Précédent Suivant

Capítulo II. Emigração e Migração de Regresso na História de Portugal

p. 87-114


Texte intégral

«A emigração é um fenómeno complexo nas suas causas, condições e resultados.»
(Alexandre Herculano 1873:107)

Introdução

1No Verão de 1889, Maria Josefa de Castro casou com Francisco José Rodrigues. Ele tinha vinte e sete anos e ela vinte e seis, e trabalhavam ambos como jornaleiros. Depois do casamento, formaram um agregado independente, adjacente à casa paterna de Maria Josefa. Durante a sua vida de casados, tiveram sete filhos que, à excepção de um, foram criados e casaram na freguesia. Francisco José emigrara para Espanha quando era rapaz, da primeira vez apenas com sete anos, para acompanhar o pai. Depois de ter casado, continuou a emigrar, porque a família era grande e possuía poucas terras.

2Quando o filho mais velho, António José, tinha dez anos, começou a acompanhar o pai nessas migrações temporárias para Espanha. Trabalhava como aprendiz de pedreiro e não ganhava quase nada. Em 1912, porém, quando fez dezoito anos, decidiu emigrar para o Brasil, e o pai, receando que, se fosse para o Brasil, nunca mais voltasse, resolveu acompanhar o filho. Partiram com mais cinco homens de Santa Eulália — dois primos, um tio e dois outros jovens. Quatro deles eram solteiros e três casados. Apanharam um barco no Porto; a viagem durou dezanove dias e custou trinta e sete escudos a cada um. António José e o pai tiveram de pedir dinheiro emprestado para pagar a passagem. Partiram no apogeu da emigração para o Brasil, onde havia muito trabalho bem pago, especialmente no sector da construção. Em 1912, um artesão ganhava três tostões (trezentos réis) por dia na região de Santa Eulália, cinco em Lisboa; no Brasil, o salário corrente era equivalente a dois mil réis em dinheiro português.

3Quando a I Guerra Mundial deflagrou, começou a ser mais difícil arranjar trabalho no Brasil. Em 1915, não havia quase nenhum, e muitos dos portugueses que lá residiam, incluindo Francisco e o filho, António José, decidiram regressar a Portugal. António José arranjou emprego como motorista, apesar de não ter licença de condução, o pai conseguiu trabalho numa fábrica, onde o que ganhava dava apenas para pagar a comida. Mais tarde, António José arranjou emprego como jardineiro e moço de recados. Mas nenhum destes empregos dava dinheiro suficiente para poderem poupar para a viagem de regresso. Finalmente, pai e filho arranjaram trabalho num pequeno projecto de construção e conseguiram pôr de lado o dinheiro necessário para a viagem. Outros tiveram menos sorte e foram obrigados a permanecer no Brasil.

4Em 1917, depois de ter voltado para Portugal, António José foi chamado para o serviço militar. Tinha vinte e dois anos. Porém, quando Portugal começou a mandar homens para França, para combater, decidiu fugir, com mais nove, do quartel em Viana do Castelo. Foi para Espanha, para a Galiza e acabou por arranjar trabalho. Só quando a guerra terminou é que regressou a Portugal. Entretanto, seu pai morrera, vítima do surto de gripe espanhola que assolara a região e a freguesia em Outubro de 1918. O pai tinha apenas cinquenta e seis anos, e a responsabilidade pela mulher e os filhos que deixou recaiu sobre os ombros de António José. Assim, pouco depois do seu regresso de Espanha, António José foi obrigado a partir para Lisboa, em busca de trabalho. Estava decidido a ajudar a mãe a pagar as dívidas que o pai deixara ao falecer, incluindo o empréstimo cuja garantia era a casa paterna. Quando verificou que era difícil arranjar trabalho em Lisboa, voltou para Espanha. Durante esse período, António José não pensou em casar. Todo o dinheiro que ganhava ia para a família.

5Um dia, porém, no Verão de 1921, quando andava a trabalhar em Santa Eulália, estava na galhofa com um amigo que sugeriu que casasse com Rosa Araújo. Respondeu que talvez ela fosse «de uma posição muito elevada em relação à dele; que era sobrinha de padres e irmã de um doutor em leis; que provinha de uma família com um certo prestígio social, enquanto ele pertencia a uma família de jornaleiros pobres». Todavia, a ideia insinuou-selhe no espírito. Já tinha vinte e sete anos. Mais tarde, ainda nesse Verão, estava a trabalhar com um primo de Rosa Araújo num muro perto de casa dela. O pai de Rosa passou e, na brincadeira, disse para o companheiro: «olha, o meu sogro». O primo de Rosa repetiu o comentário à irmã que, por sua vez, o transmitiu a Rosa. Foi assim anunciado o pedido de casamento. Mas o pai, irmãos e tios de Rosa opuseram-se ao casamento, embora Rosa fosse a favor dele. Desanimado, António José voltou a partir para Espanha.

6No Verão seguinte, regressou a Portugal, a fim de completar o serviço militar em Viana do Castelo. Um ano depois, no dia em que saiu da tropa, houve uma festa na aldeia vizinha. Na festa, encontrou o pai de Rosa, que lhe disse que mudara de opinião, que vira que António José era um «um rapaz bom e trabalhador», e que daria o seu consentimento para o casamento. António José disse à noiva que queria esperar até Outubro para casarem, a fim de poder juntar algum dinheiro. Ela respondeu que também não tinha dinheiro e que o melhor era casarem e ganharem-no juntos. António José pediu 450$000 emprestados, vendeu uma vitela por 400$000 para comprar um fio de ouro à noiva e ganhou o restante dinheiro de que necessitava para a boda a fazer telhas, que vendia.

7Quando casaram, formam viver com o pai de Rosa. Seis dias depois, ele morreu. No testamento, deixou a casa aos seus dois filhos, que já não viviam na freguesia. António José ficou aborrecido, mudou-se com a família para uma pequena casa alugada, e decidiu emigrar uma vez mais, para juntar o dinheiro necessário para comprar a casa aos cunhados. Partiu três meses depois de ter casado. Em Abril de 1924, voltou para ver o seu primeiro filho, aliás uma rapariga. Passou o Verão na freguesia e depois regressou a Espanha em Setembro. A sua vida de migrante sazonal continuou durante quatro anos, até ter posto de lado o dinheiro suficiente. Mesmo após a aquisição da casa, continuou a emigrar para Espanha, à medida que a família crescia. Só em 1931, quando a agitação política em Espanha acabou com todas as possibilidades de trabalho, é que os seus dias de emigrante acabaram de vez.

8António José e Rosa tiveram nove filhos. Na sua maioria, os seus filhos e genros, tal como, antes deles, os pais e avós, estiveram no estrangeiro, mas desta feita em França, em vez de em Espanha ou no Brasil. Segundo o emigrante veterano que foi António José, esta nova emigração tem sido muito mais lucrativa. Todos os seus descendentes ganharam o suficiente lá fora par construir casas grandes. Alguns voltaram para viver nelas; outros ficaram em França. A sua família extensa, que incluiu mais de quarenta netos e pelos menos uma dúzia de bisnetos, é composta por vários agregados familiares que se entrecruzaram, tanto na freguesia como no estrangeiro. António José, que ficou viúvo há mais de vinte e cinco anos, ainda vive na residência do pai da mulher, na companhia da filha mais nova.

9A saga da emigração de António José é uma entre tantas outras que os habitantes de Santa Eulália poderiam contar e, aliás, provavelmente, que os portugueses da provínica do Minho poderiam contar. Uma vez que a emigração é o tema central deste livro, este capítulo analisa o carácter da emigração portuguesa desde o começo da era dos Descobrimentos até ao nosso século, demonstra a sua continuidade, não obstante as diferenças de amplitude e de destino. A emigração histórica, e até uma grande parte da emigração mais recente, é difícil de documentar, a nível quer nacional quer local. Mas conhecer a extensão do fenómeno num contexto mais amplo permite que se estude o seu impacte a nível local. Efectivamente, como se demonstrará nos capítulos seguintes, na ausência de manuscritos de censos ou de registos de população como os que existem, por exemplo, no caso da Bélgica, de Itália e de algumas partes da Escandinávia, calcular a emigração requer criatividade e um conhecimento básico da cultura portuguesa.

A Emigração Portuguesa: Temas Principais

10A emigração em Portugal é tão velha como o seu período dourado, a grande era dos Descobrimentos, em que os navios portugueses exploraram as costas da Índia, da Ásia e da América. A posição de liderança que Portugal assumiu ao arrancar a Europa da chamada «crise do feudalismo» foi, como Wallerstein (1974) afirmou, muito lógica, dada a situação geográfica do país e a sua relativa estabilidade interna em comparação com outras nações europeias da época. O período de exploração durou, em Portugal, mais de três séculos, o tempo suficiente para inculcar o espírito de aventura e o desejo de conhecer outros sítios na consciência nacional portuguesa, uma consciência nacional que afectou igualmente o nobre e o camponês. Na verdade, o geógrafo Orlando Ribeiro referiu-se, um dia, à emigração como a «vocação demográfica» de Portugal, em especial entre as gentes do Noroeste, da província de Entre Douro e Minho (1970:345).

11Durante os primeiros séculos, o ouro e as especiarias foram a força motriz por detrás da expansão colonial. À procura destes produtos de luxo juntou-se a necessidade de mais produtos alimentares, um factor que transformou rapidamente as explorações de Portugal, que de missões comerciais passaram a ser missões de colonização e «civilização» (Godinho 1955). O mundo português e o mundo cristão iriam ser alargados pela fixação maciça de gentes do continente nos territórios ultramarinos. Entre 1500 e 1800, estas terras absorveram a maior parte do crescimento da população de Portugal. No primeiro quartel do século XIX, contavam-se pouco mais de três milhões de pessoas em Portugal continental e nas ilhas adjacentes, enquanto no Brasil, América, Ásia, e África havia quase sete milhões. Naturalmente, as taxas de emigração anuais variaram. Godinho (1971) estima que as partidas do país se elevaram a: 280 000 entre 1500 e 1580; 300 000 entre 1580 e 1640; 120 000 entre 1640 e 1700; e 600 000 entre 1700 e 1760.

12Segundo Joel Serrão, o século XVIII foi o ponto de viragem da emigração portuguesa, o ponto em que o emigrante português strictu sensu apareceu. O colonizador do Velho Regime era um indivíduo que havia abandonado a terra natal por iniciativa «do Estado ou integrado em empresa de âmbito nacional». O emigrante era um indivíduo que saía do país «por exclusivos motivos pessoais, livremente concebidos, independentemente de solicitações oficiais e, até, muitas vezes, em oposição a estas» (1974:88). Foi esta impressionante vaga de emigração na primeira metade do século XVIII, uma vaga impulsionada pela descoberta de ouro no Brasil nos tinais do século XVIII, que levou os funcionários e observadores nacionais a manifestar o seu receio de que a expansão ultramarina e a «missão colonizadora» tivessem ido longe de mais, pois havia demasiadas pessoas a abandonar a pátria e a esvaziar o país da valiosa população agrícola. Esta preocupação, dirigida em grande parte para a emigração das classes mais pobres do Norte de Portugal, iria manter-se ao longo do século XIX, e reapareceu, de facto, na década de 1960, quando Portugal sofreu uma perda de 2% da população por ano, em grande parte em consequência da emigração para França. Constitui a base de um dos temas mais importantes da emigração portuguesa: era um problema de população ou uma solução para a população? Obviamente, não é só uma coisa nem outra e a resposta depende, em grande medida, da perspectiva que se adopta — a do Estado ou a do emigrante individual. Além disso, a própria pergunta revela muito acerca das atitudes generalizadas perante a população rural portuguesa durante os últimos quatro séculos e, em menor medida, acerca da maneira como as pessoas do campo apreendiam a sua própria sociedade.

13Se atentarmos nos principais comentários desde o século XVIII, a emigração era um problema nacional que requeria uma solução baseada em transformações sociais e económicas em Portugal continental. Que o assunto era considerado um problema está claramente reflectido no título do ensaio de 1655 de Manuel Severim de Faria, «Remédios para a falta de gente» (Faria 1974). Faria atribuía aquilo que era sentido como um grave problema de falta de população a três factores: a conquista, a falta de indústria e a falta de terra para cultivar.1 Muito embora os historiadores da proto-industrialização o contestem hoje, Faria afirmou que os homens que não tinham com que se sustentar a si próprios, quanto mais a uma família, não queriam casar. Alguns tornavam-se pedintes, enquanto outros emigravam, esperando conseguir esse sustento noutras nações. Tendo escrito a sua obra pouco antes do começo da grande emigração rural para o Brasil, Faria dirigiu os seus comentários ao êxodo maciço para Espanha, uma emigração acerca da qual sabemos muito pouco, mas que ocupa um lugar importante na história demográfica de Santa Eulália e da província do Minho em geral.2

Outros se passão a Reynos extranhos, principalmente para os de Castela, pela facilidade da vizinhança, onde antes da aclamação havia tantos portuguezes, que muitas pessoas affirmavam que a quarte parte dos moradores de Sevilha, eram nascidos em Portugal, e que em muitas ruas daquella cidade se fallava a nossa lingua... e por toda a Castela-a-velha, e Estremadura, é notório que os mais dos mecânicos eram naturais deste Reingo os quais por não terem cá em que trabalhar iam lá ganhar sua vida. (Faria 1974:190).

14As soluções propostas por Faria para o problema da falta de gente têm sido recomendadas repetidamente, e sem grande vantagem, mesmo no nosso tempo. Apelou para o desenvolvimento industrial, para a construção de fábricas e para a limitação de exportações de bens essenciais. Apelou também para a colonização interna do Sul, menos povoado, e para uma reforma agrária que tivesse como resultado não só um crescimento da população mas também um aumento da produção de trigo. No seu entender, o trigo escasseava não «por defeito natural, mas pela cobiça de alguns que procuram ter e acrescentar a grandeza das suas herdades; as quais, quanto maiores são, tanto menos se cultivam, assim porque não há lavradores tão possantes que tenham cabedal para tão grandes lavouras, como porque quanto maior é a herdade, em tantas mais fôlhas se reparte» (Faria 1974:208).3

15Duarte Ribeiro de Macedo nos seus Discursos Sobre a Introdução das Artes no Reino (1675) também sublinhou a importância da indústria, que levaria os camponeses a passar de uma economia de subsistência para uma economia de excedentes. Segundo ele, à medida que as pessoas se tornarem mais prósperas, sentir-se-ão levadas a casar e constituir família e, por conseguinte, o país tornar-se-á mais rico e populoso. Na sua opinião, as colónias e a expansão ultramarina não eram as principais causas do decréscimo da população, porque os que tinham capacidade de ganhar a vida não partiam para outras terras. Indirectamente, é claro, tanto Macedo como Faria se referiam à emigração como uma solução económica para as classes mais pobres do Portugal rural. O que os seus argumentos tinham de interessante era, no entanto, a sua plena convicção de que o bem-estar económico não só deteria a emigração, como aumentaria também a fecundidade e, portanto, solucionaria aquilo que era sentido como «problema» de falta de população. Um século mais tarde, António de Araújo Travessos, apresentou um argumento semelhante no seu Discurso Político Sobre a Agricultura, Particularmente a de Portugal (1792):

«A facilidade de viver e a abundância são a principal causa dos casamentos e da criação dos filhos; por consequência, aonde o trabalho é bem pago multiplica a espécie humana, e até aumenta a povoação em habitantes que vêm de outros países mais pobres, e o aumento da população modera naturalmente o preço do trabalho.» (citado em Amzalak 1923:98)

16Estes primeiros estudiosos da situação demográfica de Portugal apercebiam-se claramente da ligação entre condições económicas, emigração, nupcialidade e fecundidade.

17A preocupação de Travessos com o preço do trabalho, principalmente com o aumento dos salários, que julgava derivar da falta de trabalhadores manuais no campo, viria a tornar-se a preocupação fundamental dos que encaravam a emigração como um problema nacional. Os salários baixos e as más condições de vida que eram as causas básicas do êxodo maciço eram postas de lado e ignorados. O resultado dessa preocupação foi o estabelecimento de leis que restringiam a emigração, na primeira parte do século XVIII. De acordo com um decreto de 20 de Março de 1720, só eram concedidos passaportes àqueles que pudessem justificar, por meio de documentos, que iam para o estrangeiro para tratar de negócios importantes ou assuntos oficiais. Esta legislação, que tinha por objectivo solucionar a suposta crise de mão-de-obra agrícola, manteve-se até bem entrado o século XIX, e é uma das principais explicações para os persistentes níveis elevados de emigração clandestina, quer para Espanha quer para o outro lado do Atlântico (Costa 1911). Em resumo, as leis pouco contribuíram para deter o fluxo, e ainda em meados do século XIX se ouviam queixas semelhantes acerca dos «perniciosos efeitos desta mania febril que se apossou das nossas classes laboriosas... Os proprietários que ainda há poucos anos, encontram/ com a maior facilidade e por um preço módico quantos jornaleiros precisavam para o amanho das suas terras procuram-os hoje muitas vezes debalde, apesar de oferecerem um salário comparativamente avultado» (O Vianense, 18 de Janeiro de 1858).

18Alexandre Herculano, no seu estudo sobre a emigração incluído em Opúsculos (1873-1875), condenou as tentativas de pôr termo à emigração apenas com o intuito de manter os salários agrícolas baixos. «A meu ver, o mal não procede da escassez de braços: procede da errada vereda que tem seguido entre nós o desenvolvimento agrícola; do deplorável esquecimento de certas leis económicas e de certos princípios e doutrinas indisputáveis da ciência de agricultar.» (Herculano 1873:107). Referiu-se à inflação de preços (entre 1862 e 1871, o preço dos cereais subiu em numerosos concelhos dos distritos litorais de Aveiro, Porto e Viana do Castelo) e apontou, como causa possível, embora de modo nenhum a mais importante, o regresso dos brasileiros, dos que haviam enriquecido no Brasil.4 Os salários eram simplesmente insuficientes e qualquer aumento dos mesmos mal chegava para cobrir os preços cada vez mais elevados dos bens. O principal problema a resolver era melhorar as condições materiais das classes trabalhadoras. Um editorial publicado no jornalregional Aurora de Lima, em 1888, defende um ponto de vista semelhante, ao relacionar as duas crises.

A exígua cultura dos nossos campos, o preço alto dos produtos da lavoura sem compensação de trabalho dos que os cultivam, e todos os prejuízos económicos que resultam da crise agrícola são atribuídos à emigração... Porque emigram os trabalhadores do campo? De certo porque a agricultura não lhe remunera o trabalho; porque vivem na maior miséria... Quanto ganham? Os seus salários regulam entre 280 e 360 réis diários... Não é porém natural e menos justificável que o trabalhador procure em outros trabalhos no reino ou nos países estrangeiros uma remuneração que o arranque à miséria e à escravidão que d’ella lhe resulte... É necessário attender, no respeitante a emigração, ao desenvolvimento da população do reino e a divisão da propriedade rural... A emigração nas nossas condições económicas não se pode com justiça reprimir (Aurora de Lima, 1 de Outubro de 1888).

19Os constantes e extensos trabalhos sobre a emigração escritos nos finais do século XIX eram uma resposta ao escoamento da população verificado a partir de 1870 e que alcançara o seu ponto mais alto nos anos imediatamente anteriores à I Guerra Mundial. Entre 1888, em que a escravatura foi finalmente abolida no Brasil, e 1929, a taxa anual de emigração em Portugal foi aproximadamente, 15 000. Tendo partido 59 000 em 1911, 87 000 em 1912, e 77 000 em 1913. A população de emigrantes representava cerca de 77% do crescimento da população portuguesa no final do século XIX.5 Miriam Halpern Pereira (1981) sustenta que a emigração portuguesa assumiu um carácter diferente no século XIX e que a situação do imigrante português no Brasil piorou extraordinariamente. Passou de uma pessoa privilegiada a alvo da hostilidade.6 Contudo, a emigração continuou a ser um meio de mobilidade social, devido à diferença de salários entre Portugal e o Brasil e à fluidez do mercado brasileiro, carente de mão-de-obra.

20As causas desta explosão da emigração são complexas e, como Basílio Teles (1903) referiu, variavam de uma região para outra.7 Em geral, porém, a segunda metade do século XIX foi, em Portugal, um período em que as pressões demográficas sobre a terra aumentaram em consequência do crescimento da população (Pereira 1971, 1981). A agravar estas pressões de ordem demográfica, houve ainda crises económicas crescentes. Nas décadas de 1860 e 1870, os preços das exportações baixaram. A filoxera quase destruiu a indústria vinícola do Norte, em especial da região do Douro. Em 1862, por todo o Alto Minho, houve revoltas contra o segundo governo do Marquês de Loulé e contra os impostos que a burguesia pretendia lançar sobre o trabalho agrícola. Nos anos de 1880, os impostos, incluindo os de transmissão dos bens, aumentaram brutalmente. No Alto Minho, a terra foi alvo de uma grave especulação de preços e de uma fragmentação crescente, em especial após as alterações da lei da década de 1860. Em 1867, o novo Código Civil ordenava a rigorosa divisão dos bens legados por herança, a abolição de todas as formas de herança privilegiada entre a aristocracia rural (vínculos ou morgados), o registo de todos os foros e a divisão das terras de pastagem comuns.8

21De acordo com o Inquérito Parlamentar sobre a Emigração, de 1873, o número de proprietários de terras do distrito de Viana do Castelo aumentou de 47 354 em 1862 para 50 584 em 1872 (6,8%). Embora este não fosse de modo algum o maior aumento (em Braga, o aumento foi de 17,9% e em Viseu, de 13,2%), foi suficientemente significativo para empobrecer ainda mais a população local detentora de terras. Esta tendência manteve-se até à mudança de século. Durante os últimos anos do século XIX, o número de prédios rústicos no Noroeste do país aumentou cerca de 10% (Cabral 1979). Ao mesmo tempo, houve muita especulação de preços e expropriação, as quais foram feitas para proveito dos camponeses mais ricos e da burguesia. Muitos camponeses pobres foram obrigados a vender para comer ou simplesmente porque aquilo que possuíam não chegava para os sustentar.9 As pequenas indústrias rurais estavam também em decadência, um fenómeno que Cabral aponta como explicação para o número crescente de artesãos entre a população que emigrava para o Brasil.

22Na opinião de Basílio Teles (1903), que é autor de um dos melhores trabalhos sobre a vida rural portuguesa nos alvores do século XX, o filho jovem que partia para o Brasil era a segurança económica dos pais, o seu capital de reserva numa situação que se caracterizava pela subida dos impostos e das taxas de juro. A estes motivos económicos acrescentava-se o desejo de escapar à tropa, motivo que aliás voltou a desempenhar um papel importante na emigração maciça para França posterior a 1961 (Brettell 1978, 1984).10 Para a mulher portuguesa, segundo os etnógrafos Joaquim e Fernando Pires de Lima (1938), a partida de namorados, filhos ou maridos para o serviço militar ou para a guerra era quase o mesmo que a morte. De facto, as canções e poesia populares estão cheias de exemplos desta aversão pela vida militar:

Antes queria morrer
O meu corpo dar à terra
Do que ver o meu amor
Ir combater para a guerra
(Lima 1942:14)

23Embora a pressão económica e demográfica fosse bem real, havia cépticos entre os que comentavam o fenómeno da emigração, cépticos que davam menos importância ao desejo de fugir da pobreza e da miséria do campo e mais à ambição e ao desejo de fazer fortuna.

Portugal é um paiz pobre, dizem os que advogam a emigração para o Brazil; tem braços a mais, razão natural da procura de novos territórios, acrescentam ainda. Mas isto é sophisma. Quem diz isto, quer esconder a verdade, a principal causa da emigração portuguesa para o Brazil e que nunca nos cansaremos de repetir — a ambição inconsciente dos emigrantes. (Percheiro 1878:32)

24Ainda que a resposta à pergunta «Quais são as causas da emigração para o estrangeiro?» no Primeiro Inquérito Parlamentar Sobre a Emigração Portuguesa (Anónimo 1873) reconhecesse todas as causas socioeconómicas anteriormente mencionadas, a primeira razão citada era «a ambição de adquirir riqueza fomentada e desenvolvida pelo exemplo dos que regressam com boas fortunas, e em relação à qual não serve de obstáculo a ideia de que a maioria dos emigrantes que permanece lá fora, é vítima da miséria e da falta de saúde». Efectivamente, ao apontar soluções para deter o fluxo emigratório, o estudo exortava os padres locais a informarem os seus paroquianos dos aspectos negativos da emigração. Inserida nesta noção de ambição encontra-se aquela que é talvez a segunda questão mais importante que se põe relativamente à emigração portuguesa: era provocada pela necessidade ou pelo desejo de prosperar?

25A imagem do emigrante português como um tipo ambicioso que deixou o país na esperança de enriquecer subitamente e na expectativa de poder voltar um dia para exibir a sua riqueza dominou a sociedade portuguesa desde os dias dos chamados mineiros dos séculos XVII e XVIII. No século XIX, o mineiro tornou-se brasileiro. Brasileiro é um termo que, desde o século XIX, tem sido usado para se referir não só o natural do Brasil mas também, e até mais frequentemente, o natural de Portugal que emigra para o Brasil, faz fortuna e depois regressa ao seu país para mostrar a sua riqueza. Podem encontrar-se provas sólidas da vitalidade deste arquétipo nacional nos escritos sobre Portugal, de carácter quer histórico, quer filosófico, quer ainda literário. Julga-se que cada família camponesa produziu pelo menos um brasileiro.

A raça do lavrador é prolífica. Em pequeno ele tem de ordinário mais irmãos da figueira, a grunhir, do que pardas em cima de lá, a piar. De sorte que, não chegando os figos para todos, é mister despachar a cada um segundo o coração e o jeito que Deus lhe deu. O mais estúpido vai para mestre, o mais desordeiro para regedor, o mais relasso para padre, e o mais esperto vai para Brasil. (Ortigão 1885:24)

26Podem encontrar-se na poesia popular exemplos de versos que exaltam a condição do brasileiro:

Você diz que me não quer
Eu que não tenho dinheiro?
Tenho o meu pai no Brasil
Sou filha dum brasileiro
(Lima e Lima 1938:104)

27Alguns ensaístas referiram-se a estes emigrantes que regressavam como «compatriotas enganados que vêem no Brasil uma nova terra prometida (Percheiro 1878: dedicatória). A importância dada a «enganados» deve ser realçada, porque sugere que os custos negativos (monetários, emocionais e físicos) que a ida para o Brasil implica ultrapassam as vantagens da mesma. Mas «o português que emigra não vê isto; só pensa que ao fim de alguns anos há-de vir rico do Brasil» (ibid.:18). É o seu desejo de regressar que dá ao termo brasileiro o seu verdadeiro significado.

A primeira ideia, talvez, que suscita este vocábulo é a de um indivíduo cujas características principais e quase exclusivas são viver com maior ou menor largueza e não ter nascido no Brasil; ser um homen que saiu de Portugal na puerícia ou na mocidade mais ou menos pobre, e que, annos depois, voltou mais ou menos ricos. (Herculano 1873:111-112)

28O brasileiro não só volta rico, como volta para mostrar a sua riqueza. A maneira mais frequente de o fazer consistia em construir uma casa, um capricho com telhas, com «colunas pintadas de verde e paredes com bases amarelas e topos vermelhos» (Branco 1966:24). Foi talvez Júlio Dinis quem melhor captou este brasileiro de torna viagem ao retratar a personagem Eusébio Seabra no seu romance A Morgadinha dos Canaviais. Seabra é um homem que «Saíra criança da aldeia e fôra tentar fortuna ao Brasil... Por lá esteve quarenta anos, e voltou o homem grave que vemos e rico. Como enriqueceu não sei, e ninguém na terra o sabia. Veio edificar uma casa no sítio em que nascera, uma casa grande de cantaria e azulejo, com três andares e varandas, jardim com estátuas de loiça... As ambições de Eusébio Seabra limitavam-se a vir a ser a primeira personagem de influência na aldeia. Para isso principiou por fazer alguns reparos na igreja paroquial, presenteou com vestidos novos todos os santos dos altares, e mandou renovar um sino, que havia doze anos tocava a rachado. Fêz à sua custa a festa do orago» (Dinis 1964:137).11

29O Primeiro Estudo Parlamentar Sobre a Emigração (1873:117) faz referência ao facto de alguns destes brasileiros bem sucedidos se tornarem prestamistas locais nas suas aldeias, em virtude de possuírem capital disponível. O relatório afirma, em seguida, que «as melhores terras que encontramos ou os edifícios mais recentes pertencem quase todos a esses indivíduos que são chamados portugueses no Brasil e brasileiros em Portugal» (ibid:177). Percheiro (1878:47) chama a atenção para o facto de o português que, antes de partir, trabalhava «nos nossos campos férteis» ir para o Brasil trabalhar como «aguadeiro, carroceiro, barqueiro ou na imensa variedade de serviços que (em Portugal) são feitos pelos oriundos da Galiza». De facto, no dicionário de Português-Inglês de James Taylor (1958), a palavra galego é definida como um epíteto depreciativo aplicado aos portugueses que estavam no Brasil. Um viajante inglês do século XVIII calculava que vinham todos os anos para Portugal cerca de 30 000 galegos, a fim de trabalhar nas colheitas e nas vindimas. E acrescentava: «Disseram-me que quase todos os criados de libré do reino inteiro são da Galiza, por ser quase impossível convencer os Portugueses a usar o distintivo da servidão» (Dalrymple 1777:126).12 O que esta análise sobre os Galegos em Portugal sublinha é, no entanto, uma concepção da emigração como sendo de certo modo hipócrita, por as pessoas estarem dispostas a desempenhar no estrangeiro tarefas que recusariam na sua terra.

30Embora a maioria das descrições do século XIX sobre os brasileiros seja semelhante à de Júlio Dinis, e ainda que essencialmente zombem dos seus excessos13, Ramalho Ortigão fez uma excepção relativamente ao brasileiro do Vale do Lima. Nesta região, defendia ele, o brasileiro é um brasileiro pequeno, «tão pequeno que mal passa por um rapaz que foi para o Brasil».

A belleza da terra, a graça modesta dos costumes, a simplicidade da vida, exercem aqui mais do que em outra qualquer parte, esse magnetismo nostálgico que leva o emigrado a repatriar-se o mais depressa que pode. Desde que ganhou com que comprar o campo que tem d'olho, com que levantar um andar a choupana paterna, com que metter mais duas vaccas no eido, e com que custear o luxo de um garrano para vir de Tilbury a feira da Agonia e de um mingancho para pescar no rio, o emigrado d’Entre Minho e Lima regressa modestamente em segunda classe da Royal Mail (p. 8)14. (Ortigão 1885:8)

31Alguns atribuíam a culpa pela mania do brasileiro quase inteiramente à ignorância da população rural. A passagem que se segue é representativa deste ponto de vista e merece ser integralmente citada.

Qualquer homen ordinário destina seu filho desde menino para brasileiro, e o manda nessa condideração a escola aprender a ler, escrever, e contar. Não entra no juizo daquelle pai preoccupado, que de hum cento que passão para a America, são noventa e cinco perdidos para a sua patria, huns tragados pelas ondas, outros cativos de infieis, ou assassinados, e outros finalmente consumidos pelos insupportaveis trabalhos que tem nas caravanas para Minas e Certões... E que direi daquelles camponezes que sahem todos os annos das suas terras para o Alemtejo, Lisboa, Castella... que deixarão (se são casados) as suas mulheres como viuvas, ou solteiras, inhabeis para a geração e que se em dez annos de ausência assistem no casal, e tivessem quatro filhos, erão estes filhos riqueza mais segura para elles e para o seu paiz... porque hum bom lavrador, ou hum bom artista vale muito dinheiro. (Bezerra 1785:107-8)

32A última observação feita por este escritor acerca do impacte da emigração sobre a fecundidade é importante para um capítulo posterior do nosso estudo, mas no que se refere aos objectivos do presente capítulo, a ênfase é dada claramente ao logro da emigração — ao facto de trazer mais problemas do que vantagens. Percheiro (1878) concorda com este ponto de vista, fornecendo uma série de cálculos que fundamentam o argumento de que a emigração não é lucrativa, quer monetariamente quer em termos da saúde. Na verdade, nos finais do século XIX, os jornais regionais publicavam listas de cidadãos portugueses que haviam morrido no Brasil, muitos deles atacados pela tuberculose ou pela febre amarela. Em Novembro de 1860, por exemplo, chegou a seguinte notícia do Brasil: Um barco com 250 colonos chegou aqui recentemente. Estes colonos foram levados para uma ilha a três léguas de distância da cidade. A maioria morreu e os outros estão a ser castigados pelos seus pecados. Depois de chegarem é que se arrependem de ter abandonado o seu país.

33Todavia, o emigrante minhoto parece ter ignorado todos estas advertências por detrás das quais havia motivações variáveis, optando, em vez disso, por ver os emigrantes que regressavam para construir palácios ao lado da sua cabana (Costa 1874).

34Outros responsabilizavam pela emigração provocada pela ambição menos a ignorância do emigrante do que os homens que actuavam como intermediários, os chamados engajadores, que faziam dinheiro a juntar homens dispostos a ir trabalhar para o estrangeiro. Na realidade, tal como o termo brasileiro, a palavra engajador tem um significado especial — deriva do verbo engajar que literalmente quer dizer «contratar», mas que mais convencionalmente significa «aliciar homens para emigrarem». Estes engajadores ofereciam, em geral, uma libra a quem conseguisse convencer outra pessoa a emigrar. No final do século XIX, os jornais regionais do Norte estavam cheios de editoriais que exigiam o fim dessa prática. Os engajadores eram acusados de celebrar contratos enganadores que não informavam o emigrante potencial da diferença entre o valor da moeda em Portugal e no Brasil. No entanto, esses mesmos jornais permitiam que os engajadores publicassem anúncios nas suas páginas. Por exemplo, a 12 de Dezembro de 1890, apareceu um anúncio no Aurora de Lima a oferecer a passagem para o Brasil em barcos com carreiras bimensais a todos os trabalhadores agrícolas ou artesãos casados, a homens solteiros e a mulheres solteiras que quisessem trabalhar como empregadas domésticas. A oferta era supostamente apoiada pelo governo do Brasil, e todos os assuntos podiam ser tratados em Viana do Castelo, cidade onde o próprio jornal era publicado. Numa comunicação de 1 de Dezembro de 1874, o cônsul do Maranhão descreveu esses engajadores como «seres perversos, verdadeiros parasitas que, com o sorriso mais insinuante, se divertem a enganar os seus incautos irmãos com uma felicidade que é totalmente efémera» (citado em Percheiro 1878:170).15 Pereira (1981) refere vários indivíduos, desde párocos a capitães de navio, que se envolveram no negócio do engajamento e que lucracram com isso. Obviamente, estes engajadores, como os seus homólogos do século XX, os passadores que ajudavam os emigrantes clandestinos a ir de Portugal para França na década de 1960, eram intermediários, que serviam a política da emigração tanto nas zonas donde ela provinha como nas zonas a que se destinava. O historiador Herculano, defensor da causa do emigrante rural português, pedia a melhoria do ensino primário como uma maneira de evitar que as populações rurais fossem aliciadas por engajadores desonestos. Contudo, ao mesmo tempo, reconhecia que o saber ler não os ajudaria, em última análise, a ver a verdade; do que eles precisavam era de trabalho (Herculano 1873:175).

35Não se sabe exactamente quantos portugueses voltaram efectivamente do Brasil nos finais do século XIX e começos do XX. Martins (1885) calcula que aproximadamente 50% dos que partiram durante a última metade do século XIX acabaram por voltar. Pereira (1981) refere uma taxa de regresso entre 1864 e 1872 que oscilava entre os 30 e os 40%. Os registos de passaportes e as histórias orais indicam que, mesmo no caso da emigração para o Brasil, houve indivíduos que se foram embora durante um certo tempo, voltaram e depois partiram de novo. Outros partiram solteiros e regressaram, por vezes talvez vinte anos mais tarde, para casar. Outros ainda voltaram doentes e sem nada ou para passar os últimos anos da sua vida nas aldeias natais. Carqueja (1916:416-417) afirma que dos 73 831 que entraram no porto de Lisboa em 1890-1891, 4062 estavam doentes e 672 tuberculosos. Sem dúvida, o fluxo de regresso à pátria tornou-se significativo após a deflagração da I Guerra Mundial, em virtude de ser cada vez mais difícil arranjar emprego no Brasil, e também devido à contracção do mercado de trabalho depois de 1929 (Simões 1934). É, no entanto, impossível calcular com um certo grau de exactidão a amplitude da migração de regresso porque não dispomos de números relativos a antes de meados do século XX. Ainda hoje, a maioria dos números sobre a migração de regresso de França e outros países do Norte da Europa pouco mais são do que suposições fundamentadas. Convém, no entanto, sublinhar que o objectivo desse regresso deve ser tratado de uma maneira diferente do próprio regresso, uma vez que faz frequentemente parte essencial do projecto de migração inicial.

36Além disso, a «ideologia do regresso» (independente do número dos que regressam efectivamente) era apoiada pela política nacional de emigração, porque o país necessitava das remessas dos emigrantes para fortalecer a sua economia. Pereira (1981:43) chama a atenção para o facto de, durante os sessenta anos que vão de 1870 a 1930, o dinheiro brasileiro não só ter levado à monetarização da vida rural de Portugal mas também ter fomentado o investimento em terras e na construção. Houve um enorme afluxo de dinheiro vindo do Brasil no período entre 1860 e 1875 (Pery 1875). Estima-se que o volume das remessas entre 1881 e 1890 variasse entre oito e doze mil contos (Pereira 1981).16 Carqueja (1916) calculava que, entre 1911 e 1914, entrou em Portugal uma média anual de aproximadamente cento e dezassete mil contos. Esses fundos destinavam-se fundamentalmente aos seguintes distritos, enumerados por ordem decrescente do volume das remessas: Porto, Lisboa, Viseu, Viana do Castelo e Aveiro. Só com a emigração para França nas décadas de 1960 e 1970 é que as remessas dos emigrantes alcançaram de novo e ultrapassaram até essas proporções.17 Embora os dados sobre as remessas do Brasil do século XIX tenham ainda de ser analisados mais a fundo, Pereira (1981) refere algumas diferenças muito importantes. A maior parte do dinheiro parece ter sido enviada a destinatários do sexo masculino, um factor que segundo Pereira é uma prova de que os remetentes eram sobretudo filhos que enviavam dinheiro aos pais. Contudo, no distrito de Braga o modelo seguido era diferente. Aí, a maioria dos fundos detinava-se a mulheres, o que leva a crer que a maioria dos emigrantes da região era constituída por homens casados. Naturalmente, é necessário focar mais de perto o carácter sociodemográfico e regional da emigração.

A Emigração Portuguesa: Características Regionais e Locais

37É difícil obter números sobre a emigração anteriores ao século XIX e os cálculos feitos por Godinho e citados acima são talvez os dados mais fidedignos de que se dispõe relativamente ao volume total do fluxo emigratório para o Brasil antes de 1800. Além disso, fizemos referência à migração para Espanha, embora mencionando apenas a existência desse movimento e não números concretos. A isto deveriam acrescentar-se os movimentos internos sazonais de camponeses do Norte de Portugal para o Sul, os chamados ratinhos, acerca dos quais já escreveram vários estudiosos (Carqueja 1916, Pereira 1981, Picão 1947).18 Serrão (1974) diz que, mesmo ao longo do século XIX, até 1868, pouco se sabe, em termos quantitativos exactos, acerca da emigração portuguesa. Cita alguns cálculos aleatórios do número de portugueses que terão entrado no Brasil: 24 000 entre 1808 e 1817; 11 557 em 1855; e uma média de 4000 por ano entre 1860 e 1868 (a taxa mais baixa de todo o século XIX). Depois de 1868, os números são mais fáceis de obter e vão crescendo, como já dissemos anteriormente, até alcançarem os valores máximos nos anos imediatamente anteriores à I Guerra Mundial.

38O Quadro 2.1 apresenta a emigração anual média por distrito entre 1866 e 1913, em que a emigração para o Brasil estava no auge. O Quadro 2.2 descreve a emigração por distrito no século XX e abrange o impacte da emigração mais recente de portugueses para França na era pós-II Guerra Mundial. Ambos os quadros demonstram a concentração regional da emigração no Norte. Os quadros 2.3 e 2.4 apresentam as razões de masculinidade (número de homens por cada cem mulheres) da população por distritos em vários anos em que se efectuaram censos, entre 1864 e 1970, e distinguem a população celibatária da população casada. Há dois factores que estes últimos quadros demonstram que merecem ser analisados com mais pormenor no âmbito deste estudo: o modelo de emigração predominantemente masculino e os números especialmente desproporcionados relativos ao distrito de Viana do Castelo — em particular entre a população casada — em comparação com os dos outros distritos, nos mesmos períodos.

Quadro 2.1 Emigração anual média (1866-1913) por distrito

Image 10000000000002DF000001EF414941A2.jpg

NOTA: A. Emigração, 1866-1871; B. Emigração 1880-1882; C. Emigração, 1896-1898; D. Emigração, 1911-1913; A população indicada é a de facto.

FONTE: Carqueja (1916:388); Censos Nacionais Portugueses.

39Os historiadores de Portugal afirmaram repetidamente que a província do Minho (os distritos do Porto, Braga e Viana do Castelo) foi o centro da emigração durante vários séculos. Isso tem que ver com o facto de o Minho ser a região mais densamente povoada de Portugal desde a fundação da nação, no século XII. E tem também que ver com um costume de divisão da terra que antecede significativamente a legislação que ordena a rigorosa divisibilidade da herança, promulgada em finais do século XIX, e que obrigou as pessoas desta região a emigrar em busca de um rendimento suplementar.

40Dentro da província do Minho, o distrito de Viana do Castelo desempenhou permanentemente um papel importante na emigração, embora nem sempre tenha sido ele a zona com uma taxa de emigração mais elevada. Diríamos antes que houve um fluxo emigratório constante ao longo do tempo, o que dá ainda mais força ao argumento segundo o qual foi a constante densidade da população e a pressão contínua da população sobre a terra que tornaram a emigração necessária, e não crises económicas a curtoprazo como, por exemplo, a catástrofe provocada pela filoxera, que fomentou a emigração maciça do Douro, nas décadas de 1870 e 1880. No distrito de Viana do Castelo, houve variações das taxas de emigração entre os seus vários concelhos, durante os últimos cem anos, mas o concelho de Viana do Castelo propriamente dito (onde fica a freguesia de Santa Eulália) foi permanentemente uma fonte de emigração, tanto de homens solteiros como de casados, desde o último quartel do século XIX.

Quadro 2.2 Emigrantes oficiais por distrito, 1901-1970

Image 10000000000002D5000001D2D0C3B313.jpg

Fonte: Boletins, Junta de Emigração.

41Além dos dados dos censos, os jornais regionais também fornecem valiosos elementos acerca da emigração do distrito de Viana do Castelo durante a segunda metade do século XIX. Dois eram publicados na própria cidade de Viana do Castelo — O Vianense, cuja existência foi curta (1856-1868) e o Aurora de Lima, publicado pela primeira vez em 1855 e ainda produzido hoje. Além de divulgarem extensos editoriais sobre a emigração, os quais foram já referidos na primeira secção deste capítulo, estes jornais documentavam também o número de barcos que partiam de vários portos portugueses com destino ao Brasil e incluía numerosos avisos de chegadas e partidas, nos quais era anunciado o perço dos bilhetes e que garantiam uma viagem confortável.19 Nas décadas de 1850 e 1860, o preço de uma passagem em primeira, segunda e terceira classes era, respectivamente, 144$000, 117$000 e 38$000, relativamente a uma viagem de Lisboa ao Rio nas linhas Hamburgo-Brasil e Europa-América (ambas pertenciam a companhias inglesas). Nos barcos portugueses, os preços eram significativamente mais baixos: 72$000, 60$000 e 33$000 réis, respectivamente. Nos princípios da década de 1870, um jornaleiro ganhava 0$200 réis por dia, os pedreiros e carpinteiros 0$300, e os alfaiates e sapateiros, cerca de 0$280. Atendendo a estes salários, um jornaleiro teria de ter trabalhado durante aproximadamente 165 dias para juntar o dinheiro suficiente para comprar uma passagem a bordo de um navio português, e este cálculo exclui (o que é absurdo) o custo de vida diário. Escusado será dizer que muitos emigrantes se endividavam para comprar a passagem.

Quadro 2.3 Ratio de sexo da população solteira por distrito 1864-1970 (homens/100 mulheres, população de facto)

Image 10000000000003320000020BD1643345.jpg

a Os números para 1970 foram baseados numa estimativa de 20%.
b Os números correspondentes às cidades de Lisboa e Porto foram considerados separadamente dos do distrito.

Fonte: Censos Nacionais Portugueses, 1864-1970.

Quadro 2.4 Ratio de sexo da população casada, por distrito, 1864-1970 (homens/100 mulheres, população de facto)

Image 10000000000003300000023999EA798B.jpg

a Os números para 1970 foram baseados numa estimativa de 20%.
b Os números correspondentes ás cidades de Lisboa e Porto foram considerados separadamente dos do distrito.

Fonte: Censos Nacionais Portugueses, 1864-1970.

42Ocasionalmente, os jornais regionais também publicavam números relativos às partidas anuais do distrito. Por exemplo, o número de 29 de Novembro de 1858 do Vianense informava de que nesse ano, haviam sido emitidos no distrito 218 passaportes para o Brasil.20 Destes, 165 foram passados a homens solteiros, 47 a homens casados, 3 a viúvos e 3 a mulheres. Segundo a profissão, esses indivíduos eram assim classificados: 7 negociantes, 1 caixeiro, 9 pedreiros, 11 carpinteiros, 6 alfaiates, 5 ferreiros, 1 pintor, 1 pirotécnico, 54 lavradores e 122 sem profissão. Os registos dos passaportes de onde foram extraídos esses números fornecem informação não só acerca da profissão dos emigrantes mas também sobre a sua distribuição por idades e estado civil. Enquanto, em 1865, 43,3% dos indivíduos que requereram passaportes no distrito de Viana do Castelo tinham menos de dezanove anos de idade, em 1890 apenas 11,3% pertencia ao mesmo grupo etário. Inversamente, só 23% dos requerentes de 1865 tinham entre 30 e 49 anos, contra os 39% de 1890. A mudança ocorrida na composição da população emigrante reflecte-se também no estado civil dos que solicitaram passaportes. Em 1865, 85,8% eram solteiros, contra os apenas 57,9% de 1890.

43Durante o terceiro quartel do século XIX, a profissão mais frequentemente citada era a de caixeiro. No final do século, a mais comum era a de lavrador. Martins (1885:231) discrimina da seguinte maneira os pedidos de passaporte em 1887:

Trabalhadores rurais (lavrador, jornaleiro)

32%

Proprietários

4%

Caixeiros

8%

Empregados de escritório

6%

Marinheiros

2%

Criadas de servir

7%

Diversos

41%

44Ao analisar estes números, diz que o monopólio do comércio da carne que os imigrantes portugueses haviam detido foi ameaçado, no final do século, pelos imigrantes oriundos de Itália e que essa ameaça contribuiu para a transformação da emigração «clássica» de caixeiros para a emigração «agrícola». Bento Carqueja fornece uma discriminação por profissão relativa ao período compreendido entre 1911 e 1913. Distingue dois tipos de «trabalhadores rurais» — agricultores e operários agrícolas — correspondentes talvez em termos gerais aos lavradores e aos jornaleiros, respectivamente.

Agricultores

15%

Carpinteiros

3%

Pedreiros

3%

Operários agrícolas

24%

Indústrias domésticas

4%

Diversos

51%

45Este números levantam uma pergunta essencial: a maioria dos vindos da agricultura que emigravam era constituída por jornaleiros sem terras ou por pequenos proprietários rurais? Este assunto tem sido alvo de controvérsia, controvérsia que foi levantada em termos mais gerais e mais recentemente pelo historiador Charles Tilly (1978). Tal como sugerimos no capítulo anterior, a estrutura social do Norte de Portugal, e em especial da província do Minho, é suficientemente complexa para se defender qualquer dos pontos de vista com um determinado grau de certeza. Na realidade, nem sempre é claro precisamente quando uma família pertence a um modelo de estratificação social que exige uma classificação numa única célula ou nível.

46Os censos nacionais também nos informam sobre o impacte da emigração na razão de masculinidade da população local de Santa Eulália (Quadro 2.5). Estes dados locais são comparáveis (em termos do período a que se referem) aos efeitos da migração na ratio de sexo do distrito de Viana do Castelo no seu conjunto, e demonstram que os períodos com maior emigração foram entre 1878 e 1890 e de novo entre 1900 e 1911; este último período teve especial impacte na população casada da freguesia.

47Além dos censos nacionais, há algumas fontes alternativas às quais se pode recorrer para obter elementos tanto qualitativos como quantitativos sobre a emigração de Santa Eulália em particular. Além disso, e ao contrário dos dados censitários, estas fontes são nominativas, fornecendo-nos informação sobre a migração de indivíduos concretos. Os registos de passaportes são uma dessas fontes, uma vez que identificam os emigrantes pelo nome e local de nascimento. Embora fosse muito comum em meados do século as pessoas partirem para o Brasil sem passaporte e, portanto, esses registos reflectirem deficientemente a extensão do movimento, podemos, pelo menos, retirar desses documentos uma ideia acerca da constituição da população emigrante de Santa Eulália. Em geral, parece que o modelo do movimento para fora desta freguesia era muito semelhante ao da região no seu conjunto.

48Nas décadas de 1830 e 1840, aparecem apenas os nomes de sete homens de Santa Eulália, todos eles solteiros, três dos quais com pouco mais de trinta anos e três com menos de vinte. Cinco destes homens eram parentes e houve um caso em que dois jovens primos emigraram juntos. Durante a década de 1870, são referidos vinte e cinco habitantes de Santa Eulália, incluindo vinte e um homens solteiros, três casados e uma mulher solteira. Quinze dos solteiros andavam na casa dos vinte anos. As suas profissões variavam: havia seis lavradores, seis pedreiros, um carpinteiro, alguns oleiros, um barqueiro, um ferreiro e uns quanto caixeiros. Durante esta década, um homem que se intitulava negociante foi e voltou do Brasil três vezes. Na realidade, foram todos para o Brasil, excepto um caixeiro cujo destino foi Luanda.

49Na década seguinte, vinte e cinco pessoas de Santa Eulália requereram de novo passaportes; três delas (dois indivíduos casados e um solteiro) fizeram-no mais do que uma vez. O número de homens casados aumentou para sete, a maioria dos quais tinha entre trinta e tal e quarenta e poucos anos. As profissões eram semelhantes às da década anterior, excepto pelo facto de estarem também incluídos quatro jovens alfaiates. Na década de 1890, o número de homens casados de Santa Eulália que requereram passaportes aumentou extraodinariamente. Dos trinta e cinco que pareciam partir pela primeira vez, vinte e três eram casados. Neste período, o costume de ir e voltar duas ou três vezes generalizou-se mais e, na verdade, houve três homens que regressaram para voltar a emigrar com as famílias.

Quadro 2.5 Ratio de sexo da população de Santa Eulália por estado civil, 1864-1970 (homens/100 mulheres)

Ano

Solteira

Casada

Viúva

1864

85,9

102,4

42,2

1878

67,4

90,2

44,4

1890

53,4

78,1

44,2

1900

64,2

87,4

37,9

1911

63,9

72,5

31,8

1920

66,5

80,3

37,1

1930

82,1

86,9

23,2

1940

81,3

87,8

14,7

1950

77,2

91,0

19,7

1960

84,6

91,1

25,8

Fonte: Censos Nacionais Portugueses, 1864-1960.

50Uma segunda fonte que pode ser utilizada para fornecer dados nominativos sobre a emigração de Santa Eulália, na ausência de censos, são os Róis da Desobriga, listas mantidas pelo pároco da freguesia e onde estavam registados os nomes dos que se confessavam e comungavam e os donativos anuais entregues por cada agregado à igreja da freguesia. Os que não se encontravam na freguesia à data da elaboração do rol eram descritos como ausentes. Ainda que não possamos ter a certeza do completo rigor do pároco ao proceder a estes registos, a contagem dos ausentes demonstra que a emigração era um factor importante na vida dos habitantes de Santa Eulália durante a última metade do século XIX e os princípios do século XX, e que era muito mais comum do que os registos de passaporte sugeriam.

51Os dados retirados destes róis estão incluídos no Quadro 2.6 e merecem alguns comentários. Em primeiro lugar, é óbvio que a emigração já era importante em 1850, embora se tivesse intensificado nas décadas de 1880 e 1890.21 Em segundo, enquanto, no século XIX, o grosso dos emigrantes era constituído por solteiros, nos começos do século XX, havia pelo menos tantos, se não mesmo mais, casados ausentes da freguesia. Em terceiro, se bem que as mulheres solteiras representem cerca de 25% das ausências depois de 1887 (um terço em 1899), a minha interpretação desta proporção é que muitas dessas mulheres estavam fora mais como migrantes locais do que como emigrantes no estrangeiro. Em numerosos casos, eram mulheres provenientes das famílias mais pobres de jornaleiros; aliás, era muito frequente duas ou três raparigas da mesma casa estarem ausentes ao mesmo tempo. Estas raparigas (por vezes com idades compreendidas entre os oito e os treze anos) iam servir para as casas de aristocratas em toda a região do vale do Lima. Nuns quantos casos, eram referidas como criadas nas casas de lavradores de Santa Eulália e depois apontadas como ausentes. Voltaremos a falar desta população de criadas. Assim, embora os Róis da Desobriga demonstrem a mobilidade geográfica tanto de homens como de mulheres, estamos perante um tipo diferente de mobilidade.22 É seguro afirmar, e não sou de modo algum a primeira a fazê-lo, que não só a emigração de Portugal continental para o estrangeiro se concentrava na parte norte do país, como era predominantemente uma emigração de homens, quer solteiros, quer casados.

Quadro 2.6 Ausentes de Santa Eulália nos róis da desobriga, 1850-1927 (números absolutos)

Image 100000000000033B00000228A73AC361.jpg

a Em todos estes casos foi dada como ausente uma família nuclear inteira.
b Uma estava ausente com o marido, as outras duas estavam ausentes com a família nuclear inteira.

Fonte: Róis da Desobriga, Santa Eulália.

52Os próprios números, tanto locais e regionais como nacionais, mostram a existência de um preconceito sexual; os documentos históricos, em especial os relatos de viajantes, apontam os efeitos desse preconceito sexual nas zonas rurais. Uma das observações mais frequentemente feitas por esses viajantes era a prevalência de mulheres que trabalhavam no campo. Ainda que a relação entre esse facto e a emigração masculina nem sempre fosse sublinhada, o fenómeno era considerado suficientemente estranho para merecer ser comentado. Os excertos que se seguem são característicos das inúmeras observações semelhantes feitas acerca do papel económico das mulheres no Norte de Portugal, ao longo dos dois séculos e meio abrangidos por este estudo.

Duas coisas se fazem notaveis e singulares nesta gente do campo: a primeira, que as mulheres cavão, arão, e fazem todo o trabalho da lavoura, como os homens; a segunda, que sendo o seu ordinário sustento, uma comida rústica e frugal, aturão as maiores fadigas, sem que succumbão ao trabalho, ou estraguem a saude (Costa 1789:XIX)
São tais as obrigações normais das mulheres aqui, que os homens do distrito, animados de uma inultrapassável aversão por este tipo de trabalho, ficam muito satisfeitos por deixar a terra para as suas mulheres e filhas, enquanto, por seu turno, vão por esse mundo fora e abraçam as profissões menos cansativas de carpinteiros, pedreiros e criados.
(Koebel 1909:230)

53A segunda citação refere-se à divisão do trabalho no Norte de Portugal, segundo a qual as mulheres trabalham no campo e os homens trabalham como artesãos ou emigram ou fazem ambas as coisas. Estes papéis complementam-se e, neste contexto, a emigração deve ser encarada como uma ausência temporária, como um meio de aumentar o rendimento da família. Enquanto os maridos estavam fora do país, as mulheres do Norte de Portugal, em especial as da província do Minho, tinham o costume de se vestir de preto, pelo que lhes vieram a chamar viúvas dos vivos. Cultivavam a terra, criavam os filhos e esperavam pelo dia em que os maridos voltassem de Espanha, do Brasil ou de outro lugar distante. Os importantes papéis económicos desempenhados por estas camponesas do Norte serão abordados em vários pontos deste estudo e não deveriam ser esquecidos. De certo modo, são o resultado de uma longa tradição de emigração masculina; por outro lado, contribuíram para a perpetuar.23 É certamente possível dizer que, quer como estímulo ou como consequência, se podem estabelecer importantes relações entre a emigração masculina, papel económico desempenhado pelas mulheres e um amplo espectro de fenómenos demográficos alternativos.

54Associados a outros documentos históricos, os Róis da Desobriga podem fornecer alguns dados sobre a condição socioeconómica da população emigrante de Santa Eulália, durante o século XIX. Na sua maioria, os que se encontravam ausentes em 1870, quer fossem chefes de família casados ou filhos solteiros, provinham de famílias de lavradores, das mais pobres até às mais ricas. Ao falarem sobre a emigração mais recente para França, as pessoas da freguesia afirmam que o grosso dos emigrantes foi obrigado a partir por isso ser necessário: porque a população era muito elevada, a terra era pouca e a agricultura não dá para nada. Todavia, também mencionam homens que emigraram embora não precisassem de o fazer, homens que possuíam bens e viviam razoavelmente. Acerca destes, dizem não querem ficar para trás. Se outros tinham feito fortuna no estrangeiro, eles também queriam fazer.24 É com certeza possível que este juízo se aplique também aos séculos XVIII e XIX e não só ao XX, especialmente atendendo a que nem mesmo os lavradores mais prósperos eram muito ricos em terras e que a existência de vários filhos podia comprometer seriamente a posição social da família. Obviamente, a conclusão que somos forçados a retirar do exposto é que a emigração pode ter motivações diferentes, consoante a posição socioeconómica da família e que alguns podem ser movidos mais pela ambição, se é que esta se pode considerar a palavra adequada, do que pela necessidade. A situação dos lavradores portugueses mais abastados foi ameaçada durante os finais do século XIX e a emigração era um dos meios de manter a posição social.

55A situação profissional dos emigrantes de Santa Eulália depois da viragem do século era algo diferente. Entre os apontados como ausentes no rol de 1907 quer tossem chefes de família ou filhos solteiros, quinze eram pedreiros e três filhos de pedreiros, um era alfaiate e dois filhos de alfaiates, treze eram jornaleiros e um filho de jornaleiro, doze eram lavradores e sete filhos de lavradores, e os outros dez estavam ligados a outras actividades (ferreiros, sapateiros, cesteiros, estucadores, carpinteiros). Isto reflecte provavelmente uma mudança quer da composição socioeconómica da freguesia, como dissemos atrás, quer da composição socioeconómica da população migrante em si. Estes aspectos serão focados no próximo capítulo.

Conclusão

56As causas da emigração portuguesa, em especial da posterior a 1850, são complexas. Como Martins sugeriu, essa saída maciça foi estimulada por um conjunto de factores: a situação geográfica de Portugal, a sua história colonial, o exemplo dado pelos «retornados ricos» que de algum modo conseguiram sobreviver ao «mercado da carne» no Brasil e às «leis de subsistência» da província do Minho e dos Açores em particular. Martins assinalou também, o que é interessante, o impacte paradoxal que esta emigração tinha sobre o crescimento da população: «Que, nestas condições, em nenhum país pode a população crescer ou diminuir, a não ser em consequência de um aumento ou diminuição dos alimentos. Se há emigração, nascem mais pessoas; se não há emigração, nascem menos» (Martins 1885: 164). A tese de Habakkuk (1955) acerca da relação entre casamento e modelos de herança, crescimento da população e emigração é quase representada por esta última frase; o mesmo se pode dizer da concepção da emigração como válvula de segurança que, ao provocar o escoamento do excesso da população, tornou desnecessário o recurso a outras medidas de controlo da população, tais como redução da fecundidade. Contudo, não é inteiramente claro que o sistema demográfico do Norte de Portugal funcionasse exactamente da maneira descrita por Martins ou teorizada por Hababbuk. Além disso, na emigração há ainda a considerar o factor do regresso. O que é certo é que os fenómenos paralelos de emigração e migração de retorno tiveram um impacte significativo em outros aspectos da história da população do Norte de Portugal e é sobre esse impacte que nos vamos agora debruçar.

Notes de bas de page

1 Faria mostra-se igualmente preocupado com a «falta de gente» entre as classes nobres, mas aponta aqui como principais causas dois factores diferentes: o sistema de herança (morgado) e os generosos dotes concedidos às filhas mais velhas à custa das mais novas, que ficam solteiras. Obviamente, a sua preocupação principal em relação a ambas as classes (a dos ricos e a dos pobres) era por que só poucos filhos casavam.

2 Esta migração para Espanha era, provavelmente, de certo modo uma consequência da ocupação espanhola entre 1580 e 1640. Uma vez criado o hábito, é muito provável que se tenha mantido. Na Colecção Greenlee da Biblioteca Newberry, de Chicago, há uma carta de Filipe II com recomendações para pôr termo a esse fluxo migratório de Portugal para Espanha (Manuscrito 1623).

3 Convém notar que o ponto de vista que lamentava uma grave perda de população não se baseava em factos inteiramente exactos. A população de Portugal manteve-se estacionária, rondando 1 200 000 almas, entre 1540 e 1640; a partir de meados do século XVII, aumentou, até alcançcar os 2 500 000, em meados do século XVIII (Boxer, 1961).

4 Um pouco mais adiante incluiremos uma análise do brasileiro.

5 A bibliografia inclui vários estudos sobre a emigração para o Brasil no século XIX.

6 Pereira (1981) refere-se a negociações destinadas a substituir os escravos negros por imigrantes. Ver também Serrão (1974).

7 Teles (1903) distingue as taxas de emigração dos distritos mais centrais, tais como Aveiro e Coimbra, que flutuavam significativamente em resposta a crises que afectavam a exportação dos produtos agrícolas dessas regiões, onde predominava a monocultura, das do Noroeste, onde predominavam, por sua vez, a policultura e a agricultura de subsistência.

8 Para um estudo mais profundo das leis que regulavam a propriedade, ver Brandão e Rowland (1980).

9 Embora isso seja apenas uma prova do que se passava a nível local, o Aurora de Lima de Julho de 1889 mencionava o leilão de sete propriedades de Santa Eulália, a fim de permitir o pagamento de impostos e dívidas em atraso.

10 Para as populações rurais, segundo Teles (1903:80), o serviço militar «serve para lhe estragar e desmoralizar o rapaz, incutindo-lhe vícios, inoculando-lhe doenças, e pondo-o na rua afinal sem ofício e sem recursos.» Ver também Descamps (1935) e Pereira (1981).

11 Não eram só os Portugueses mas também os estrangeiros que analisavam os brasileiros. Por exemplo, Juliette Adams, no seu livro de viagens La Patrie Portugaise, publicado em 1896, fazia a seguinte afirmação: «Os Portugueses que regressavam do Brasil escolhiam sempre a cidade, aldeia, ou o lugar onde tinham nascido. Em geral, construíam uma casa num pequeno terreno e ficavam contentes consigo próprios nesse seu sonho realizado» (Adams 1896:324).

12 São muitas as referências a Galegos em Portugal. Por exemplo, durante uma viagem a Portugal, em 1788, James Murphy fez a seguinte observação: «Na sua maior parte, os trabalhadores aqui empregados são naturais da Galiza, uma provínica de Espanha; daí que sejam chamados galegos. Calcula-se que o número destes, só no Porto, se eleve a oito mil; pensa-se que, no reino inteiro, deve haver pelo menos cinquenta mil destes aventureiros dinâmicos. Se esta afirmação for correcta (e não a cito de ânimo leve) e cada homem poupar, em média, dezoito dinheiros por semana, então o comércio mais lucrativo de Portugal é o praticado pelos Galegos, uma vez que, de acordo com estes cálculos, as suas poupanças ascendem a cento e noventa e cinco mil libras por ano, que levam com eles para o seu país. Aqueles que presenciaram a sua maneira de viver, admitirão que a soma fica bastante abaixo da verdade, pois são as pessoas mais económicas do mundo. A comida vão-na buscar às portas dos conventos e nada lhes custa, dormem em adegas, estábulos ou claustros e vestem farrapos com os quais normalmente se deitam. No entanto, muitos deles possuem terras e casas no seu país, para onde voltam em determinados períodos, para dividir com a família a insignificância tão duramente ganha e onde finalmente se reformam assim que conseguem juntar o suficiente para viver livres de trabalhos, para passar o fim da vida entregues à simples fruição da felicidade doméstica» (Murphy 1795:16). Encontram-se referências semelhantes em Link (1801:206-207) e Descamps (1935:64).

13 Para um estudo mais profundo, ver César (1969) e Brettell (1978).

14 O Primeiro Estudo Parlamentar sobre a Emigração refere-se também a estes «pequenos» emigrantes retornados, os que voltaram sem grandes fortunas, mas pelo menos com o dinheiro suficiente para viverem sem dificuldades; para eles, a emigração não foi negativa, porque regressam com capital que usam no país e com o qual aumentam a riqueza pública (p. 177). O relatório passa depois a comparar esses emigrantes que voltam para as aldeias donde são naturais com os outros, detentores de maiores fortunas, que se radicam no Porto ou em regiões mais importantes do Minho, aonda se dedicam ao comércio ou vivem do rendimento dos bens que possuem no Brasil. Estes brasileiros são caracterizados no romance Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis.

15 Outro observador da província do Minho tinha isto a dizer acerca dos engajadores: «Antes de partirem, os engajadores anunciam-lhes a boa nova, para provar que a felicidade os espera: apontam os palácios, quintas e os pertences dos vizinhos cujos pais e avós, tal como eles, nada tinham; mostram-lhes o Sol a romper as nuvens, mas escondem deles a tempestade, cujo poder destruidor não conseguem ver de longe e do qual nem sequer suspeitam. (Costa 1874:274).

16 Um conto = 1000 escudos ou 1000$00.

17 Ver Pereira (1981), para um estudo da política de emigração relativamente às remessas dos emigrantes.

18 Por exemplo, Silva (1868:236) escreve: «Dos casaes, aonda muitas vezes as famílias sustentavam vinte e cinco pessoas, saiam para todas as partes do reino, vigorosos jornaleiros a cavar as vinhas, a ceifar as searas, e a ajudar em todos os serviços as lavouras.»
Trinta anos antes, um inglês observava: «Crê-se que a população do Alentejo diminuiu durante o último século, enquanto Entre Douro e Minho deixou de poder sustentar os seus cada vez mais numerosos habitantes, muitos dos quais emigram todos os anos dos seus vales felizes e oferecem os seus serviços às gentes de outras províncias. No entanto, influenciados por hábitos semelhantes e pela recordação de um tema comum, estes pobres homens mantêm-se juntos e juntos andam de terra em terra (Carnarvon 1836:II:109).
E um viajante alemão tecia um comentário semelhante, no alvorecer do século XIX: «Contudo, o crescimento deste povo activo e animado é demasiado grande para a sua terra improdutiva, e todos os anos emigra um grande número, alguns com a intenção de se fixarem noutros locais, e outros, para adquirirem bens e regressarem. Estes homens ajudam os agricultores das outras províncias nas colheitas e noutros aspectos da actividade agrícola; deslocam-se em grandes números, comandados por um capitão e vivem em cabanas» (Link 1801:33).

19 Em 1858, por exemplo, entraram nas docas do Rio de Janeiro 155 navios vindos de Portugal; 60 provenientes de Lisboa, 44 do Porto, 2 de Viana do Castelo, 1 de Setúbal, 1 do Faial, 3 da Madeira, 39 de Cabo Verde, 3 de Luanda e 1 de Macau.

20 Estes registos de passaportes estão incompletos, porque só contam a emigração legal. Cerca dos finais do século XIX, numerosos indivíduos partiram para o Brasil ilegalmente ou apenas munidos de um simples papel emitido por um notário, e não de um passaporte oficial.

21 As diferenças existentes nos censos nacionais entre a população de jure e de facto demonstram a existência da emigração. Os números variam um pouco em relação aos retirados dos róis, mas, dados o carácter sazonal da emigração, o facto de os róis não estarem completos e talvez diferentes definições do que era estar ausente as disparidades não eram importantes. Estes números extraídos de diversas fontes, destinam-se apenas a demonstrar que a população de Santa Eulália, tal como a população do conjunto da região era, incontestavelmente, uma população que migrava.

22 É importante referir que a mobilidade desta população feminina é já por si uma prova das difíceis condições económicas dos finais do século XIX.

23 Stanislawski (1959) sugeriu que a divisão do trabalho que faz recair os trabalhos do campo sobre os ombros das mulheres tem raízes históricas muito mais fundas, que remontam aos Celtas.

24 Para um estudo mais profundo, ver Brettell (1979, 1982).

Précédent Suivant

Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.