das taxas específicas etárias das mulheres que casaram entre vinte e vinte e nove anos em comparação com os das correspondentes aos períodos anteriores e posteriores. Contudo, este é precisamente um período em que as mulheres que casaram com menos de trinta anos apresentaram uma idade média no último nascimento superior à das mulheres que casaram com mais de trinta anos. Parece que isto diminui a nossa capacidade de concluir que, durante estas duas décadas, as mulheres que casaram mais novas estavam de algum modo a tentar limitar a sua fecundidade.
Quadro 4.6 Valores do «Pequeno M» e do Quadrado do Desvio Padrão, 1700-1949
Período | «Pequeno m» | Quadrado do desvio padrão |
1700-1719 | .082 | .023 |
1720-1739 | -.110 | .004 |
1740-1759 | .046 | .006 |
1760-1779 | -.036 | .009 |
1780-1799 | -.047 | .001 |
1800-1819 | -.062 | .003 |
1820-1839 | -.070 | .001 |
1840-1859 | -.063 | .021 |
1860-1879 | -.066 | .009 |
1880-1899 | .274 | 000 |
1900-1919 | -.056 | .000 |
1920-1939 | .039 | .001 |
(1920-1939) | -.139 | .005 |
1940-1949 | .165 | .015 |
(1940-1949) | -.593 | .149 |
1700-1749 | -.011 | .005 |
1750-1799 | .070 | .004 |
1800-1849 | -.084 | .001 |
1850-1899 | .122 | .001 |
1900-1949 | .046 | .001 |
(1900-1949) | -.094 | .002 |
Fonte: Dados sobre Reconstituição de Famílias, Santa Eulália.
16Que conclusões poderiam ser retiradas até aqui destes dados sobre a fecundidade? Julgo que podemos argumentar que, se nos basearmos nestas várias medidas estatísticas, a limitação do tamanho da família não estava generalizada. Acresce que, como se verificou em numerosos outros estudos históricos, os níveis de fecundidade das mulheres de Santa Eulália foram afectados por variações da idade média que tinham ao casar. As mulheres que casaram com menos de vinte e quatro anos tinham aproximadamente o dobro dos filhos das que casaram com trinta e poucos anos. E, no en tanto, a idade no casamento não explica com certeza tudo. Na verdade, os coeficientes de correlação e regressão da idade da mãe no casamento e o número total de filhos havidos num casamento (Quadro 4.7) indicam que a idade só fornece uma explicação parcial. Em circunstâncias «normais», esperaríamos que, à medida que a idade da mãe no casamento aumentasse, o número de filhos diminuísse, e, na realidade, todos os coeficientes de correlação mostram uma relação inversa. Contudo, se analisarmos os r2s — a proporção da variação do número de filhos explicada pela idade da mãe no casamento — verificamos que, a partir de 1790, são sempre menores do que.50. Por outro lado, um estudo mais pormenorizado do século mais recente (Quadro 4.8) revela a existência der2s extremamente baixos durante certas décadas (as de 1870 e 1900). Há, portanto, que tomar em consideração factores alternativos.
Quadro 4.7 Relação Entre a Idade da Mãe no Casamento e o Número Total de Filhos, 1700-1949 (por períodos de vinte anos)
Período | r | r2 | N . de casos |
1750-1769 | -.79 | .59 | 36 |
1770-1789 | .75 | 56 | 47 |
1790-1809 | -.66 | .43 | 35 |
1810-1829 | -.66 | .43 | 52 |
1830-1849 | -.58 | .38 | 70 |
1850-1869 | -.67 | .45 | 70 |
1870-1889 | -.66 | .43 | 79 |
1890-1909 | -.54 | .29 | 80 |
1910-1929 | -.60 | .36 | 51 |
(-.41) | (.17) | (107) | |
1930-1949 | -.66 | .160 | 160 |
Fonte: Dados sobre Reconstituição de Famílias, Santa Eulália.
17Uma das variáveis frequentemente introduzidas é a mortalidade infantil. Como se costuma dizer, nas populações rurais, havia um motivo forte para ter muitos filhos, para compensar as mortes de lactentes e crianças de tenra idade. Assim, quanto maior fosse o número de gravidezes, maior o número de mortes de lactentes. Alguns estudos históricos (Knodel 1979) mostraram que, na realidade, a relação era exactamente inversa: ou seja, que o número médio de filhos sobreviventes desce, à medida que a idade no casamento aumenta e, portanto, quando o número de gravidezes diminui. Um estudo regional, de Portugal com base numa análise dos dados do censo de 1960 demonstra que existe apenas uma fraca correlação entre fecundidade e mortalidade infantil.
Quadro 4.8 Relação Entre a Idade da Mãe no Casamento e o Número Total de Filhos, 1860-1949 (por década)
Período | r | r2 | N.° de casos |
1860-69 | -.88 | .78 | 34 |
1870-79 | -.56 | .31 | 36 |
1880-89 | -.78 | .61 | 43 |
1890-99 | -.76 | .58 | 34 |
1900-09 | -.54 | .29 | 46 |
1910-19 | -.63 | .40 | 25 |
(-.50) | (.25) | (43) | |
1920-29 | -.73 | .53 | 26 |
(-.42) | (.17) | ||
1930-39 | -.31) | .09 | 73 |
1940-49 | -.33 | .11 | 87 |
Fonte: Dados sobre Reconstituição de Famílias, Santa Eulália.
18De facto, certas regiões do Sul caracterizavam-se por uma baixa fecundidade e uma elevada mortalidade infantil, enquanto o distrito de Viana do Castelo se caracterizava por uma mortalidade infantil relativamente baixa e por uma fecundidade moderada (Cândido 1969).
19Os dados sobre a mortalidade infantil e de crianças em Santa Eulália não são dignos de confiança anteriormente a 1860. Até 1800, eram poucas as crianças com menos de 14 anos cuja idade ao morrer pudesse ser determinada através de confronto com o seu registo de nascimento. Entre 1800 e 1859, as mortes de crianças com menos de catorze anos passaram a ser registadas com maior regularidade, embora saber se todas eram sempre registadas continue a ser uma pergunta em aberto. Também aqui, só as crianças que puderam ser associadas, sem que subsistisse qualquer dúvida, a um assento do registo de baptismo podem ser consideradas. Esta população apresenta as seguintes taxas de natalidade (o número de mortes de lactantes — com menos de um ano — por cada 1000 nascidos vivos), relativas às primeiras seis décadas do século XIX:
1800-1809 | 69 |
1810-1819 | 138 |
1820-1829 | 52 |
1830-1839 | 123 |
1840-1849 | 73 |
1850-1859 | 75 |
20Estas taxas são extremamente baixas para uma população supostamente de pré-transição e reflectem, provavelmente, problemas dos dados sobre a mortalidade infantil. O Quadro 4.9 apresenta os dados posteriores a 1860, já mais dignos de confiança. Embora ainda um pouco baixas, estas taxas referentes a Santa Eulália encontram-se, convém notar, entre os limites da situação descrita para o conjunto do distrito de Viana do Castelo. Além disso, quando se omitem do número total de crianças falecidas durante o primeiro ano de vida, num determinado período, as mortes de filhos ilegítimos, essas taxas são ainda menores. Deveremos concluir, com base nisso, que esta região de Portugal estava a experimentar uma mudança a nível demográfico, conjugando uma menor fecundidade com uma taxa de mortalidade mais baixa? Os dados sobre a fecundidade por si sós tornam uma tal conclusão problemática. Parece mais razoável defender que a morte de uma criança durante o primeiro ano de vida, numa sociedade em que as mulheres amamentavam os filhos durante pelo menos um ano, colocava a mulher numa situação «de risco» mais cedo do que se aquela tivesse sobrevivido.
21De facto, embora o intervalo médio entre o nascimento de uma criança que faleceu durante o primeiro ano e o nascimento do seguinte, durante as últimas quatro décadas do século XIX, fosse aproximadamente um ano e meio, o intervalo genésico médio quando o primeiro filho ultrapassava essa idade é ligeiramente superior a dois anos e um quarto. Para melhor ilustrarmos este ponto, vamos proceder à comparação das histórias de fecundidade de três casais cujo matrimónio se realizou na década de 1860. O primeiro deles, Manuel da Silva e Ana Gonçalves Rocha, uniu-se em 1861. O noivo, um oleiro pobre, tinha dezanove anos e a noiva, vinte e cinco. Durante os catorze anos que se seguiram, tiveram dez filhos, dos quais apenas um, a filha primogénita, sobreviveu até à idade adulta. Este foi o caso extremo a nível de mortalidade infantil dentro de uma família, entre todos os casais formados a partir de 1860. Será que este pobre casal continuou a ter filhos devido a alguma noção a priori sobre o número de descendentes que queria ou simplesmente porque a natureza assim o ditava? Seguem-se os correspondentes intervalos genésicos, os quais mostram uma redução do tempo entre dois nascimentos quando as crianças morriam pouco depois de terem nascido:
intervalo | situação | |
1. Maria Rosa | 2 meses | viveu |
2. José | 35 meses | morreu com 4 anos |
3. Manuel | 31 meses | morreu com 3 anos |
4. Maria | 25 meses | morreu no mesmo dia |
5. Maria | 13 meses | morreu com 17 dias |
6. Maria | 11 meses | morreu no dia seguinte |
7. Miguel | 13 meses | morreu no mesmo dia |
8. Miguel | 10 meses | morreu no mesmo dia |
9. Rosa | 11 meses | morreu no dia seguinte |
10. José | 17 meses | morreu no mesmo dia |
22Não há dúvida de que ver os bebés falecerem tão cedo era, provavelmente, desencorajador para Manuel e Ana, mas acabou por ter tantas gravidezes como as outras mulheres que viram os filhos sobreviver até à idade adulta. Por exemplo, uma história de fecundidade comparável, ainda que ligeiramente diferente, é a de Rosa Rodrigues, que tinha vinte anos quando casou com António Rebouço, em Setembro de 1869. António era um lavrador e, quando casaram, foram viver para uma casa ao lado da dos pais de Rosa. Nos dez anos seguintes, Rosa teve nove filhos, cinco dos quais alcançaram a idade adulta. Os intervalos genésicos, foram neste caso:
1. Manuel | 10 meses | morreu no 1.° mês |
2. Maria | 18 meses | viveu |
3. Joaquim | 41 meses | morreu no 2.° mês |
4. Rosa | 19 meses | viveu |
5. António | 38 meses | morreu no 5.° mês |
6. Antónia | 19 meses | viveu |
7. José | 31 meses | viveu |
8. Luísa | 30 meses | viveu |
9. Angelina | 42 meses | morreu com 19 meses |
23Rosa tinha quarenta e um anos, mais dois do que Ana, quando deu à luz o último filho. A sua história de fecundidade demonstra de forma ainda mais evidente as variações dos intervalos genésicos consoante uma criança ultrapassava ou não um ano de idade. Como terceiro exemplo, citemos a história de fecundidade de José Alves e Luísa Gonçalves. José e Luísa casaram em 1868, quando ele tinha vinte e cinco anos e ela, vinte e seis — portanto, Luísa era mais ou menos da mesma idade de Ana. Como Manuel e Ana, também eram pobres, embora fossem jornaleiros e não oleiros. Como Rosa e António, tiveram também nove filhos. Luísa deu à luz o último deles quando tinha mais de quarenta anos, e era, pois, mais velha do que Ana. Os intervalos genésicos foram os seguintes:
1. Sebastião | 2 meses | morreu |
2. Maria | 27 meses | viveu |
3. Rosa | 22 meses | viveu |
4. António | 35 meses | viveu |
5. Manuel | 27 meses | morreu no 2.° dia |
6. Maria Rosa | 21 meses | viveu |
7. Manuel António | 26 meses | viveu |
8. Maria Luísa | 24 meses | viveu no 1.° mês |
9. Gracinda | 16 meses | viveu |
24Embora a amamentação fosse frequente durante, pelo menos, um ano, isto não quer dizer necessariamente que fosse usada directamente como um meio de controlo da natalidade. Por outro lado, as mulheres não ignoravam necessariamente que a hipótese de engravidarem podia ser adiada, pelo menos por uns meses, através da amamentação; é óbvio que os intervalos entre os dois filhos saudáveis parecem indicar que a amamentação era, de certo modo, eficaz para adiar o recomeço da ovulação. Contudo, a amamentação era praticada fundamentalmente porque era a melhor e mais barata fonte de nutrição, porque uma mãe podia facilmente dar de mamar ao filho no campo e porque, quando uma criança era desmamada e passava a ser alimentada a papa — uma mistura de cereais e leite de vaca —, os riscos de morrer devido a uma gastroenterite eram muito maiores. Essa preocupação foi manifestada, por exemplo, por uma mulher idosa da aldeia que teve os filhos em Santa Eulália, durante a década de 1920 e princípios da de 1930. O seu primeiro filho foi uma rapariga que morreu de enterite quando tinha nove meses. A mãe atribuía a sua morte ao facto de ter pouco leite e ter sido, portanto, obrigada a recorrer quase imediatamente ao biberão. O segundo filho, um rapaz, nasceu um ano depois da primeira. Ela amamentou-o e fez o mesmo aos filhos seguintes e comentou que, provavelmente, era por isso que tinham todos nascido aproximadamente com diferenças de três anos. Estudos realizados noutras regiões da Europa fundamentaram o papel da amamentação na prevenção das doenças infantis e, por conseguinte, na redução das taxas de mortalidade infantil (Littell 1981, McLaren 1984).
25A questão da limitação da família e do controlo da natalidade será analisada com mais pormenor mais adiante, neste mesmo capítulo, mas, com base no que se estudou até aqui, é evidente que nem a idade no casamento nem a mortalidade infantil explicam por inteiro o modelo da fecundidade de Santa Eulália. Acresce que, embora não tenham sido devidamente apresentadas, existem diferenças individuais das histórias de fecundidade que podem ser atribuídas, creio, a algo mais do que diferenças individuais quanto a fecundidade. É este ponto que abordarei em seguida.
Viúvas dos Vivos: Emigração E Fecundidade
«... que deixarão (se são casados) as suas mulheres como viúvas, ou solteiras, inhabeis para a geração e que se em dez annos de ausência assistem no casal, e tivessem quatro filhos, erão estes filhos riqueza mais segura para elles e para o seu paiz.»
(Bezerra 1758:190)
26Ainda que Swedlund (1978:151) tenha sustentado que entre os muitos estudos sobre a migração e a mobilidade local, poucos são os que estabeleceram uma ligação com o modelo de transição demográfica, a relação entre migração e fecundidade não é, de modo algum, uma novidade. Davis (1963) incluiu-a no seu estudo de uma resposta demográfica multifásica e Friedlander analisou-a com mais pormenor, formulando a hipótese de que «o ajustamento do comportamento reprodutivo de uma comunidade em resposta ao agravamento de uma “tensão” pode variar consoante a facilidade com que a comunidade consegue avaliar a “tensão” por meio de emigração» (1969:359).4. Num estudo posterior (1983), Friedlander demonstrou que a redução da fecundidade conjugal pela emigração tem sido especialmente característica das zonas agrícolas, embora não nos explique porquê, limitando-se a sugerir que isso tem que ver com as proporções entre número de homens/área de terras. Também não estabelece qualquer distinção entre tipos de emigração — definitiva ou temporária. Na verdade, parece com frequência partir do princípio de que a partida é definitiva. No entanto, as diferenças de modelo de emigração são, como já provámos, cruciais para compreender o comportamento demográfico de Santa Eulália e do Noroeste de Portugal em geral, e uma partida definitiva não fazia de modo algum parte do plano inicial de emigração de muitos emigrantes de Santa Eulália de antigamente e até de agora.
27Aqueles que têm reservas em relação a certos elementos da teoria multifásica, vêem um preconceito no modelo. Knodel (1974), por exemplo, sugere que as condições socioeconómicas em zonas atrasadas, incluindo elevados níveis de analfabetismo, explicam, por si sós, tanto a emigração como a lenta difusão dos modelos modernos de fecundidade. Conclui que «existem poucas provas de que a emigração do campo para a cidade retardasse a adopção da limitação da família». Ainda que possa não haver uma relação directa, especialmente em termos de uma escolha consciente entre mandar emigrar mais ou menos filhos, assim que alcançam a idade apropriada, é impossível ignorar de ânimo leve o impacte directo da migração na fecundidade conjugal, em qualquer estudo do comportamento demográfico em Portugal. A emigração do Noroeste de Portugal, consequência de pressões tanto económicas como a nível de população, teve, provavelmente, o efeito conveniente não só de limitar a nupcialidade, eliminando uma proporção bastante grande de homens casadouros (aumentando, portanto, a população de mulheres solteiras), mas também de limitar a fecundidade conjugal, através da ausência ocasional ou mesmo permanente de um homem casado. Ainda que não seja talvez um método consciente ou deliberado de limitação da família ou de controlo da população, a um nível global, a emigração tinha justamente este efeito.
28Há, pelo menos, dois modos em que a emigração pode ter influenciado os níveis de fecundidade conjugal. Por um lado, as migrações sazonais ou temporárias para o Sul de Portugal, para Espanha e mesmo para o Brasil reduziam o chamado «período de risco» das suas esposas. O resultado eram intervalos genésicos maiores do que em circunstâncias normais. Por outro lado, os homens casados que partiam e faleciam no estrangeiro, ou que simplesmente não regressavam, transformavam as mulheres verdadeiramente em viúvas dos vivos. A sua emigração tinha como consequência fazer abortar prematuramente os casamentos, no ponto mais alto da idade fértil das * mulheres e, portanto, de eliminar definitivamente estas mulheres da população de mulheres casadas que contribuem para os níveis de fecundidade de uma comunidade.5
29Tal como referimos anteriormente noutro capítulo, a ratio de sexo da população casada da freguesia, desde as últimas décadas do século XIX, tem sido desproporcionada a favor das mulheres. Alcançou os pontos mais baixos em 1890 (78,1 homens/100 mulheres) e em 1911 (72,5 homens/100 mulheres). As provas extraídas da análise dos registos dos passaportes e dos Róis da Desobriga tendem a confirmar que o número de homens casados de Santa Eulália que emigraram cresceu, à medida que o século XIX se aproximava do fim e começava o século XX. Embora não dispunhamos de dados censitários sistemáticos, quer sobre a emigração, quer sobre a ratio de sexo por estado civil, anteriores a 1864, o cálculo feito por Villas Boas aponta uma ratio de 87 homens acima dos 14 anos de idade por cada 100 mulheres também de idade superior a 14. Ainda que estes números incluam obviamente mulheres e homens solteiros, outras fontes, como por exemplo os registos de óbitos, sugerem que emigravam tanto homens solteiros como casados e, portanto, estavam periodicamente ausentes, nos finais do século XVIII, como aliás nos do XIX. De facto, no caso de casamentos em que não se encontra nos registos de Santa Eulália uma certidão de óbito do marido, apesar de todas as outras provas — casamentos e mortes de filhos, a morte da mulher — apontarem para que a família vivia na freguesia, é muito provável que os maridos tenham falecido no estrangeiro e as suas mortes não tenham sido confirmadas, pelo que não foram registadas nos livros oficiais de Santa Eulália.6
30O impacte das migrações sazonais ou temporárias sobre a fecundidade conjugal tem sido tema de uns quantos estudos recentes de demografia histórica. Livi Bacci (1967), por exemplo, aponta três zonas de Espanha onde a falta de homens derivou da elevada emigração — as Canárias e as províncias das Astúrias e da Galiza. Em comparação com outras províncias espanholas, estas duas últimas regiões caracterizam-se por níveis de fecundidade moderados desde, pelo menos, 1860. É ainda mais intrigante o estudo de Francine Van de Walle acerca do cantão de Ticino, de língua italiana, dos Alpes Suíços (1975). Tal como os habitantes do Noroeste de Portugal, os de Ticino demonstram uma forte ligação à sua terra natal. E, por último, como os homens novos do Minho, os de Ticino «que trabalharam no estrangeiro durante várias décadas, em busca de mais rendimentos, não tinham a menor intenção de abandonar a aldeia onde um dia iriam herdar uma parte das terras dos pais» (1975:450). Assim, os homens de Ticino, quer fossem casados quer solteiros, também migravam com carácter sazonal ou temporário e, por conseguinte, caracterizavam-se igualmente por casamentos tardios e uma fecundidade conjugal baixa.
31Menken (1979) foi ainda mais longe, ao tentar calcular matematicamente o impacte da migração sazonal sobre a fecundidade. Concebeu um modelo correspondente a vários tipos de fecundabilidade (probabilidade que uma mulher tem de conceber durante um ciclo menstrual) e incapacidade pós-parto e verificou que, à medida que o número de meses de ausência física aumenta, as probabilidades de nascimento diminuem sempre. Por exemplo, numa das suas fases hipotéticas, em que a fecundabilidade é.15, a probabilidade de a concepção conduzir ao nascimento de um filho vivo é .20 e a amenorreia pós-parto associada a esse nascimento é de doze meses, a ausência de três meses reduzirá a probabilidade de um nascimento em 11,2%. Obviamente, se uma migração durante três ou seis meses tinha este tipo de efeito e depois a migração fosse eliminada, o resultado poderia ser uma subida da fecundidade.7
32Não obstante as limitações dos dados sobre a migração de Santa Eulália, sobretudo antes de 1860, há várias maneiras de averiguar o impacte possível das migrações temporárias de Santa Eulália sobre a fecundidade conjugal. O Quadro 4.10 mostra a proporção de concepções por estação, entre 1700 e 1970. Durante a primeira metade do século XVIII, apenas pouco mais de metade das crianças nascidas em Santa Eulália eram concebidas durante a Primavera e o Verão, entre os meses de Abril e Setembro. Contudo, no século e meio que se seguiu, quase dois terços das crianças nascidas e baptizadas na freguesia foram concebidas na Primavera e no Verão. Só depois de 1900 é que o modelo dos começos do século XVIII de distribuição sazonal mais regular começou a surgir de novo. O modelo de sazonalidade prevalecente em Santa Eulália no final do século XVIII e durante todo o XIX está em gritante contraste com os dados de Bell (1979) acerca de Itália. Lá, ele aponta as descidas acentuadas das concepções durante os meses de Primavera e Verão, comparadas com o resto do ano, e relaciona isso com uma série de factores, entre os quais o ritmo dos trabalhos de campo, durante a estação das colheitas.
33Quando se estudam mais de perto as mudanças relativas à sazonalidade das concepções em Santa Eulália, torna-se evidente que a modificação ocorrida no século XX só se verificou a partir de 1920. Nessa altura, os efeitos sazonais que tinha havido e que provocaram as diferenças acentuadas quanto ao momento de ocorrência das concepções parecem ter desaparecido. Edward Shorter, no livro The Making of Modern Family (1975), sugeriu que o nivelamento das concepções sazonais está relacionado com um processo geral de modernização e com a «introdução da ideia romântica do namoro e do casamento». Em Santa Eulália, porém, estava provavelmente a acontecer alguma coisa mais: o fim, em meados da década de 1920, e em especial depois de 1931, com o advento da agitação política em Espanha, de um modelo de migração sazonal para aquele país que fizera parte da maneira de viver demográfia da freguesia, durante pelo menos dois séculos. Como foi referido no capítulo anterior, a migração verificava-se muito provavelmente durante os meses de Inverno, em que as necessidades de trabalho eram menores em Santa Eulália. Depois da vindima, nos finais de Setembro ou princípios de Outubro, os homens partiam para o Sul de Espanha, onde permaneciam até à Primavera, altura em que regressavam para ajudar as mulheres e famílias nas sementeiras e colheitas.
Quadro 4.10 Sazonalidade das Concepções, 1700-1970 (percentagens)
Período | Abril-Setembro | Outubro-Março |
1700-1749 | 52,1 | 47,9 |
1750-1799 | 64,7 | 35,3 |
1800-1849 | 64,5 | 35,5 |
1850-1899 | 60,8 | 39,2 |
1900-1949 | 55,3 | 44,7 |
1950-1970 | 45,6 | 54,4 |
Fonte: Registos paroquiais, Santa Eulália.
34Tendo em consideração uma vez mais os elementos apresentados no Capítulo III, parece existir uma correlação aproximada (embora não seja muito grande, excepto na década de 1770, em que as concepções na Primavera e no Verão representaram 74% de todas as concepções) entre um aumento aparente do fluxo migratório para Espanha, durante as últimas três décadas do século XVIII e a primeira do XIX, e um aumento do número das do Outono e do Inverno. Inversamente, durante os períodos em que pensamos que a emigração sazonal foi mínima (a década de 1830, em que as concepções durante a Primavera e o Verão desceram para 55,7%) ou nula (o decénio de 1940 em que as concepções durante a Primavera e o Verão representaram 49,7% de todas as concepções), regista-se uma distribuição mais regular das concepções ao longo do ano. Dentro da mesma ordem de ideias, é também interessante reflectir sobre as duas décadas entre 1950 e 1970 em conjugação com os modelos de migração para França. Desde os finais da década de 1950 e durante toda a de 1960, muitos homens casados emigraram para o Norte da Europa sozinhos, deixando na terra as mulheres e famílias. No estrangeiro, trabalhavam fundamentalmente na construção civil. Embora muitos regressassem e ficassem na terra durante um mês por ano (no Verão), também era habitual voltarem para Portugal antes do Natal, quando o trabalho na construção civil estava parado, e permanecerem na freguesia alguns meses, antes de partirem de novo para França e aí retomar o trabalho, no referido sector. Ao mesmo tempo, e pela primeira vez em 250 anos, o número de concepções que tiveram lugar entre Outubro e Março excedeu o das ocorridas entre Abril e Setembro em mais de 1 ou 2%; aliás, chegou aos 10% na década de 1960.
35Uma segunda maneira de documentar o impacte da migração sazonal ou temporária consiste no estudo das histórias de fecundidade e intervalos genésicos. No seu importante artigo sobre a fecundidade natural, Louis Henry sustenta que, em sociedades onde a prática do controlo da natalidade é reduzida ou nula, os intervalos genésicos variam entre vinte e quatro meses e um pouco mais de trinta e seis meses. Na sua opinião, o factor principal dessa variação é a diferença da duração média do «período ocioso» — ou seja, o período de tempo decorrido entre a parturição e o recomeço das relações sexuais ou o aparecimento da ovulação, consoante qual destes se verifica mais tempo despois do parto. Sabemos que, em muitos contextos culturais, esse recomeço é afectado por tabus relativos ao período pós-parto e que este reaparecimento depende do número de meses culturalmente definidos como aceitáveis ou «normais», durante os quais uma mãe pode amamentar o filho.8 Potter (1963) defende que intervalos de até 30 e 33 meses são facilmente explicáveis e que os superiores a esses valores deveriam levar o investigador a suspeitar da presença de alguma forma de limitação da família ou da existência de um factor não biológico e exterior susceptível de afectar a fecundidade. Se temos de concluir que a limitação generalizada e deliberada da família era rara em Santa Eulália até já bem entrado este século, então os grandes intervalos que encontramos entre alguns nascimentos devem ter sido consequência de qualquer outro ou quaisquer outros factores exógenos. É possível que estejamos perante uma série de nascidos mortos não registados; possível, mas improvável, porque parece evidente que houve períodos na história de Santa Eulália em que os intervalos genésicos longos foram mais predominantes do que noutros. Assim, a nível tanto individual como global, há algo mais a explicar.
36O Quadro 4.11 fornece os intervalos de parturição relativamente a coortes nascidos entre 1700 e 1949, correspondentes aos filhos nascidos de famílias completas, e bem assim a idade média das mães quando do nascimento desses filhos. Se devemos suspeitar de intervalos genésicos superiores a trinta e três meses (2,75 anos), então a segunda metade do século XVIII (intervalo médio de 2,93 entre o quarto e o quinto filhos) e a segunda metade do XIX (um intervalo médio de 2,82 entre o terceiro e o quarto nascimento) chamam imediatamente a nossa atenção. As mudanças da idade média no casamento e, portanto, da idade média das mães quando dos nascimentos destes filhos não parecem especialmente importantes para explicar essas diferenças. Por exemplo, a idade média das mães ao nascimento do quarto filho ronda os 33,8, ao longo de todo o século XIX e primeira metade do XX.
37A informação recolhida numa série de fontes sugeriu que a emigração para Espanha aumentou provavelmente durante as últimas décadas do século XVIII e a primeira do XIX. Se não incluirmos os coortes nascidos nas décadas de 1790 e 1800, é ainda mais evidente a existência de intervalos maiores a seguir ao terceiro filho.
38Infelizmente, com excepção de umas quantas certidões de óbito, não dispomos de dados a nível individual que nos ajudem a identificar sistematicamente os homens que podem ter emigrado depois de casados. Contudo, a análise das histórias de fecundidade das mulheres cujos maridos haviam estado ausentes, em Espanha, antes do casamento e casaram durante a década de 1790 apresentam intervalos particularmente longos. Com base simplesmente num conhecimento etnográfico e histórico amplo dos modelos de migração, pode presumir-se que é provável que os homens que tinham trabalhado em Espanha na juventude tenham regressado depois do nascimento de alguns filhos, a fim de arranjar dinheiro para sustentar as suas famílias cada vez maiores. Houve quarenta e três casamentos durante esta década e vinte seis novos declararam ter estado ausentes em Espanha antes de terem casado. São dezoito os casos que nos fornecem histórias de fecundidade. Os restantes oito casais incluem quatro filhos que parecem ter saído da freguesia, dois que morreram sem ter filhos e dois cujo destino é incerto. Contudo, é interessante verificar que a mulher membro de um destes últimos casais teve um filho ilegítimo em 1798, seis anos depois do casamento. No assento de nascimento da criança, o marido da mulher «adúltera» é dado como ausente em Espanha. No que se refere aos dezoito casais com histórias de fecundidade, os intervalos genésicos médios são os seguintes:
0-1 | 1-2 | 2-3 | 3-4 | 4-5 |
1,58 | 3,06 | 3,53 | 3,09 | 2,80 |
39São, de facto, intervalos excepcionalmente longos. Além disso, dos dezoito maridos mencionados faleceram em 1804, um com trinta e dois anos e outro com quarenta e quatro. Embora se trate apenas de uma consequência de doenças contraídas no estrangeiro — o que provavelmente não era raro — e que estes homens tenham tido bastante sorte por conseguir voltar para a freguesia para morrer, em vez de terem morrido sozinhos no estrangeiro.
40Os dados relativos à emigração nos finais do século XIX são muito mais concretos e, além disso, temos acesso a informação sobre determinados indivíduos, graças às fontes documentais e à história oral. Assim, vale a pena analisar este período com mais minúcia. O Quadro 4.12 apresenta os intervalos de parturição por período relativo a coortes de parturição, no que se refere às décadas compreendidas entre 1860 e 1949. Demonstra que os intervalos entre o segundo e o terceiro filhos e entre o terceiro e o quarto eram, no decénio de 1870, especialmente compridos, o mesmo se podendo dizer dos intervalos entre o segundo e o terceiro, durante a primeira década do século XX e entre o terceiro e o quarto filho, na segunda década deste século. O período a seguir à mudança de século é particularmente intrigante, uma vez que várias fontes apontam para um aumento acentuado do número de homens casados de Santa Eulália que emigraram para o Brasil durante essa fase.
41Obviamente, os números globais indicam a intervenção de uma variável que afectou as parturições em certas alturas. Também neste caso se pode conseguir uma melhor compreensão do fenómeno se analisarmos as histórias de fecundidade individuais em conjunto com os dados sobre as ausências documentadas nos Róis da Desobriga ou através da história oral (Quadro 4.13). Embora um pouco anteriores aos acentuados aumentos dos intervalos genésicos, as primeiras oito histórias de fecundidade do Quadro 4.13 (Grupo A) são escolhidas entre as mulheres de vinte e nove homens casados que foram dados como ausentes no Rol da Desobriga de 1850. Os intervalos assinalados com um asterisco abrangem o ano de 1850 e, na maioria dos casos, são excepcionalmente longos. Outras oito mulheres cujos maridos estavam ausentes em 1850 e que tiveram todos os filhos antes do meio século (Quadro 4.13, Grupo B), também apresentam intervalos excepcionalmente longos. Embora isto não seja comprovável, tudo nos leva a crer que a ausência destes homens em 1850 é provavelmente uma prova de ausências anteriores. Na realidade, três homens dados como ausentes em 1850 continuavam na mesma situação vinte anos mais tarde, altura em que já tinham todos mais de cinquenta anos.
42Depois de 1870, e como os róis se tornaram frequentes, as provas de emigração repetida são mais sólidas. Num caso após outro, ao longo dos finais do século XIX e princípios do xx, parece haver coincidência entre a ausência do marido da freguesia e um ou mais intervalos genésicos longos da mulher. No que se refere a todos os casamentos entre 1850 e 1910, em que um marido era dado como ausente pelo menos uma vez nos Róis da Desobriga ou em que a sua emigração pôde ser comprovada, através dos registos de passaportes, o intervalo médio entre o primeiro e o segundo filhos era 2,89 anos (84 mulheres) e entre o segundo e o terceiro, 3,98 (67 mulheres). Dado que os róis são a única fonte de informação contínua de que dispomos acerca da migração de indivíduos concretos, e os exemplos existentes desses documentos são esporádicos até à viragem para o século XX, esta lista é, na melhor das hipóteses, uma enumeração parcial dos migrantes sazonais ou temporários do sexo masculino. Sem dúvida, a lacuna entre 1870 e 1881 não nos permite confirmar uma ligação entre a migração masculina durante essa década e os maiores intervalos entre o segundo e o terceiro filho e entre o terceiro e o quarto que estão patentes na compilação a nível global apresentada no Quadro 4.12.
43No seu conjunto, as mulheres desta subpopulação de migrantes identificáveis estão de facto em contraste com a população total. Na realidade, quando se inverte o processo, seleccionando entre os coortes de casamento dos finais do século XIX e primeira década do XX as mulheres com histórias de fecundidade interrompidas (ou seja, com intervalos genésicos longos) e procurando depois informação acerca da migração, na maioria dos casos consegue confirmar-se a ausência do marido perto da altura esperada, com base nos elementos sobre a fecundidade. No que se refere aos coortes casados na primeira década do século XX, a relação entre intervalos genésicos intermédios longos e a emigração foi também estudada no campo através da recolha de histórias sobre a migração de homens «suspeitos». Pedimos a membros da família ou a conterrâneos que recordassem as ausências de certos homens, tendo-se verificado repetidamente que os períodos de ausência lembrados através da história oral tendiam a coincidir com uma ausência de que se suspeitava, com base na história de fecundidade da mulher. Em resumo, todas as provas tendem a fundamentar a conclusão de que as ausências sazonais ou temporárias dos homens casados tinham um impacte significativo sobre os níveis de fecundidade conjugal da freguesia, através do impacte sobre os intervalos genésicos. É possível que os homens tenham casado muito mais cedo na primeira década do século XX, mas o que é certo é que também emigraram mais e para mais longe.
44Que este tipo de comportamento se manteve até bem entrado este século é algo que alguns exemplos retirados do coorte casado na década de 1950 (Quadro 4.13, Grupo C) sugerem. No primeiro caso, sabemos que o marido emigrou para África em 1953, após o nascimento do segundo filho, e reemigrou em 1959, depois de o terceiro filho ter nascido. No segundo e terceiro casos, toda a família reside agora em França, mas os maridos estavam lá sozinhos entre os nascimentos do segundo e do terceiro filhos. No quarto caso, o marido emigrou primeiro para França em 1956, depois do nascimento do segundo filho. Continuou a emigrar sozinho na década seguinte, tendo permanecido o tempo suficiente na terra, pelo menos em duas ocasiões, para deixar a mulher grávida. O último caso é semelhante ao segundo e ao terceiro. O marido emigrou para França em 1958, depois do nascimento do segundo filho. Nos finais da década de 1960, a família foi viver com ele para lá. Estes cinco casos não são de modo algum únicos entre os casamentos celebrados em Santa Eulália durante a década de 1950, e sugerem que, tal como uma migração sazonal ou temporária para Espanha ou o Brasil afectou os coortes de casamento dos séculos XVIII, XIX e começos do XX, também a migração temporária para França afectou os coortes casados em meados do século XX.
45As migrações sazonais ou temporárias de homens casados tiveram obviamente um efeito ao fazer aumentar os intervalos genésicos, mas o mesmo se pode dizer doutras formas de migração mais duradouras que também produziram efeitos; referimo-nos a emigração que, embora iniciada como uma partida temporária, se tornou definitiva. Entre os casamentos celebrados em Santa Eulália há alguns em que se sabe que o marido emigrou e cuja morte não consta dos registos paroquiais. Como dissemos anteriormente, no fundo, estes homens deixaram as mulheres viúvas, mas viúvas que não podiam voltar a casar (se quisessem), porque o destino do marido no longínquo Brasil não era fácil de confirmar — daí a designação de «viúvas dos vivos», até que houvesse a certeza da morte dos maridos. Algumas voltavam a ver os maridos ao fim de muitos anos, mas as condições péssimas (em termos de saúde) da vida dos emigrados tinha causado muitos prejuízos: os homens voltavam para morrer, ainda novos. Muitos morriam no estrangeiro e a notícia era comunicada às famílias através da paróquia. Em qualquer destas situações, o resultado era o fim prematuro do casamento, frequentemente muito antes de a idade fértil das mulheres ter terminado.
46Ainda que os dados sobre a emigração anteriores aos finais do século XIX sejam escassos, há provas de que o final prematuro dos casamentos, devido à morte do cônjuge no estrangeiro, fazia provavelmente tanto parte da história demográfica do século XVIII como fez da dos dois séculos mais recentes. Por exemplo, Silvestre Castro casou com Maria Alves em 1721, quando tinha vinte anos, e ela, vinte e dois. Tiveram cinco filhos nascidos com intervalos de onze, dezassete, trinta e um, trinta e cinco e vinte e um meses. Embora não seja possível verificar se Silvestre esteve fora da freguesia durante algum tempo entre o nascimento do terceiro e o do quarto filho (o intervalo de trinta e cinco meses), sabemos isso sim, que faleceu em Espanha em 1734, com trinta e quatro anos. Maria tinha, na altura, trinta e seis anos e, se o marido tivesse vivido mais tempo, poderia ter tido pelo menos mais dois filhos, antes de a sua idade fértil ter terminado.
47Um caso semelhante é o de António Afonso Novo e Francisca Luísa Pereira, em meados do século. Casaram em 1746, quando ele tinha vinte e sete anos, e ela, vinte e um. Tiveram quatro filhos, com intervalos de vinte, vinte e quatro, trinta e sete e trinta e nove meses. António morreu em Espanha em 1757, deixando a jovem mulher viúva aos trinta e dois anos. Em 1764, Balthazar Pereira, de 22 anos, casou com Maria Alves Franco, seis anos mais velha do que ele. Em 1766, quase dois anos depois, o padre da freguesia foi notificado da morte de Balthazar, em Espanha. A mulher tinha trinta e três anos. Por último, na segunda metade do século XVIII, há o casamento de Manuel António Sousa e Susana Pereira, em 1781. Ele tinha trinta anos e eia, vinte e quatro. Tiveram dois filhos, o primeiro nascido dez meses depois do casamento e o segundo, vinte e nove meses depois do primeiro. Em Agosto de 1785, Manuel faleceu em Espanha, tendo deixado Susana viúva com vinte e nove anos.
48Os três exemplos que acabámos de citar envolviam todos mortes documentadas e há vários casos semelhantes ao longo do século XVIII. Relativamente ao período entre 1790 e 1809, em que julgamos que a emigração para Espanha aumentou, houve nove casamentos em relação aos quais não se encontra registada a morte do marido, embora todos os outros documentos (certidões de óbito das mulheres, casamentos e mortes dos filhos) indiquem que as suas famílias permaneceram na freguesia. Entre 1780 e 1799, 16% dos maridos faleceram antes de fazeram quarenta e cinco anos, comparados com 13% entre 1750 e 1769 e 2% entre 1810 e 1829. Seis dos quarenta e três homens que casaram durante a década de 1790 morreram nos primeiros dez anos de casamento. Ainda que isto não sejam provas seguras de uma emigração real durante os decénios de 1780 e 1790, esta é sem dúvida, possível.
49De meados do século XIX temos, entre outros, o caso de João Araújo. Ele emigrou em data imprecisa, por volta de 1870, e nunca regressou à freguesia, tendo deixado a mulher «viúva de vivo» aos trinta e seis anos de idade, com quatro filhos para criar (tinham tido mais três que morreram de tenra idade). Este modelo de emigração parece ter passado de pais para filhos. O filho mais velho, José, emigrou ainda solteiro, em 1892, com trinta e seis anos. O segundo, Antão, casou, em Outubro de 1899, com Maria Costa Pereira. Ele tinha trinta e oito anos e ela vinte e oito. Tiveram quatro filhos, com intervalos de nove, trinta e três, trinta e cinco e trinta e três meses. O último filho nasceu em Janeiro de 1909, quando Maria tinha trinta e sete anos. Na altura, Maria estava quase a chegar ao final da idade fértil, mas ainda não o alcançara. Antão partiu para o Brasil. Pode ter tido a intenção de regressar, mas, em 1913, a mulher teve um filho de outro homem. «Foi um escândalo» — recordou um dos velhos da freguesia — «e não pôde voltar por causa da vergonha. É claro que a ausência dele foi em parte a razão do mau comportamento dela».9 Pondo de parte as atitudes da comunidade, é, no entanto, claro que Maria não estava no final do período reprodutivo e, se o marido tivesse ficado junto dela, o casal poderia ter tido mais um ou dois filhos legítimos.
50Na realidade, ao alvorecer do século XX, os casos de mulheres abandonadas por maridos que haviam emigrado para o Brasil aumentaram extraordinariamente e poucos eram os que tinham a desculpa de João Araújo para não voltar. João Barbosa casou com Miquelina Sousa, a 2 de Dezembro de 1899. Tinham ambos vinte e um anos. Tiveram quatro filhos com intervalos de nove (1900), vinte e nove (1903), dezassete (1904) e quarenta e dois meses. O último filho nasceu em 1908, quando Miquelina tinha vinte e nove anos. Há um registo do óbito de Miquelina, com oitenta anos, em 1958 e assentos dos casamentos dos três filhos sobreviventes, mas não existe qualquer outra informação sobre o marido. Os Róis da Desobriga e elementos recolhidos através da história oral indicam que João esteve fora da freguesia em 1905 e 1907 — daí o longo intervalo entre o terceiro e o quarto filho — e que emigrou para o Brasil pela última vez em 1909, na companhia do irmão, que também deixou uma mulher bastante jovem (vinte e oito anos) e quatro filhos. Nenhum dos dois regressou. A explicação que os descendentes dão para este facto é que, ao contrário do que esperavam, não conseguiram enriquecer no Brasil e portanto «tinham demasiada vergonha para voltar». Mas, também neste caso, o resultado importante, em termos do nosso estudo, é que, antes de terem feito trinta anos, estas cunhadas deixaram de procriar, quando, se os maridos tivessem permanecido a seu lado poderiam ter tido pelo menos mais quatro filhos.
51A prática de deixar «viúvas dos vivos» manteve-se nas décadas de 1910 e 1920. Duas irmãs, Conceição Alves de Castro e Maria Alves de Castro casaram com intervalo de dois anos, a primeira, em 1913, com vinte e três anos, com um homem da freguesia de Esturãos, e a segunda, em 1915, com vinte e sete anos, com um rapaz de Vila Mou. Ambos os maridos eram filhos ilegítimos. Maria teve quatro filhos, durante os primeiros nove anos do casamento. Depois de o seu último filho nascer, o marido partiu para Espanha, donde nunca regressou. Conceição teve três filhos, o primeiro dos quais nasceu três meses depois do casamento, o segundo mais de sete anos depois, e o último um pouco mais de um ano após o segundo. A seguir ao primeiro filho ter nascido, o marido de Conceição partiu para o Brasil, onde permaneceu até depois da I Guerra Mundial. Regressou à freguesia em 1920. Conceição engravidou mais duas vezes. Perdeu a filha, nascida em 1921. Cinco meses depois de a segunda filha nascer, em 1924, o marido partiu de novo, desta vez para França. Nunca voltou. Para criar o filho e a filha, Conceição trabalhou para os Pimenta da Gama e efectuou ainda serviços como cozinheira, lavadeira e fiandeira. Quando a filha fez dezassete anos, foi com ela para Lisboa durante cinco anos, trabalhar como empregada doméstica, só regressando a Santa Eulália depois de a II Guerra Mundial ter terminado.
52Um exemplo ocorrido ligeiramente mais tarde, embora semelhante, é o caso da «Tia Olívia», que faleceu em 1981. Nascida em 1903, Olívia casou em 1927. Depois de ter visto a mulher dar à luz um filho, nove meses mais tarde, o marido de Olívia partiu para o Brasil. Cinquenta anos mais tarde, em Janeiro de 1979, regressou do estrangeiro e voltou para casa para morrer. Ao longo desses anos, Olívia trabalhou arduamente para criar o seu único filho, primeiro como jornaleira, nas principais casas de lavradores, mais tarde, indo recolher o leite a diversas casas da região e transportando-o até ao entreposto em Santa Eulália, e por último, abrindo uma pequena banca na feira, onde vendia pão e outros produtos alimentares. Além disso, era uma boa parteira que assistiu a numerosos partos ao longo dos anos, em Santa Eulália.
53Há exemplos de abandonos semelhantes no pós-guerra. O mais interessante, embora seja menos comum do que os casos estudados anteriormente, é o de Maria dos Santos. Maria era filha ilegítima de Gracinda dos Santos. Foi criada na casa do avô, com a mãe, tias solteiras e um tio e uma tia casados, e vários primos. Quando cresceu, veio a ser uma das mais bonitas raparigas da freguesia, pelo que teve muitos pretendentes que «andavam sempre atrás dos seus cestos de flores nos dias de festa». No Verão de 1952, quando estava quase a fazer vinte e dois anos, casou com Francisco da Silva, filho de uma família de lavradores desafogada e natural de uma aldeia próxima. Diz que nunca esperara casar tão cedo, que casou «por orgulho», porque as pessoas diziam que «era pobre e não podia vir nunca a ser mulher de um homem tão abastado».
54Maria e Francisco foram viver numa casa, na Corredoura, que pertencera aos bisavós de Maria. Porém, Francisco andava já com planos de emigrar para o Brasil e, um mês depois, partiu. Maria voltou para a casa grande no Lugar de Seara e trabalhou para pagar algumas das dívidas que o marido contraíra antes de partir. Cinco anos depois, foi ter com ele ao Brasil, onde permaneceu o tempo suficiente para conceber uma filha. Segundo ela defende, o marido «não a tratava bem» e não gostou do Brasil. Voltou para Santa Eulália a fim de ter a filha, Elisa, que agora já é crescida e casada. Elisa viu fotografias do pai, mas nunca o conheceu. Outras pessoas de Santa Eulália que regressaram do Brasil informaram Maria do paradeiro dele. Mas ele nunca voltou. Maria comentou uma vez: «Não sei se está vivo ou morto, se hei-de rezar pela sua saúde ou pela sua alma!». Na verdade, vive com um certo receio de que, um dia, ele possa aparecer à soleira da sua porta e ela tenha de assumir os seus deveres de mulher para com um homem que não vê há quase trinta anos. Entretanto, tornou-se uma mulher extremamente independente, que dirige uma casa cheia de irmãs idosas e solteiras. Naturalmente, não pôde voltar a casar. Nem pôde emigrar para França, para onde teve vontade de ir na década de 1960, a fim de fazer algum dinheiro. Até há pouco tempo, uma mulher tinha de ter a autorização do marido para obter um passaporte.
55Contudo, o caso de Maria dos Santos é quase único. Durante a década de 1950, casaram em Santa Eulália muitas mulheres cujos maridos emigraram para o Brasil e que se juntaram a eles. Por exemplo, António Castro, casou com Idalina Marques em 1954. Tinha vinte e quatro anos e ela, vinte e dois. Tiveram dois filhos nos três anos que se seguiram. No Inverno de 1957, António emigrou para o Brasil. Dois anos depois, em 1959, Idalina foi, com os seus dois filhos, ter com o marido ao Brasil, onde permaneceram. Nelda Rios, cujo pai passara três anos no Brasil nos finais da década de 1920, enquanto a mulher ficara na freguesia a criar os cinco filhos, fez o mesmo. O marido partiu pouco depois do nascimento do primeiro filho, em Outubro de 1955. Foi ter com ele em 1958. Todos os seus outros filhos nasceram e foram baptizados no Brasil, com excepção do mais novo, que foi baptizado em Portugal em 1968, quando estavam de visita ao país, nas férias do Natal. Nelda e o marido voltaram agora para Santa Eulália, já reformados, mas todos os seus filhos e dois irmãos seus e respectivas famílias permanecem no Brasil.10
56As oportunidades reais de emigração feminina chegaram com a emigração para a França. Numerosas mulheres casadas na década de 1950, cujos maridos faziam parte da primeira onda de portugueses que partiram para aquele país nos finais do decénio de 1950 e começos do de 1960, emigraram, em geral, com os maridos ou foram juntar-se-lhes pouco depois. Entre estas jovens esposas houve uma clara mudança de atitude no que se refere à definição do papel da mulher portuguesa e à relação que desejavam manter com os maridos. Já não aceitavam viver separadas deles, como potenciais viúvas dos vivos. Nos finais da década de 1960, entre os portugueses que entravam em França a imigração de famílias eclipsou a migração de homens que partiam para ganhar dinheiro. Essas mulheres arranjaram emprego no estrangeiro e, por conseguinte, complementavam os ordenados dos maridos não como trabalhadoras agrícolas, mas como assalariadas, sobretudo no sector doméstico.11 As suas experiências no estrangeiro, e as das jovens que emigravam ainda solteiras, estabeleceram uma base para mudanças futuras na vida das mulheres, incluindo a fecundidade, em todo o Norte de Portugal.
57Resumindo, embora sejam escassos os elementos pormenorizados sobre a emigração da freguesia de Santa Eulália anteriores à última parte do século XIX, as provas de que se dispõe sugerem de facto que, pelo menos durante dois séculos, o modelo de emigração portuguesa, predominantemente masculina, influenciou os níveis de fecundidade da freguesia. Mantém-se a questão; será que a emigração, juntamente com o casamento cada vez mais tardio e o aumento das taxas de celibato definitivo, era uma opção feita porque eram inconcebíveis outros mecanismos para reduzir a população — em especial o controlo da fecundidade? Talvez. Mas, e isto é o mais importante, quer como resposta a certas condições económicas, como expressão de determinadas ambições, quer como resultado de uma divisão tradicional do trabalho que tem raízes profundas, a emigração teve, sem dúvida, o efeito de reduzir a fecundidade e, portanto, contribuiu provavelmente para uma descida mais lenta dos níveis de fecundidade em Portugal inteiro, comparada com as de outras regiões da Europa ocidental. É, portanto, para a questão da transição demográfica que nos devemos voltar na última secção deste capítulo, porque, na realidade, não é de modo algum perfeitamente claro que as motivações para emigrar das gentes de Santa Eulália e do Norte de Portugal em geral sejam as mesmas que levaram ao controlo da fecundidade.
O Contexto Social E Cultura da Transição Demográfica em Santa Eulália
58Na maioria das outras regiões da Europa ocidental onde a transição demográfica se deu há mais de um século, os historiadores podem apenas fornecer as duas hipóteses fundamentadas acerca das razões por detrás das decisões individuais de reduzir a dimensão da família ou das causas possíveis de características demográficas específicas associadas à fecundidade limitada. Todavia, o atraso da descida em Portugal permite a utilização de técnicas de investigação sociológica e antropológica para detectar as mudanças de atitudes e comportamento social que precipitaram uma descida ou, inversamente, as atitudes ou sistemas sociais que mantiveram os modelos de fecundidade e outros comportamentos demográficos anteriores à descida.12
59Embora o casar tarde e a emigração tenham sido estudados como factores que influenciaram indirectamente o atraso da queda da fecundidade em Santa Eulália, em particular, e provavelmente de um modo geral, no Noroeste de Portugal, há uma série de factores não-demográficos alternativos que devem ser considerados. É no contexto de uma literatura teórica muito abundante, sobre essas alternativas, que gostaria agora de analisar o comportamento perante a fecundidade na freguesia de Santa Eulália.
60Uma abordagem possível para explicar a transição demográfica tem raízes na oposição entre motivações e técnicas. Esta dicotomia foi estabelecida pela primeira vez pelo demógrafo sueco Gosta Carlsson (1966), que defendeu que a transição da fecundidade deve ser encarada mais como uma situação em que mecanismos já consolidados de limitação da família são empregados pelos casais com vista a ajustar a fecundidade a um novo conjunto de forças estruturais ou motivacionais do que como um comportamento inovador decorrente do conhecimento e acesso a novos métodos de controlo da fecundidade. Ou seja, ele sugeriu que as técnicas, pelo menos algumas delas, já lá existiam e que foi uma mudança de atitudes que conduziu ao uso mais alargado dessas técnicas ou à procura de técnicas novas e mais eficazes.
61Mais recentemente, John Knodel (1977) propôs que não é uma questão de ajustamento ou inovação, mas sim de ambas as coisas, que a transição deveria ser considerada como o produto da sua coincidência, uma vez que algumas vezes actuam isoladamente e outras, em conjunto. O que Knodel defende, no que se refere directamente a Carlsson, é que, para apoiar a tese do ajustamento, tem de se afirmar que o controlo da fecundidade já estava presente numa população. Uma baixa fecundidade conjugal pode ser uma prova da sua presença, mas, segundo Knodel, não o é necessariamente. Como a secção três deste capítulo demonstrou, outros fenómenos podem produzir um resultado semelhante ao controlo da fecundidade, na ausência deste.
62Etienne Van de Walle (1980), num ensaio que, entre outras coisas, avalia os tipos de provas de que dispomos para determinar a amplitude e o carácter do controlo da fecundidade, tende a concordar com a conclusão de Knodel. «As motivações» — sustenta — «não são necessariamente tão fortes em todas as sociedades que permitam que a fecundidade desça — embora haja sempre indivíduos fortemente motivados nesse sentido». Acresce que a tecnologia de controlo da natalidade nem sempre é acessível, apesar de a literatura histórica descrever alguns métodos razoavelmente eficazes. Ambos os elementos têm de estar presentes para se conseguir uma queda da fecundidade. Inversamente, a falta de informação sobre ou de acesso a tecnologia de controlo da natalidade e/ou a ausência de incentivos à limitação da dimensão da família contribuirão para que a fecundidade se mantenha a níveis elevados.
63Na realidade, nem Knodel nem Van de Walle são particularmente inovadores na sua posição de compromisso. Há mais de uma década, Ansley Coale (1971) sugeriu que o problema da mudança estrutural contra a mudança tecnológica fosse encarado em termos de uma série de condições prévias que se devem verificar, para que se dê uma queda importante da fecundidade:
1. A fecundidade deve ser considerada um resultado de uma escolha consciente — ou seja, os casais devem estar cientes de que o controlo da dimensão da família, é simultaneamente possível e aceitável.
2. A redução da fecundidade deve ser vantajosa dentro de um dado contexto socioeconómico.
3. Devem estar ao alcance das pessoas técnicas eficazes de redução da fecundidade.
64Não obstante algumas divergências em relação a qual aspecto deve ser atribuída maior importância, há, obviamente, questões mais amplas que estão na base de todos estes argumentos: em que medida é que a descida da fecundidade (ou mesmo a diminuição da idade no casamento) é um sinal de mudanças estruturais e culturais significativas e em que consistem essas mudanças; em que medida é que a queda da fecundidade está ligada ao processo de modernização, e quais são as componentes dessa modernização que fazem que a fecundidade venha a ser considerada como uma consequência de uma escolha calculada e o seu controlo se apresente como vantajoso; será que o acesso a melhores formas de controlo da natalidade foi um factor decisivo e em que ponto é que estes métodos melhores substituíram os antigos, se é que substituíram?
65Na base destas questões mais amplas está outra oposição — entre modernização e cultura. Segundo aquela a que poderíamos chamar a opinião tradicional, a passagem de uma fecundidade elevada para uma baixa fecundidade tem sido associada a várias transformações sociais e económicas, geralmente atribuídas a um processo de modernização: urbanização, difusão da educação, mudança dos papéis das mulheres, uma importância crescente da família nuclear e até a secularização. Contudo, como foi mencionado na introdução a este capítulo, demógrafos como Coale começaram recentemente a contestar a aplicabilidade geral da teoria da modernização da transição demográfica, referindo que os níveis de modernidade entre países que se julga terem passado pela transição não são de modo algum iguais. A França destaca-se como um excelente exemplo do contrário — é um país onde a transição ocorreu logo no século XVIII, mas, na altura, ainda era em grande medida uma sociedade agrária.
66Como vimos, Livi Bacci (1971) chega à mesma conclusão no que se refere às diferenças regionais da fecundidade em Portugal, recorrendo à religião como factor mais determinante da manutenção de níveis de fecundidade elevados no Norte, em comparação com os do Sul. Não é certamente o único a tirar esta conclusão acerca do impacte da religiosidade (Lockridge 1984, Van de Walle 1980). Para alguns, a religião é um factor a ser incluído na modernização. Para outros, está mais estreitamente ligado a atitudes e crenças e, portanto, à cultura. O problema que se põe aos demógrafos é que a cultura, ou os «hábitos do espírito», como Van de Walle lhe chama, não é facilmente mensurável. Assim, a cultura torna-se frequentemente uma categoria residual que explica o que não pode ser explicado por diferenças socioeconómicas. Para muitos antropólogos, para quem as diferenças socioeconómicas são tanto parte da cultura como os «hábitos de espírito» com os quais estão relacionadas, essa abordagem é limitativa.
67Um segundo conjunto de teorias acerca da fecundidade e da transição demográfica tem que ver com a racionalidade económica. Todos eles defendem basicamente que a fecundidade é uma decisão baseada numa avaliação do número de filhos desejados (uma noção da dimensão «ideal» da família) no contexto do rendimento, dos preços, dos custos de criar os filhos e das regalias sociais a que se tem direito. Supõe-se que, com uma premeditação precisa e hábil, os casais decidem o número de filhos de que precisam e que podem sustentar. Parte-se do pressuposto de que os métodos de controlo da natalidade são acessíveis e que é uma mudança da noção do valor dos filhos em termos da contribuição que podem dar para o agregado familiar que é decisiva para provocar a transição. A tese da racionalidade tem sido repetidamente aplicada ao estudo de sociedades camponesas, sustentandose que tanto o trabalho como o amor dos filhos (em especial o auxílio na velhice) são obstáculos a que a limitação da família se torne desejável.13 Onde a produção familiar prevalece, preferem-se as grandes famílias.
68Caldwell (1982) reinterpretou recentemente a tese da racionalidade económica. Considera a transição demográfica mais como um resultado de mudanças sociais do que de transformações económicas. As transformações sociais têm fundamentalmente que ver com uma mudança de direcção dos «fluxos intrafamiliares de riqueza» já que são influenciadas por deveres para com a família — sobretudo, mas também pela educação — como adiante veremos.
69Estas teorias acerca das causas e carácter da transição demográfica levantam uma série de perguntas que podem e foram feitas à população de Santa Eulália, basicamente no decurso de entrevistas não estruturadas tanto a homens como a mulheres. Em geral, os aldeões de ambos os sexos sublinharam o facto de a existência de métodos eficazes de controlo da natalidade ser um fenómeno muito recente. Descreveram repetidamente o seu país como «pobre e atrasado». O coito interrompido e certas práticas populares de duche vaginal foram mencionados e alguns indivíduos podem ter recorrido a eles, mas não foram considerados divulgados nem completamente seguros. Os informadores do sexo masculino afirmaram que o primeiro método «retirava o prazer ao casamento». As mulheres comentaram que haviam ouvido falar do segundo método mas nunca tinham falado com ninguém que as pudesse ajudar nesse sentido. Na realidade, as mulheres tenderam a sublinhar a sua ingenuidade generalizada no que se referia à gravidez. «Naquele tempo não sabíamos nada. As raparigas eram inocentes quando casavam. Hoje, uma rapariga de doze anos sabe o que eu não sabia, mesmo depois de casada».
70O desconhecimento dos métodos de controlo de natalidade foi considerado por alguns informadores como uma maneira de os homens dominarem as mulheres (resposta feminina) e de os ricos dominarem os pobres (segundo tanto homens como mulheres). Por exemplo, uma mulher comentou: «(Os homens) precisavam de ter mulheres ignorantes. Depois, vinham os filhos. Eles são assim — querem encher o estômago vazio».
71A dominação foi também considerada o motivo por detrás das doutrinas anticontrolo da natalidade da Igreja Católica Romana. Ao encorajarem os pobres a terem famílias numerosas, a pobreza perpetuava-se e o status quo mantinha-se. As mulheres mais velhas em especial reconheciam que acreditavam que evitar ter filhos era pecado. O medo que isso gerava no decurso da confissão, quando algumas mulheres eram interrogadas sobre as razões por que tinham poucos filhos, era levado para o leito conjugal. Por exemplo, uma mulher que teve apenas dois filhos, reconheceu ter dito ao padre que o marido não queria mais: «Não ia confessar-me para mentir». Foi severamente repreendida. Do ponto de vista masculino, era através das esposas que a Igreja controlava as suas vidas. Há que recordar, é claro, que estas respostas surgem hoje, durante um período em que a influência do pároco da freguesia está a mudar. Porém, atestam o poder que a Igreja e os seus representantes tinham sobre a população na sua maioria analfabeta, num passado ainda não muito distante e foca um aspecto da maneira como a religião influencia o comportamento perante a fecundidade.14
72O papel da Igreja e da religião no que se refere à ausência de uma capacidade real de controlar a dimensão da família tem de ser apreciado a outra luz. Para informadores mais idosos, sobretudo do sexo feminino, as perguntas feitas por nós sobre a dimensão da família ideal parecem fazer pouco sentido. Schneider e Schneider (1984) registaram uma reacção semelhante entre os Sicilianos. Em geral, o número de filhos que cada pessoa tinha era encarado como um aspecto que não era nem previsível nem controlável. Isso «era com Deus» ou «o que decidisse dar-me». Este elemento de fatalismo impregna o Português falado pelas populações rurais. Uma coisa só acontece «se Deus quiser». Se isso é racional ou não, é irrelevante. A tese de Caldwell (1982) de que estas referências a Deus e à religião podem «estar mais perto da verdade» do que as explicações numéricas para as decisões sobre fecundidade aplicava-se de facto à gente de Santa Eulália, até bastante recentemente.
73Se houvesse os meios necessários — ainda que fossem os mais velhos e simples — não é seguro que a população de Santa Eulália estivesse necessariamente motivada para os utilizar nem que estivesse particularmente motivada para formar famílias numerosas. Por exemplo, uma mulher que casou no início da década de 1950 estabelecia uma distinção entre viver no campo e na cidade. Pouco depois do casamento, ela e o marido, que era Guarda Republicano, foram para Lisboa. Viviam num quarto pequeno e, a seguir ao nascimento do primeiro filho, ela procurou informar-se sobre como evitar engravidar de novo porque «no sítio onde vivíamos não havia espaço para mais filhos». No campo, disse ela, «há mais espaço e as crianças podem andar à vontade. Estão seguras e há muita gente à sua volta que pode olhar por elas». O que está implícito na sua declaração é que, no campo, havia menos motivações para limitar a dimensão da família, embora, por razões pessoais, alguns indivíduos estivessem confessadamente muito motivados. Se as gentes de Santa Eulália atribuem o conhecimento recente do controlo da natalidade aos emigrantes que voltam de França, é evidente que não só no estrangeiro há acesso a novas técnicas mas também que é lá que se geram novas motivações, incluindo a que decorre do espaço limitado e da alienação da vida urbana em cidades como Paris, Lião e Marselha.
74Se há bastante recentemente não havia motivações fortes e predominantes para limitar a dimensão da família, que dizer da situação inversa? Será que os camponeses, artesãos e jornaleiros estavam motivados para ter famílias numerosas? É uma pergunta difícil de fazer, porque também neste caso os aldeões mais idosos não consideram necessariamente esse aspecto como algo sobre que tivessem qualquer controlo («aceitamos o que Deus nos der») e os jovens estão já influenciados pela preferência por famílias pequenas. Alguns aldeões mencionaram a aprovação de famílias grandes demonstrada pelo Estado sob a forma de prémios às mulheres com muitos filhos, durante o período de Salazar. Contudo, isto é um fenómeno relativamente recente. Os dados históricos subestimam, sem dúvida, a noção dos filhos como mais uma fonte de trabalho ou rendimento na meia idade e como fonte de segurança na velhice. No entanto, estes incentivos seriam suficientemente fortes para influenciar o comportamento perante a fecundidade? É impossível responder a esta pergunta sem voltar a focar o carácter do sistema social e económico do Noroeste de Portugal.
75Na realidade, é difícil ver as vantagens de uma família numerosa, numa região que tem um excesso de população desde o século XII e que tem sido emparcelada desde quase a mesma altura. Parcelas com uma área em média inferior a um hectare poderiam ser facilmente cultivadas por um casal e um filho.15 Além disso, se os filhos tinham um valor económico para o modo de produção familiar, por que eram mandados para o estrangeiro ainda tão jovens? É certo que, como emigrantes ou jornaleiros, contribuíam para o rendimento da família, quer entregando os salários, quer através do envio de remessas. Esse dinheiro permitia, em alguns casos, a compra e/ou arrendamento de novas parcelas de terra ou de mais animais. Todavia, provavelmente, o número dos que encaminhavam fielmente o fluxo de riqueza para a geração paterna era igual ao dos que os pais perdiam para sempre. Acresce que, a certa altura, pelo menos alguns filhos exigiam uma compensação dos pais pelo seu trabalho. Isto é evidente nos testamentos que faiam de salários devidos aos filhos. Os filhos que mandavam trabalhar por conta de outrém no serviço doméstico ou no campo, como criados, ganhavam pouco mais do que o seu próprio sustento. A riqueza só fluía de volta para a família de origem no sentido de que esta era aliviada do fardo de sustentar aquele filho. Em resumo, se bem que o Noroeste de Portugal e Santa Eulália se caracterizassem por um modo de produção familiar (em contraste com o modo capitalista no Sul do país), em geral, passava-se a uma escala suficientemente pequena para tornar a ligação motivacional entre este modo de produção e o desejo de famílias numerosas, ténue. Contudo, a tese de Caldwell dos fluxos de riqueza entre gerações não pode ser inteiramente posta de lado, pois é certo que o valor dos filhos como segurança social na velhice foi grande no Noroeste de Portugal.
76O facto de analisarmos a relação, a nível das motivações entre a exploração agrícola familiar e as famílias numerosas não diminui a necessidade de estudar mais a fundo o impacte de diferenças socioeconómicas regionais específicas na fecundidade. A um nível global, é impossível compreender por inteiro algumas das diferenças mais subtis entre o sistema de agricultura proletário rural do Sul de Portugal e o sistema camponês do Norte, e em especial a maneira como este sobreviveu devido à emigração. Até muito recentemente, a emigração do Sul era rara, e a que hoje existe assume fundamentalmente a forma de partida definitiva para Lisboa. Este assunto deve ser melhor analisado, aguardando-se certamente um estudo mais intenso das comunidades do Sul de Portugal semelhante ao que realizámos sobre uma comunidade do Noroeste. No sistema proletário do Sul, há um fosso muito maior entre reprodução e produção, entre os que detêm o poder económico, que são quem ganha mais com a produção, e as famílias de trabalhadores que só têm controlo sobre a sua própria reprodução. As famílias são, em geral, nucleares e o fluxo de riqueza dá-se entre o proprietário da terra ou o seu representante e o jornaleiro. O trabalho é sazonal, em grande parte devido a dedicarem-se a culturas de exportação, como a cortiça e a azeitona, e o desemprego é elevado. Em suma, não há nenhuma razão óbvia para famílias mais numerosas, quando os rendimentos da família estão fora do controlo da mesma. Não obstante a progressiva proletarização do Norte, durante a última metade do século XIX, no Sul, era maior a proporção de pessoas que não tinham questões de heranças a resolver, não havia restrições ao casamento precoce nem uma ideologia que impusesse que era necessário possuir terras para casar (terras que no Norte eram conseguidas através da emigração ou do arrendamento). Assim, uma solução sob a forma de limitação da família teve de chegar mais cedo e, ao contrário do que se passou no Norte, não foi impedida pela força das instituições religiosas. É neste sentido que a cultura não é apenas uma questão de crenças e valores (inclusive de crenças religiosas), mas todo o sistema social e económico.
77Foi estabelecido por vários demógrafos que, embora a tendência decrescente final da fecundidade começasse em Portugal na década de 1930, no Norte do país e em Santa Eulália, foi posterior. No que se refere a novas motivações, a gente da freguesia atribui a mudança de atitude fundamentalmente à educação. A educação é importante em dois aspectos. Para os adultos, é a base de uma maior sensação de controlo sobre as suas próprias vidas. Corrói o sentimento de fatalismo condensado numa concepção religiosa do mundo. Em resumo, a educação combate a ignorância. Enquanto a frase «educar os filhos» antes queria dizer ensinar os filhos a ter boas maneiras e respeito, agora tem o significado de lhes dar acesso ao ensino. Assim, os pais de Santa Eulália estão hoje ansiosos por proporcionar aos seus filhos educação e um futuro melhor. Estabelecem uma relação clara e bastante consciente entre menos filhos e a capacidade de alcançar esse objectivo. Contudo, é uma ligação feita no contexto de um mais fácil acesso ao sistema educativo, de uma maior prosperidade e de uma menor dependência da agricultura «que não dá nada». Um informador disse: «hoje em dia o maior pecado é não ter o suficiente para dar de comer a todos os filhos». Num certo sentido, há uma mudança nas obrigações que talvez possa ser designada como uma mudança de direcção dos fluxos de riqueza associada a transformações relativas aos papéis dos filhos (Caldwell 1982). Antigamente, se a estação o exigisse, os filhos não iam à escola para ajudar os pais no campo. Actualmente, isso já não acontece, não só devido à nova legislação do Estado que tornou o ensino obrigatório, mas também em virtude do novo valor atribuído à educação. Obviamente, a educação é um tipo de investimento num filho diferente daquele em que um filho como migrante, jornaleiro ou mais dois braços poderia significar a compra ou arrendamento potenciais de mais uma parcela de terra. A educação tem outras ramificações, a principal das quais é a mobilidade social ascendente. Se o ensino afasta os filhos do trabalho manual não especializado e do trabalho agrícola, alcançou os seus objectivos, para esta nova geração de pais.
78A gente de Santa Eulália não hesita em referir que hoje os casais «só têm os filhos que querem». Esta afirmação condensa sem dúvida uma dimensão ideal de família. Atribuem a mudança de atitude ao «modernismo» e com esta palavra abrangem os métodos mais recentes de controlo da natalidade. Todavia, também não hesitam em mencionar que a Igreja Católica também mudou de discurso. Evitar ter filhos já não é pecado. Só o aborto é pecado. Assim, paralelamente aos novos valores que sublinham a importância da educação de menos filhos, a crescente aversão pelo trabalho no campo e as alternativas vantajosas oferecidas em especial pela emigração para França houve uma reformação da própria doutrina da Igreja.
79O impacte desta mudança na transição demográfica em Santa Eulália não deve ser subestimada, pois tornou a limitação da família em algo pensável. As pessoas da freguesia podem continuar a ser religiosas (no sentido de sentirem que não estão a pecar) e controlar activamente o número de filhos que têm. O facto de escolherem cada vez mais métodos não aprovados pela Igreja Católica é um sinal de uma mudança de grande alcance do carácter da crença religiosa. Tal como os católicos americanos, os católicos portugueses estão hoje a escolher dessas doutrinas as que seguem e as que ignoram. Muitos entendem e não se coíbem de o afirmar que, ao contrário do que acontecia no passado, a Igreja não tem o direito de se meter na vida privada das famílias. No entanto, continuam a casar pela igreja, a baptizar os filhos e a dar dinheiro às várias confrarias para poder ter um enterro decente.
80Em geral, os dados recolhidos no campo, em Santa Eulália, confirmam o modelo tripartido de transição demográfica definido por Coale. Com transformações da doutrina católica, a limitação da família torna-se aceitável. Estabelecidos novos objectivos para o progresso social e económico dos filhos, a limitação da família torna-se vantajosa. Com o acesso a novas técnicas, sobretudo depois da queda do regime de Salazar, a limitação da família tornou-se possível.
Conclusão
81Alguns estudos recentes de regimes demográficos da Europa ocidental apontaram para o significado da emigração como um factor que contribui para uma descida mais lenta da fecundidade (Livi Bacci 1977, Knodel 1974). Neste capítulo, foi ilustrada a dinâmica deste impacte, fundamentalmente a nível individual. A um nível global, o resultado destes comportamentos individuais era algo que parece um sistema demográfico susceptível de se auto-equilibrar e caracterizado por um crescimento baixo ou mínimo que pode ser facilmente interpretado como uma tentativa consciente de controlo da população. Contudo, para os homens casados em particular, a migração não era uma tentativa nem deliberada nem consciente de limitar a dimensão da família, mas sim uma resposta a pressões económicas exercidas sobre as novas famílias jovens, e é feita no contexto de uma divisão tradicional do trabalho, segundo a qual os homens migravam e as mulheres ficavam em casa a trabalhar no campo e a criar os filhos. Porém, em face do impacte destas decisões individuais de emigrar na fecundidade do conjunto da população, é legítimo interrogarmo-nos sobre o que destruiu o sistema e levou ao período de crescimento da população depois de 1920 e ao facto de, em 1960, Portugal e em especial o Norte do país terem uma das taxas de fecundidade conjugal mais elevadas da Europa ocidental.
82As tentativas de David Heer (1966) de conciliar as interpretações Malthusiana e económica dos efeitos da prosperidade na fecundidade são extremamente úteis para sugerir um possível enquadramento da análise. Heer defende que, numa fase inicial do desenvolvimento económico e da modernização, é mais provável que a fecundidade aumente (a curto prazo) e que, assim que todas as outras transformações sociais associadas ao desenvolvimento comecem a ocorrer, o resultado a longo prazo é uma queda da fecundidade. Por vários sinais, e não obstante a Depressão e a II Guerra Mundial, a situação económica da população de Santa Eulália começou a melhorar nesta altura. Foram construídas novas escolas, foram melhoradas as estradas que ligavam a freguesia à cidade e o mercado e, durante a II Guerra Mundial, houve quem fizesse muito dinheiro, em termos da freguesia, com as minas de estanho.
83À hipótese de Heer pode acrescentar-se a tese de Macfarlane (1980b) de três modelos diferentes de populações de pré-transição. Ao primeiro modelo chama «clássico» — uma sociedade em que a elevada mortalidade diminui, a fecundidade tem de descer também, de modo a alcançar um novo ponto de equilíbrio. Ao segundo designa-o por modelo «de crise» — uma sociedade em que os nascimentos excedem as mortes e os excessos de população são periodicamente eliminados por meio da guerra, da fome ou da doença. Estes acontecimentos de crise restabelecem um equilíbrio tolerável. Quando são eliminados, há que encontrar uma nova solução e essa solução é o controlo da fecundidade. O terceiro modo é um modelo homeostático — «uma sociedade em que a fecundidade e a mortalidade estão abaixo dos seus possíveis tectos». Nestas últimas sociedades, uma subida de fecundidade, possivelmente resultante de uma queda da idade no casamento, seria o estímulo para uma transição futura. Segundo Macfarlane, o último modelo é mais característico de sociedades em que «o individual prevalecia sobre o grupo». Também sustenta que o facto de predominar um dos modelos depende das culturas demográficas regionais das populações de prétransição, e que estas culturas variam, dependendo de factores como a maneira como se processa a posse da terra, o modo como se definem as famílias e a maneira como se transmitem os bens. Obviamente, foi este último modelo homeostático que prevaleceu em Santa Eulália. O elemento de individualismo está presente na liberdade de escolha ligada à herança e na prevalência da emigração como uma solução individual ou no máximo da família nuclear para a pressão económica a que estava submetido. Assim, uma possível resposta à subida das taxas de nascimento e de fecundidade depois de 1920 tem três vertentes: estavam a verificar-se transformações económicas e sociais que facilitavam o casar mais cedo; as migrações sazonais e para longe diminuíram, se é que não terminaram praticamente nas décadas de 1930 e 1940; não havia ainda a adopção consciente de qualquer tipo de limitação da família porque outros factores «inconscientemente racionais» (idade no casamento, emigração, celibato definitivo) tinham desempenhado o papel da limitação da família para compensar o crescimento da população. Além disso, houve algo que contribuiu para que o controlo eficaz da natalidade não fosse generalizadamente aplicado: a criação do Estado Novo de Salazar, em 1932. O Estado Novo voltou a colocar a Igreja Católica numa posição poderosa no que se referia à vida social do país. Basicamente, a Igreja manteve-se nesta posição até à revolução de 1974.
84As consequências das taxas de natalidade crescentes depois de 1920 são bem evidentes: a escalada da emigração das décadas de 1950 e 1960, à medida que os coortes de nascimento do período posterior à I Guerra Mundial atingiam a maturidade. Na verdade, foram definidas na altura novas políticas de fixação nas «províncias ultramarinas» africanas, em parte como uma solução para o problema da população aconselhada por razões políticas. Acresce que, felizmente para Portugal, os países do Norte da Europa, estavam a atravessar um período de crescimento económico a seguir à guerra e necessitavam desesperadamente de mão-de-obra. Nos anos entre 1960 e 1974, só a França aceitou perto de um milhão de imigrantes portugueses. A descida de quase 4,5% da população de Santa Eulália entre 1960 e 1970 mostra claramente que a emigração para o Noroeste da Europa era também uma solução para esta freguesia. Assim, o ciclo repetia-se, de tal modo que, nos meados do século XX, as zonas de Portugal com maior emigração eram, ao mesmo tempo, as que apresentavam uma fecundidade mais elevada.
85Contudo, no mundo de 1980, caracterizado pelas limitações do mercado de trabalho, a migração já não pode servir, nem a Portugal nem a Santa Eulália, como panaceia para a pressão populacional. Por outro lado, os casais jovens já não aceitam a divisão de trabalho tradicional que mantinha tantos maridos e mulheres geograficamente separados durante inúmeros anos da sua vida de casados, desde 1700 até aos nossos dias. Em consequência disso, começaram a surgir no Portugal moderno esforços individuais, deliberados e conscientes de controlo de natalidade, facilitados pela queda do salazarismo, em 1974. A explicação dada na freguesia para a nova geração de casais é que «aprenderam isso em França». O conhecimento trazido desse país exerceu pressão sobre o governo português para que este desempenhasse um papel activo — em vez do papel historicamente passivo representado pela emigração — no controlo da população e, nos finais da década de 1970, foi finalmente introduzido um programa de paternidade planeada.
Notes de bas de page
1 Ver o desenvolvimento desta linha de pensamento apresentado por Knodel, no seu artigo de 1977.
2 Cândido (1969) chega a uma conclusão semelhante.
3 Vários outros demógrafos históricos fizeram recentemente afirmações semelhantes nos seus trabalhos sobre outras regiões da Europa ocidental. Van de Walle (1980:172), por exemplo, sugere que a prolongada resistência à adopção do controlo da natalidade por populações que, se não fosse isso, teriam sido motivadas a favor dela, pode ter estado ligada a certos «aspectos filosóficos e religiosos» que o tornaram simplesmente impensável. Kenneth Lockridge (1984) e os seus colegas da Suécia estudaram as diferenças regionais no processo de secularização e a sua relação com os modelos de fecundidade. As regiões com elevada fecundidade tendem a coincidir com regiões de baixa secularização e vice-versa. Ver também Lesthaeghe (1977).
4 Até Friedlander reconhece que não se trata de uma ideia nova, comentando que remonta à concepção da emigração como uma «válvula de segurança» perante a pressão populacional.
5 Os casos individuais em que a morte do marido no estrangeiro ou a sua partida definitiva não puderam ser confirmados através da história oral ou de qualquer outro documento foram excluídos do cálculo das taxas específicas etárias baseadas na reconstituição de famílias (seriam classificadas como famílias «incompletas»). No entanto, esses casos teriam, naturalmente, um efeito em qualquer tipo de cálculo global da fecundidade.
6 É simplesmente uma sugestão minha. Na realidade, quando expus ao actual pároco da freguesia a possibilidade de um homem nascido noutra freguesia mas casado com uma mulher de Santa Eulália poder ter sido, apesar de tudo, enterrado na freguesia donde era natural, ele rejeitou a ideia como sendo totalmente oposta ao costume. Um homem, insistiu ele, prefere ser enterrado onde passou a sua vida adulta, ao lado da mulher e dos filhos. Inversamente, quando uma mulher de Santa Eulália ia viver com o marido para outra freguesia, era aí que era enterrada.
7 O estudo (1884) de Massey e Mullan acerca da migração sazonal selectiva a nível de sexos da cidade de Guadalupe, no México, chegou ao meu conhecimento, depois de ter terminado este manuscrito; confirma a hipótese simulada de Menken. Também demonstra a existência de uma diferença interessante entre os níveis de fecundidade das mulheres cujos maridos são migrantes legais e aquelas cujos maridos são migrantes clandestinos. O primeiro grupo, em que os maridos permanecem longe durante períodos mais longos, tem uma taxa de fecundidade mais baixa.
8 A literatura sobre estes factores culturais é rica. Ver, por exemplo, Nag, 1976.
9 Embora, com este comentário, este informador quisesse dizer que Maria não tinha nenhum homem ao seu lado que «controlasse» o seu comportamento, há outra observação a fazer. Dada a regularidade dos nascimentos, de dois em dois anos ou de dois anos e meio em dois anos e meio, de uma mulher cujo marido estivesse presente, teria havido poucas oportunidades entre a gravidez e a amamentação para uma mulher casada se envolver em relações extraconjugais e se arriscar a ter um filho. Acresce que, se o marido estivesse presente, o filho teria sido considerado dele, a não ser que protestasse violentamente.
10 O pai de Nelda, António, regressou do Brasil em 1958, quando a sua filha mais nova, ainda solteira, decidiu ir para lá, para se juntar à irmã. Foi acompanhá-la, mas permaneceu lá quatro anos, a trabalhar com o genro que era dono de um estabelecimento comercial. Hoje vai ao Brasil visitar os filhos e netos — «nem sempre lá, nem sempre cá». Outro genro, que passou algum tempo em França, voltou para Santa Eulália para abrir uma carpintaria. António trabalha por vezes com ele. A família Rios sempre emigrou. O pai de António viveu algum tempo em Espanha, no Brasil e em França, durante e depois da I Guerra Mundial. Contudo, nem a mãe nem a mulher dele foram alguma vez para o estrangeiro.
11 Para um estudo mais profundo do papel das mulheres na emigração portuguesa para França, ver Brettell 1978, 1982.
12 Sune Akerman e os seus colegas da Universidade de Uppsala, na Suécia, adoptaram essa abordagem. Algumas zonas do Norte da Suécia também atravessaram a transição demográfica neste século, suficientemente tarde para que tivesse sido possível realizar entrevistas em conjugação com a reconstituição de famílias. Estão a tentar descobrir em que momento se tornou aceitável e até passou a estar na moda limitar a dimensão da família e porque. Ver também Schneider e Schneider (1984).
13 Ver Mamdani (1972) e Mueller (1976) para opiniões alternativas acerca desta questão. Mamdani defende, naquilo que é fundamentalmente um estudo do insucesso do planeamento familiar na Índia, que o que é racional o é num contexto cultural.
14 Embora os argumentos de McLaren (1984) a favor da presença de métodos conscientes e deliberados de limitação da família no passado histórico sejam convincentes, ignora o impacte potencial de uma grande instituição como a Igreja Católica.
15 Lehning (1984) defende um argumento semelhante, no seu estudo da região do Loire, em França, onde as explorações agrícolas são também pequenas. Ver também Schneider e Schneider (1984).
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