Capítulo III. Família e Agregado Familiar: Nupcialidade em Santa Eulália
p. 115-183
Texte intégral
Introdução
1Em Junho de 1882, Maria Alves da Costa casou, com uma dispensa, com um primo em segundo grau, Manuel Martins. Tinha trinta e dois anos e era a filha mais velha das duas que o casal formado por José Correia e Ana Maria da Costa tivera. O noivo tinha quarenta e quatro anos, era o segundo filho dos oito (seis dos quais estavam vivos) de Manuel Martins e Maria Franca. Tanto Maria como Manuel casavam pela primeira vez e, depois do casamento, ficaram a viver com a mãe de Maria, que era viúva. Durante a década seguinte, tiveram três filhos, dois dos quais (um rapaz e uma rapariga) sobreviveram à infância. O filho, nascido em 1887, casou em 1907 e trouxe a mulher para casa dos pais, onde ficaram a viver; entretanto, Manuel tornara-se chefe de família, após a morte da sogra, em 1906.
2Manuel e Maria provinham ambos de famílias de lavradores com uma longa tradição em Santa Eulália. Embora desconheçamos qual a área que as suas respectivas famílias possuíam e cultivavam, a mãe de Manuel era uma das sete famílias de lavradores mais importantes mencionadas no arrolamento de bens de 1871, enquanto a mãe de Maria, viúva, podia ser classificada como uma pequena lavradora. Os registos históricos são omissos quanto às razões pelas quais Manuel esperou até aos quarenta anos para casar ou por que escolheu unir-se a uma parente, doze anos mais nova do que ele.
3Contudo, sabemos, isso sim, um dado fundamental acerca de Manuel. Dez anos antes do casamento, em Junho de 1872, Manuel emigrou para o Brasil com seu irmão João, mais novo do que ele seis anos. No Rol da Desobriga de 1881, João e Manuel são ainda dados como «ausentes»; o mesmo se passava com mais outros dois filhos solteiros de Maria Franca, António e Joaquim. Na realidade, o único filho que voltou para Santa Eulália para casar foi Manuel; os restantes nunca mais regressaram à freguesia. Enquanto Manuel foi viver com a família da mulher depois de casar, a sua única irmã e mais nova de todos os filhos do casal, Maria, ficou com a mãe; casou em 1881 (com trinta e dois anos) e trouxe o marido (mais novo do que ela quatros anos) para casa da mãe. Este casal teve três filhas, a mais velha e a mais nova das quais morreram solteiras, respectivamente em 1975 (com noventa e dois anos) e 1972 (com oitenta e cinco). A filha do meio casou em 1915, quando tinha trinta anos.
4Pouco mais de um século antes do casamento de Manuel Martins e Maria Alves da Costa, os bisavós daquele, António Correia e Maria Alves da Costa, casaram. Ele tinha vinte e quatro anos e era o sexto dos nove (embora fosse o segundo mais velho dos que sobreviveram à infância) filhos de António Correia e Quitéria Rodrigues, um casal de Santa Marinha Geraz de Lima, do outro lado do rio, que se fixara em Santa Eulália. Isabel tinha vinte e oito anos e era a filha mais velha de Francisco da Rocha, natural de uma aldeia próxima, e Maria Alves Lima, de Santa Eulália. A sua mãe tinha dezasseis anos quando casara, trinta anos atrás; porém, a sua avó materna casara quase na mesma idade do que ela (com vinte e nove anos), havia mais de um século, mais precisamente em 1719. António e Isabel tiveram cinco filhos, quatro dos quais cresceram e casaram em Santa Eulália. Todos eles andavam na casa dos vinte e tinham já constituído família quando os pais faleceram. O terceiro filho, João, o avô paterno de Maria Alves da Costa, foi o último a casar e o herdeiro da casa paterna e do terço do pai.
5Estes casamentos ao longo de várias gerações de uma determinada família ilustram muitas das características da nupcialidade em Santa Eulália. Mostram algumas variações da idade no casamento ao longo do tempo e entre indivíduos. Sugerem uma relação entre propriedade, idade no casamento e emigração que talvez não seja tão directa como até aqui se tem suposto. Aludem ao celibato feminino definitivo como um fenómeno que não deve ser ignorado. E, por último, sugerem a existência de agregados familiares múltiplos. Todos estes aspectos do casamento são abordados neste capítulo.
Quando Casavam os Habitantes de Santa Eulália: Tendências Gerais Relativas à Idade no Casamento
6Talvez a diferença mais significativa entre Manuel Martins e Maria Alves da Costa e os seus bisavós António Correia e Isabel da Rocha residisse na idade a que casaram, uma diferença que, pelo menos neste exemplo, é mais acentuada no que se refere aos homens. Embora haja diversas flutuações a curto prazo na idade média no casamento na freguesia de Santa Eulália, entre 1700 e os nossos dias, de um modo geral, a idade dos homens no casamento aumentou entre 1720 e 1780 e desceu abruptamente durante a década de 1780; subiu de novo nas duas décadas seguintes, desceu até alcançar os níveis de meados do século XVIII, entre 1810 e 1840, e em seguida sofreu um aumento acentuado e constante para níveis nunca antes atingidos, no final do século XIX. (Figura 3.1). A idade média no casamento correspondente às mulheres seguiu em geral as flutuações sofridas pela dos homens, excepto no período entre 1800 e 1820, em que evoluiu em sentido oposto. É provável que o que causou as variações durante este período (provocando essencialmente um aumento a curto prazo de idade dos homens no casamento) tenham sido as invasões francesas. A tendência decrescente para ambos os sexos verificou-se já no nosso século; contudo, a idade média das mulheres no casamento manteve-se em vinte e seis anos até muito tarde, até 1940!
7Os níveis mais elevados, tanto no que se refere a homens como a mulheres foram alcançados nas últimas décadas do século XIX (Quadro 3.1).1 Entre 1870 e 1879, por exemplo, as mulheres casavam, em média, 4,4 anos mais tarde do que o tinham feito cinquenta anos atrás; para os homens, a diferença era de 4,8 anos. A idade média masculina no casamento alcançou o seu ponto mais alto — quase trinta e dois anos — durante a última década do século passado, quando a idade média das mulheres no casamento iniciara um decréscimo gradual. Durante a primeira década do nosso século, a idade média dos habitantes de Santa Eulália à data do casamento desceu acentuadamente (cerca de 4,0 anos), o que torna o apogeu atingido no final do século XIX ainda mais intrigante. Outro factor importante a assinalar é que as idades médias e medianas relativas aos homens e às mulheres diferem mais nas últimas décadas do século XIX do que em qualquer das seis ou sete décadas anteriores. Verifica-se uma diferença semelhante para os homens, entre 1790 e 1809, e para as mulheres, entre 1800 e 1819.
8Há que se ser cauteloso em relação a estas idades medianas de solteiros ao l.° casamento. Se se omitir do cálculo a idade média de indivíduos solteiros que casam com viúvos ou viúvas (normalmente, essas idades são tidas em consideração), a idade média, em especial a das mulheres, é consideravelmente diferente durante determinadas décadas (Figura 3.1 — Mulheres Ajustadas), sendo a diferença com frequência de mais de um ano e numa década até de dois anos. Ao longo de quase toda a primeira parte do século XVIII, a idade média das mulheres no primeiro casamento rondava os vinte e seis anos, e as médias — que se aproximavam dos vinte e sete e vinte e oito antes de 1770 — pecam por excesso devido ao número de mulheres mais velhas que casaram com viúvos. Se não tivessem casado com esses viúvos, talvez não se tivessem casado nunca. Inversamente, as elevadas idades no casamento no final do século XIX, especialmente nas décadas de 1870 e 1890, e bem assim o lento decréscimo até 1950, quase não são afectados pelas segundas núpcias de viúvos, apesar de o número de viúvos que voltaram a casar com mulheres solteiras ter sido praticamente igual entre 1760 e 1800 e 1860 e 1900. Convém notar, no entanto, que a descida da idade média ajustada no primeiro casamento relativa à mulher, durante a primeira década do século XX, é bastante mais significativa.
9As distribuições de frequência da idade de solteiros no l.° casamento ilustram de uma maneira ligeiramente diferente o apogeu alcançado nos finais do século XIX que já foi mencionado (Quadro 3.2). Durante as últimas três décadas do século XIX, aproximadamente, um quarto de todos os homens que casavam pela primeira vez em Santa Eulália tinham mais de trinta e cinco anos, o que constitui uma proporção que não se verificou em nenhuma década anterior ou posterior. Quanto às mulheres, um pouco mais de um quarto tinha mais de trinta e cinco anos nas décadas de 1770, 1860 e 1870, enquanto nos anos de 1780 e 1880 e na primeira década do século XX, eram aproximadamente 20% as que pertenciam a essa faixa etária. Na década de 1870, mais de metade tanto dos homens como das mulheres que casaram tinham mais de trinta anos, e na de 1890, quase metade dos homens e um terço das mulheres tinham mais de trinta anos. Mesmo quando a percentagem das mulheres que casam com mais de trinta e mais de trinta e cinco anos são corrigidas, de modo a excluir as que casam com viúvos, o nível mantém-se elevado, em algumas décadas até mais elevado. Nas décadas de 1860 e 1870, quase todos os casamentos tardios de mulheres são explicados por outros factores que não o casamento com viúvos. Um outro ponto que merece ser assinalado no que se refere a estas distribuições de frequência é a percentagem de mulheres que casaram com menos de dezanove anos. Enquanto 10,5% de todas as mulheres que casaram em Santa Eulália entre 1700 e 1749 tinham menos de dezanove anos, durante os cento e cinquenta anos seguintes apenas 4,9% casaram tão jovens, e em datas tão recentes como as décadas de 1950 e 1960, as percentagens eram só de 7,9 e 8,4, respectivamente. Em resumo, o nível de 1700-1749 ainda não voltou a ser alcançado (Quadro 3.3).
10Chegados a este ponto é digno de menção um último aspecto da idade no casamento. Até 1850, aproximadamente 7,5% de todos os homens solteiros que casaram com mulheres solteiras tinham pelo menos mais dez anos do que as noivas (Quadro 3.4). Entre 1850 e o final do século XIX, esta proporção aumentou para quase 13,5%. A percentagem de mulheres que eram mais velhas dez anos ou mais do que os maridos rondava os 4% entre 1700 e 1949 e desceu quase para zero depois de 1950. Acresce que, enquanto 20% das noivas que eram mais velhas seis anos ou mais do que os maridos, durante a última metade do século XVIII, apenas 12% se encontravam nas mesmas condições durante a segunda metade do XIX. Que factores levaram homens novos a escolher como noivas mulheres mais velhas do que eles durante os primeiros cem anos e que factores favoreceram aparentemente uma mudança de atitude nos cinquenta anos seguintes? De facto, as alterações das diferenças de idade entre cônjuges podem não ser muito importantes em si, mas associadas a outras variações da idade a que os habitantes de Santa Eulália casavam na segunda metade do século XIX, exigem uma análise mais profunda.
11As tendências manifestadas pela idade no primeiro casamento na freguesia de Santa Eulália são características do conjunto da região, durante os finais do século XIX e a primeira metade do XX. Livi Bacci (1971:47) demonstra que, no distrito de Viana do Castelo, a proporção de mulheres casadas entre as mulheres com idades compreendidas entre os vinte e os vinte e quatro anos é sempre a mais baixa de todos os distritos do continente entre 1864 e 1940. Além disso, enquanto a maior incidência de mulheres casadas com vinte a vinte e quatro anos de idade se fazia sentir a sul do rio Tejo no século XIX, a menor incidência verificava-se no Norte. Porém, de 1930 em diante, os distritos meridionais de Évora e Portalegre começam a figurar entre aqueles onde é menor a incidência de mulheres casadas com essas idades.
12É óbvio que as idades elevadas no casamento não são exclusivas da sociedade rural do Norte de Portugal. Na realidade, fazem parte do chamado «modelo de casamento da Europa ocidental», primeiro definido pelo historiador Hajnal (1965) e desde aí documentado várias vezes pelos historiadores da família e demográficos. Este modelo, segundo uma boa tradição de Malthus, conjugava uma tendência para o casamento tardio com elevados índices de celibato definitivo. Wrigley (1982) sugeriu recentemente uma modificação, de modo a incluir formas intermédias entre o Ocidente e o Leste. Concretamente, introduz um modelo «mediterrânico» encontrado na Europa meridional e caracterizado pelo casamento tardio dos homens conjugado com o casamento precoce das mulheres. Assim, enquanto no modelo ocidental clássico «há em média uma pequena diferença de idades entre cônjuges, com muitos casamentos em que a mulher é a mais velha dos dois», no modelo mediterrânico a diferença média de idades é grande. Apesar de Portugal poder ser considerado como parte da Europa meridional, os modelos de casamento de Santa Eulália, e provavelmente de todo o Noroeste do país, são muito mais compatíveis com o modelo clássico da Europa ocidental do que com o mediterrânico. Não só a média das idades, tanto de homens como mulheres, se mantém elevada em pleno século XX, como até à década de 1940, 10% ou mais das esposas eram mais velhas do que os maridos seis anos ou mais. Aliás, se o antropólogo das zonas de cultura europeia tivesse de utilizar os fenómenos demográficos como uma pista para a localização de Portugal, ou pelo menos do Noroeste do país, dentro de uma tradição cultural regional mais ampla, pediria a sua inclusão na «franja atlântica» do Noroeste da Europa, ao lado de países como a Irlanda e de regiões de França como a Bretanha.2 O que é necessário analisar, em vista destes factos, são as características sociais e económicas que estes países ou regiões têm em comum, características essas que tenderam a provocar respostas demográficas semelhantes.
13Os numerosos estudos de reconstituição de famílias com que fomos inundados recentemente demonstraram não só a existência de variações da idade média no primeiro casamento de país para país e de região para região, mas também de variações quanto ao momento de ocorrência dessas subidas e descidas (Gaskin 1978). Infelizmente, muitos desses estudos param antes de meados do século XIX e os dados comparativos de 1850 em diante derivam essencialmente de dados censitários globais. Embora o casamento tardio se tenha tornado um hábito em vias de desaparecimento em vários países da Europa ocidental na viragem do século, manteve-se predominante noutros (Dixon 1971, 1978, Sklar 1974), sobretudo na Irlanda, onde, ainda em 1950, os noivos tinham em média trinta e três anos e as noivas, vinte e oito.3 Embora o Norte de Portugal figure entre as regiões da Europa ocidental que até bem adiantado este século mantiveram idades médias ao casamento relativamente altas, não foi obviamente um caso extremo como a Irlanda.
14Ao tentarmos compreender as tendências da nupcialidade em Santa Eulália, em especial as relativas à idade no primeiro casamento, há duas áreas sobre as quais nos devemos debruçar: primeiro, as razões do apogeu alcançado nos finais do século XIX e da súbita descida após a viragem do século; e, segundo, as condições que provocaram a manutenção de uma idade média no primeiro casamento relativamente elevada e certas outras características da nupcialidade (tais como o casamento em segundas núpcias e as diferenças de idade) desde pelo menos meados do século XVIII até depois da II Guerra Mundial. No primeiro caso, estamos, evidentemente, perante uma situação de crise que teve também impacte noutras tendências demográficas; no segundo, estamos em face de um elemento do sistema sociodemográfico presente desde há muitas décadas.
Continuidade e Crise: Casamento, Sistema Fundiário e Emigração
15Tem sido dito que, nas zonas rurais da Europa «tradicional» a variável mais importante que afecta o momento da ocorrência e a amplitude da nupcialidade era a propriedade ou herança de terras. Há três décadas, H. J. Habakkuk (1955) distinguia os modelos de casamento em diferentes sistemas de herança: divisa ou indivisa. Num sistema de herança indivisa, um filho é favorecido e herda o património da família, enquanto os seus germanos são obrigados a emigrar ou a trabalhar como assalariados agrícolas e a casar tarde, isto na melhor das hipóteses. Provou-se que este estava associado ao tipo de estrutura denominada família troncal (stem family) (Berkner 1976, Goldschmidt e Kunkel 1971). Num sistema de herança divisa, todos os filhos recebem uma parte do património e, por conseguinte, possuem uma fonte de apoio económico. Julga-se que este sistema está ligado à estrutura caracterizada por famílias nucleares, a um maior número de casamentos e ao casamento mais cedo. Recentemente, Berkner e Mendels (1978) reformularam estes argumentos, referindo que a indivisibilidade e divisibilidade rigorosas são tipos ideais que, na realidade, revelam uma grande flexibilidade. De facto, onde foi documentada a existência de famílias, o ideal da divisibilidade foi comprometido pelos aspectos práticos da indivisibilidade. Num estudo de uma família indivisa no Nivernais, Berkner e Schaffer (1978) demonstram até que ponto o carácter ténue das relações entre indivíduos, grupos de família e o sistema fundiário ameaçaram, em última análise, a sobrevivência dos agregados múltiplos.4 Uma outra crítica pode e tem aliás sido feita a esta hipótese. A complexidade da estrutura social rural, quer o facto de nem todas as terras pertencerem a pessoas da região quer o facto de nem todos os membros da comunidade local possuírem terras — dificulta a existência de uma pura relação entre a herança de terras ea capacidade e decisão de casar. Há obviamente uma ligação entre a propriedade e a transmissão da propriedade das terras de uma geração a outra e certos fenómenos demográficos específicos, mas, para compreender essa ligação, é necessário compreender não só o sistema de herança praticado mas também a economia e estrutura social locais a que ele anda associado (Berkner e Mendels 1978). Entre as variáveis mais importantes a considerar figuram: se os bens eram transmitidos pelo casamento ou por morte, se eram divididos igualmente entre todos os filhos ou deixados na sua totalidade a um único herdeiro, e se o herdeiro era definido pela ordem do nascimento ou escolhido livremente pelos pais.5
16Na ausência de registos de propriedade anteriores a 1940 ou de quaisquer dados individuais sólidos sobre classe social anteriores a 1860, as provas da posse de terras em Santa Eulália são raras. No entanto, a análise de testamentos feita no Capítulo I mostra claramente que os mecanismos relativos à transferência de propriedade na freguesia, e provavelmente nas outras freguesias da região, não eram de modo algum sistemáticos e uniformes.6 Em princípio, o ideal subjacente era o da divisibilidade mas, em geral, era um descendente, com frequência uma filha e muitas vezes uma filha que não casava, o destinatário do terço, o qual incluía habitualmente a casa paterna e era doado inteiramente com base na escolha dos pais. Embora os testamentos e registos notariais mostrem que, em alguns casos, os filhos recebiam «dotes» na altura do casamento, não parece ter sido essa a norma. Em vez disso, o costume era de facto a herança por morte, sendo os direitos de usufruto deixados ao cônjuge sobrevivo, no caso de existir.
17Os testamentos sugerem também que nos séculos XVIII e XIX, tal como nos anteriores, a maior parte das terras de Santa Eulália era cultivada nos termos de contratos de arrendamento e subarrendamento, a curto ou longo prazo (prazos, foros), que as parcelas eram pequenas e que muitos desses contratos passavam de uma geração para a outra, criando, portanto, cada vez mais subdivisões. Famílias como os Pereira-Cyrne/Almadas, os RegoBarreto e os Tinoco utilizavam os serviços de jornaleiros ou caseiros, ou arrendavam as suas terras a lavradores-rendeiros no século XVIII, tal como depois fizeram no século XIX e começos do XX. As organizações religiosas e a igreja paroquial faziam o mesmo. Ainda que não se saiba exactamente o que aconteceu a esses bens da igreja durante a década de 1830, quando as leis nacionais exigiam a venda de grandes quantidades de terras que eram propriedade de ordens religiosas, é evidente que, no princípio do decénio de 1870, quando o registo de todos os foros passou a ser obrigatório, várias parcelas em Santa Eulália continuavam a ser cultivadas deste modo.
18Sempre que os foreiros de Santa Eulália que apareciam numa lista de 1875 encontrada nos Arquivos Municipais de Viana do Castelo puderam ser ligados a chefes de família mencionados no arrolamento de bens de 1871, verificou-se que, na sua maioria, eram pequenos lavradores cujos bens, para efeitos de tributação, foram avaliados em 0$540 ou 0$960 réis. Na realidade, o facto de, neste arrolamento de 1871, os bens de mais de 60% dos chefes de famílias designados por lavradores terem sido avaliados em menos de 1$000 é uma prova clara das reduzidas áreas de terras que efectivamente possuíam. Ainda que esta fragmentação excessiva se tenha, sem dúvida, agravado durante a segunda parte do século XIX, é provavelmente seguro concluir que, durante o século XVIII e bem assim no XIX, a maioria das famílias de Santa Eulália vivia de pequenas parcelas de terras e que muitas delas cultivavam terras que não lhes pertenciam e eram, portanto, obrigadas a pagar rendas que, nos maus anos de colheita, podem ter sido difíceis de liquidar.
19Estes factores, aliados ao facto de em Santa Eulália a transmissão ser discrecionária, em geral feita por morte, e semiequitativa, reflectem-se na ausência de modelos definidos relativos a certos aspectos do comportamento demográfico como os que foram encontrados noutras regiões, em especial em zonas onde se praticava a indivisibilidade de herança e o morgadio. Nestas últimas zonas, e na medida em que os indivíduos dependiam da terra para subsistir, cada nova geração tinha de esperar pela morte (ou reforma) da geração anterior para assumir o controlo do património da família. Por exemplo, Philip Greven (1970) demonstrou como é que a demora na transmissão de terras de pais para filhos influenciava realmente o adiamento do casamento dos filhos mais novos, nos séculos XVII e XVIII, em Andover, no Massachusetts. Embora Vinovskis (1974) tenha criticado alguns aspectos da análise de Greven,7 vários estudiosos aceitaram esta hipótese de relação herança-casamento, demonstrando, por exemplo, as co-relações existentes entre a idade de um pai à morte e a idade a que os seus filhos casaram (Smith 1978). O que está implícito no argumento de Smith é que só por morte do pai é que a posse da terra passa para o filho, facilitando o casamento deste. A importância da idade do pai à morte assume uma ordem patricarcal das coisas que não é inteiramente adequada no contexto do Noroeste de Portugal, onde as mulheres herdavam como os homens e permaneciam com frequência como chefes de família, na viuvez. Contudo, para fins comparativos é útil começar por analisar a relação entre estas duas variáveis (idade do pai à morte e idade média no casamento dos descendentes), no que se refere aos dados correspondentes a Santa Eulália.
20O Quadro 3.5 mostra a idade média no casamento segundo a idade do pai ao morrer (mais ou menos de sessenta anos) por coortes de nascimento, relativa tanto a filhos como a filhas, no período entre 1700 e 1949. As diferenças (uma média superior a sessenta menos média inferior a sessenta) correspondentes a cada coorte são as seguintes:
Coortes | Filhos | Filhas |
1700-49 | + 1,4 | + 2,2 |
1750-99 | + 0,5 | + 0,7 |
1800-49 | + 2,3 | + 3,0 |
1850-99 | + 2,5 | + 1,5 |
1900-49 | + 1,1 | + 2,7 |
21Com excepção do coorte nascido durante a segunda metade do século XVIII que, na última ou duas últimas décadas, correspondia em traços gerais a casamentos celebrados no período pós-napoleónico em que as idades médias globais no casamento estavam a decrescer, parece ter existido uma relação entre a idade do pai à morte e a idade média no casamento tanto de filhos como de filhas, em Santa Eulália. Todavia, se estudarmos os mesmos dados consoante os casamentos dos filhos e filhas se realizavam antes ou depois do falecimento do pai quando este tinha mais de sessenta anos ao morrer, a relação não é tão clara. Apenas cerca de um quarto desses filhos e filhas cujos pais morreram com mais de sessenta anos esperaram pelo falecimento dos mesmos para casar.
22Embora o coorte dos princípios do século XIX sobressaia claramente, é importante perceber que muitos dos homens e mulheres incluídos neste coorte casaram depois de 1850, em virtude de a idade no casamento ter subido, em parte em resposta às condições económicas em mutação que caracterizaram este meio século de crise. Em suma, ainda que a idade do pai à morte e a herança de terras eventualmente associada a esta pudessem ter exercido alguma influência na escolha do momento de realização do casamento, no que se refere a alguns segmentos da população de Santa Eulália, era uma relação menos determinante numa freguesia do Noroeste de Portugal do que era, por exemplo, nas cidades de Andover e Hingham, da Nova Inglaterra. Convém ter presente o facto de, para muitas famílias de Santa Eulália que possuíam muito poucas terras (os lavradores-rendeiros) ou que não possuíam nenhumas (os caseiros e jornaleiros), ser obviamente pouco importante herdar de um pai ou de uma mãe. Na verdade, é provavelmente mais prudente afirmar que adiamento do casamento enquanto o pai estava vivo era motivado mais pelo desejo dos pais de manterem, durante tanto tempo quanto possível, a força de trabalho ou o rendimento potencial dos filhos e filhas solteiros.8 Se o presente serve de exemplo do passado, os jovens — homens e mulheres — que trabalhavam como jornaleiros, criados ou noutra actividade remunerada, entregavam o grosso do que ganhavam aos pais. Os testamentos demonstram que o dinheiro ganho pelos filhos solteiros que trabalhavam em Espanha era com frequência dado aos pais, e que esta dádiva à família era lembrada na altura da morte da geração mais velha. Alternativamente, os pais podem ter posto de lado uma parte do que os filhos ganhavam para juntarem para uma prenda de casamento ou para fazerem um enxoval. Esta é, sem dúvida, uma prática que se manteve mesmo no período posterior à II Guerra Mundial.
23Teoricamente, para defender os argumentos segundo os quais a idade no casamento pode ter estado apenas ligada à herança de terras no que se refere a um certo segmento da população que as possuía em número suficiente para que isso contasse, precisamos de dados sobre a situação socioeconómica dos indivíduos. Lamentavelmente, não dispomos de tais dados, antes de 1860. Contudo, os dados existentes, todos posteriores a 1860, revelam algumas associações intrigantes. O Quadro 3.6 analisa a idade média no casamento de mulheres e homens segundo a profissão do marido (indicada no registo de casamento), entre 1860 e 1949. Lamentavelmente — embora isso seja muito comum —, todos os lavradores foram classificados num único grupo, e obviamente, como grupo, casavam mais tarde do que os jornaleiros ou os artesãos. O número de jornaleiros anterior a 1890 é demasiado pequeno para justificar uma análise, mas é curioso que, embora tanto o grupo dos lavradores como o dos artesãos e operários especializados tivessem sofrido significativas descidas da idade média dos homens no casamento durante a primeira década do século XX, o grupo dos jornaleiros tenha experimentado uma subida de quase dois anos no que se refere à idade média no casamento. Ao mesmo tempo, quase o dobro do número total de jornaleiros casou na freguesia. Metade deles era constituída por filhos de lavradores, e os restantes eram quase todos jornaleiros de outras freguesias.
24Ambos estes factores são sintomáticos da proletarização endémica e progressiva das zonas rurais do Noroeste de Portugal durante os finais do século XIX, proletarização que não só engrossou as fileiras dos que não possuíam terras como promoveu a emigração maciça. Em resumo, vários destes jornaleiros da viragem do século eram membros recentes vindos da classe dos pequenos lavradores e ainda mantinham a visão do mundo dos seus pais, que eram pequenos agricultores. Também eles podem ter adiado o casamento na esperança de juntarem dinheiro para comprar terras, a fim de voltarem a pertencer ao grupo dos detentores desses bens. O outro factor curioso a assinalar acerca destes jornaleiros é que, excepto na primeira década do século XX, casavam em geral com mulheres mais velhas do que eles. Uma análise cuidada dos casos individuais mostra que, em regra, as mulheres também eram jornaleiras, que nenhum dos casamentos foi provocado por uma gravidez pré-conjugal e que em diversos casos os casais eram classificados como pobres (era-lhes aplicado o epíteto de mendigos, à morte de um dos cônjuges). Podemos interpretar estes casamentos como uma atitude oportunista dos jornaleiros? O que era certo era que não podiam ter que ver com a posse de terras. Voltaremos mais adiante, ainda nesta secção, às diferenças de idade e aos casamentos «oportunistas».
25O Quadro 3.6 tende a indicar que, até 1920, os homens e mulheres cuja subsistência dependia mais directamente do acesso a terras que pudessem cultivar casavam mais tarde, mas a relação entre terras e casamento não é tão definida e óbvia nesta região do Noroeste de Portugal como noutras regiões da Europa. O mesmo se pode dizer acerca de terras e emigração. Como referimos anteriormente, Habakkuk (1955) e os que basearam os seus estudos da herança indivisível nesta tese sugeriram que um tal sistema dá origem a uma limitação do número total de casamentos (baixa nupcialidade), um elevado nível de emigração e/ou de celibato definitivo.
26O que parece ter sido descurado na maioria dos estudos que derivam das formulações originais de Habakkuk é que ambos os sistemas de herança podem estar associados à mobilidade geográfica. O importante é que o carácter desta mobilidade difere e que esta diferença tem um efeito significativo no carácter da nupcialidade. Como o próprio Habakkuk observou:
A migração para longe, quer como carácter sazonal ou por períodos curtos, era comum em toda a Europa, independentemente das normas reguladoras da herança que prevaleciam em cada lugar. Há algo a dizer acerca da ideia de que uma divisão em parte iguais favorecia essa emigração (como um) método pelo qual os filhos de uma família de camponeses que alimentavam uma certa expectativa de vir a herdar uma parte dos bens dos pais podiam obter dinheiro para aumentar os seus bens e conseguir um complemento do rendimento familiar... A migração sazonal não era uma fuga da família de agricultores, mas sim uma condição da sobrevivência da mesma. Os camponeses partiam, não para conseguirem uma nova ocupação numa sociedade diferente, mas sim para melhorarem a sua posição na sua própria sociedade a que pertenciam. (Habakkuk, 1955:7)
27O antropólogo Eric Wolf, num estudo de duas aldeias do Tirol italiano, aponta precisamente para essa diferença. Na aldeia de São Félix, onde o sistema que regula a transmissão de bens é o da indivisibilidade da herança, os germanos mais novos que emigram tornam-se «socialmente irrelevantes para a família que permanece na aldeia», enquanto na aldeia de Tret, em que as terras são divididas em partes iguais por todos os herdeiros, «os laços com os filhos e parentes que migram mantêm-se». (Wolf 1962:19).
28A distinção que Habakkuk e Wolf estabelecem entre migração definitiva e temporária é vital para a compreensão da nupcialidade no Noroeste de Portugal e em Santa Eulália, dada a «ideologia de retorno» descrita no capítulo anterior. Os filhos migrantes eram indubitavelmente lembrados pelos pais quando estes faziam testamento. Recorde-se o caso de Isabel Francisca de Castro, que, no seu testamento de 1843, pedia que a parte a que seu filho Frutuoso, «ausente na América desde há um tempo», tinha direito fosse «mantida em suspenso até a sua morte ser comprovada». Não eram, pois, filhos deserdados que eram mandados embora e esquecidos pela família que permanecia na aldeia.
29Atendendo ao carácter da emigração do Noroeste de Portugal, é possível sustentar, em primeiro lugar, que as elevadas idades no casamento em Santa Eulália, tal como certas características das diferenças de idade mencionadas anteriormente, estão relacionadas, pelo menos em parte, com um sistema de fragmentação da terra e de pequena propriedade, muito frequentemente associado ao cultivo de terras arrendadas, que sempre obrigou os herdeiros potenciais a emigrar para constituírem agregados independentes e obterem algo que servisse de suplemento ao rendimento que podiam esperar (se é que tinham tal expectativa) retirar das propriedades que lhes viessem a caber; em segundo, que uma subida, verificada no final do século XVIII, do número dos que iam para Espanha para juntar dinheiro antes de casar pode ter contribuído para a subida a curto prazo na idade do casamento na altura e que ambas podem ter sido respostas a breves dificuldades económicas e políticas do conjunto da nação: em terceiro lugar, que o acentuado aumento da idade no casamento no final do século XIX se explica não só pelo agravamento do processo de fragmentação das terras e um endurecimento geral das condições económicas, mas também pela mudança do carácter da emigração, que passou de uma migração predominantemente sazonal para Espanha para um local mais distante, como o Brasil; e, em quarto, que ambas estas correntes migratórias (para Espanha e para o Brasil) se verificaram dentro do contexto de uma expectativa de retorno, apesar de muitos dos que partiram nunca haverem regressado. Se o casamento tinha de ser adiado por razões económicas, então a emigração era um meio para atingir um fim, mas um meio que pode ter servido para o adiar ainda mais, e por vezes até, como veremos, para o eliminar totalmente.
30Basicamente, sustento que, no contexto de uma fragmentação generalizada das terras e da transmissão tardia dos poucos bens que eram propriedade ou apenas cultivados por uma família, o que um jovem esperava poder vir a herdar ou que a sua futura mulher viesse a herdar era insuficiente para prover às necessidades de uma família e que, portanto, muitos deles partiam para o estrangeiro — para Espanha ou para o Brasil — para juntar dinheiro com que comprar terras ou construir uma casa ou até para ambas as coisas. Até a compra de um prazo arrendado requeria que se dispusesse de capital para adquirir uma junta de bois e um arado. Assim, o factor determinante de quando e quem casava entre os vários descendentes de um certo casal não era necessariamente quem ia herdar o património, mas sim o facto de o que viria a ser herdado ser raramente suficiente para sustentar um agregado independente. Os rapazes novos eram com muita frequência obrigados a procurar fontes alternativas de rendimento que lhes permitissem casar e, numa região onde as oportunidades de conseguir trabalho não-agrícola bem pago eram limitadas, a emigração constituía a melhor saída. Se os homens adiavam os seus casamentos, as mulheres também o faziam. Os namoros de cinco anos e até mais eram perfeitamente aceitáveis. A cantiga popular a seguir transcrita expressa o pedido feito por um jovem à namorada para que espere por ele:
Rosa que está na roseira
Deixa-te estar até ver
Que eu vou ao Brasil e venho
Inda te hei de vir colher
31Os dados a que recorrerei para fundamentar as afirmações anteriores acerca do efeito da emigração na idade no primeiro casamento não são nem sistemáticos nem rigorosos, devido à dificuldade em documentar a emigração a nível local. No entanto, creio que são suficientes para justificar que se deveria prestar mais atenção aos diferentes modelos e motivos da emigração, na medida em que afectam a nupcialidade. A primeira prova deriva dos próprios registos de casamento. Durante a maior parte dos dois séculos e meio compreendidos entre 1700 e 1950, parece que os noivos eram obrigados a «justificar que eram livres» ou «justificar as suas ausências» (explicar o seu tempo de solteiros e presumivelmente provar que não tinham outra mulher), na altura do matrimónio. Embora ignoremos até que ponto os párocos de Santa Eulália eram fiéis ao registar estes factos no assento de casamento (efectivamente, parece que o padre que ali esteve durante a última década do século XIX e a primeira do XX, e o padre que o substitui [1911-1926] não tomavam nota dessas jusitificações), o número de vezes em que de facto aparecem já deixam entrever de certo modo a amplitude da emigração antes do casamento
32Durante a primeira metade do século XVIII, 12% dos noivos que casaram em Santa Eulália «justificaram as suas ausências», na maior parte dos casos relativamente aos períodos passados em Espanha, embora uns quantos se referissem também a migrações para outras regiões de Portugal. A idade média no casamento deste grupo de noivos era de 24,9, sendo inferior à média total de todos os noivos que casaram na freguesia durante esse período. Todavia, muitos dos noivos destas décadas eram de outras freguesias e não sabemos quais as suas idades ao casarem. Além disso, no decénio de 1720, quase metade dos homens que casaram tinha estado ausente e a sua idade média no casamento (27,4) era muito superior à do coorte de casamento desta década no seu conjunto. Na realidade, é nas décadas de 1720 e 1730 que se concentram as justificações de ausências correspondentes à primeira parte do século XVIII.
33Entre 1750 e 1790, ou houve pouca emigração ou os padres não tiveram o cuidado de registar essas justificações ou então nenhum rapaz voltou para casar na freguesia. Os registos de óbito apontam para uma das duas últimas hipóteses. Durante esses quarenta anos, foram passadas vinte e quatro certidões de óbito de jovens de Santa Eulália que faleceram em Espanha. A maior parte deles andava na casa dos vinte anos. Outras onze certidões registavam as mortes de homens solteiros no Brasil e Lisboa, embora três dos que faleceram no Brasil possam ter partido nas décadas de 1730 ou 1740 (já tinham mais de cinquenta anos quando morreram). Acresce que havia dez certidões de óbito de homens casados falecidos no estrangeiro, na maior parte dos casos em Espanha, durante o mesmo período. Ainda que não pareçam muitas mortes, convém lembrar que nem todos os óbitos eram comunicados à paróquia e que muitos dos que emigravam não regressavam (embora pudessem ter tido intenção de o fazer) ou voltavam e casavam noutra freguesia.9
34Estes registos de óbito constituem mais uma prova de que, ao longo do século XVIII, a emigração foi uma realidade na freguesia de Santa Eulália. Aliás, nas últimas décadas deste século, o fenómeno parece ter-se alargado. Entre 1790 e 1799, houve onze registos de jovens de Santa Eulália que tinham falecido em Espanha; além disso, vinte e seis dos quarenta e três homens que casaram na freguesia durante essa década haviam estado em Espanha, um estivera no Brasil e seis, noutras partes de Portugal. A idade média no casamento destes homens era 29,5, mais um ano do que a idade média do coorte de casamento no seu conjunto. Esta tendência da emigração para Espanha manteve-se nas primeiras décadas do século XIX: vinte e quatro homens que casaram entre 1800 e 1809 tinham estado «ausentes»; o mesmo aconteceu com dezassete dos que casaram na década seguinte. As suas idades médias no casamento eram 28,3 e 31,7, respectivamente. Durante as décadas que se seguiram, entre 1830 e 1870, as anotações de ausências diminuíram de novo, embora não se possa estar seguro da causa: se se deveu a lapso do pároco ou a um decréscimo efectivo dos homens que iam para Espanha. Não foram registadas mortes de jovens de Santa Eulália ocorridas no estrangeiro, durante as décadas de 1820, 1830 e 1840, e durante estas décadas e as duas seguintes apenas vinte e dois noivos justificaram as suas ausências, uma média de aproximadamente quatro por década. A idade média com que estes homens casaram quando regressaram à freguesia permaneceu, no entanto, mais elevada do que a do total da população do sexo masculino (30,6).
35Nos decénios de 1870 e 1880, dezoito jovens reconheceram ter emigrado durante um determinado período, oito para Espanha, sete para o Brasil e três para outras regiões de Portugal (Coimbra e Lisboa). A idade média no casamento destes homens era 35,4 e, no que se refere aos que estiveram no Brasil, 38,0 anos. Curiosamente, todos menos um dos emigrantes retornados do Brasil casaram com mulheres que eram suas parentes; três deles, como Manuel Martins, cujo matrimónio com Maria Alves da Costa abriu este capítulo, fizeram casamentos no terceiro grau de consanguinidade (primos em segundo grau) e três no segundo grau de consanguinidade (primos direitos). A idade média no casamento destas sete noivas era de 32,7. Este comportamento não pode ser explicado com segurança, mas pode ter representado uma tentativa, em face de dificuldades económicas crescentes, de juntar os bens, os provavelmente trazidos pelo emigrante com as terras que ele e uma prima chegada poderiam reunir, se casassem. Estes casamentos consanguíneos serão novamente analisados mais adiante, nesta mesma secção.
36Embora estas justificações de ausência de modo algum reflictam a amplitude da emigração de Santa Eulália durante os finais do século XIX (é evidente que muitos dos que partiram nunca regressaram), é interessante olhar para os dois momentos altos da emigração — durante as duas ou três últimas décadas do século XVIII e as últimas décadas do XIX — em termos económicos mais amplos. Com base nas tabulações do mercado regional de Ponte de Lima conservadas pela Misericórdia (Reis 1980), a Figura 3.2 traça as flutuações de preços do trigo e do milho desde meados do século XVIII até aos princípios do XX. Estas flutuações dão-nos uma ideia geral acerca do bem-estar económico de uma região. Os preços destes dois cereais, aliás os mais importantes, começaram a aumentar acentuadamente em 1790 e, em 1815, já tinham subido em flecha. Entre 1815 e 1850, desceram. Em 1866, houve uma depressão mundial que teve impacte sobre a economia portuguesa, provocando uma súbita queda dos preços dos produtos exportados e um aumento do desemprego. O porto de Viana do Castelo importava quase tudo, excepto milho e batatas e, mesmo assim, o preço do milho aumentou, entre 1850 e 1885, embora não tão acentuadamente como acontecera nos princípios do século XIX. Depois de uma descida momentânea, continuou a subir lentamente, mantendo-se elevado durante as primeiras duas décadas do século XX. Os preços de outros bens importantes também sofreram grandes aumentos entre as décadas de 1840 e 1860: a carne subiu cerca de 60%; o café, 140%; o azeite, 48%; o vinho, 200%; e as rendas, 40% (Sampaio 1978).
37As tendências manifestadas pelos preços dos cereais no vale do Lima tendem, de facto, a estar relacionadas com as flutuações da idade no casamento em Santa Eulália e também coincidem, em traços gerais, com os períodos identificáveis de emigração significativa. Os três estavam a subir nas últimas décadas do século XVIII. As primeiras décadas do século XIX foram, indubitavelmente, tempos de caos. As tropas de Napoleão atacaram as zonas rurais do Norte de Portugal, onde chegaram em 1809, no mês de Abril, afectando gravemente as sementeiras. A crise para que estas invasões atiraram o país pode muito bem ter desfeito os planos de casamento dos camponeses do Norte de Portugal, incluindo de Santa Eulália. De facto, embora não se disponha de documentos que o confirmem, é possível que os jovens de Santa Eulália tenham sido chamados a cumprir o serviço militar ou que tenham fugido para Espanha, a fim de fugir a este. Neste último caso, houve situações paralelas posteriores, durante a I Guerra Mundial e, mais recentemente, no fluxo emigratória maciço e clandestino para França a fim de evitar a participação na guerra colonial em África. Como dissemos no Capítulo II, não faltam no folclore popular referências à aversão pelo serviço militar entre as populações rurais do Norte de Portugal e existem listas militares (de indivíduos do sexo masculino com idades compreendidas entre os dezassete e os trinta e nove anos que estão sujeitos a recrutamento) que remontam aos princípios do século XIX, relativas ao distrito de Viana do Castelo; no entanto, não se encontrou nenhuma dessas listas referente a Santa Eulália propriamente dita.10
38Ainda que os anos que se seguiram à invasão napoleónica não tenham sido de modo algum pacíficos, do ponto de vista político, durante as décadas de 1820 e 1830 há uma estreita correspondência entre o decréscimo da idade média no casamento, tanto de homens como de mulheres de Santa Eulália, e a descida dos preços dos cereais na região. Comparadas com os decénios que as precederam e se lhes seguiram, as décadas de 1820 e 1830 foram provavelmente bastante estáveis no plano económico, pelo menos a nível rural. Não há praticamente provas sólidas sobre as tendências da emigração local durante este período. Todavia, nas últimas décadas do século os três factores começaram a subir de novo, embora os preços aumentassem menos acentuadamente do que antes, sugerindo a existência de uma nova fase de dificuldades económicas do país e da região.11
39Como dissemos anteriormente, nas primeiras décadas do século XX, o registo das justificações de ausências é insignificante e com toda a certeza mexacto, atendendo ao conhecimento que possuímos da amplitude da emigração para o Brasil, graças a outras fontes documentais e à história oral. Contudo, também é verdade que muitas dessas partidas dos princípios do século se verificavam mais após do que antes do casamento e, portanto, tinham sobre a fecundidade um impacte diferente do provocado pelos casamentos tardios. Só nos últimos anos do decénio de 1920 e durante a década de 1930 é que as justificações de ausências aparecem de novo, na sua maior parte relativas a períodos passados em Espanha. No que se refere a todo o período entre 1900 e 1949, segundo os registos de casamento, trinta e três homens justificaram o tempo passado longe da freguesia; 17 haviam estado em Espanha, dois no Brasil, e catorze não indicaram um local preciso. A idade média no casamento destes homens foi 28,8 anos.
40As provas etnográficas sugerem que as migrações sazonais para Espanha ocorriam fundamentalmente nos fins do Outono e nos meses de Inverno, em que o trabalho agrícola em Portugal era menos intenso. A ser verdade, isso poderia ter tido um efeito visível na sazonalidade dos casamentos e bem assim na das concepções, no caso de migrantes casados. Embora este último fenómeno seja analisado no próximo capítulo, as variações ao longo de tempo das proporções de casamentos por estação pode explicar períodos de migração mais ou menos difundidos entre a população jovem casada. O Quadro 3.7 apresenta essas percentagens por mês do casamento, começando em 1700 e terminando em 1970. A segunda metade do século XVIII sobressai, com certeza, com cerca de metade dos casamentos realizados durante os meses das colheitas, no Verão — Julho, Agosto e Setembro. Se analisarmos mais pormenorizadamente este período, concluiremos que, em especial nas décadas de 1760, 1770 e 1780, mais de 65% (em duas destas décadas alcançaram até os 76%) dos casamentos eram celebrados entre Abril e Setembro. Isto aplica-se também à primeira década do século XIX. Inversamente, a concentração desproporcionada de casamentos nestes meses de Verão diminui durante as décadas de 1820 e 1830. É possível que, durante estes anos, as migrações sazonais tenham efectivamente diminuído. O que é certo é que a idade média no casamento desceu. O facto de, nos finais do século XIX, não se ter assistido a uma subida tão acentuada como nos fins do XVIII talvez se pudesse explicar por, naquela altura, a emigração ter predominantemente como destino o Brasil e por as épocas do ano mais indicadas para as viagens para lá serem a Primavera, o Verão e o Outono, e não o Inverno. Além disso, já não estamos obviamente a falar de migrações sazonais, não obstante alguns habitantes de Santa Eulália terem ido ao Brasil e voltado mais do que uma vez. Mesmo assim, mais de um quarto dos casamentos contraídos durante a segunda metade do século XIX realizou-se durante os meses de Agosto e Setembro.
41Ainda que aqui este argumento possa parecer forçado, é interessante observar que, durante os períodos em que sabemos que a emigração para fora da freguesia foi baixa — entre 1914 e 1918 e de novo entre 1940 e 1945 —, houve mais casamentos durante os meses compreendidos entre Outubro e Março do que entre Abril e Setembro. Trata-se de um modelo característico de uma comunidade estritamente agrária, na qual a Primavera e o Verão são absorvidos por demasiadas actividades agrícolas para que sobre tempo para a «frivolidade» dos casamentos.12 Curiosamente, este modelo manifesta-se mais fortemente durante as duas décadas entre 1950 e 1970, em que à vontade um terço dos casamentos se realizou em Dezembro e Janeiro. No meu entender, isto explica-se não pelo desaparecimento da migração sazonal, mas sim por um novo plano de sazonalidade. Nos finais do decénio de 1950, os homens de Santa Eulália emigravam para França, a fim de trabalhar na construção civil. Obviamente, a estação baixa neste ramo de actividade coincidia com os meses de Inverno; nessa altura, muitos vinham para casa. Na realidade, é durante a década de 1960 que a desproporção a favor dos casamentos em Janeiro alcança o seu apogeu, com 45 dos 138 casamentos da década inteira celebrados nesse mês.
42Os Róis da Desobriga fornecem-nos dados complementares acerca da emigração e da idade no casamento. Tal como dissemos no capítulo anterior, o pároco da freguesia registava neles as ausências da aldeia. Quando se comparam estas listas com dados sobre reconstituição de famílias, é possível distinguir entre os homens assinalados como ausentes numa determinada altura os que voltaram e casaram na freguesia. Embora os números não representem de modo algum o número total dos que voltaram, contraposto ao dos que permaneceram no estrangeiro (alguns podem ter regressado e casado noutra freguesia), é possível tomar a subamostra dos que casaram em Santa Eulália e comprarar a idade média com que casaram com a idade média no casamento do conjunto da população. Uma segunda limitação destas listas é que não nos esclarecem sobre o local de onde os homens regressavam. Dada a amplitude da emigração para o Brasil em todo o Noroeste de Portugal nas últimas décadas do século XIX, podemos apenas conjecturar que foi esse o destino provável de muitos deles.
43De um modo geral, ao longo dos finais do século XIX, a idade média no casamento destes emigrantes retornados é superior à do total da população que casou, rondando os 32,8 anos no que se refere aos que se podem associar aos róis de 1850, 1870, 1881, 1887 e 1892. Acresce que, durante as décadas de 1880 e 1890, a proporção de casamentos realizados na freguesia que envolviam um emigrante retornado era, respectivamente, de 26 e 36%. Estes números representavam uma subida significativa em relação aos 16% de casamentos contraídos durante o decénio de 1870. A proporção de casamentos que envolviam um emigrante regressado durante a primeira década do século XIX desceu para 20%, mas subiu de novo para 26% dos casamentos entre 1910 e 1919.
44Dado que estes róis não são de forma alguma uma medida totalmente rigorosa da emigração de homens solteiros de Santa Eulália, as percentagens acima mencionadas são provavelmente cálculos por defeito e a conclusão que somos obrigados a extrair é que os casamentos tardios dos migrantes regressados pode ter de facto contribuído para uma idade média no casamento particularmente alta de toda a população da aldeia, durante os finais do século XIX.
45Em face disto, é intrigante voltar às diferenças de idade entre os cônjuges expostas no Quadro 3.4. Embora se possa apenas especular acerca destes números, no meu entender, há três explicações que podem ser associadas à emigração. Uma é que entre os casamentos por um homem e uma mulher com menos dez anos ou até mais do que ele figuram vários contraídos por emigrantes retornados que, quando voltaram à freguesia, encontraram muito poucas mulheres por casar pertencentes a um coorte de nascimento próximo do seu. Contudo, dadas as elevadas taxas de celibato feminino em Santa Eulália, durante os finais do século XIX, fenómeno que voltaremos a focar na próxima secção deste capítulo, isto não parece provável, a não ser que sustentemos que só as mulheres menos «desejáveis» (tanto pelos seus dotes domésticos, qualidade como trabalhadoras agrícolas e posição social como pelo aspecto físico) é que faziam parte do grupo das que andavam na casa dos trinta e permaneciam solteiras.
46Uma segunda possibilidade é que os emigrantes que voltavam podiam ser considerados uns candidatos interessantes a maridos para as mulheres mais jovens. Podem ter trazido o dinheiro suficiente para formar um novo agregado familiar ou para comprar terras. Contudo, entre os homens que foram dados como ausentes em um ou mais róis e que casaram na freguesia nas décadas de 1870, 1880 ou 1890, apenas um quinto (10/50) casou com mulheres com menos dez ou mais anos. Dois casaram com mulheres muito mais velhas do que eles, uma delas com mais dezassete anos. Cerca de metade (22/50) casou com mulheres com idades próximas das deles (0-3 anos mais velhas ou mais novas), o que leva a crer que estes casais eram namorados que tinham adiado o casamento, ficando as mulheres fielmente à espera que os noivos regressassem do estrangeiro. Na realidade, a crescente população feminina solteira dos finais do século XIX incluía provavelmente várias mulheres cujos namorados nunca regressaram.
47Uma terceira explicação tem que ver com a demografia das taxas de masculinidade. Quando entravam na casa dos vinte anos, os jovens emigravam. Algumas raparigas que preferiam casar a esperar ou correr o risco de ficar solteiras tinham de se voltar para homens mais velhos, quer fossem emigrantes quer não, com possíveis maridos, uma vez que muitos dos homens da sua idade estavam ausentes. A idade média no casamento de mulheres que se uniam a homens com mais dez anos ou até mais do que elas nas décadas de 1870, 1880 e 1890 era 27,4, comparada com uma média de 29,6 para a população total que casou durante estas três décadas. Além disso, entre essas mulheres que casavam entre os vinte e os vinte e quatro anos durante as últimas três décadas do século XIX, 25% (10/40) uniramse a homens com mais dez anos ou mais do que elas. Embora os números sejam insuficientes para servir de fundamento irrefutável a favor de uma das explicações (na verdade, podem ser necessários ambos os argumentos para explicar casos individuais), apontam, de facto, para uma possível relação entre a emigração masculina e uma subida da percentagem de noivas que escolheram noivos muito mais velhos do que elas, nos finais do século XIX.
48Naturalmente, há outras explicações possíveis para as diferenças de idades entre cônjuges, que estão mais directamente ligadas ao sistema fundiário e à herança. Bell (1979), por exemplo, considera-a uma prova do controlo dos pais sobre o casamento dos filhos. Curiosamente, porém, em Nissoria, a aldeia do Sul de Itália que descreve como «habitada por puros camponeses» e onde 80% dos chefes de família eram pequenos ou médios proprietários de terras que, por vezes, complementavam o rendimento da terra com o seu trabalho (ou seja, onde a economia parece ter sido muito semelhante à de Santa Eulália), 60% das mulheres casavam com menos de vinte e um anos. Bell não fornece números comparáveis a estes relativos aos homens, embora tudo leve a crer que eram mais velhos, e portanto demonstram o chamado modelo demográfico mediterrânico. Com certeza que estas noivas muito jovens de Itália podiam estar mais sujeitas à escolha de companheiro feita pelos pais do que as noivas de Santa Eulália, pois, até 1900, apenas um terço destas tinham menos de vinte e cinco anos ao casar. Ainda em 1970, a proporção de noivas que casaram com menos de vinte e cinco anos era inferior a 60%. Acrescente-se que, ao longo dos séculos XVIII e XIX, entre 40 a 50% dos casamentos eram contraídos por jovens com poucos anos de diferença ou até da mesma idade. Isto pode sugerir um elevado grau de decisão pessoal na escolha de companheiro, grau esse que parece ter aumentado no decurso do século XX, de tal modo que aproximadamente 65% dos casamentos realizados entre 1950 e 1969 foram de jovens com uma diferença de idades que variava entre zero e três anos.
49Nada do que acima se expôs nega, porém, o facto de ter havido efectivamente casamentos em que os pais desempanharam um papel importante na escolha do companheiro — isto é, os casamentos por interesse. Na realidade, a gente de Santa Eulália fala deles quando se refere ao passado, mas diz que foram mais frequentes entre os lavradores abastados. E como provas desse factor do interesse, em geral apontam mais para os casamentos de parentes, o casamento de um rapaz novo com uma mulher mais velha ou para o casamento de um homem solteiro com uma viúva.
50Obviamente, o casamento com uma parente chegada podia funcionar como um mecanismo para impedir a fragmentação das terras e manter determinados bens dentro da família, especialmente numa região onde as mulheres tinham a mesma probabilidade de herdar do que os homens. Como um informador explicou, «duas famílias aparentadas vêem duas propriedades, uma de cada uma delas, que cultivam separadamente. Pensam que se houvesse um casamento entre elas essas propriedades poderiam ser reunidas numa só na geração seguinte e divididas pelos filhos de um único casal em vez de pelos de dois». Em geral, porém, quando interrogados sobre estes casamentos consanguíneos, os habitantes de Santa Eulália tendem a comparar a sua freguesia com a aldeia vizinha e defendem que entre os lavradores ricos desta os casamentos entre primos eram mais frequentes. No entanto, uma análise dos registos paroquiais revela que esses casamentos não eram de certeza raros em Santa Eulália. O Quadro 3.8 mostra que o número de casamentos consanguíneos aumentou durante o século XIX, embora não fosse de modo algum insignificante no século XVIII. Mesmo no século XX, e apesar de as proporções serem baixas, o grosso desses casamentos era constituído por aqueles que exigiam dispensas por uma relação de consaguinidade de segundo grau (primos direitos) ou de terceiro grau (primos segundos). Na realidade, se voltarmos a calcular essas proporções tomando apenas em consideração os casamentos endógamos — em que ambos os noivos são naturais da freguesia — as percentagens são mais elevadas:
1700-1749 | 19,9% |
1750-1799 | 17,3% |
1800-1849 | 32,9% |
1850-1899 | 30,5% |
1900-1949 | 11,4% |
51Todavia, a ideia que a gente de Santa Eulália tem do casamento entre primos na freguesia não está completamente errada, pois é quase sempre verdade, quando se dispõe de algum elemento indicador da categoria socioeconómica dos noivos envolvidos num casamento consanguíneo, que eram jovens oriundos das famílias de lavradores mais abastados. O caso com que abrimos este capítulo é um exemplo disso. O mesmo se pode dizer dos casamentos ao longo de gerações sucessivas entre membros da próspera família Artilheiro.
52Em Julho de 1762, Manuel Alves Artilheiro casou com uma prima em quarto grao, Maria Luísa de Castro. Tiveram seis filhos, mas só os três mais novos chegaram à idade adulta. O mais velho destes, Manuel, nunca casou. Tinha sido o beneficiário do terço da mãe e, em todos os róis eleitorais de meados do século XIX, aparecia classificado no topo da escala socioeconómica. Embora tivesse permanecido solteiro, em 1820, uma certa Rita Exposta, cujo nome indica que fora abandonada à nascença e que muito provavelmente trabalhava como criada em Santa Eulália (talvez para Manuel Artilheiro Júnior), deu à luz uma filha ilegítima deste, Camilla Rosa. Em 1843, Camilla Rosa casou com o seu primo direito, José Luiz, então com vinte e um anos e que era sobrinho de Manuel, por ser filho do seu irmão Domingos. Este jovem casal ficou a viver com Manuel e herdou os seus bens, quando ele faleceu, em 1859.
53José Luiz e Camilla Rosa tiveram dez filhos. Uma filha, Maria das Dores, nascida em 1857, casou com o primo direito António José Alves Pinto, em 1882. Este tinha mais quinze anos do que ela, era filho do boticário da freguesia e passara muitos anos no Brasil, antes de casar. Maria das Dores, que sobreviveu ao marido, era uma proprietária rural rica dos princípios do século XX, descrita como uma lavradora abastada pelos aldeões que a recordam. O filho mais novo de José Luiz e Camilla Rosa, João Luiz, casou com Maria Rosa Castro, em 1891; ele tinha vinte e sete anos e ela trinta. Maria Rosa e João Luiz era primos direitos e em segundo grau por um lado e primos em segundo e em terceiro graus pelo outro. Uma das duas filhas, conhecida pelo nome de Maria Barbosa, era também classificada como «mulher de teres e haveres».
54Entre os descendentes dos outros irmãos de Manuel Alves Artilheiro Júnior houve também vários casamentos consanguíneos. Um sobrinho trineto, Manuel José Marinho, casou com uma prima em segundo grau, Rosa Franco, em 1861; ela tinha quarenta anos e ele apenas vinte e seis. Um outro, António Monteiro, casou com uma prima direita do pai em 1890, quando tinha vinte e nove anos; a noiva tinha quarenta e nove. Um terceiro, Maria José Monteiro, casou, em 1905, com quarenta e dois anos, com um primo direito, Manuel de Castro, então com vinte e seis anos. Evidentemente, as diferenças de idade que caracterizam estes três casamentos — mulheres muito mais velhas do que os maridos — não podem ser ignoradas. São provavelmente uma prova bastante exacta de um casamento por interesse, em que o grupo de parentes mais amplo esteve envolvido e em casos em que as noivas eram herdeiras ricas. Além disso, eram uma boa garantia de que o casal iria ter poucos descendentes, o que, por outro lado, permitia uma reunião das propriedades nas gerações futuras. No caso de António Monteiro podemos, sem dúvida, interrogar-nos sobre o afecto que sentiria por uma mulher tão velha em relação a ele. No virar do século, emigrou para o Brasil, embora não tivesse a menor necessidade de o fazer. Quando a mulher faleceu, em 1919, juntou-se com uma das criadas da casa, uma jornaleira de trinta e cinco anos, que era filha ilegítima e oriunda de Moreira de Lima. Sete meses após a morte da mulher, casou com ela — estava grávida dele.
55Na verdade, se o facto de as mulheres terem a mesma probabilidade de herdar do que os homens tornava os casamentos entre primos economicamente atraentes, também levava a que as viúvas e as mulheres mais velhas em geral fossem bons partidos para os homens mais novos. Ainda que o facto de um viúvo voltar a casar fosse motivado mais pela necessidade de arranjar uma mulher que substituísse a falecida — sobretudo se havia filhos para criar — do que por considerações de tipo económico, o mesmo não se aplica necessariamente ao casamento em segundas núpcias de viúvas. Quando se fala com as aldeãs de hoje acerca da hipótese de voltarem a casar, elas manifestam-se contra, por recearem que um padrasto para osfilhos talvez não seja a mulher solução, uma vez que «nunca os amaria como o pai verdadeiro»; e não há dúvida de que, ao longo da história, em Santa Eulália, tem sido mais frequente os viúvos voltarem a casar do que as viúvas. Quando isso acontecia, era muitas vezes com homens mais novos e ainda solteiros e, em vários casos, a mulher estava grávida à data do casamento. Da perspectiva da viúva, isso pode ter sido um estratagema. Além disso, um homem mais novo, sobre o qual, pelo mero facto de ser mais velha do que ele dez anos ou mais, teria maior controlo e influência, teria sido uma boa escolha, tendo em conta o receio de um padrasto cruel.13 Do ponto de vista do homem, um casamento desse tipo pode ter sido particularmente vantajoso. A esposa tinha já casa e provavelmente possuía terras cultivadas de que era proprietária ou usufrutuária. O mesmo se podia dizer de homens que casavam com mulheres mais velhas ainda solteiras. Era muito frequente estas terem permanecido com os pais até eles falecerem e serem, portanto, as beneficiárias do terço. Em suma, o facto de as mulheres serem herdeiras habituais dá uma outra dimensão a certas características da diferença de idades entre os cônjuges.
56A proporção dos casamentos entre homens com mulheres dez anos mais velhas do que eles manteve-se constante entre 1700 e 1949, representando cerca de 4% de todos os casamentos celebrados na freguesia. Durante as duas décadas compreendidas entre 1950 e 1970, essa proporção foi insignificante, e a proporção de mulheres que eram de um a nove anos mais velhas do que os maridos desceu para menos de 30%, pela primeira vez na história de Santa Eulália. Isto pode ter sido uma prova da importância decrescente da terra como factor fundamental para a decisão de casar e, por conseguinte, reflecte a mudança para uma escolha do par feita simplesmente com base no interesse romântico e não no interesse económico. Contudo, não estou de forma alguma convencida de que os «casamentos por amor» e a escolha individual não estivessem presentes no passado histórico. As cantigas populares e a poesia abundam em referências aos interesses românticos e às ligações românticas (Cortesão 1942). Convém ainda não esquecermos a independência, tanto emocional como financeira, em relação à família de orientação adquirida pelos jovens que haviam emigrado para Espanha e para o Brasil e tinham regressado com dinheiro para comprar mais terras, saldar dívidas ou ajudar nas despesas de casamento de um germano. Os pais reconheciam essa independência e respeitavam os filhos, pois isso é evidente nos testamentos, nos quais procuraram separar as contribuições destes filhos emigrantes para o património da família.
57No entanto, mesmo para aqueles que escolhiam livremente o seu par, as considerações de tipo económico eram de vital importância para a determinação do momento oportuno para casar, aliás até para o mero facto de casar. Os fios de ouro usados pelas noivas camponesas do Minho e que faziam parte do seu vestido de casamento eram considerados uma prova da riqueza e pobre era a noiva que fosse à igreja sem um fio de ouro, ainda que fosse emprestado. Todavia, a existência de terras como uma fonte de rendimento seguro ou a promessa de um rendimento complementar através da emigração e/ ou do exercício de uma profissão era a condição prévia real para a formação de um agregado familiar. Um inquirido que esperou até ter trinta anos para casar com uma mulher da mesma idade disse que o fizera porque não tinha dinheiro, «pelo menos não o suficiente para formar uma família». Acrescentou que uma das irmãs casara mais cedo, tinha muitos filhos e vivia na miséria. Isso foi um forte factor de dissuasão em relação a ele próprio casar cedo. Embora o facto de o período reprodutivo da sua mulher de trinta anos ser menor não constituiu um motivo consciente para esperar, o que este homem expressava era a noção de que muitos filhos representavam dificuldades económicas.
58A análise anterior esboçou uma relação complexa entre o sistema fundiário, a emigração e a idade no casamento. Embora não se pretenda fazer da emigração a causa directa e exclusiva de os casamentos celebrados na freguesia o serem quando os noivos eram já mais velhos, tinha obviamente influência sobre isso, uma vez que era raro a partida ser encarada como definitiva. A conclusão mais acertada é talvez que o aumento do fluxo emigratório a curto prazo era já em si sintomático do agravamento das condições economias e até políticas e que tanto a emigração como os casamentos tardios eram uma resposta a essas condições. A súbita descida da idade média no casamento ocorrida nos alvores do século XX reflectiu apenas o regresso a níveis mais habituais. Contudo, a emigração não diminuiu ao mesmo tempo. O que se deu foi uma mudança da composição da população emigrante e do carácter socioeconómico da população da freguesia em geral. Na sua maioria, os homens que emigravam eram já casados. Ainda que sempre tenha havido emigrantes do sexo masculino casados, o seu número aumentou porque as fileiras do proletariado rural e dos pequenos lavradores haviam também aumentado.
59Enquanto os lavradores representavam quase dois terços dos chefes de família mencionados no arrolamento de bens de 1871, constituíam apenas um terço numa lista de proprietários residentes, preparada em 1945 para servir de base para o cálculo de um imposto municipal. Em 1945, outro terço era formado pelos jornaleiros sem terras e os chamados trabalhadores rurais. Nesta data, quase 11% da população era constituída por indivíduos classificados como proprietários e entre eles figuravam o dono da Casa da Barrosa e o conde de Almada. Estes eram obviamente os possuidores de mais terras e, além dos «aristocratas rurais», incluíam várias famílias que foram identificadas como lavradores abastados por informadores da aldeia, ou que tinham feito dinheiro em actividades não ligadas à agricultura e o haviam utilizado para comprar terras na freguesia.14 Em 1871, 8,8% (seis) desses agregados familiares formados por lavradores pagavam de impostos uma quantia superior a 2$000.
60O facto de, em meados do século XX, quase um terço dos residentes na freguesia não possuir terras pode ser uma das explicações para a constante descida da idade média no casamento. Adquirir terras, quer através de compra ou de herança, antes de casar tornava-se cada vez menos importante ou possível para um segmento cada vez maior da população. Hoje, na freguesia, a posse de terras ou ter acesso a terras cultiváveis quase não pesa como condição prévia do casamento. Como disse um velho da freguesia, «hoje, as andorinhas casam e depois é que fazem o ninho».
61No período posterior à II Guerra Mundial, surgiram novas oportunidades, incluindo o desenvolvimento de várias indústrias locais e regionais. Em Santa Eulália propriamente dita, alguns homens empreendedores introduziram o fabrico de azeite, a serração e dragagem de areias para cimento. Para leste, na freguesia de Santa Comba, abriu, nos começos da década de 1950, uma fábrica de queijo. Para oeste, na freguesia de Santa Marta, uns alemães instalaram uma fábrica de têxteis. Do outro lado do rio, em Darque, foi construída, nos princípios da década de 1970, uma fábrica de celulose. Há pessoas de Santa Eulália a trabalhar em todas elas. Por último, também se arranjava trabalho na construção civil, um sector em grande expansão, em consequência do fluxo emigratório mais recente, para o Norte da Europa. Na verdade, muitas das férteis terras cultiváveis estão a ser transformadas em lotes de terrenos para as novas casas — as chamadas casas francesas — que os emigrantes em França construíram. Isto constitui só por si uma prova clara de que são já consideradas uma fonte primordial de subsistência. Daí que alguns pais idosos estejam a dividir as suas terras cedo. Favorecer as filhas solteiras deixando-lhes a casa paterna e o terço continua a ser uma prática seguida; porém, o motivo da segurança social deixou de ser tão decisivo, com a introdução de pensões para os trabalhadores rurais no período pós-salazarista.
62A gente da freguesia considera até agora a França o destino mais lucrativo, se não a salvação do seu pobre país. Com bons empregos no estrangeiro, não há qualquer razão para adiar o casamento. De facto, pela primeira vez na história de Portugal, desde meados dos anos 60, as mulheres emigraram em igualdade de condições com os homens, sendo algumas solteiras e outras casadas. Além disso, até meados da década de 1970, as remessas vindas de França criaram uma nova prosperidade em todo o Noroeste de Portugal. Na verdade, é possível que o aumento do volume de remessas do Brasil, durante os anos imediatamente anteriores à I Guerra Mundial, tenha criado uma prosperidade semelhante, embora pouco duradoura na província do Minho, prosperidade que iniciou a descida da idade média no casamento em Santa Eulália, a qual alcançara o seu ponto máximo nos finais do século XIX. No entanto, apesar destas mudanças recentes e não obstante os dois períodos de crise nos finais dos séculos XVIII e XIX, as tendências da idade no casamento em Santa Eulália revelam uma certa continuidade. Em 1950, os homens e mulheres casavam em média aproximadamente na mesma altura da vida que em 1700. Só o tempo dirá se à descida da idade média no casamento das mulheres para vinte e quatro anos, nas décadas de 1960 e 1970, se seguirá uma descida da dos homens e se, com o decurso do tempo, essa diminuição se acentuará.
Celibato: A População Solteira
63A irmã mais nova de Manuel Martins teve três filhas, das quais só uma — a do meio — casou. As outras duas morreram solteiras, uma com oitenta e tal anos e a outra na casa dos noventa. De facto, para compreender o carácter da nupcialidade em Santa Eulália, é tão importante como a idade no casamento a extensão do celibato definitivo.15 Embora a idade em que o casamento ocorre e a taxa de nupcialidade sejam, em regra, estudados conuntamente, nos últimos tempos alguns estudiosos (Brandes 1976, Dixon 1971) sugeriram que podem na realidade não estar tão directamente ligados como podemos pensar. A fim de explicar a ausência de uma congruência tipificada entre os dois fenómenos, Dixon aponta três factores que parecem intervir entre a estrutura social e a nupcialidade: a viabilidade do casamento, a existência de pares disponíveis e a vantagem do casamento. O primeiro implica condições económicas; o segundo tem que ver com a estrutura demográfica e o terceiro, com características culturais.
64No que se refere à viabilidade económica, é evidente que alguns dos factores que parecem influenciar a idade no casamento possivelmente determinam também a taxa de nupcialidade; mais uma vez, o mais significativo de entre eles, e também o mais estudado habitualmente, é o sistema de herança. Voltando de novo à tese de Habakkuk: quando a terra passa intacta para um único herdeiro, há elevados níveis de emigração e/ou de celibato definitivo; inversamente, se as terras forem divididas em partes iguais por todos os descendentes, as taxas de nupcialidade são altas e o celibato definitivo, quer masculino quer feminino, atinge um valor mínimo. A ligação previsível entre herança indivisível, celibato e emigração tem sido demonstrada repetidamente, tanto por antropólogos como por historiadores (Abelson 1978, Bauer 1983, Berkner 1972, Bourdieu 1962, Douglass 1974, Goody 1973, Iszaevitch 1974), sendo o exemplo arquetípico a Irlanda do período posterior à fome (Arensberg e Kimball 1940, Connell 1968). A relação entre herança divisível e a suposta baixa incidência do celibato definitivo mereceu menos atenção, talvez porque seja menos definida e a herança divisível seja um tipo ideal a que em geral não se adere totalmente, quer na prática quer como costume.
65O Noroeste de Portugal apresenta-nos uma situação em que uma tendência para a divisão da herança em partes iguais após a designação do destinatário do terço (que, ao longo dos séculos, deu origem a um elevado grau de minifúndio) está, no entanto, associada ao celibato definitivo bastante generalizado, sobretudo entre a população feminina. Na realidade, é importante tomar seriamente em consideração as variações na composição da população solteira segundo o sexo. Como Knodel e Maynes (1976) concluem, no seu estudo sobre as diferenças entre os modelos de casamento urbano e rural na Alemanha imperial,
a ratio de sexo está mais ligada às diferenças de nupcialidade entre homens e mulheres do que à nupcialidade exclusivamente masculina ou feminina, uma vez que é a probabilidade de casar de um sexo em comparação com o outro que é mais directamente influenciada pelas razões de masculinidade (Knodel e Maynes 1976:154; o itálico é nosso).
66No Noroeste de Portugal, é o distrito de Viana do Castelo que, pelo menos desde os finais do século XIX, tem tido os níveis mais elevados de celibato feminino (Livi Bacci 1971:49).
67Portanto, investigarmos na medida do possível, as causas e o carácter do celibato feminino em Santa Eulália (freguesia que fica no centro desse distrito), deve revelar-se uma tarefa frutuosa para uma melhor compreensão do celibato em geral. O Quadro 3.9 mostra os modelos de celibato definitivo de Santa Eulália, desde 1860, com base no número de homens e mulheres que faleceram com mais de cinquenta anos, sendo ainda solteiros. Atendendo a que a qualidade dos registos de óbito melhorou depois de 1860 e a idade ao morrer era mencionada na certidão de óbito, é só a partir desta altura que podemos estar seguros do rigor desta medida. Isto fornece também uma indicação da probabilidade do casamento entre coortes, de nascimento desde aproximadamente 1810. O Quadro 3.10 apresenta a distribuição por estado civil e sexo relativa a habitantes de Santa Eulália falecidos entre 1750 e 1859. A distribuição foi feita com base em um indivíduo ser registado como solteiro/a, casado/a ou viúvo/a na certidão de óbito. Todos os que puderam ser identificados com segurança como crianças ou como jovens com menos de vinte anos à data da morte foram eliminados da categoria de «solteiros». Do mesmo modo, os adultos na casa dos vinte anos, incluindo os jovens do sexo masculino falecidos em Espanha, foram também eliminados. Contudo, devido a certas limitações impostas pelos problemas ligados ao confronto de registos não foi possível determinar a idade de muitos dos incluídos na categoria de «solteiros» no Quadro 3.10.16 Assim, as percentagens dos que morreram solteiros devem ser tomadas apenas como uma estimativa aproximada dos parâmetros correspondentes ao celibato definitivo quer masculino quer feminino, antes de 1860. Provavelmente são todos um pouco elevados.
68Concentrando-nos, de momento, nos dados posteriores a 1860, é evidente que, em Santa Eulália, como aliás em todo o Noroeste de Portugal, o celibato feminino era sempre e caracteristicamente mais elevado do que o masculino. Mostram igualmente que a probabilidade de uma mulher casar diminuiu cada vez mais cerca dos finais do século XIX e durante a primeira década do XX. Isto reflecte-se nas elevadas percentagens de mulheres com mais de cinquenta anos que morreram solteiras nas décadas de 1920 e 1930 e que teriam alcançado a idade núbil nos decénios de 1870, 1880 e primeiros anos do de 1890. Foi precisamente neste período que a idade no casamento atingiu níveis sem precedentes, levando-nos a crer que em Santa Eulália, e provavelmente em toda a região, havia de facto uma estreita ligação entre esses dois fenómenos, ambos possivelmente pelas terríveis condições económicas dos finais do século XIX. O nível mais elevado de celibato masculino definitivo verificou-se várias décadas mais tarde (na de 1950), correspondendo, em traços gerais, a coortes nascidos entre 1870 e 1900 que teriam chegado à idade núbil nos últimos anos do decénio de 1890 e nos dois primeiros do século XX. O que quer que tenha influenciado o celibato feminino, em especial na última década do século XIX, parece ter afectado o celibato masculino, embora em menor grau. Inversamente, e o que talvez tenha mais interesse para nós, foi o coorte masculino correspondente ao coorte de mulheres com níveis mais elevados de celibato definitivo (as que faleceram entre 1920 e 1939) que conheceu os níveis mais baixos de celibato definitivo. Embora as condições económicas que caracterizaram os finais do século XIX possam ter tido um impacte na subida dos níveis de celibato definitivo, tanto feminino como masculino, as variações na amplitude do celibato relativamente a estes coortes de óbito, quer masculinos quer femininos, sugerem que o desequilíbrio demográfico resultante de uma emigração predominantemente masculina deve ter contribuído significativamente para aumentar a probabilidade de celibato definitivo entre a população feminina de Santa Eulália e do Minho rural de um modo geral. No auge da emigração, nos finais do século XIX, aconteceu simplesmente que não havia homens jovens suficientes para casar.
69Ainda que provavelmente reforçada nos finais do século XIX, a relação entre emigração masculina e celibato feminino é, creio eu, muito antiga em Santa Eulália. Os dados são menos rigorosos antes de 1860 e, no entanto, há vários indícios nesses sentido. Já verificámos que, antes de meados do século XIX, um dos principais destinos dos emigrantes de Santa Eulália era Espanha e que muitos dos jovens tinham de justificar as suas ausências antes de casar. Um fenómeno mais ou menos constante na história demográfica da freguesia, o movimento migratório para o reino ibérico vizinho parece ter aumentado significativamente durante as últimas décadas do século XVIII. Se os registos de casamento nos fornecem elementos indicadores desse movimento, o mesmo se pode dizer acerca dos registos de óbito.
70Embora alguns dos que morreram no estrangeiro fossem casados, a maioria era constituída por homens (na casa dos vinte anos) solteiros, jovens aventureiros que haviam ido para Espanha para juntar dinheiro que lhes permitisse comprar terras, uma junta de bois ou uma casa e, portanto, casar. Estes objectivos foram obviamente alcançados por alguns, como referimos no Capítulo 1, sobre a análise de testamentos de pessoas de Santa Eulália desde meados do século XVIII, nos quais os filhos migrantes eram frequentemente mencionados. Outros tiveram menos êxito, chegando ao fim dos seus dias em solo estrangeiro. Na realidade, em determinadas décadas, o número de mortes de jovens de Santa Eulália em Espanha foi desproporcionado tanto em relação ao número de jovens que morreram com vinte e tal anos, tendo permanecido na freguesia, como em relação ao número de mulheres de Santa Eulália pertencentes a este grupo etário e que faleceram. Naturalmente, uma das consequências foi a redução drástica da população de homens casáveis. Além disso, é importante sublinhar de novo que não sabemos quantos mais faleceram no estrangeiro cujas mortes não foram comunicadas ao pároco de Santa Eulália, e portanto podemos provavelmente supor que esses números são uma estimativa por defeito do fenómeno.
71Se essas participações de óbitos reflectem apenas parcialmente a amplitude do movimento migratório para Espanha, então o aumento do número de mulheres que morreram solteiras em certas décadas dos finais do século XVIII ou desde princípios até meados do século XIX começa a fazer sentido, embora desconheçamos, no que se refere a muitas destas mulheres, as idades com que morreram e, por conseguinte, se podemos efectivamente considerá-las celibatárias. Por exemplo, os coortes que faleceram nas décadas de 1780 e 1790 corresponderiam a mulheres jovens que atingiram a idade núbil no segundo terço do século XVIII, altura em que, segundo parece, a emigração para Espanha de homens novos de Santa Eulália era já um movimento com um carácter regular. No decénio de 1790, das vinte mulheres incluídas na categoria solteiras, no Quadro 3.10, sabe-se que onze tinham mais de cinquenta anos e, portanto, constituíam casos de celibato definitivo. Apurou-se também que, das treze falecidas na década seguinte, cinco tinham mais de cinquenta anos. Os coortes que morreram de 1840 a 1849 correspondem nos níveis etários superiores a mulheres que teriam atingido’a idade núbil na década de 1790, sem dúvida um período em que a migração para Espanha estava amplamente generalizada. Determinou-se com segurança que sete das mulheres que morreram solteiras nesse período tinham mais de cinquenta anos à data da morte.
72Embora não seja uma prova «forte», pois só inclui as mulheres descritas como solteiras pelo padre nas certidões de óbito cuja idade pôde ser determinada através dos respectivos assentos de nascimento, pelo menos aponta para a possibilidade de haver uma relação entre a emigração masculina e o celibato feminino em Santa Eulália, nos séculos XVIII e XIX. Um outro factor a considerar, embora não haja provas documentais que o fundamentem é, sem dúvida, o número de mulheres solteiras que podem ter sido noivas de jovens que partiram para o estrangeiro em busca de fortuna. Esperaram ano após ano, sem nunca terem sabido se o namorado estava vivo ou morto, até que chegaram a uma idade em que a esperança de casar era quase nula.
73Que a relação entre a estrutura demográfica e o celibato não deveria ser posta de lado com a facilidade com que, por exemplo, Brandes (1976) o faz no seu estudo, a nível da microdemografia, de uma freguesia em Espanha é um facto corroborado pela comparação com outras situações em que a distribuição por sexos da população celibatária difere da que é característica do Noroeste de Portugal. Patrice Bourdelais (1981) documenta taxas especialmente elevadas de celibato feminino em certas regiões de França (Bretanha e as montanhas orientais e centrais) durante a segunda metade do século XIX e considera a possibilidade de, pelo menos uma parte delas (em especial nas regiões montanhosas) poder ser associada à emigração masculina. Inversamente, Jegouzo e Brangeon (1974) ligaram recentemente as altas taxas de celibato masculino na França rural com a partida de mulheres desencantadas com a vida do campo e com as perspectivas que lhes dá. O mesmo se pode dizer acerca da Irlanda rural ao longo da maior parte dos finais do século XIX e do século XX. Na verdade, a comparação entre o Norte de Portugal e a Irlanda rural é muito reveladora.
74Na Irlanda, foram as mulheres que predominaram entre a população de emigrantes, facto que não foi devidamente tomado em consideração, apesar de Ravenstein o ter referido há quase um século no seu estudo sobre as «leis da migração» (1885). Isto foi verdade, como Kennedy (1973) mencionou no seu estudo da história demográfica da Irlanda, em todos os períodos, excepto naqueles em que houve guerras importantes em que a Grã-Bretanha esteve envolvida e que afastaram os homens do campo — a Guerra dos Bóeres e as duas Guerras Mundiais do nosso século. Scheper-Hughes documenta ainda mais pormenorizadamente este modelo, no seu estudo da freguesia rural Country Kerry de Ballybran.
Embora, durante o ano, haja namoros passageiros e flirts entre os alunos adolescentes das escolas secundárias, no final do curso segue-se-lhes uma série de romances interrompidos, quando as mulheres jovens, que se caracterizam pela sua vivacidade e mobilidade, migram. Deixam atrás de si um grande número de noivos que, ao contrário das raparigas, têm o dever de manter as terras e continuar o nome da família — uma tarefa que cada ano se torna mais absurda, pois eles reconhecem que é improvável que venham a ter herdeiros directos. (Scheper-Hughes 1979a:53.)
75Obviamente, estas raparigas irlandesas sentem-se tão pouco fascinadas pelo seu futuro no campo como as jovens francesas referidas por Jegouzo e Brangeon. O resultado é que, na Irlanda rural, tal como em certas partes da França rural dos nossos dias, o celibato masculino é superior ao celibato feminino.
76É importante analisar melhor o impulso que está por detrás destas correntes migratórias com diferente predominância de um dos sexos. Na Irlanda, as raparigas eram livres de emigrar se é que não eram mesmo animadas a fazê-lo, não obstante o carácter patriarcal e de dominação masculina da sociedade rural irlandesa. Na verdade, dado o sistema de herança indivisível, a favor do herdeiro do sexo masculino, que foi restabelecido no país depois da Grande Fome, é compreensível que uma rapariga preferisse emigrar a ficar solteira e passar a vida a trabalhar para os pais ou para o irmão e cunhada. Kennedy (1973:7) descreveu essa escolha, e muito bem, não como «entre o desemprego rural ou o trabalho urbano como empregada doméstica, mas sim como a escolha entre o papel subordinado de trabalhadora não paga no seio da sua própria família e a liberdade e independência que o trabalho remunerado numa cidade distante prometiam». Além disso, como o próprio Kennedy refere, havia inúmeras oportunidades para as mulheres na Grã-Bretanha e na América, países onde se falava a sua língua materna e onde, em consequência de diversos movimentos de emancipação, a condição da mulher era muito melhor do que na Irlanda.
77Portugal é obviamente diferente da Irlanda em vários sentidos. Em primeiro lugar, por lei, as mulheres casadas não podiam emigrar sem autorização dos maridos e as solteiras com menos de vinte e um anos tinham de ter licença do pai (e quando a obtinham era geralmente para se deslocarem por pouco tempo para um sítio próximo, onde iam dedicar-se ao serviço doméstico ou trabalho agrícola). Na realidade, o costume exigia que se obtivesse a autorização do pai muito depois de se ter alcançado a maioridade. As leis que restringiam a emigração feminina mantiveram-se em vigor até à década de 1960 e, por conseguinte, afectaram o movimento de mulheres que desejavam participar na fase mais recente da emigração portuguesa, ou seja, na emigração para França. Com estas restrições legais coexistia uma atitude negativa perante a emigração feminina, atitude que não sofreu alterações até meados do século XX. Julgava-se que as raparigas que deixavam a casa paterna se iriam «perder» e se tornariam «produtos usados». Como veremos no Capítulo V, em geral essa ideia confirmava-se. Os jovens da freguesia não queriam casar com essas raparigas e, portanto, uma jovem que quisesse casar pensava duas vezes antes de emigrar, mesmo por um período curto. Acresce que ser obrigado a mandar uma filha para fora, para trabalhar, era uma prova de pobreza, factor que tornava estas raparigas ainda menos desejáveis como esposas potenciais.
78Uma segunda diferença entre a Irlanda rural e o Noroeste rural de Portugal, diferença que tem sido apontada repetidamente, consiste no facto de, em Portugal, não haver discriminação contra as filhas como herdeiras potenciais, ao contrário do que acontecia na Irlanda. Como herdeiras, e beneficiárias frequentes do terço, as mulheres gozavam de uma certa independência e tinham, portanto, um estatuto negado às mulheres da Irlanda rural.
79Em terceiro lugar, a divisão do trabalho em Portugal caracterizou-se pelo facto de as mulheres desempenharem uma parte importante das tarefas agrícolas. Estes deveres agrícolas têm sido um impedimento importante para a emigração feminina, embora inicialmente possam ter sido assumidos por mulheres que subtituíam os maridos emigrados. Deram às mulheres do Portugal rural uma certa liberdade de movimentos fora de casa e, no caso das mulheres casadas, reforçaram o seu poder e influência dentro da família. A migração que excedesse o âmbito regional e um carácter temporário era desnecessária e, especialmente no caso das famílias de lavradores mais abastados que precisavam do maior número de braços possível, indesejável. Aliás, nesta mesma linha, é interessante referir que, à medida que a mecanização na Irlanda rural aumentou, sobretudo depois de 1950, a emigração masculina irlandesa aumentou também significativamente (Kennedy 1973).
80No Noroeste de Portugal e em Santa Eulália, as filhas eram, indubitavelmente, um bem valioso e a sua contribuição, em termos de trabalho, para o agregado era, pelo menos, tão importante como a dos filhos. Os pais podem ter preferido manter as filhas solteiras tanto tempo quanto possível, ou mesmo solteiras para sempre, a fim de as reter como um recurso económico; o facto de muitas delas esperarem pelo falecimento do pai para casar é uma prova disso. E muitas das que esperavam, acabavam por ter ultrapassado a idade casadoura, por se tornar duras (uma referência a não serem já desejadas). As diferenças quanto às expectatias ou aos papéis esperados de filhos e filhas, dos homens e das mulheres, podem explicar em grande medida as variações por sexo dos modelos tanto de emigração como de celibato definitivo.
81No entanto, como dissemos anteriormente, a importância atribuída à ratio de sexo como o principal factor da amplitude e carácter do celibato tem sido contestada por alguns, recentemente. Brandes, por exemplo, avisou que é frequentemente «impossível determinar o grupo no qual a razão de masculinidade deveria ser considerada». As pessoas de Santa Eulália sempre casaram com gentes de fora — com pessoas das aldeias vizinhas e por vezes de regiões mais distantes, incluindo Espanha. Desde, pelo menos, 1700, entre um quarto e um terço de todos os casamentos celebrados na freguesia foi contraído por uma noiva da freguesia e um noivo que o não era, ou vice-versa, prevalecendo claramente o primeiro exemplo sobre o segundo, dada a tendência para os casamentos se realizaram na terra da noiva (Quadro 3.11). Contudo, no caso de Portugal, esta procura fora das fronteiras da freguesia não diminui, julgo eu, a importância da chamada «disponibilidade de companheiros» e o seu impacte sobre o celibato, pois em todo o distrito de Viana do Castelo o desequilíbrio da ratio de sexo da população celibatária tem sido grande, pelo menos desde os finais do século XIX, provavelmente até antes disso. Na realidade, entre 80 a 90% de todos os casamentos celebrados em Santa Eulália foram contraídos com naturais do distrito, sendo um terço destes, ao longo do século XIX, com indivíduos das aldeias vizinhas (Quadro 3.12). De facto, os números relativos aos casamentos exogâmicos dão uma outra dimensão à situação de crise dos finais do século XIX. Não só a proporção de casamentos endogâmicos desdeu para menos de 60% pela primeira vez, como o número de casamentos exogâmicos com cônjuges oriundos de um concelho que não o de Viana do Castelo subiu para perto de 20%. Ambos os fenómenos são sinais de uma maior mobilidade da população rural—incluindo da população feminina—nesta altura.
82No entanto, a pergunta que Brandes se põe tem muito interesse: se os homens estão numa posição tão favorável para casar, por que há então todo este celibato masculino? Em resumo, isso leva-nos à questão de saber determinar até que ponto o casamento é desejável e a uma série de outros factores sociais e culturais que podem ter sido importantes para definir a amplitude do celibato feminino e masculino. Adoptando a perspectiva feminina, Dixon (1971:222) defendeu que o que determina até que ponto o casamento é desejável é a «existência de alternativas sociais e institucionais ao casamento e à criação de filhos e a medida em que essas alternativas são consideradas compensadoras». Obviamente, quando as mulheres se podiam sustentar sem a ajuda de um marido, através do trabalho agrícola, e esperavam poder vir a ser proprietárias de algumas terras e possivelmente de uma casa, as pressões para e a necessidade de casar podem não ter sido grandes; o celibato era, portanto, economicamente viável. Além disso, o estigma imposto ao estado de solteira deveria ser mínimo, quando essa situação era tão comum como acontecia no Portugal rural, desde pelo menos o século XVIII; o celibato era, assim, socialmente viável. Em terceiro lugar, enquanto o Código Civil concedia um certo grau de economia às mulheres solteiras com mais de vinte e um anos, colocava as casadas inteiramente sob a autoridade dos maridos; o celibato era, pois, atraente, do ponto de vista legal. Por último, embora não possamos saber ao certo se a aprovação era anterior ou posterior ao facto, há inúmeros provérbios e canções populares do folclore do Norte Portugal que exaltam o celibato feminino e denigrem o casamento e que representam, portanto, uma atitude cultural definida e predominante.17
Antes que cases vê o que fazes.
Solteirinha não te cases. Goza-te de boa vontade.
Mãe, o que é casar? Filha é penar, parir, chorar!
Quando eu era solteirinha, usava fitas aos molhos.
Agora sou casada, trago lágrimas nos olhos.
Eu casei-me, cativei-me
Troquei a prata ao cobre
Troquei minha liberdade
Por dinheiro que não corre.
Solteirinha solta solta
Casada, prisão, prisão
Mais vale uma só solteira
Que muitas casadas hão.
83Embora Brandes dê a entender que poucas na aldeia de Becedas, em Espanha, escolheriam ficar solteiras, os adágios e cantigas populares mencionados anteriormente levam-nos a crer que, entre as mulheres portuguesas, a «felicidade» do celibato pode ter sido considerada perferível à «infelicidade» no casamento. Esta atitude foi corroborada por várias mulheres de Santa Eulália ao falarem sobre o seu próprio celibato ou do de uma parente ou conterrânea. Falaram do «medo» de casar, do medo da fome e da pobreza que poderia acompanhar a tarefa de criar um novo agregado e de ter de sustentar os inúmeros filhos que poderiam nascer. Esses medos, disseram algumas, eram maiores antigamente, quando as dificuldades económicas eram também maiores do que hoje. Algumas decidiram simplesmente que viveriam melhor se permanecessem em casa dos pais. Outras sustentavam que fora o pai que desencorajara o casamento, por não querer que vivessem pior do que na casa dele. Foi esse, por exemplo, o argumento utilizado por José dos Santos, um arguto comerciante que fabricava e vendia artigos em couro usados nos trabalhos agrícolas e cuja casa era, segundo vários habitantes da aldeia, uma casa farta.
84José e sua mulher Vigínia tiveram dez filhos, entre 1896 e 1914. O filho mais velho, e único descendente do sexo masculino que sobreviveu, nasceu em Dezembro de 1896. Seguiram-se-lhe quatro irmãs. A primeira, Teresa, nasceu em 1899 e casou em 1922 com João da Costa, um pedreiro que trabalhava aqui e ali (estava ausente da freguesia à data dos róis de 1924 e 1927) e «pouco gostava da mulher e nunca foi grande coisa». Teresa teve quatro filhos (três dos quais sobreviveram) até que morreu de uma infecção pulmonar, em 1930. As duas filhas a seguir, Dores e Gracinda, nunca casaram. O celibato foi também o destino da filha mais nova, Josefa. As três tiveram pretendentes, mas, perante a desgraça da filha mais velha, José achou que nenhum deles era suficientemente rico para cuidar das filhas como ele podia fazer. Mesmo quando Gracinda engravidou e deu à luz uma filha ilegítima, em 1933, proibiu o seu casamento com o pai da criança. Na verdade, o «preço» pedido por este jovem para salvar a honra de Gracinda era uma junta de bois e o produto da venda do seu cordão de ouro. José dos Santos recusou terminante. Numa conversa acerca dos namorados que tivera, Josefa pôs as coisas nos seguintes termos:
O meu pai preferia ter visto as filhas mortas a casadas e na miséria. E, de qualquer maneira, passado pouco tempo, já não estávamos sumbém em idade de casar.
85Outros quatro filhos de José e Virgínia faleceram, dois ainda na tenra infância, e dois, vítimas da epidemia de gripe de 1918. A filha mais nova, Amélia, nasceu em 1914. Teve um namorado durante doze anos, até que, finalmente, o pai a autorizou a casar com ele, tinha então ela trinta e um anos. Depois do casamento, o casal foi viver na aldeia natal do noivo.
86Passados apenas cinco meses, já grávida, Amélia desmaiou quando trabalhava com o marido no campo. Teve um aborto espontâneo e morreu pouco depois. As irmãs atribuem a responsabilidade pela sua morte à falta de higiene e ao facto de ela ter apanhado uma infecção que ninguém conhecia. A morte dela consternou José, uma vez que era a sua filha mais nova e a preferida. Mais contra ficou qualquer hipótese de casamento das suas outras filhas. Quando José faleceu em 1951, deixou as suas propriedade a seu filho José (que casara) e à filha mais velha ainda viva, Dores. Em troca, cabia a estes cuidar das irmãs mais novas e deixá-las viver na casa paterna até morrerem.
87Evidentemente, desencorajar as filhas de casar funcionava a favor da geração dos pais, que asseguravam assim a presença de alguém que cuidasse deles na velhice, uma preocupação que os testamentos demonstram ser prioritária, e a quem podiam «recompensar» pelos seus serviços, legandolhes o terço. Além disso, deixar o terço a uma filha solteira era um mecanismo pelo qual as terras poderiam ser reunidas em vez de redistribuídas. As tias solteiras favoreciam um sobrinho ou uma sobrinha, em especial o que vivia com ela desde criança e a estimava.
88Uma última atitude está condensada no caso de uma solteira idosa chamada Luísa. Nascida em 1900, em Sá (concelho de Ponte de Lima), Luísa foi para Santa Eulália em 1913, depois do casamento da mãe com o padrasto, um casamento a que se opusera mas que a mãe lhe declarara «ser o seu destino». O padrasto era um homem violento que espancava frequentemente a mulher e a enteada. Nunca se queixaram, explicou ela, «porque naqueles tempos as pessoas eram mais ignorantes e analfabetas». Sublinhou que o padrasto já tivera antes duas mulheres que haviam morrido ainda novas e que a sua própria mãe faleceu quando tinha apenas cinquenta anos. Atribuía todas essas mortes prematuras aos maus tratos do padrasto. Embora Luísa tivesse vários pretendentes e diversas oportunidades de casar, as lembranças negativas que guardava do padrasto convenceram-na a «nunca cometer o erro que a mãe cometera».
89Se as atitudes culturais perante o celibato feminino e o casamento parecem ter sido importantes, talvez pudéssemos também analisar os factores socioeconómicos, a situação de certas famílias, e os papéis de determinados filhos nessas mesmas famílias. Uma linha de estudo a seguir consiste em saber se a ordem de nascimento de uma filha tinha alguma coisa que ver com o facto de ela casar ou não. Há, por exemplo, uma tendência para a filha mais velha ficar solteira, porque o encargo de ajudar a mãe a cuidar dos germanos mais novos recai sobre ela quando ainda é muito jovem? Ou, inversamente, nota-se uma tendência para ser a filha mais nova a manter-se solteira, porque é sobre os seus ombros que recai a tarefa de cuidar dos pais idosos, uma vez que os irmãos e irmãs mais velhos já casaram e constituíram os seus próprios agregados familiares? Naturalmente, há exemplos de ambos os tipos de situações no registo etnográfico. Existem igualmente exemplos nos registos históricos mas, no contexto de toda a população de filhas celibatárias estudada segundo a ordem do nascimento, ser a mais velha ou a mais nova não era um factor significativamente determinante do ponto de vista estatístico.
90No que se refere aos filhos, o número de casos, em qualquer década, em relação aos quais podemos ter a certeza de se tratar de celibato definitivo são tão poucos que é difícil extrair daí outra conclusão a não ser que, a longo prazo, não é por si uma parte importante do quadro demográfico. Nuns quantos casos, os solteiros definitivos eram filhos únicos ou filhos mais velhos de famílias só com descendentes do sexo masculino, mas também houve casos de filhos do meio, com irmãos e irmãs mais velhos e mais novos que ficaram solteiros.
91O que parece evidente é que há famílias com tendência para o celibato feminino ou masculino. Contudo, se se estudarem mais pormenorizadamente essas famílias, com base nos poucos dados socioeconómicos disponíveis, não é possível sustentar que essa prática era mais frequente num grupo socioeconómico do que noutro. Ao longo da maior parte do século XIX, os descendentes de famílias de lavradores, tanto de lavradores médios como de abastados, parecem ter manifestado aproximadamente a mesma tendência para o celibato. Por exemplo, a família de lavradores Artilheiro, que já aqui foi analisada, produziu filhos solteiros durante várias gerações, incluindo um que foi pároco da freguesia, entre 1849 e 1863. Na realidade, os cinco padre naturais da freguesia cujas mortes foram averbadas nos registos de Santa Eulália no século XIX provinham das famílias de lavradores mais desafogadas. O custo dos estudos no seminário era tão elevado que só as famílias com alguns meios o podiam suportar. Ao contrário do que se passava na classe aristocrática, o envio de um filho para o seminário não constituía, neste caso, um meio de o privar do direito a outros bens paternos, pois, por vezes, os filhos padres eram os destinatários do terço dos pais.
92Um outro exemplo é o caso do filho de João Martins da Costa, um lavrador que no rol eleitoral de 1845 foi tributado no mais alto escalão em vigor nesse ano. João casou, em 1812, com Ascenção da Costa. Morreram ambos em 1850, com um mês de intervalo. O casal teve nove filhos, seis dos quais alcançaram a idade adulta. As duas filhas mais velhas das cinco que o casal teve casaram, uma com vinte e nove anos, antes da morte dos pais, e a outra, em 1861, depois de eles terem falecido e quando tinha trinta e oito anos. O único filho, aliás o mais novo de todos os descendentes do casal, também casou em 1870, com trinta e nove anos. As outras três filhas ficaram solteiras, tendo falecido respectivamente em 1900, 1897 e 1911, com setenta e cinco, setenta e oitenta e dois anos. Em 1850, as três irmãs solteiras e o irmão viviam com uma tia celibatária, irmã da mãe, numa casa no lugar de Lamas, onde continuaram a viver durante o resto do século. Tinham herdado dos pais em partes iguais e, quando a tia faleceu, em 1859, deixou os seus bens aos sobrinhos, também em partes iguais.
93No outro extremo da escala socio-económica, entre os lavradores menos prósperos, há também inúmeros exemplos de famílias com vários filhos que nunca casaram. Um desses casos foi o dos filhos de Manuel José de Sousa e Luísa Pereira. Manuel não aparece em nenhum dos róis eleitorais anteriores à sua morte, o que nos leva a crer que não possuía bens suficientes para neles ser incluído. Casara com Luísa em 1823 e, nos dezoito anos que se seguiram, Luísa deu-lhe oito filhos, seis dos quais sobreviveram. O filho mais velho, António, nunca casou; o segundo, uma rapariga, casou em 1871, com trinta anos; as duas filhas a seguir nunca casaram, e a filha e o filho mais novos casaram, ela em 1872, com trinta e três anos, e ele, em 1869, com vinte e oito. Os pais haviam falecido antes de qualquer destes casamentos: Manuel, em 1846, e a mulher, em 1869. António de Sousa, que era mencionado como lavrador no arrolamento de bens de 1871 como tendo uma junta de bois e terras a que era atribuído o valor de 0S960 e as suas duas irmãs solteiras continuaram a viver na casa paterna, no Lugar da Feira, até morrer, o que aconteceu na primeira década do século XX. Quando o irmão mais novo, Manuel, casou, estabeleceu um novo agregado familiar, ficando a viver perto da casa dos pais.
94Há também casos de famílias de jornaleiros pobres ou de famílias em que o chefe de família era fundamentalmente um artesão que tinham vários filhos solteiros. Por exemplo, dos seis filhos que alcançaram a idade adulta do sapateiro Leandro do Val, que casara em 1841 e a cujos bens foi atribuído o valor de 0$900 no arrolamento de 1871, só um, o segundo, casou na freguesia. O mais velho desaparecera dos Róis da Desobriga em 1870, e o terceiro e o sexto foram ambos dados como ausentes em 1881. O quarto, apontado como ausente em vários róis, morreu solteiro, em 1938, com oitenta e sete anos, e o irmão logo a seguir a ele faleceu, também solteiro, em 1906, com vinte e três anos. Das quatro filhas que o casal teve, só uma, a mais nova, não casou, tendo morrido solteira em 1944, com setenta e oito anos. Porém, duas das suas irmãs mais velhas esperaram que os pais falecessem — a mãe, viúva, morreu em 1893 — para casar. Uma tinha então trinta e dois anos e a outra, quarenta e dois.
95Embora todos os casos analisados até aqui provenham de casamentos celebrados durante a primeira metade do século XIX, poderiam citar-se exemplos semelhantes relativos à segunda metade do século. Parece ter havido também dois e três casos de celibato feminino em certas famílias. Parece ter havido uma maior tendência neste período do que no anterior para, nas famílias com apenas uma filha solteira, essa filha ser única ou então a mais velha. Uma outra tendência da primeira metade do século que se manteve e que ainda não foi referida consistia em que as filhas que não casavam faziam com frequência parte da população de mulheres da freguesia que tiveram filhos concebidos fora do casamento. Aliás, isso podia ser uma das explicações do seu estado de «solteira». Abandonada por um homem a quem se entragara, uma rapariga via muito diminuídas as suas hipóteses de arranjar marido. Contudo, há outras maneiras de olhar para toda esta questão dos nascimentos ilegítimos, um assunto que será analisado com mais pormenor no Capítulo V.
96Acerca dos poucos filhos solteiros dos casais constituídos entre 1860 e a viragem do século, pouco se pode dizer de conclusivo ou de carácter geral. Num caso, os dados etnográficos dizem-nos que o homem passou muitos anos no estrangeiro como emigrante, voltou à freguesia já muito tarde, e passou o resto dos seus dias a viver, no meio de um grande desleixo, com a irmã solteira. Noutro caso, o mais velho dos dois filhos de António Araújo era demente e, portanto, ficou solteiro. Brandes (1976) sugeriu efectivamente que as deficiências mentais e físicas existentes numa família podem ter afectado o estado civil dos membros dessa família em geral. Embora não seja evidente em Santa Eulália que um indivíduo saudável fosse estigmatizado pela doença ou deformidade física de um germano na mesma medida em que Brandes refere no caso da aldeia de Becedas (na verdade, esse aspecto não foi mencionado em nenhuma das explicações que nos foram dadas para o celibato masculino e feminino, tão frequente em certas famílias), as deformidades físicas de um determinado indivíduo foram uma razão suficiente para não casar.
97Naturalmente, os factores económicos, demográficos e culturais deveriam ser todos tido em consideração, em qualquer tentativa de compreender o celibato tanto no Noroeste de Portugal como em qualquer outro lado. Para as mulheres do Noroeste de Portugal havia alternativas sociais compensadoras ao casamento e à procriação. Embora as mulheres solteiras continuem a ser tratadas por meninas até aos trinta e tal anos (o que dá a entender que a possibilidade de casar se mantém), a certa altura tornam-se tias (o que significa a passagem ao celibato definitivo). Todavia, ser tia é uma situação muito respeitável e, na verdade, uma forma de tratamento aplicada a pessoas que não são da família. As tias herdam; fazem de madrinhas; ajudam as irmãs casadas ou os irmãos viúvos que não voltam a casar a criar os filhos, e vivem com frequência na mesma casa. Aliás, poderia dizer-se que existe toda uma cultura feminina do celibato no Noroeste de Portugal, e é óbvio que está muito longe de ser considerado uma situação infeliz. As solteiras trabalham em conjunto nas suas próprias terras ou como jornaleiras ou criadas. Colaboram nas actividades da igreja, sendo catequistas ou cantando na missa de Domingo. Segundo as palavras de um informador, «ficam para vestir imagens». Em resumo, dão uma contribuição muito importante para a vida religiosa da paróquia.
98Ainda que, hoje em dia, haja, em Santa Eulália, raparigas que não casam, a atitude perante o celibato feminino está a modificar-se. À medida que a região se torna mais próspera, o receio de que o casamento conduza à penúria diminui. De facto, quando as oportunidades de emigração para França se abriram às mulheres, o número de solteiras que foi para o estrangeiro aumentou. Algumas partiram em busca de marido — uma reacção ao desequilíbrio demográfico criado pela acentuada subida da emigração clandestina de homens que pretendiam fugir ao serviço militar, nos começos da década de 60. Outras, aceitando o celibato provavelmente definitivo, foram em busca de um salário melhor, tencionando juntar os seus ganhos no estrangeiro para poder construir uma casa, comprar terras para arrendar ou abrir um pequeno negócio (Brettell 1978). Em Santa Eulália, uma dessas mulheres solteiras utilizou o seu pecúlio para abrir a primeira pensão da freguesia. Outra comprou um apartamento, em Viana do Castelo.
99No entanto, o que é importante referir é que as mulheres solteiras de Santa Eulália não são e provavelmente não eram alvo da piedade dos outros nem consideradas infelizes por não terem casado. Tiveram e podem ter uma vida plena. O caso de Palmira Ferreira condensa tragicamente o resultado de uma situação em que uma mulher solteira é privada de alguns dos papéis importantes associados a um vida plena. Sendo uma dos muitos filhos de António Ferreira, Palmira nunca casou. Passou a maior parte dos primeiros anos da sua vida adulta a cuidar do pai viúvo e, quando este faleceu, dos irmãos solteiros — Basílio (que era atrasado), Carlos (que andava a estudar para ser padre) e António (que passou muitos anos em França, na década de 1960).
100O objectivo de António ao emigrar para França era juntar o dinheiro suficiente para comprar ao conde a terra e casa que o pai fora obrigado a vender-lhe no decénio de 1930, em consequência de dificuldades económicas. Em 1970, quando reuniu a quantia necessária, António voltou para Portugal para sempre. Alguns meses depois, decidiu casar. A sua decisão perturbou seriamente Palmira por duas razões. Para noiva, António escolhera a irmã de um homem que fora conversado da irmã. Na altura, como Palmira era pobre, a família dele opusera-se ao casamento. Ver essa família mudar de atitude e autorizar a filha a casar com o irmão, porque agora este possuía uma casa e bastantes terras, foi um golpe para ela. Em segundo lugar, receava que no novo agregado, à frente do qual ficaria a cunhada, não tivesse nenhuma função a desempenhar. Deixaria de ser ela a mulher que governava a casa. São estas explicações que a família e os amigos de Palmira dão para o seu suicídio. Em Dezembro de 1970, apenas um mês antes de o irmão casar, Palmira atirou-se a um poço muito fundo. Só dois dias mais tarde encontraram o corpo.
Casamento e Constituição de Agregados Familiares
101Quando Manuel Martins e Maria Alves de Castro casaram, em 1882, foram viver com a mãe de Manuel, que era viúva. Por morte desta, Manuel tornou-se o chefe de família e quando, por sua vez, o seu filho casou, em 1907, foi com a noiva viver com Manuel e Maria. Seja por que motivos for, nenhum destes casais se parece ter preocupado muito com a condição prévia expressa pelo ditado popular, tantas vezes citado, de que quem casa, quer casa18. Em contrapartida, Isabel da Rocha preocupou-se com isso. Isabel foi criada-numa casa de duas divisões por uma tia materna. Desde muito cedo, trabalhou como jornaleira nas terras das famílias Tinoco e Pimenta da Gama. Quando rondava os vinte e cinco anos, recebeu uma proposta de casamento de um jovem de Santa Comba, uma freguesia mais para o interior. Era filho único e «teria sido um bom partido». Mas Isabel não queria deixar Santa Eulália, nem a casa que herdaria quando a tia falecesse. Vários pretendentes de Santa Eulália foram também afastados, em primeiro lugar, a pedido da tia solteira que «não queria que a sobrinha trouxesse um estranho para casa». Isabel respeitou o desejo da tia. Além disso, a tia era «tolinha» e Isabel «não queria ter problemas com o marido». Só quando a tia morreu — Isabel tinha então já trinta e sete anos — é que casou com Joaquim dos Reis, um homem nove anos mais novo do que ela.
102Embora originalmente proviesse da freguesia de Sá no concelho de Ponte de Lima, Joaquim trabalhava como jornaleiro para a família Tinoco há vários anos. Era pobre, mas um homem «muito trabalhador, poupado e sério». E tinham um lugar, ainda que modesto, onde viver e que aliás lhe pertencia. Para Isabel, herdar essa casinha era obviamente um elemento importante dos seus planos de casamento e, enquanto não foi inteiramente sua e não ficou livre dos deveres para com a tia, preferiu adiar qualquer projecto de arranjar marido. O caso de Isabel sugere que a possibilidade de formar um novo agregado familiar é um factor importante a considerar, quando se procuram compreender as características da nupcialidade. A possibilidade é obviamente limitada pelo acesso a habitação, pela capacidade económica de um casal de construir ou arrendar uma nova casa e adquirir a terra onde fica situada ou pela facilidade com que um casal recente pode ir viver numa casa já ocupada por um ou vários membros da família da noiva ou do noivo.
103Foi em torno da questão da estrutura do agregado familiar e dos modelos de residência que a maior parte da investigação recente no campo da história da família se concentrou. E é esta mesma questão que leva os antropólogos e historiadores a estudos intensivos e por vezes opostos. Com o material a que tem acesso, o historiador pode fornecer elementos relativos à predominância, em termos estatísticos, de certos tipos de grupos de residentes, mas o que significa precisamente a predominância em termos estatísticos? Verdon (1980) levanta várias questões interessantes a este respeito. Se tivermos uma comunidade onde 50% dos agregados familiares são famílias nucleares, é uma percentagem elevada ou baixa? E reflecte uma norma ou regra cultural? Será que o grupo de residentes que um historiador descreve tem alguma coisa a ver com os grupos domésticos que os antropólogos observam? E os modelos de residência em si terão algum interesse além do que nos podem dizer acerca do casamento, da economia e das relações de parentesco? Obviamente, o historiador está limitado pelos seus dados, neste sentido. As listas censitárias não nos dizem nada dos motivos que estiveram por detrás da formação de um tipo de agregado em vez de outro. Contudo, se se tiverem em consideração o contexo cultural e certas pressões estruturais, quer económicas, demográficas, políticas, sociais ou culturais, podemos, pelos menos, formular algumas hipóteses fundamentadas sobre as razões que levam a que certos tipos de agregados prevaleçam sobre outros.
104Para determinar o carácter da formação de agregados familiares e da estrutura familiar de Santa Eulália e a relação entre o que parece ser um ideal de neo-localidade e nuclearidade (pelo menos as pessoas de Santa Eulália expressam claramente que é esse o ideal) e a distribuição efectiva das diferentes espécies de agregados é importante, sobretudo dadas as diferenças de opinião quanto às ligações teóricas entre certas formas de agregado e de família e as características da nupcialidade per si. Por um lado, há uma linha de pensamento que sugere que, como as famílias nucleares impõem mais pressões sobre os recursos económicos, a idade no casamento será mais elevada porque é preciso mais tempo para juntar os meios necessários para a formação de um novo agregado. Por outro, os agregados constituídos por uma família nuclear foram sempre associados a uma nupcialidade elevada, uma vez que ambas as coisas são uma consequência directa (num sistema ideal) de um sistema de herança divisível. Na verdade, estes agregados foram considerados a forma mais adaptável de agregado, numa zona caracterizada pela divisibilidade da herança, enquanto os agregados constituídos por famílias extensas estão possivelmente relacionados com a indivisibilidade da herança, elevada emigração e baixa nupcialidade (Habakkuk 1955). Também neste caso, o Noroeste de Portugal nos coloca perante algumas charadas difíceis de decifrar, pois é uma região com tendência para a divisibilidade (embora não inteiramente em partes iguais) e, no entanto, caracterizada por uma elevada idade no casamento e por uma nupcialidade global baixa.
105Acresce que há divergências tanto na literatura histórica como na etnográfica no que se refere a saber onde é que as famílias são mais frequentemente extensas, múltiplas ou nucleares e ao que a prevalência de uma dessas formas podia significar para uma avaliação do carácter da família portuguesa.19 Nesta literatura, o Norte de Portugal é descrito como uma região onde predomina o tipo de agregado constituído pela família extensa e o Sul, como uma zona onde prevalecem agregados formados por uma família nuclear (ver Rowland, 1983). Boisvert (1968:96), por outro lado, vê a diferença em termos verticais e não espaciais, defendendo que «as famílias nucleares são predominantes nos sectores populares do campo e das cidades (enquanto) as famílias com tendências patriarcais são mais frequentes entre médios e pequenos proprietários e nas classes médias urbanas».
106Na ausência quer de manuscritos de censos quer de algo equivalente a registos da população civil, a fonte mais útil relativamente a dados a nível individual sobre a estrutura dos agregados familiares de Santa Eulália são os Róis da Desobriga. O rol mais antigo sobre Santa Eulália de que se dispõe, remonta a 1850; são esporáricos até 1900; desde então e até 1927, foram realizados com um carácter razoavelmente sistemático.20 Devido às limitações temporais destes dados sobre os agregados familiares, a nossa análise centra-se nos finais do século XIX e começos do XX. Contudo, uma vez que foi precisamente durante este período que outros fenómenos mais estritamente demográficos parecem ter alcançado níveis sem precedentes faz sentido conceder-lhe especial importância. Quando associados a elementos dos registos paroquiais, esses róis, não obstante a sua falta de periodicidade, demonstram de facto a existência de algumas relações intrigantes entre nupcialidade e formação de agregados familiares em Santa Eulália.
107O Quadro 3.13 fornece-nos a distribuição dos diferentes tipos de agregados, indicando as percentagens de cada um deles, correspondente a diversos anos compreendidos entre 1850 e 1927. Os agregados foram classificados de acordo com o sistema de Laslett e Wall (1972), no qual foram introduzidas importantes modificações.21 Além disso, e conforme se refere nas notas ao quadro, as distribuições relativas aos anos de 1850 e 1870 correspondentes a casais que vivam sozinhos (3a) e famílias nucleares simples (3b) foram corrigidas, através do confronto dos registos com dados obtidos por meio de reconstituição de famílias porque, durante esses dois anos, as crianças com menos de sete anos (isto é, que ainda não haviam feito a primeira comunhão) não eram incluídas nos róis. A correcção é bastante completa, embora não inteiramente rigorosa, uma vez que os dados não permitem correcções em relação a casais que não tinham casado na freguesia mas que ali residiam à data de ambos os róis22.
108Estes dados permitem-nos apurar várias coisas. A primeira é a descida acentuada da proporção dos agregados complexos (tanto múltiplos como extensos), entre 1850 e 1881. A essa descida corresponde um aumento dos agregados simples (em especial agregados de famílias nucleares — 3b) e, em menor medida, de agregados constituídos por homens solteiros ou mulheres solteiras (lb) que viviam sozinhos. Obviamente, o estabelecimento de noventa e um novos agregados no intervalo de trinta e um anos entre 1850 e 1881 (aproximadamente três por ano) é um reflexo das mudanças verificadas nos tipos de agregado. Porém, em 1887, a tendência inverteu de sentido; houve um ressurgimento dos agregados de família extensa ou múltipla, enquanto a percentagem de agregados constituídos por uma família nuclear desceu e se manteve relativamente constante (rondando os 50%) durante as três décadas seguintes. Os dados extraídos dos censos nacionais confirmam as tendências relativas à formação de agregados que surgem de uma análise dos róis. Segundo os censos, foram criados em Santa Eulália, entre 1864 e 1878, cinquenta novos agregados. Este número representa uma subida muito acentuada, tendo em conta que, na década seguinte, o número de novos agregados desceu para 40 (diminuindo portanto em dez) e mantendo-se depois num nível relativamente estacionário até à década de 1920 (Quadro 3.14).
109A estas mudanças na distribuição dos vários tipos de agregado correspondem modificações na dimensão destes. Enquanto, em 1850, 18,7% dos agregados tinham sete pessoas ou mais, em 1870, só 9,9% possuíam esse número de elementos.23 Em 1881, a proporção de agregados maiores começa a aumentar de novo, continuando a subir até 1913, altura em que 27,1% dos agregados familiares da freguesia eram formados por sete ou mais pessoas. Com base quer nos dados censitários quer nos elementos dos róis, e quer de jure quer de facto, os agregados aumentaram efectivamente de dimensão durante as primeiras décadas do século XX e, salvo no decénio de 1940, pareceram continuar a aumentar nas de 1950 e 1960 (Quadro 3.14). Este modelo é indubitavelmente diferente do que foi descrito em relação a outras partes da Europa ocidental. Segalen (1980), por exemplo, apurou que, na aldeia francesa de St. Jean Tromilon, em 1836, os agregados familiares eram constituídos em média por 6,2 elementos; em 1866, por 5,8; em 1896, por 5,5; em 1926, 4,4; e em 1975, 2,8. Neste mesmo período, a proporção de agregados múltiplos em St. Jean Tremilon desceu de 16,3% para 3,6%, e as famílias extensas, depois de terem sofrido um aumento significativo nos finais do século XIX e princípios do XX, em 1975 tinham voltado ao seu nível de 1836 (4,5%). É, contudo, interessante notar que o tamanho médio do agregado familiar em Santa Eulália nunca foi tão elevado como o da aldeia francesa estudade por Segalen, nem sequer nas primeias listas de 1712 e 1800. Uma descida da mortalidade infantil ou um aumento da fecundidade (em consequência de uma idade mais baixa no primeiro casamento) poderiam explicar as tendências manifestadas no século XX. E também—excepto nos começos deste século — a elevada proporção de agregados complexos.
Figura 3.3 Chave das Classificações de Tipos de Agregados Familiares Relativas a Dados Sobre Santa Eulália
Pessoas sós |
Solteiros co-residentes 2b Parentes de outro tipo co-residentes |
Agregados de famílias simples |
Agregados de famílias extensas |
Agregados de famílias múltiplas |
Outros |
110Na realidade, é util distinguir, como faz o Quadro 3.13, os diversos tipos de agregados múltiplos e extensos dentro da categoria de agregados complexos. Na década de 1890, os agregados extensos representavam um quinto do número total de agregados, o que significava um aumento de cerca de 10% em relação ao início do decénio de 1880. Este aumento pode explicar-se, em grande medida, por uma subida muito acentuada do número de agregados extensos em sentido ascendente, devido à inclusão de um dos pais ou sogros do chefe de família (4a). Uma das causas principais desta tendência (que depende em parte da maneira como os dados foram classificados) é uma alteração relativa à designação do chefe de família, a qual reflecte, talvez, por seu turno, uma mudança do detentor do poder e da autoridade. Um filho ou um genro que era descrito como um subordinado no rol anterior foi elevado à categoria de chefe de família, provavelmente quando o parente mais velho atingiu uma idade em que passou a ser difícil para ele gerir o agregado — daí a correspondente descida da percentagem de agregados múltiplos, em especial dos que eram chefiados por um progenitor ou um sogro viúvo, mais frequentemente uma viúva do que um viúvo. Ao longo do tempo, os números tendem a sugerir que essa transmissão da autoridade, medida em termos de quem era designado chefe da família, é cíclica e, portanto, não altera o facto de as mulheres viúvas serem incontestavelmente reconhecidas como chefes de agregados constituídos por uma família nuclear, extensa ou múltipla, enquanto podiam assumir as funções inerentes a essa posição. Na verdade, as mulheres representavam aproximadamente entre 13 e 20% de todos os chefes de famílias simples e extensas (excluindo os de pessoas sós e solteiros que viviam juntos) entre 1850 e 1907, e 24 e 25%, em 1913 e 1920. Isto difere substancialmente do que, por exemplo, Kertzer (1984b) apurou em relação ao centro de Itália nos finais do século XIX e princípios do xx, e sublinha claramente a importância das mulheres na sociedade rural do Noroeste de Portugal.
111Na categoria da família extensa é igualmente importante o número de agregados extensos em sentido descendente pela inclusão de um neto (4c), na maioria dos casos filho de uma filha solteira. Sieder e Mitterauer (1983) encontraram exactamente o mesmo tipo de agregado de três gerações na Baixa Áustria e associaram-no à aceitação generalizada dos filhos ilegítimos na região. Como o Capítulo V demonstrará, foi cerca da última década do século XIX e da primeira do XX que a ilegitimidade alcançou em Santa Eulália níveis sem precedentes. Em 1899, cerca de 5% dos agregados eram constituídos por mulheres solteiras com os filhos ilegítimos (3e) e outros 5% eram compostos por mulheres nestas circunstâncias que viviam com os pais (4c). Encontram-se também mais alguns netos ilegítimos em agregados que se tornaram extensos em mais do que uma direcção (4f).
Quadro 3.14 Aumento do Número de Agregados Familiares em Santa Eulalia, 1527-1960
112O número de agregados prolongados lateralmente devido à presença de um germano ou de um cunhado (4c) não deve ser também ignorado. Em diversos casos, isso acontecia quando um casal jovem inserido num agregado múltiplo herdava por morte dos pais, a casa destes, onde já viviam germanos seus que ali continuaram a viver. Em geral, esses germanos ou cunhados eram mulheres que não tinham casado. Vale, pois, a pena observar que estes tipos de agregados de famílias extensas (4c e 4e), na medida em que reflectem um aumento do número de raparigas que não casaram, podem ter sido uma consequência indirecta da emigração masculina. O aumento do número de mulheres solteiras que viviam sozinhas entre 1850 e 1870 e a estabilidade deste número (entre 6 e 7% de todos os agregados) até ao final do século também estão obviamente ligados à emigração masculina. Por último, a descida da proporção de agregados compostos por homens solteiros que viviam sozinhos de 5% em 1881, para um valor que oscilava entre 1 e 2%, a partir dessa data, não deve ser também ignorada neste sentido.
113A mais importante mudança a longo prazo da estrutura dos agregados familiares em Santa Eulália, entre 1850 e 1920, foi a diminuição em 50% dos agregados de família múltipla. Os agregados de família simples e os de família extensa mantiveram proporções idênticas no começo e no final do período. Contudo, se associarmos os agregados de família extensa e os de família múltipla e os analisarmos conjuntamente como representativos de uma estrutura de agregado complexo, e não a proporção entre simples e complexos, foi sensivelmente a mesma em 1927 e em 1850. Obviamente, o que tem mais interesse é a descida a curto prazo da percentagem de agregados complexos a certa altura na década de 1850 ou de 1860, e a persistência dessa tendência até meados do decénio de 1880.
114Devemos interrogar-nos sobre se as alterações ao sistema fundiário resultantes do novo Código Civil de 1867 facilitaram a difusão de agregados independentes, pelo menos a curto prazo. Recorde-se que este Código estipulava que a herança deveria ser dividia em partes iguais pelos descendentes, determinava a abolição de todos os vínculos, o registo de todos os foros e a distribuição das terras de pastagens comuns. Todavia, na década de 1880, agravado por uma população crescente, o processo de divisão tinha prosseguido, alcançando o ponto da inviabilidade, de tal forma que não havia terras disponíveis nem para a construção nem para a agricultura. Além disso, as novas leis fiscais introduzidas no decénio de 1880 significaram um fardo muito pesado para as populações rurais do Noroeste de Portugal, incluindo Santa Eulália, fardo esse que veio pôr termo à tendência para a formação de agregados familiares independentes. Em especial as terras dos foros foram fortemente tributadas, obrigando os donos a vender inúmeras pequenas parcelas e por conseguinte ameaçando os meios de subsistência de inúmeros lavradores-rendeiros (Martins 1885).
115Neste contexto, a emigração começou a subir na década de 1880 e prosseguiu até à I Guerra Mundial. A emigração contribuiu não só para reduzir o número total de agregados mas também para aumentar a percentagem de agregados complexos. Efectivamente, o traço mais característico das regras de residência em Santa Eulália talvez seja uma forte tendência uxorilocal. Alguns destes agregados uxorilocais resultavam do facto de um noivo oriundo de outra freguesia ficar a viver em Santa Eulália depois de casar mas, mesmo entre casais em que ambos os membros eram naturais de Santa Eulália, havia mais tendência para viver com os pais da noiva do que com os pais do noivo. A emigração de um dos cônjuges pode explicar parcialmente este preconceito relativo ao local de residência. Se era obrigada a viver sozinha, a mulher preferia ficar com os seus próprios pais a estar com os do marido, aliás talvez preferisse mesmo ficar com os pais a viver sozinha na sua própria casa.24 Além disso, se um jovem casal ia continuar a ajudar a cultivar as terras da geração anterior, depois do casamento, atendendo a que as mulheres trabalhavam mais na agricultura do que os homens (uma divisão do trabalho por sua vez derivada de uma tradição de emigração predominantemente masculina), o modelo uxorilocal de residência faz o maior sentido. Na verdade, no virar do século, havia inúmeros agregados em que tanto o chefe de família mais velho como o genro estavam ausentes, tendo deixado mãe e filha a cuidar das terras da família. Na ausência dos homens, a reunião de recursos conseguida através de uma família extensa ou múltipla era uma solução muito satisfatória do ponto de vista económico. E, se as mulheres reuniam os recursos económicos nestas famílias extensas ou múltiplas, o mesmo se pode dizer dos homens como emigrantes. Embora ausentes, eles eram essenciais para o bem-estar financeiro do agregado e, neste sentido, em última análise é impossível conceber o agregado familiar de Santa Eulália, e portanto da família da freguesia, como uma entidade localizada no espaço.
116Os agregados complexos, tanto múltiplos como extensos, eram, sem dúvida, frequentes em Santa Eulália, rondando um quarto de todos os agregados da freguesia entre 1850 e 1927, com a importante excepção do período entre a década de 1860 e os meados da de 80. É significativo notar, porém, que apenas num momento é que a proporção de agregados simples é inferior a 50%, o que parece indicar que, pelo menos, metade da população conseguia realizar o ideal de formar um agregado independente. Vale a pena averiguar quanto tempo era necessário para alcançar esse objectivo, especial mente se se atender a que os casamentos dependiam em parte do acesso à habitação. Isso pode ser feito confrontando os dados dos róis com os registos de casamento.
117Entre 1840 e 1849, por exemplo, foram celebrados em Santa Eulália cinquenta e cinco casamentos. Em 1850, quarenta e cinco destes casais recentemente constituídos puderam ser relacionados com agregados mencionados no rol desse ano. Dos dez restantes, seis eram casais que provavelmente foram viver noutro lugar (na sua maioria, o noivo era de outra freguesia e não há qualquer outra informação adicional sobre eles nos registos de Santa Eulália) e dois foram casamentos na classe «aristocrática». Entre os quarenta e cino casais relacionados com agregados mencionados no rol de 1850, um pouco mais de um terço vivia em agregados múltiplos, doze deles uxorilocalmente e cinco, virilocalmente.25 Quase metade vivia só em agregados nucleares (3b) ou potencialmente nucleares (3a). Cinco deles viviam na sua casa mas tinham como eles um parente: num caso, um progenitor viúvo (4a), em três casos, um germano de um dos cônjuges (4e) e no último caso, uma tia (4d). Alguns destes últimos agregados, embora complexos, deveriam ser com mais propriedade considerados agregados nucleares, quando aquilo que se toma em consideração é a independência em relação à geração mais velha. Embora haja fortes indícios de que, dez anos após o casamento, quase dois terços dos casais conseguiram já formar o seu próprio agregado, o restante terço, que continuava a viver com a geração paterna numa posição subordinada dentro do agregado, não deve ser ignorado.
118Parece não existir qualquer diferença em função de o casamento ter sido celebrado no princípio ou no final da década. Porém, aquilo que devemos averiguar é se houve diferenças quanto às idades com que esses cônjuges casaram. E, de facto, houve. A idade média dos noivos que casaram nesta década e que em 1850 viviam em agregados múltiplos era de 26,8 e a das noivas, de 26,5, ambas consideravelmente inferiores à idade média de todos os casamentos dessa década. A idade média dos noivos que casaram pela primeira vez com noivas até aí solteiras (ou seja, excluindo os quatro casamentos de uma viúva ou de um viúvo) e que formaram um agregado independente era de 30,1 e 26,8, respectivamente. Embora a diferença entre esses dois grupos seja pequena, no que se refere às noivas, é significativa quando toca aos noivos, o que indica que os que conseguiram estabelecer agregados independentes esperaram mais tempo para casar e provavelmente tinham juntado algum dinheiro que lhes permitiu comprar, construir ou alugar uma casa separada para albergar a nova família. O que não sabemos ao certo é se a principal motivação da espera foi o desejo de ser independente depois do casamento, que levou a que o casamento tivesse sido adiado em alguns casos, ou se foi a impossibilidade de viver com os pais quer do rapaz quer da rapariga. Em nenhum dos casos de casais que viviam numa família extensa foi o casamento mais precoce determinado por uma gravidez prémarital e não é possível definir um modelo com base na ordem de nascimento ou na ordem de casamento. Cinco dos noivos eram filhos primogénitos, mas três deles casaram uxorilocalmente. Cinco dos casamentos envolviam três pares de germanos e em quatro casos os jovens casais provinham de famílias de lavradores abastados, que podem ter achado necessário que pelo pelo menos um filho ou uma filha casasse e ficasse a viver em casa. Ou seja, é possível que os agregados múltiplos sejam mais característicos de um segmento da população do que de outro. Voltarei a este ponto em breve.
119Dos cinquenta e quatro casais que se uniram pelo matrimónio entre 1860 e 1869 que puderam ser associados ao rol de 1870, quase dois terços viviam em agregados autónomos (3a ou 3b) em 1870. Na realidade, a estes deveríamos provavelmente somar os agregados de três viúvas que casaram e depois perderam o marido, na mesma década. Todas elas viviam sozinhas com os filhos, em 1870. Só dois dos agregados do rol de 1870 que puderam ser relacionados com casamentos celebrados na freguesia na década anterior eram múltiplos, sendo ambos uxorilocais e tendo sido contraídos em 1869, pouco antes do rol. Além disso, havia quatro agregados extensos em sentido lateral, devido à presença de um germano ou cunhado/a (4e). Dirse-ia que, em 1870, os novos casais formavam os seus próprios agregados muito mais rapidamente do que vinte anos antes. O aumento da proporção de agregados nucleares patente no Quadro 3.13 é obviamente uma manifestação desse facto. Atendendo a que a proporção de agregados múltiplos entre os coortes casados no período 1860-1869 é muito pequena, é fútil comparar as idades médias no casamento destes dois grupos de casais (os que viviam independentes contra os que viviam com os pais) nesse ano.
120Esta predominância de agregados independentes entre os casais constituídos na década anterior a um rol continuou em 1881. Nenhum dos casais constituídos entre 1870 e 1881 que puderam ser associados ao rol de 1881 vivia num agregado múltiplo em 1881 e apenas três eram extensos em sentido lateral. Mais uma vez, embora não possamos estar certos do que é causa e do que é efeito, o facto de casarem mais tarde parece ter significado para os casais constituídos durante as décadas de 1860 e 1870 que, quando chegam efectivamente a casar, tinham a possibilidade de formar muito rapidamente um agregado independente.
121Contudo, como era de prever, dada a distribuição de tipos de agregados patente no Quadro 3.13, esta tendência praticamente exclusiva para a formação rápida de um agregado independente por parte dos casais recentemente constituídos tinha-se invertido, em 1887. Dos sessenta e quatro casais constituídos entre 1877 e 1887 e que puderam ser ligados ao rol de 1887, vinte e três viviam em agregados de famílias nucleares (incluindo dois casais em que um dos cônjuges já falecera — 3c e 3d) e oito eram casais sem filhos (3a).26 Em conjunto, estes agregados simples representavam quase 50% dos casamentos celebrados entre 1877 e 1887, e a idade média no casamento deste grupo de noivos e noivas (excluindo viúvas e viúvos) era de, respectivamente 32,3 e 31,3. Se lhes juntarmos os agregados extensos verticalmente ou lateralmente (4a-4f), então os casais que conseguiram formar o seu próprio agregado durante os dez anos que se seguiram ao seu casamento representam 60% de todos os casamentos celebrados nos finais da década de 1870 e começos da de 1880.
122Todavia, não podemos ignorar os restantes 40% que viviam em agregados de famílias múltiplas, treze deles uxorilocalmente (incluindo dois em que as filhas ilegítimas levaram os maridos para casa das suas mães solteiras) e doze, virilocalmente. Nestes agregados múltiplos, a idade média no casamento era de 28,9 a 31,2 anos, no caso dos noivos, e 28,9, no das noivas. Tal como em 1850, estas idades médias são mais baixas no que se refere aos casais que viviam como famílias simples, embora neste caso fosse consideravelmente mais baixa a das noivas do que a dos noivos. Será que isto indica que havia ouras circunstâncias que levavam ao casamento tardio dos homens, independentemente do segmento socioeconómico a que pudessem pertencer? Um facto curioso que este último rol nos permite verificar é que seis destes casais que viviam com os pais do noivo ou da noiva em 1887 tinham vivido em agregados independentes (3b) seis anos antes, em 1881. Quatro deles envolviam filhos únicos, em três casos os noivos estavam ausentes em 1887 e nos seis casos a mudança implicou a junção de dois agregados separados que pareciam viver em casas adjacentes, no mesmo lugar, e mencionados consecutivamente no rol anterior.
123É possível que esta tendência para a junção dos agregados se tenha dado para evitar ter de pagar impostos e dizimas suplementares num agregado independente. É certo que, em 1882, os impostos atribuídos aos camponeses tinham aumentado significativamente, para duas, três e até seis vezes mais, isto no caso em que era associado à transmissão e registo de propriedades (Sampaio 1979). Este fardo fiscal continuou a tornar-se mais pesado na década de 1890 e foi acompanhado por uma subida das taxas de juro (Teles 1903). No entanto, se o aumento de agregados múltiplos no decénio de 1980 foi uma reacção aos novos e onerosos impostos, é difícil explicar por que razão em 1899 a facilidade de e propensão dos novos casais para formar agregados independentes aumentara uma vez mais. A junção de agregados pode também ter-se dado para evitar que uma mulher vivesse sozinha (em três casos, uma viúva da geração mais velha, em três casos mulheres cujos maridos estavam ausentes e tinham filhos pequenos). Em 1887, em geral, os maridos de três jovens esposas com residência virilocal e de cinco que viviam uxorilocalmente estavam ausentes — ou seja, num quarto dos agregados múltiplos desta década.
12447% dos casamentos celebrados entre 1889 e 1899 que puderam ser relacionados com o rol de 1899 viviam em agregados de famílias nucleares e 10% eram formados por homens ou mulheres que já haviam enviuvado; ou seja, praticamente dois terços dos casais constituídos entre 1889 e 1899 estavam em agregados independentes em 1899. Apenas dez casais (17%) viviam em agregados múltiplos, cinco uxorilocalmente e 5 virilocalmente (incluindo um classificado como 5 h). Outros nove viviam em agregados que incluíam membros da família extensa. A idade média no casamento dos noivos que viviam em agregados independentes em 1899 era de 31,3, comparada com uma média de 30,8 dos dez noivos que viviam em agregados múltiplos. As médias correspondentes relativas às noivas eram 29,0 e 27,1, respectivamente.
125E, no entanto, em 1913, a tendência mudara de novo. Entre os casamentos celebrados entre 1903 e 1913, vinte e cinco casais do total de cinquenta e seis viviam em agregados de família nuclear, incluindo três viúvos que tinham voltado a casar e duas viúvas. Outros cinco viviam sós no seu próprio agregado (incluindo uma viúva que voltara a casar). No seu conjunto, estes agregados independentes representavam 53,6% dos casamentos celebrados neste período de dez anos, no início do século XX. Contudo, quase 36% dos casais constituídos durante este período de dez anos anteriores ao rol de 1913 viviam numa situação de família múltipla em 1913, dezasseis, uxorilocalmente e quatro, virilocalmente. Cinco tornaram-se extensos devido à presença de uma sobrinha (dois casos), uma tia (um caso), uma cunhada (um caso) ou uma combinação de parentes (um caso). A idade média dos noivos e noivas que viviam em agregados independentes (3a e 3b) era 28,9 e 27,4 respectivamente; a dos noivos e noivas que viviam em agregados múltiplos, 26,9 e 27,1. Tal como em 1850, a diferença é insignificante no caso das noivas, mas bastante acentuada no dos noivos. Oito dos noivos com residência uxorilocal eram oriundos de outras freguesias e nove destes casais eram jornaleiros.
126De facto, quando se analisa segundo a profissão do marido o tipo de agregado em que os jovens casais viviam quando apareceram pela primeira vez no rol, torna-se evidente que, em especial nos começos do século XX, não eram só os lavradores que viviam em agregados complexos, mas também os jornaleiros e, em menor medida, os artesãos. Em 1907, por exemplo, viviam em agregados complexos 60% dos jovens, 55% dos noivos jornaleiros e 44% dos noivos artesãos. Se o aumento do número de jornaleiros durante a primeira década do século XX deve ser tomada como um sinal da proletarização da população de Santa Eulália, incluindo dos que para lá foram viver vindos de outras freguesias, o facto de o número desses casais de jornaleiros que viviam em agregados complexos ser idêntico ao dos jovens casais de lavradores na mesma situação é uma prova de que a proletarização crescente não levou directamente à proliferação dos agregados de família nuclear, ainda que, a longo prazo, a proporção de agregados de família múltipla tenha, na verdade, diminuído significativamente. É importante observar que, tanto em 1907 como em 1813, durante um período em que sabemos que a emigração era comum, um pouco mais de um terço dos maridos de casais jovens que viviam em agregados de família múltipla estava ausente. Na maioria dos casos, eram agregados uxorilocais em que o jovem marido deixava a mulher com os pais desta, enquanto ia para o estrangeiro. O facto de, em 1887, o número de agregados de artesãos ser idêntico ao de agregados de lavradores tem também que ver com a emigração masculina. O que é certo é que a proporção de homens casados ausentes saltara de 14% de todos os homens ausentes, em 1881, para 39%, em 1887.
127Resumindo, não obstante as flutuações a curto prazo, parece que o modelo relativo às diferenças da idade média no casamento consoante um casal formara um agregado independente ou fora integrar-se num agregado múltiplo era, em 1913, igual ao de há mais de sessenta anos. Aqueles que ficavam a viver com os pais casavam ligeiramente mais cedo do que os que formavam o seu próprio agregado pouco depois de casar. Contudo, as proporções destes últimos casais flutuaram efectivamente ao longo do tempo e, durante o ciclo das suas vidas, a composição da maioria dos agregados alterou-se de acordo com a entrada e saída de certos membros da família. É, sem dúvida, verdade que mais de metade dos agregados que se podem seguir até finais do século XIX e começos do xx atravessou uma fase múltipla no seu ciclo e, se incluirmos uma fase de família extensa, então poderemos afirmar que foi o caso da vasta maioria. Embora a preferência pela família nuclear possa ter sido a norma cultural antigamente, parece que cada família se adaptou às realidade da sua situação específica, aceitando no seio do agregado uma irmã solteira, um neto ilegítimo ou um progenitor viúvo. Aliás, a preferência pela família nuclear tem de ser vista no contexto da esperança culturalmente definida de que os filhos cuidem dos pais idosos e os membros da família cuidem uns dos outros. Quando este sentimento não surgia naturalmente, era suscitado, como os testamentos dos finais do século XVIII e do XIX demonstram, por promessas de legar bens. Quando um agregado múltiplo cujo chefe era um progenitor viúvo se tornava um agregado extenso cujo chefe era o filho ou o genro, em geral este (o filho ou o genro) continuava a viver na casa depois de o progenitor viúvo ter falecido. Quando ficava lá a viver uma irmã solteira, a família pode ter querido evitar o problema da divisão dos bens. Os pais podiam, na verdade, optar por deixar a casa a ambos os filhos, a fim de garantir que um filho/a solteiro/a tivesse um sítio para viver até ao fim da vida. Em suma, o sistema — se é que lhe podemos chamar o sistema — era suficientemente flexível para permitir que os indivíduos se adaptassem a certas oportunidades ou necessidades que se lhes deparavam em diferentes momentos da vida. Os agregados expandiam-se e contraíam-se quando as condições económicas e os modelos de emigração individual se modificavam. Embora a norma da família nuclear fosse um ideal ao qual aspirar e fosse de facto alcançado por muitos casais, eram vários os fenómenos que podiam influenciar a realidade e o momento da concretização desse ideal.
128Os dados etnográficos tendem a apoiar esta interpretação de tipos de agregados flexíveis e adaptáveis. A gente da aldeia usa repetidamente a palavra «conforme» para descrever as regras de residência do passado e do presente. Isto é, embora sublinhem que o ideal é que cada casal constitua o seu próprio agregado e encarem com frequência a emigração como um meio para atingir este fim (como na verdade é), quem casa quer casa é mais uma preferência do que uma regra. Factores como o acesso à habitação (mesmo a casas que possam ser alugadas), o número de germanos solteiros que restam num agregado, a existência de terras onde construir uma casa nova são tudo aspectos importantes que influenciam uma decisão quanto à residência. Se é necessário que duas gerações vivam juntas, é melhor que seja uma filha do que uma nora, uma vez que as filhas dispensam mais cuidados e carinho. Também sublinham que o melhor é que pelo menos um filho permaneça com os pais e depois fique com a casa paterna; em relação a qual dos filhos deve ser, também dizem «conforme». O estudo de vários agregados de Santa Eulália ao longo do tempo demonstra claramente que, na realidade, isso aconteceu vezes sem conta. Alguns casais que viviam nos seus próprios agregados nucleares e neolocais viveram o suficiente para receber na sua casa um filho casado e para lhe deixarem a casa quando morreram. Outras casas ficaram para grupos de germanos solteiros. Em resumo, o que tanto os dados etnográficos como os históricos tendem a indicar é que, em Santa Eulália, os agregados eram e continuam a ser processos dinâmicos e não factos estáticos. São uma resposta às mudanças de circunstâncias e condições.
129Todavia, mesmo quando a nuclearidade é conseguida, não implica uma total independência social, emocional ou económica em relação aos outros membros da família extensa mais ampla. As redes de famílias e os deveres entre parentes, como dissemos anteriormente, transcendem a entidade local. De facto, embora alguns agregados múltiplos tenham sido uma adaptação eficaz às necessidades impostas pela emigração masculina, nem mesmo eles foram necessariamente unidades de trabalho autónomas. Acresce que, numa economia rural caracterizada pelo minufúndio extremo e por uma sucessão de tarefas agrícolas ao longo do ano, as famílias nucleares que prestavam serviços mútuos com base nos laços de parentesco ou até de vizinhança eram igualmente eficazes. E, além disso, essas famílias nucleares podiam contar com aquilo que era, nos finais do século XIX, uma população crescente de jornaleiros, em especial de jornaleiras, para satisfazer a procura de trabalho sazonal que viessem a ter de enfrentar. Essa cooperação, sobretudo sob a forma de troca de serviços, mantém-se ainda hoje e é um sinal de que se deve estabelecer uma distinção entre família e agregado.
Conclusão
130A análise feita neste capítulo foi muito ampla. Foram definidas relações entre a idade no casamento, celibato definitivo, composição do agregado e emigração, mas essas relações nem sempre coincidem com as relações previsíveis e uniformemente estabelecidas por uma série de outros especialistas. Isto deve-se essencialmente ao facto de a emigração do Noroeste de Portugal ter sido sempre entendida como uma partida temporária e não definitiva, como uma parte necessária da maneira de viver local e uma constante durante pelo menos dois séculos e meio de histórica recente. No entanto, se os dados referentes a Santa Eulália são de algum modo representativos, é igualmente verdade que, no Noroeste de Portugal, tal como noutras zonas da Europa ocidental, a emigração, a idade no casamento e o celibato feminino definitivo aumentaram todos em épocas de crise económica, demográfica e até política. Quando, em 1792, António de Araújo Travessos escreveu que «a facilidade da vida e a abundância são as principais causas do casamento e da criação de filhos», estava a afirmar aquilo que aos olhos da maior parte das populações europeias, incluindo da portuguesa, é uma verdade evidente.
131Ansley Coale e um grande número de demógrafos históricos recentes sugeriram que o controlo da natalidade é a resposta mais directa à mudança de condições económicas nas primeiras fases da transição demográfica. Um dos primeiros demógrafos a estudar Portugal, Balbi (1822), também se apercebeu da existência de uma relação entre os dois fenómenos:
Os jovens de ambos os sexos, em vez de cederem à tendência natural para se unirem pelos laços sagrados do casamento, entregam-se a uma vida de libertinagem; outros esperam até fazer fortuna para casar; na espera, as raparigas envelhecem e em cada uma que espera até aos trinta e cinco anos para casar o estado perde dois terços da sua fecundidade.
132Alguns chegaram mesmo a defender que o casamento tardio é uma escolha consciente feita para reduzir o número de descendentes de um casal, e que as noivas mais velhas são preferidas precisamente por lhes restarem menos anos para procriar. Drake (1969:146), por exemplo, cita um rendeiro norueguês que casara com uma mulher vários anos mais velha do que ele porque «Quando escolhi uma mulher tão velha pensei que o número de filhos não seria tão grande, pois é difícil para uma pessoa com tão poucos meios como eu dar de comer a tanta gente». Embora não possamos ignorar o comentário do rendeiro citado por Drake, é mais provável que, como Caldwell (1976) observou, as diferenças da idade no casamento tenham mais que ver com as dificuldades económicas e físicas de formar um novo agregado do que com a decisão consciente de limitar o tamanho da família. Todavia, o assunto requer uma análise mais profunda. É, pois, sobre a fecundidade que nos debruçaremos no capítulo seguinte.
Notes de bas de page
1 O facto de, durante várias décadas, a idade média no casamento das mulheres ser mais elevada do que a dos homens explica-se, em parte, por um problema que se prende com os dados. Como os casamentos se realizavam, em geral, na aldeia da noiva e um número considerável de noivos era oriundo de outras aldeias, acontece que é mais fácil confirmar as idades das noivas do que as dos noivos. Só depois de 1860 é que as idade de ambos os noivos passou a constar dos assentos de casamento; ao comparar, nuns quantos casos, as idades dos noivos de outras aldeias mencionadas nos seus registos de nascimento e as que figuram nos assentos de casamento, verifiquei que eram indicadas nestes com razoável precisão. Contudo, este problema dos dados não deveria levar-nos a ignorar que houve muitos casos, ao longo da história demográfica de Santa Eulália, em que as mulheres eram mais velhas do que os maridos.
2 Ver o estudo das Áreas de Cultura Europeia no volume 36 de Anthropological Quarterly. A questão das áreas culturais, no que se refere aos modelos demográficos, é abordada de novo no Capítulo V deste livro, no âmbito da análise da ilegitimidade, e na Conclusão. Ver Rowland (1983) para um estudo mais minucioso da «tipologia» do modelo de casamento e a sua relevância em Portugal. Kertzer (comunicação pessoal) pôs a questão de o modelo de Wrigley se aplicar melhor a outras regiões do Mediterrâneo.
3 Diversos volumes publicados como parte do Projecto de Fecundidade de Princeton fornecem essas variações quanto à idade no casamento a nível regional, para vários países europeus. Ver, por exemplo, Lesthaeghe (1977); Knodel (1974); Coale, Anderson e Harm (1979).
4 Para uma excelente descrição etnográfica dos problemas da família múltipla em plena dissolução, ver Wolf (1968).
5 Douglass (1971) demonstrou a importância do momento de ocorrência da escolha de um herdeiro e a sua relação com a emigração rural, comparando duas aldeias bascas, uma, onde o herdeiro é designado ainda em criança e todo o processo de socialização do mesmo tinha em consideração esse papel e outra, onde os filhos competiam para conquistar os favores dos pais.
6 Livi Bacci (1971) também chamou a atenção para as diferenças de formas de sistema fundiário e de exploração económica entre o Norte e o Sul de Portugal, a fim de explicar as amplas variações regionais dos modelos de nupcialidade. No Norte, aponta, de uma maneira um pouco confusa, a existência tanto da prática do morgado como a da divisibilidade da herança, sem estabelecer distinções entre os vários estratos socioeconómicos.
7 Vinovskis não foca a herança de terras no seu estudo das tendências demográficas no Estado de Nova Iorque, em meados do século XIX (1978), mas prova que havia, de facto, uma relação entre o número de acres de terra não cultivada por pessoa na agricultura e a idade média com que se casava.
Nos estudos antropológicos, comparativos em geral, o casamento é, desde há muito, encarado como um contrato assente em considerações económicas e muitas vezes estreitamente ligado à questão da sucessão — sucessão não só em termos de riqueza e terras, mas também do poder e autoridade que a elas estão associados.
8 Na verdade, é possível sustentar que o facto de um pai morrer cedo pode ter conduzido ao casamento tardio dos filhos, em especial dos mais velhos, cujos rendimentos do trabalho se tornaram ainda mais necessários para a sobrevivência do agregado. As filhas podem ter ido servir ou trabalhar como jornaleiras; os filhos podem ter emigrado. Elliott (1976) defendeu que a morte prematura de pais no século XVII, em Londres, Essex e Hertfordshire, obrigou as filhas a migrar e trabalhar como criadas e, por conseguinte, a adiar o casamento.
9 O professor Allan Williams, da Universidade de Exter, chamou a minha atenção para um comentário particularmente válido sobre o assunto, feito pelo Padre António Vieira, no século XII. Vieira disse: «Deus deu aos Portugueses um país pequeno como berço e o mundo inteiro como túmulo».
10 Ver Rowland (1981).
11 Embora o argumento mais aceite seja que há uma relação directa entre os preços dos cereais e o bem-estar económico dos camponeses é, talvez, mais pertinente uma interpretação alternativa. Preços elevados de cereais podem ser o resultado de uma má colheita, o que, para um pequeno agricultor significa que, depois de prover ao seu sustento, pouca é a produção para venda. Por conseguinte, dispõe de menos dinheiro e as dividas que é obrigado a contrair para pagar os impostos e comprar outros bens necessários aumentam. Uma consequência essa situação poderia ser uma tendência mais acentuada para adiar o casamento e/ou optar pela migração como um meio de conseguir o dinheiro necessário. Preços baixos dos cereais como reflexo de boas colheitas significariam que havia mais dinheiro disponível, o que tornava a emigração menos necessária e o casamento mais viável.
12 Bell (1979) refere o número mínimo de casamentos celebrados durante o mês de Março no Sul de Itália, e associa-o à Quaresma. Março parece ser também um mês pouco apreciado para casar em Santa Eulália, mas não aprofundei localmente as questões relacionadas com a sazonalidade, pelo que não posso confirmar a ligação com a Quaresma. Contudo, se existe alguma ligação, tenderia a reforçar os argumentos que associam certas formas de comportamento demográfico (além da fecundidade) à religiosidade e, talvez, a funcionar como outra medida do grau de religiosidade. Bell também considera que Maio é um mês muito escolhido para casar no Sul de Itália. Todavia, Maio não se revela o mês em que se celebraram mais casamentos em Santa Eulália, durante todo o período compreendido entre 1700 e 1970.
13 Mitterauer e Sieder (1982:66) sugeriram que o facto de um homem casar com uma mulher mais velha, c em especial com uma mulher viúva, pode não só ter afectado as relações de poder, mas também ter influenciado a sexualidade no casamento.
14 Fazia parte deste grupo um homem que comprava e vendia ouro e que casou com uma solteira abastada, vinte anos mais velha, que herdara o grosso dos bens de um tio rico. Aqueles que o recordavam chamavam-lhe oportunista. Também pertenciam ao grupo dois irmãos que emigraram para o Brasil e voltaram para abrir um pequeno negócio na freguesia. Um não tinha filhos — aos trinta anos, casou com uma mulher rica da mesma idade. O outro casou jovem e teve oito filhos, alguns dos quais morreram. Outro homem deste grupo era viúvo e casara com uma herdeira de uma aldeia vizinha. Um outro era descrito pelos aldeões como pobre, mas todos os filhos dele eram empreendedores e foram bem-sucedidos e podem ter comprado terras para o pai, na freguesia. Outro era um filho único que casou com uma filha de caseiros. Tiveram nove filhos e, portanto, a sua fortuna desapareceu. Vários outros homens apontados como proprietários em 1945 eram naturais de outras freguesias.
15 Como frase «celibato definitivo» é usada pelos demógrafos e historiadores demógrafos de mede a abranger simultaneamente o celibato feminino e o masculino, é assim que a utilizarei aqui. A palavra é perfeitamente adequada uma vez que, no sentido original (Dicionário de Inglês de Oxford) o celibato se refere à «condição de viver sem casar» e um celibatário é «quem vive no estado de solteiro ou solteira». Para alguns, a palavra implica assexualidade ou, pelo menos, uma ausência de actividade sexual. Embora este significado não esteja associado à definição do Dicionário de Inglês de Oxford, esta conotação mais moderna não está de modo algum implícita no meu emprego da palavra. Em resumo, refere-se simplesmente ao estado de se viver solteiro, com ou sem vida sexual activa.
16 Antes de 1860, quando a Igreja aprovou um novo conjunto de normas relativas ao modelo dos registos paroquiais, os nomes dos pais nem sempre eram mencionados nas certidões de óbito dos indivíduos que haviam chegado à idade adulta. Na realidade, essa identificação era pouco frequente. Devido às peculiaridades das práticas portuguesas no que se refere à atribuição dos nomes e urna vez que nos assentos do baptismo só figuravam os nomes próprios, a tarefa de relacionar as mortes de vários indivíduos com os seus nascimento ou com as suas famílias de orientação é extremamente difícil. Neste estudo, isso só foi feito quando não havia qualquer dúvida sobre a identidade do indivíduo, e as dúvidas aumentam à medida que recuamos no tempo. Por exemplo (e hipoteticamente), uma certa Maria Luísa de Castro que faleceu em 1790 poderia ter sido filha de qualquer dos vários casais que tiveram filhos durante as primeias seis ou sete décadas do século XVIII, que tiveram uma filha baptizada como Maria, Luísa ou Maria Luísa e que tinham o apelido Castro, quer como nome de família do pai quer da mãe. Embora pareça ter havido uma certa tendência, durante a maior parte dos séculos XVIII e XIX, para as filhas adoptarem o apelido da mãe e os filhos, o do pai, há suficientes excepções para que seja arriscado deitar-mo-nos a adivinhar. O resultado desta situação é que, antes de 1860, era difícil determinar a idade de muitos indivíduos solteiros ao morrerem. Além disso, havia tantos problemas e excepções em relação aos dados anteriores a 1750 (incluindo a presença de escravos, ilegibilidade e a omissão do estado civil de muitos homens) que os dados mencionados nos quadros remontam apenas a 1750.
17 Alguns destes provérbios e ditados populares foram-me citados por pessoas de Santa Eulália, outros por portugueses não oriundos da freguesia; podem encontrar-se mais em Lima (1938:214-215).
18 A famosa fadista portuguesa Amália Rodrigues deu uma bela expressão a este desejo na canção Uma Casa Portuguesa.
19 A confusão deriva em parte do facto de não ter sido estabelecida uma distinção clara entre família e agregado familiar. Para um esclarecimento, ver Wall (1983).
20 O apêndice inclui uma descrição mais completa desses róis.
21 Em primeiro lugar, foi acrescentada a categoria 2c para abranger os solteiros co-residentes de parentesco desconhecido. Em segundo, uma categoria 3e designa as mulheres solteiras que vivem com os filhos ilegítimos e uma categoria correspondente de agregado múltiplo (5h) designa as mulheres solteiras que são chefes de família e vivem com um dos seus filhos ilegítimos casados e a família deste ou desta. Em terceiro, as categorias de famílias extensas (4a a 4d, segundo Laslett) foram subdivididas para que algumas assinalassem com mais precisão ou os parentes em linha vertical ou lateral presentes no agregado. Um agregado que seria nuclear se não fosse a presença de um neto ilegítimo, é um fenómeno importante a considerar e a distinguir de um agregado extenso no sentido vertical (para baixo) através da presença de um sobrinho ou sobrinha. Do mesmo modo, uma extensão vertical para cima derivada da presença de um pai ou mãe ou sogro ou sogra que enviuvara representa uma transferência do detentor do poder em relação àquilo que foi originalmente um agregado múltiplo (5b-5e), e deveria portanto ser distinguida de uma extensão vertical através de uma tia ou tio. Nestes agregados de família extensa estão incluídos aqueles cujo chefe é uma viúva ou um viúvo e não um casal. Entre um período e o seguinte, um dos cônjuges pode ter morrido mas a composição do agregado (ou seja, a presença de membros da família extensa) mantém-se inalterada. Em quarto lugar, as categorias de agregados múltiplos foram «multiplicadas» para algumas análises, a fim de investigar a questão geral da matricentralidade na sociedade rural do Noroeste de Portugal. Os agregados caracterizados por residência matrilocal ou uxorilocal, em que o marido vai viver com os parentes da mulher depois do casamento, distinguemse dos de residência patrilocal ou virilocal, em que é a mulher que, depois de casar, vai viver com os familiares do marido. Além disso, diferenciam-se também os agregados em que os casais das duas gerações estão completos daqueles em que a geração mais velha é composta por uma viúva ou um viúvo. Também neste caso parece lógico manter estes agregados cujo chefe é uma viúva ou um viúvo na categoria dos múltiplos até que ocorra uma morte (momento em que se tornam agregados nucleares simples) ou até que um filho ou genro seja mencionado como chefe de família (altura em que se transforma num agregado extenso em sentido vertical (e para cima) (4a). Em quinto lugar, para uma parte do estudo foi criada uma nova categoria de tipos (de 7a a 7e). Estes tipos tomam em consideração o impacte da emigração na estrutura do agregado. A figura 3.3 fornece uma chave de todas estas categorias.
22 O número total de agregados contados em cada um destes róis é suficientemente próximo do número total de agregados enumerados nos censos nacionais para nos levar a crer que o registo era feito com razoável precisão; todavia, o aumento de quarenta e sete agregados durante os seis anos compreendidos entre 1864 e 1870 parece desproporcionado e é, de certo modo, desorientador, em especial se atendermos a que, na década de 1860, a taxa de casamentos foi só 5,4% por ano. Os dados relativos a 1870 estão indubitavelmente correctos, uma vez que os indivíduos que casaram depois de 1870, mas antes de 1881, são ainda descritos como solteiros. O número correspondente a 1870, porém, é tão próximo do de 1878 no censo nacional que pelo menos a tendência para crescer é correcta, embora subsistam dúvidas quanto aos anos em que se verificou. Na verdade, tal como o estudo refere, uma parte do aumento do número de agregados, entre 1850 e 1870, pode ser explicada por uma expansão do número dos que viviam sozinhos, em particular dos solteiros. Por vezes, alguns casais que tinham casado na freguesia que, segundo tudo indicava em termos de registos paroquiais, deveriam residir na freguesia, não puderam ser associados aos róis. Isto pode significar uma ausência temporária, um esquecimento da parte do pároco ou reflectir a cautela com que se procedeu ao confronto dos registos.
23 Mais uma vez, ambos os números estão calculados por defeito, uma vez que os agregados excluem as crianças com menos de sete anos, durante estes dois anos. Os números corrigidos mostram que 26,1% dos agregados, em 1850, e 17,5% em 1870 eram constituídos por sete pessoas ou mais. Todas estas proporções representam uma população de jure — isto é, são incluídos os indivíduos apontados como ausentes.
24 Esta possibilidade apresentou-se como muito evidente nos finais da década de 1970, quando me encontrava no campo. O meu marido partiu para os Estados Unidos, onde permaneceu seis semanas, e foram várias as pessoas da freguesia que me convidaram para ir para casa delas. Não percebiam a minha preferência por viver sozinha numa casa. Desde então, sempre que voltei sozinha à freguesia, fiquei em casa de uma família.
25 Este número inclui dois agregados classificados como 6a. Um é um caso de um homem viúvo que vivia com o sogro e o outro, o de uma filha ilegítima e respectivo marido, que viviam com o pai solteiro daquela.
26 Seis destas famílias simples incluíam uma viúva ou um viúvo que voltara a casar.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000