Capítulo I. A Freguesia de Santa Eulália: Demografia, Economia, Estrutura Social e Religião
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Texte intégral
História e Características Gerais da População
1A freguesia de Santa Eulália fica situada na margem do rio Lima, no concelho de Viana do Castelo, na província do Noroeste de Portugal chamada Minho. Fica aproximadamente a catorze quilómetros da costa e a meio caminho entre as cidades de Viana do Castelo e Ponte de Lima, da mesma província. Embora o rio Lima seja um dos vários que atravessam o Norte de Portugal, correndo das montanhas do interior para o mar, inspirou muitos poetas portugueses, e alguns pensam que é o mitológico rio Letes referido pelo geógrafo e historiador grego Estrabão. Segundo Augusto Pinho Leal, os Romanos acreditavam que o rio Lima provocava o esquecimento, e receavam atravessá-lo porque, se o fizessem, esqueceriam Roma e ficariam para sempre na região.1 É talvez um sentimento semelhante que mantém os actuais naturais da zona tão ligados à pátria — para muitos deles, é, de facto, a terra mais bela do mundo, e um lugar aonde os emigrantes esperam regressar um dia.
2A história dos princípios de Santa Eulália é fragmentada e deve ser vista no contexto da história do Noroeste de Portugal como um todo. Toda a região de Entre Douro e Minho (as actuais províncias do Douro Litoral e Minho) foi povoada pelos primitivos Lusitanos cerca de 2000 a. C. Alguns escritores pretendem que Santa Eulália era a sede de uma velha cidade lusitana chamada Lais, ou cidade dos laisenses. Depois de 900 a. C., chegaram à região pastores e trabalhadores de metais que se fixaram aí e casaram com os Lusitanos. Os Romanos apareceram na península cerca de 212 a. C.; mas levaram quase duzentos anos a conquistar toda a zona; as suas batalhas contra os independentes Lusitanos foram longas e renhidas. Depois da conquista, os Romanos dedicaram-se a estabelecer aldeias agrícolas ao longo da península Ibérica. Embora distante do resto do Império, a Lusitânia (Portugal) veio a partilhar a língua, a estrutura legal e, mais tarde, a religião de Roma.2
3No ano 409 d. C., os Suábios atravessaram os Pirenéus e entraram em Espanha, acabando por se fixar na Galiza e na Lusitânia. Romanizados e caracterizados por disporem de grandes propriedades e aldeias aglomeradas, os Suábios introduziram a prática de povoamento mais disperso e propriedades que eram divididas pelos herdeiros de geração em geração. Nascera o sistema de minifúndio que caracteriza o Norte de Portugal, e em especial a província do Minho.
4Os Mouros invadiram a península no ano 711 d. C. e conquistaram a maior parte do território. Contudo, o extremo noroeste nunca chegou a ficar realmente sob a sua égide e, cinquenta anos após a conquista moura, os reis das Astúrias e de Leão reconquistaram as principais cidades de Entre Douro e Minho: Porto, Braga, Guimarães e Viseu. No final do século IX, estes reis católicos reorganizaram a região, que confiaram a condes autónomos e, chamaram-lhe Provincia Portucalense. No século XI, estes condes estenderam os seus domínios para sul, até à cidade de Coimbra.
5Raimundo, o quarto filho de Guilherme, o Grande, da Borgonha, veio para o Norte de Espanha e Portugal em 1086 ou 1087. Em 1090, casou com Urraca, filha legítima e herdeira de Afonso VI, rei de Leão, Castela, Galiza e Portugal. A Raimundo foi concedido o governo de Entre Douro e Minho (Portugal) e Coimbra em 1094, mas, em 1096 ou no princípio de 1097, Afonso deu Portugal e Coimbra a seu genro Henrique de Borgonha como dote pelo seu casamento com sua filha ilegítima (mas que era a favorita) Teresa.3 Quando Henrique morreu, Teresa ficou como regente do filho Afonso Henriques. Os barões portugueses, receando a aliança de Teresa com os seus parentes espanhóis, voltaram-se para D. Afonso Henriques e encorajaram-no a exigir para si o território português. Afonso expulsou a mãe em 1128, recusou-se a prestar homenagem ao seu primo espanhol Afonso VII (filho de Urraca), correu com os Mouros de uma grande parte do país e, finalmente, adoptou o título de rei de Portugal, em 1143.
6Depois da separação dos reinos de Leão e Portugal, e durante os reinados sucessivos de Afonso III (1248-1279) e D. Dinis (1279-1325), as condições da população rural da província de Entre Douro e Minho melhoraram. As terras foram distribuídas a colonos que pagavam um tributo fixo ou foro em dinheiro ou em espécie.
«A cada casal correspondia uma porção sufficiente de terra de lavoura, com maninhos para romper, baldios para pastagens, e matos para estrume vegetães. Todos os terrenos cultivados por morte do caseiro, ou emphyteuta principal, entravam na partilha dos herdeiros, sendo cada um d’elles obrigado a inteirar ao foreiro principal... Todas as terras incultas revertiam para a corôa, para o concelho, ou para o senhorio, mas como o interesse próprio animava a agriculta-las, na realidade só ficavam maninhos os terrenos do termo dos municípios ainda não distribuídos.» (Silva 1868:109).4
7As terras em regime de propriedade perfeita tornaram-se cada vez mais pequenas, de tal forma que, em certos casos, passaram a ser economicamente absurdas do ponto de vista económico. Foi neste contexto, como o historiador Marques (1972) observou, que nasceram as migrações locais de uma zona para outra, do campo para a cidade. Foram fundadas numerosas vilas novas e aldeias novas.5 De acordo com as teorias modernas acerca da relação entre a herança divisível, fragmentação da terra e crescimento da população, Marques estabelece uma ligação entre o desmembramento das velhas vilas romanas, o acesso dos filhos mais novos aos rendimentos das terras e um aumento da população de Portugal nos séculos XI, XII e XIII. Todavia, tal como o resto da Europa, Portugal sofreu um decréscimo populacional com a chegada da Peste Negra, em meados do século XIV.6
8Dos finais da Idade Média (desde aproximadamente 1130) até meados do século XVI, Santa Eulália, juntamente com três aldeias vizinhas pertenciam ao couto concedido por D. Afonso ao mosteiro de São Salvador da Torre, um mosteiro beneditino presumivelmente fundado no ano 570 d. C. por São Martinho de Dume e, segundo algumas fontes, restaurado cerca de 1066 por Frei Ordonho, um parente de D. Payo Vermudez (a quem alguns chamavam conde de Tuy).7 Este mosteiro, tal como o resto da região a norte do rio Lima, fazia parte da diocese galega de Tuy até 1440. Então, foi transferido para o bispado de Ceuta, em África, e, finalmente, em 1512, para o arcebispado de Braga.8
9A população de Portugal começou a ter um crescimento regular depois de 1450 até ao fim do século XVI, apesar de epidemias periódicas. Em 1527, D. João III ordenou que se fizesse um censo da nação (Freire 1905). Na altura, contaram-se 2104 casas na cidade e arredores de Viana do Castelo e 101 casas na aldeia de Santa Eulália propriamente dita. Apurou-se que a população total de Entre o Douro e Minho era de 275 330, o que fazia que, tal como acontecia desde o nascimento da nação, fosse a região de Portugal mais densamente povoada — aproximadamente 20 por cento da população total vivia em 13 por cento da área. Calculou-se que, à data, a população de Portugal inteiro variava entre um milhão e um milhão e meio de almas.9
10Santa Eulália ficava no extremo oriental daquilo a que se chamava o termo, ou limites, da cidade de Viana do Castelo. Viana tinha permanecido uma pequena cidade piscatória, até que a grande era dos Descobrimentos a transformou no maior porto ligado ao comércio externo. Floresceu ao longo do século XV e princípios do XVI. Atraído pela sua prosperidade comercial, José Martins de Ricalde (ou Rigua), natural da província espanhola da Biscaia, veio para Viana no século XV. A família prosperou e, em 1548, um descendente, João Martins de Ricalde, adquiriu metade do padroado de Santa Eulália ao convento de São Salvador da Torre10, e construiu um solar na aldeia. Um dos seus bisnetos veio a ser padre de Santa Eulália e erigiu um túmulo para a família na principal igreja da freguesia. Nos primeiros anos do século XIX, uma descendente, D. Maria Francisca Abreu Pereira Cyrne, filha única do décimo senhor do solar de Santa Eulália, casou com o segundo conde de Almada, e a propriedade passou assim para as mãos de uma das famílias nobres importantes de Portugal, uma família de que voltaremos a falar neste capítulo. Quando Portugal caiu sob o domínio espanhol (1580-1640), o comércio em Viana do Castelo paralisou e a cidade estagnou. Só quando se descobriu ouro e diamantes no Brasil é que a cidade e a região se desenvolveram de novo.
11Na corografia de Portugal do Padre António Carvalho da Costa, publicada originalmente entre 1706 e 1712 e reimpressa em 1868, Santa Eulália consta como possuindo 170 casas.11 Em meados do século XVIII, o número de casas tinha aumentado para 173 (Cardoso 1767) e, em 1793, apesar de não ser nem urbana nem politicamente importante, a rainha de Portugal D. Maria I elevou Santa Eulália à categoria de vila, sede administrativa de um concelho. Juntamente com outras aldeias do concelho que ficaram sob a jurisdição da nova vila em 1795, Santa Eulália constituía um senhorio, que foi dado de jure et herdade a Sebastião de Abreu Pereira Cyrne «em recompensa pelos muitos e valorosos serviços» de seu tio, José Ricardo Pereira de Castro, chanceler-mor do reino, e em troca do senhorio de Lindoso, que o pai de Sebastião, Francisco de Abreu Pereira Cyrne Peixoto (irmão de José) tivera desde 1750. Foi erigido um pelourinho para simbolizar esse novo estatuto de vila e foram construídos uma câmara e uma prisão. Em 1796, foi criada uma feira bimensal e, em 1799, esta feira usurpara já os negócios relacionados com o comércio de gado a uma feira mais pequena realizada na aldeia de Meixedo. Deste período da história de Santa Eulália pouco mais resta do que alguns róis eleitorais dispersos que nos mostram quais as pessoas mais respeitadas da nova vila, alguns registos de tribunal relativos a pequenos delitos e um livro de leis locais.12
12Há, no entanto, duas fontes que nos fornecem algumas informações acerca da população da nova vila nos alvores do século XIX. O censo (1970) de 1798 de Pina Manique enumerava 188 agregados, e 476 do novo concelho no seu conjunto.13 O cadastro da província do Minho elaborado pelo engenheiro José Gomes Villas Boas mais ou menos na mesma altura (Cruz 1970) ainda descrevia Santa Eulália como um couto — um dos treze do distrito de Viana do Castelo na época — e contava 801 almas, que viviam em 186 agregados.14 A população estava assim dividida: 265 homens com mais de 14 anos, 304 mulheres com mais de 14 anos, 125 rapazes com menos de 14 anos, e 107 raparigas com menos de 14 anos. Segundo Villas Boas, Santa Eulália tinha, na altura, três padres, e eram colectados 960 réis para o dízimo anual pago à igreja.15 A população total do distrito de Viana do Castelo era de 124 197 indivíduos, que viviam em 32 144 casas.16
13Com a independência do Brasil na década de 1820, o assoreamento do porto e a queda da indústria de construção naval da região, terminou o período de prosperidade económica de Viana do Castelo.17 Em 1834, de acordo com as alterações administrativas introduzidas a nível nacional e com a dissolução tanto dos senhorios como dos padroados eclesiásticos, Santa Eulália perdeu a categoria de vila e foi integrada no concelho de Viana do Castelo. Embora o pelourinho e orgulho histórico transmitido oralmente sejam os únicos vestígios que restam da anterior glória política da aldeia, a feira bimensal manteve-se até aos nossos dias e tem ajudado a conservar a importância de Santa Eulália como centro económico da região.
14Ainda que a população tenha crescido regularmente durante a maior parte do século XVI, uma epidemia em 1581, sessenta anos de domínio espanhol e a guerra da Restauração em 1640 iniciaram um período de crescimento letárgico da população em quase todo o século XVII. Em meados deste século, estimava-se a população total do país em dois milhões. Segundo Balbi (1822), num dos primeiros «ensaios estatísticos» sobre Portugal, certas leis de D. João (1640-1656) e seus sucessores, aliadas a uma intolerância religiosa que fazia que os estrangeiros não se sentissem atraídos pela ideia de aí se fixarem, impediram Portugal de recuperar, tão rapidamente como teria podido, o seu modelo de crescimento anterior.
15A população aumentou lentamente durante a primeira metade do século XVIII, nos reinados de D. Pedro II (1668-1706) e D. João V (1706-1750), apesar de uma epidemia que assolou Lisboa em 1723, de certas intrigas políticas em que estes soberanos se envolveram e de uma legislação por vez contraditória sobre agricultura, comércio e indústria. Em 1800, tinha alcançado aproximadamente os três milhões e, em 1820, 3,1 milhões. Porém, segundo Marques (1972), Lisboa não estava a crescer tão depressa como as outras grandes capitais da Europa ocidental e o crescimento da cidade do Porto, pelo contrário, era sintomático do desenvolvimento económico e prosperidade do Norte de Portugal no século XVIII e princípios do século XIX. Se aceitarmos os primeiros números relativos à população de Santa Eulália, o crescimento foi, de facto, lento. Entre 1527 e 1712, formouse em média um novo agregado familiar em cada período de dois anos e meio; no espaço de cinquenta e cinco anos, entre 1712 e 1767, apenas foram criados três novos agregados, enquanto nos trinta e três anos que iam de 1767 aos alvores do século XIX, foi estabelecido um novo agregado por ano.
16O verdadeiro arranque no crescimento da população de Portugal deu-se depois de meados do século XVIII, e em especial entre 1860 e 1911. Tal como noutras partes da Europa ocidental, este arranque coincidiu em grande medida com uma queda abrupta da mortalidade. Morgado observou com perspicácia que «se tinham sido necessários trezentos e trinta anos para a população (de Portugal) alcançar os três milhões e meio, bastou apenas mais um século para que ultrapassasse os oito milhões» (1979:319).
17O primeiro censo nacional foi realizado em 1864 e, daí em diante, dispomos de uma análise mais ou menos precisa das tendências da população, a nível nacional, regional e, em menor medida, local. Os números do censo correspondentes ao concelho de Viana do Castelo e à aldeia de Santa Eulália parecem indicar que a população desta zona só começou a crescer significativamente nas décadas de 1920 e 1930. No entanto, um estudo mais pormenorizado das taxas de crescimento real e natural (baseado, é claro, em cálculos globais feitos a partir dos registos paroquiais em conjugação com os números do censo) provam que houve efectivamente um crescimento da população, mas foi contrabalançado em grande parte pela emigração (Quadro 1.1). Nos catorze anos compreendidos entre 1864 e 1878, foram criadas cinquenta novos agregados familiares, enquanto a população diminuía cerca de dois terços — daí uma queda enorme no tamanho médio dos agregados. O Capítulo III inclui um estudo mais profundo da formação de agregados durante os finais do século XIX.
18A Figura 1.1 mostra as tendências dos números globais de baptismos, óbitos e casamentos na freguesia durante o período de cerca de dois séculos e meio entre 1700 e 1960. Os baptismos revelam um decréscimo geral ao longo dos finais do século XVIII, seguido de um aumento durante os primeiros trinta anos do século XIX.
19Entre 1830 e 1890, houve flutuações da natalidade a curto prazo e, posteriormente, um segundo período de aumento rápido, no começo do século XX e em especial depois de 1920. A descida momentânea entre 1910 e 1919 parece estar directamente ligada a uma queda momentânea dos casamentos, sendo ambas muito provavelmente uma consequência do impacte da I Guerra Mundial. Embora isso não conste do gráfico, o número de baptismos na freguesia diminuiu muito significativamente durante a década de 1960, o que constitui uma consequência directa da emigração para França, que coincide com uma taxa negativa de crescimento real da população, após quarenta anos de crescimento. Nessa década, os casamentos eram celebrados em Santa Eulália e os casais partiam depois para França, o que não impedia que muitos baptizassem na freguesia os filhos nascidos nesse país.
20Os casamentos mostram mais flutuações a curto prazo depois de 1810, mas, de um modo geral, o número médio de casamentos por ano mantevese bastante constante até aos finais do século XIX e princípios do XX. Os óbitos parecem ter variado tanto como os nascimentos, a curto prazo. Em regra, os números baixos reflectem provavelmente um registo deficiente da mortalidade de crianças que ainda não haviam feito a primeiro comunhão, antes de meados do século XIX. O enorme aumento dos óbitos entre 1800 e 1810 é quase de certeza uma consequência das invasões napoleónicas nos últimos anos dessa década. A subida entre 1830 e 1840 reflecte o impasse do surto mundial de cólera (Morris, 1970) — só em Agosto e Setembro de 1832 morreram trinta e duas pessoas.18Uma epidemia semelhante, a gripe espanhola, assolou a freguesia em 1918, matando vinte e sete indivíduos durante o mês de Outubro. Esta última epidemia não foi esquecida pelos habitantes de Santa Eulália, sobretudo por aqueles que perderam um parente, e todos os anos, nos princípios de Junho, a gente de todas as aldeias da região celebra uma peregrinação para comemorar esse acontecimento trágico e fatal.
Geografia e Economia
Em nenhuma outra região é o cultivador tão
rotineiro, e em nenhuma outra talvez é a
rotina da cultura mais empírica e mais ruinosa. (Ortigão 1885:53)
Se a terra do Egipto é um presente do Nilo,
segundo a frase de Heródoto, a do Minho é
sem dúvida o resultado das fadigas dos seus
habitantes. (Sampaio 1923:455)
21A província do Minho (os distritos de Viana do Castelo, Braga e Porto) tem sido frequentemente chamada o jardim de Portugal. A paisagem verde e ondulante, a precipitação e clima favoráveis tornaram a terra fértil e produtiva, apesar da pressão que uma população densa representa.19 Durante o século XIX, a maior parte da região estava coberta de castanheiros, que forneciam um dos elementos mais importantes da dieta dos camponeses. Hoje, as principais árvores são os pinheiros bravos, que lhes fornecem combustível e dinheiro, em situações de emergência. No começo deste século, a madeira era muito importante para a economia da aldeia de Santa Eulália e do rio Lima, em geral. Homens e mulheres trabalhavam como lenhadores, carteiros (os que transportavam a madeira das serras para a margem do rio) ou como barqueiros que desciam o rio Lima em embarcações pouco fundas onde levavam a madeira para Viana do Castelo.
22Os pinheiros existem nas bouças; o resto da terra da província do Minho, em particular nos vales mais baixos do rio, é cultivada segundo o sistema de rotação de colheitas. Uma parte desta terra é irrigada no Verão, quando a precipitação na Primavera foi insuficiente. Antigamente, antes da introdução da água canalizada, a distribuição da água era cuidadosamente regulada. A cada proprietário era atribuído um determinado tempo, quando chegasse a sua vez, para irrigar os campos com a chamada água da rega e se a sua vez calhasse no meio da noite, tinha de aceitar o facto. Tal como noutras partes da Europa rural, a divisão da água era, com frequência, uma fonte de disputas.20
23Como dissemos anteriormente, a propriedade no Minho está dividida em pequenas parcelas e é possível que qualquer família possua ou arrende numerosas terras, campos e bouças, dispersos pela sua aldeia natal e até pelas aldeias vizinhas.21 Ramalho Ortigão afirmou um dia, a título de graça, que o facto de o minhoto possuir terras em várias aldeias lhe deu o direito de ser enterrado em todas elas, mas de votar só numa (1885:159). Pery (1875) calculou que o tamanho médio das parcelas nos distritos de Viana do Castelo, Braga e Porto era de 0,58, 0,65 e 0,89 hectares, respectivamente. Em seguida, comentou que até as propriedades maiores estavam divididas em pequenas parcelas e arrendadas a camponeses. Hoje, o concelho de Viana do Castelo é a região de Portugal cuja população agrícola é constituída por uma maior percentagem de proprietários. Porém, tal não acontecia nem há um século nem sequer há meio século. No conjunto de Portugal, 95% das explorações agrícolas ocupam 32% da superfície, enquanto na Grécia, 95% das explorações agrícolas ficam em 80% da superfície (Barros 1972). Esta diferença reflecte o contraste existente em Portugal entre o Sul latifundiário e o Norte dos minifúndios. Na próxima secção deste capítulo falaremos mais acerca do regime de propriedade.
24O principal cereal cultivado no Minho é o milho, que foi aí introduzido no final do século XVI e que, posteriormente, alterou toda a economia rural do Nordeste de Portugal. Cabral (1974:29-30) considerou a «revolução do milho» como a mudança mais significativa da história económica de Portugal depois da conquista romana. Provocou o fim das terras de pousio, um aumento da terra irrigada e da agricultura intensiva de pequena escala, uma diminuição das pastagens e do trabalho comunitário, a construção de muros entre as parcelas de terras, e fomentou o individualismo (Ribeiro 1945). O milho é semeado em Maio e regado (se necessário) três ou quatro vezes por mês até ao amadurecimento e colheita, nos fins de Agosto e durante o mês de Setembro. Entre as filas de milho, os camponeses plantam feijões e outros legumes, utilizando assim todos os pedaços de terra de que podem dispor. Depois de o milho ser colhido, plantam erva, a fim de que, durante os meses de Inverno, os campos possam servir de pastagens para os animais. As parcelas onde se cultivou o milho podem ser depois utilizadas para plantar batatas ou couves de Inverno e nabos.
25Depois da introdução do milho e como a população da região crescesse, o seu cultivo estendeu-se aos campos até aí tradicionalmente reservados para outros fins. Isto provocou sobretudo uma alteração no cultivo da videira. Em vez de plantarem as videiras em filas baixas nas encostas soalheiras (como fazem no vale do Douro e no Sul de França, por exemplo), os camponeses da província do Minho começaram a pôr as videiras em latadas, servindo-se de postes de granito e de troncos de árvores situados entre as suas parcelas de terra cultivada de milho. As uvas, elevadas e parcialmente protegidas pelas suas próprias folhas, não amadurecem tão rapidamente e é por esta razão que o vinho desta região veio a ser conhecido por vinho verde.
26Embora o cultivo do milho se espalhasse pelas encostas das montanhas e provocasse a formação de socalcos e a apropriação de terras de pastagens em algumas partes do Alto Minho, algumas terras altas continuaram a ser reservadas a pastos e, o que é mais importante, a tojais — ou seja, para a produção de mato usado para fazer camas para os animais e, em última análise, como adubo, aliás sempre tão necessário.22 Antigamente, o gado bovino e ovino era extremamente importante para a produção de leite, queijo, manteiga e lã. Contudo, a expansão do milho e decréscimo simultâneo do número de campos destinados a pastagens levou a uma queda da produção de lacticínios e o azeite começou depois a substituir a manteiga.
27Ainda que haja quem se mostre crítico em relação a este sistema, o geógrafo francês Pierre Birot (s.d.:73-74) descreveu-o uma vez como «o tipo mais perfeito de integração agrícola vertical imaginável», já que é um sistema que forneceu, ao mesmo tempo, aos camponeses da região frutos, azeite, bebidas, legumes, pão e alimento para o gado e os porcos. Este sistema agrícola, e os correspondentes métodos de exploração agrícola, foram transmitidos de geração em geração. Que aquilo que vemos hoje pouco difere da maneira de viver de há dois séculos é um facto que pode ser confirmado pelas notas escritas por viajantes do Norte da Europa que passaram pela região nos séculos XVIII e XIX.
Viajei por uma estrada muito má, através de uma região no geral agradável, que parece populosa, cultivada de milho mesmo nas montanhas, até onde era possível, e vi muita gente; tinham um aspecto limpo, mas as mulheres não usavam nem sapatos nem meias. (Dalrymple 1777:212)
Aqui, pequenos campos de milho e até de centeio e cevada e mais raramente de trigo são rodeados por altos carvalhos, castanheiros e choupos, regados artificialmente por regatos. Cada árvore serve de apoio a uma videira que se espalha pela sua copa e muitas vezes atinge o cimo do alto carvalho. (Link 1801:331)
28Uma segunda característica importante deste sistema agrícola rural do Noroeste de Portugal e de Santa Eulália, característica que está obviamente ligada à densidade da população, é um povoamento disperso. O campo é formado por lugares que se seguem uns aos outros, de tal modo que é difícil distinguir onde acaba um e começa outro. Embora Santa Eulália seja uma das maiores freguesias da região, com uma área de aproximadamente onze quilómetros quadrados de terra cultivada, não cultivada e habitada, é formada por vinte e cinco lugares, cada um dos quais tem o seu próprio nome.23 Há um certo grau de «orgulho no lugar», mas o chauvinismo que se se pode encontrar é, em regra, ao nível da freguesia. O lugar mais importante é o Lugar da Feira, a área situada no centro e que cerca a praça. É aqui que se realiza a feira bimensal e que fica a maior parte das lojas e cafés. A primeira Casa do Povo foi construída na praça da freguesia na década de 1930 e o único forno de lenha que ainda funciona fica ali perto.24
29Segundo a análise estatística do distrito de Viana do Castelo feita por Cândido Furtado Coelho em 1861, 59% da população activa durante a última metade do século XIX era constituída por trabalhadores assalariados. Todavia, não é claro se este número se referia apenas a trabalhadores industriais assalariados ou se incluía também trabalhadores agrícolas assalariados. Mais recentemente, Jaime Reis (1981) analisou um inquérito industrial «esquecido» feito no distrito de Viana em 1839, um inquérito que se destina a abranger a actividade agrícola, industrial e comercial. Em resposta a uma pergunta sobre o número de fábricas existentes no concelho de Viana, o interrogado citava três: uma fábrica de loiça em Darque (do outro lado do rio, em frente de Viana do Castelo) e duas de curtumes em Viana. O relatório prossegue assim:
Todas estas Fábricas estão em decadência por se haverem estabelecido outras de louça no Porto, que vendem seus produtos por preços mais commodos, e fábricas de atanados e bezerros na Galliza, aonde antes se consumião os desta Villa. Para a Fábrica de louça são estrangeiros os metais e tintas, e para as de atanados e bezerros são os couros do Brasil. Na fábrica de louça empregão-se oito operários, e nas de atanados e bezerros seis a oito em cada uma. (Reis 1981:194)
30Em resumo, a indústria que existia no concelho de Viana do Castelo e em Santa Eulália, antes do século XX era principalmente caseira, desenvolvida durante as estações do ano em que os trabalhos agrícolas eram menos pesados e destinada sobretudo, embora não exclusivamente, ao consumo doméstico.
31No distrito de Viana do Castelo, eram frequentemente as mulheres que mais contribuíam para essa indústria. Durante os meses de Inverno, fiavam e teciam o linho e faziam pesadas mantas de trapos. A manufactura do linho era, na realidade, uma actividade muito importante e que absorvia muito tempo até aos princípios da década de 1950 (Felgueiras 1932). A observação que se segue é da autoria de um inglês que passou pelo Noroeste de Portugal na década de 1790:
O facto de fabricarem todo o linho usado no reino só fala a favor das mulheres de Portugal; semeiam os grãos, colhem o produto e batem o linho; depois tecem o fio e fazem os tecidos... até a mesa do mais pobre dos camponeses tem uma toalha e um guardanapo limpos. (Murphy 1795:20)
32A indústria do linho dava origem a uma série de ocupações: fiandeiras, tecelões, comerciantes de tecidos, fabricantes de rendas, costureiras, fabricantes de cordas e de fitas (Bezerra 1785:20). A importância regional do fabrico do linho está também patente em inúmeros velhos ditados populares que fazem referência à roca e ao fuso:
Não há casa farta onde a roca não anda.
Tome casa com lar e mulher que saiba fiar.
33A principal profissão que não está ligada à agricultura (arte) do Minho é a de pedreiro. O granito é a pedra mais importante e os homens da região tornaram-se peritos em cortá-la e trabalhá-la. A sua mestria tem sido apreciada em todo o Portugal e no estrangeiro, factor que explica, pelo menos em certa medida, os caminhos da emigração seguidos pelos canteiros minhotos, que os conduziram em especial até Espanha. Em décadas mais recentes, levaram a sua perícia para França, onde se adaptaram a trabalhar com blocos de cimento e armações de aço.
34Além de pedreiros, havia em Santa Eulália quem se intitulasse carpinteiro e pintor e, às vezes, depois dos começos do século XX, estucador. Vários homens trabalhavam também como barqueiros, até que, depois de 1930, aumentaram as estradas e transportes terrestres de melhor qualidade. Efectivamente, no inquérito industrial estudado por Reis (1981:187), a uma pergunta sobre transportes foi respondido o seguinte pelo concelho de Viana: «Os géneros que produz este concelho são conduzidos em carros de casa dos proprietários para a margem do rio Lima e dali em barcos para bordo dos navios». Entre outras profissões masculinas mencionadas em várias fontes históricas figuram alfaiates, sapateiros, tamanqueiros, oleiros (dos quais voltaremos a falar em breve), cesteiros e pequenos comerciantes. Porém, apesar deste heterogéneo conjunto de profissões numa pequena povoação rural, pode dizer-se com segurança que a maioria das famílias se dedicava igualmente a qualquer tipo de cultivo da terra. Estas actividades não-agrícolas, artesanais, eram um complemento necessário de uma economia agrícola baseada no minifúndio.
35Há outros aspectos da história da economia local de Santa Eulália que são dignos de menção. Costa (1868) faz referência a minas nas proximidades de Santa Eulália que foram exploradas em vários períodos, mas sobretudo durante a II Guerra Mundial, em que Portugal fornecia minérios tanto aos Aliados como ao Eixo. Quase toda a gente de Santa Eulália trabalhou nas vizinhas minas de volfrâmio e estanho e, no período de maior procura, recebiam de sessenta a cem escudos por quilo de estanho ou volfrâmio que encontrassem. Alguns enriqueceram, em especial aqueles em cujas propriedades foram encontradas minas. Foi precisamente assim que a família do actual pároco de Santa Eulália prosperou. Aqueles que recordam este período da história de Santa Eulália lembram-se de que foram tantas as pessoas que abandonaram a terra que em breve se fez sentir a falta de alimentos; o preço do pão subiu tão vertiginosamente que até o padeiro da aldeia enriqueceu, a vender, a preços exorbitantes, pão feito de coisas não comestíveis. A mania do dinheiro que se espalhou por Santa Eulália e pela região é repetidamente mencionada por muitos dos velhos e é realisticamente reproduzida por Aquilino Ribeiro no seu romance sobre este período, Volfrâmio.
36Um outro aspecto importante da economia local de Santa Eulália foi o fabrico de telhas e de loiças. Diz-se que as telhas feitas em Santa Eulália foram enviadas para o mosteiro de Mafra, construído no século XVIII. Leal (1873) refere que «se fazem em Santa Eulália muitas e excelentes telhas, além de outros artigos de barro — jarros, grandes tigelas, panelas». Cândido Furtado Coelho contou, em 1861, sete olarias no distrito de Viana, todas elas em Santa Eulália. De facto, certas famílias extensas de oleiros dedicavam-se quase exclusivamente à produção de artigos domésticos, e a arte era transmitida de geração em geração. Uma dessas famílias fixou-se em Santa Eulália vinda de uma aldeia perto de Prado, no distrito de Braga, uma zona famosa pelos seus artigos de barro para uso doméstico. Outras famílias dedicavam-se apenas à produção sazonal de telhas que eram cozidas em fornos particulares e só em certas épocas do ano, em virtude do fumo excessivo que este processo originava. Na década de 1760, o padre Cardoso contou oito fornos; Coelho (1861) contou vinte e dois no concelho de Viana, um século depois, embora não mencione um número relativo a Santa Eulália propriamente dita; segundo um habitante da aldeia, na altura da I Guerra Mundial, havia quarenta fornos, metade dos quais estava concentrada num lugar. Hoje, esta actividade desapareceu, mas quando a gente de Santa Eulália participa na procissão da Feira da Agonia, a importante feira anual da cidade de Viana do Castelo, relembra frequentemente aos outros a importância da sua olaria no passado. Os gostos mudaram e as pessoas das zonas rurais do Norte de Portugal têm agora mais facilmente acesso a produtos industriais. Ainda que em algumas casas de camponeses ainda se utilizem os recipientes de barro vermelho, a sua preferência vai para o tipo de loiça branca e dura que se vê nas mesas de todo o mundo ocidental. As telhas continuam a ser usadas na construção mas, hoje em dia, são produzidas em série e distribuídas por todo o país.
37Um último elemento da economia local que é importante citar é o comércio de boi ou comércio de gado. Cada família de camponeses necessitava de uma junta de bois, isto se queria cultivar a terra e obter bons resultados. A fim de conseguirem fazer mais algum dinheiro, algumas famílias usavam para o efeito novilhos castrados que criavam e empregavam no trabalho do campo e que mais tarde vendiam com lucro. Outros, que não tinham dinheiro para comprar uma junta de bois, iam buscar gado a ganho a um negociante local ou a um fornecedor de gado (havia vários na região). Alimentavam os animais, utilizavam o seu trabalho e, depois, quando vendiam a junta, metade do lucro era para o agricultor e a outra metade para o fornecedor. Esta prática de gado a ganho era tão comum que era frequente as famílias não saberem quem possuía juntas de bois e quem as alugava, e foi a feira de gado que tornou o mercado bimensal de Santa Eulália tão importante no passado. Um velho contou que, quando era rapaz, os pais o mandavam ir à feira buscar estrume para as terras. Qualquer pessoa podia lá ir e levá-lo. Ele e outros falaram de um dos maiores negociantes de gado de Santa Eulália, que era um indivíduo importante na vida política da freguesia durante as primeiras décadas do século XX. Hoje, já há pouco comércio de gado, embora algumas famílias de camponeses continuem a comprar e vender. O comércio de gado que resta centra-se na feira mensal de Ponte de Lima, oito quilómetros a oeste de Santa Eulália.
38Antes de terminar esta breve análise da geografia e da economia de Santa Eulália e sua região, é importante fazer referência ao processo de modernização. As mudanças introduzidas na economia da aldeia são bastante recentes e, mesmo assim, continua a haver famílias que cultivam as suas terras de uma maneira muito semelhante à adoptada pelos seus antepassados, dois séculos atrás. A electricidade chegou à freguesia na década de 1930. A água canalizada é mais recente. Também na década de 1930, foi contraída uma escola primária, mas só na de 1960 foram declarados obrigatórios pelo Governo quatro anos de ensino básico. Houve professores que ensinavam as crianças durante o século XIX, mas recebiam-nas em suas casas, quando apareciam. Em 1859, Coelho (1861) contou vinte e seis alunos na escola de Santa Eulália, e o número dos que sabiam ler no censo nacional demonstra o atraso do ensino primário até há bem pouco tempo. Hoje, muitas mulheres com mais de sessenta e cinco anos não sabem ler nem escrever e é raro os adultos com mais de quarenta anos terem tido mais do que alguns anos de frequência da escola primária.
39Segundo os próprios habitantes de Santa Eulália, o verdadeiro impulso de modernização chegou com a emigração para França, depois de 1960. Já nenhuma família é «pobre»; os chamados franceses estão a construir casas em toda a freguesia; a praça foi renascendo à medida que foram abrindo novas lojas, cafés e ouras empresas. Em 1978, foi inaugurada uma nova Casa do Povo, que incluía uma clínica e um centro de convívio e destinada a servir Santa Eulália e as aldeias vizinhas; desde meados dos anos 70, o pároco tem dirigido um programa local de ensino secundário que também serve a região. A estrada ao longo da margem norte do rio Lima, entre Viana do Castelo e Ponte de Lima, foi melhorada no final do século XIX e, no começo do século XX, foi percorrida pelo primeiro automóvel. Existe um serviço de camionetas desde os anos de 1930 e, em 1980, foi construída perto de Santa Eulália uma nova ponte sobre o rio Lima, facilitando, assim, o acesso ao Porto e a pontos a sul da aldeia. Em resumo, o ritmo da mudança tem sido muito mais rápido nas últimas duas ou três décadas do que nos dois séculos anteriores. É importante lembrar isto, se se acreditar que as mudanças de valores e ideias que acompanham a modernização tecnológica são significativos no que se refere às mudanças subsequentes de comportamento demográfico. Eis uma questão sobre a qual voltaremos a debruçar-nos mais adiante.
Sistema Fundiário e Estrutura Social
40Na maioria dos estudos sobre o carácter do sistema fundiário e estrutura social de Portugal, o Norte é descrito como uma região de minifúndios, herança divisível e explorações agrícolas familiares, de pequena escala, independentes e viradas para a auto-subsistência, enquanto o Sul é definido como uma região de latifúndios, proprietários absentistas e uma população agrícola proletária. Embora esta caracterização não esteja incorrecta, dificulta em parte a compreensão da complexidade do sistema de propriedade e de estratificação social, em especial no Noroeste de Portugal. Obviamente, dada a amplitude da emigração em certas regiões do Norte, a «independência» da família camponesa era, como Cabral (1974) afirmou, uma «pseudo-independência», na melhor das hipóteses. Além disso, nem todas as chamadas famílias de camponeses possuíam todas as terras que cultivavam, nem todas as famílias que viviam no Norte eram proprietárias de terras. Nesta secção e na seguinte, gostaria de analisar a complexidade deste sistema social, por meio de um estudo da estratificação social, do sistema fundiário e da herança na freguesia de Santa Eulália.
41Ainda que não se possa necessariamente defender que uma freguesia de uma zona rural como Santa Eulália está dividida em diferentes classes sociais, é seguro dizer que a população não era e não é de modo algum homogénea, e que existe um sistema de estratificação que, até há pouco tempo, se baseava essencialmente na posse de terras. Excepto ao nível superior, tem havido uma grande fluidez, a qual dependeu, em certa medida, da emigração. Na história da aldeia, há casos identificáveis de famílias que enriqueceram em virtude de um ou mais dos seus membros terem tido êxito no Brasil, e de outras que desceram uns degraus na escala social devido ao grande número de filhos ou a qualquer outra «infelicidade». O estudo da relação entre posição social e outros fenómenos demográficos fica reservado para uns capítulos mais adiante, mas é importante apontar desde já as principais características da estrutura social local.
42Em geral, são pequenos lavradores que cultivam a terra, mas ainda se encontram subdivididos em pequenos ou médios proprietários, lavradoresrendeiros, caseiros e trabalhadores agrícolas. Além deles, e isto aplica-se muito especialmente ao vale do rio Lima, há famílias nobres e de militares de alta patente que possuem terras em todo o Alto Minho, terras essas que, em muitos casos, lhes foram concedidas há vários séculos por um dos reis de Portugal. De facto, o conde de Aurora (1929) referiu-se, uma vez, ao vale do Lima como o «viveiro de fidalgos portugueses».25 Embora a área que qualquer destas famílias possui não seja de modo algum tão vasta como a que alguns grandes proprietários do Sul detêm, a sua presença na região fez-se sentir e a sua existência é crucial para a maneira como se possuía e cultivava a terra ao longo da história do Minho, em geral, e de Santa Eulália, em particular. Não se pode falar do caseiro ou do lavradorrendeiro sem citar também estes proprietários mais ricos, com os seus solares e as suas quintas.
Fidalgos: A Aristocracia Rural
43Durante a Idade Média, a maior parte da terra do Noroeste de Portugal pertencia à Igreja e, em menor grau, à nobreza. No século XIII, uma grande parte da propriedade concedida aos nobres pelos reis de Portugal (honras) tinha sido vinculada e reunida numa só, de acordo com a prática de transmissão dos bens ao filho primogénito (morgado). O número de morgados multiplicou-se, em especial durante o reinado de D. Manuel I. Contudo, apesar de a Igreja e a nobreza possuírem a maior parte das terras, elas eram cultivadas, na maioria dos casos, segundo arrendamentos ou foros, um sistema cuja origem se encontrava no sistema villa-colon pós-romano. Este sistema contribuiu grandemente para a fragmentação da terra, uma vez que, quanto menores fossem as parcelas que podiam ser arrendadas, maior seria o rendimento proveniente das rendas recebido pelo proprietário. Os lavradores-rendeiros eram obrigados a pagar uma determinada renda, em regra em produtos agrícolas, por ano, renda essa que não dependia da quantidade de bens produzidos nesse ano. Estes contratos de arrendamento eram geralmente feitos a longo prazo e passavam de uma geração de lavradores-rendeiros para outra.26
44São duas as famílias que melhor representam a importância do sistema de honra-vínculo-morgado-foro na história da propriedade e cultivo da terra em Santa Eulália. De longe a mais importante e a única família aristocrática que ainda mantém casa e terras na freguesia é a dos condes de Almada. Os Almadas fixaram-se em Santa Eulália em 1818, quando uma filha da família Ricalde casou com D. Antão, segundo conde de Almada. Os Ricaldes, como já dissemos anteriormente, neste mesmo capítulo, descendiam de João Martins de Ricaldes (ou Rigua), um asturiano que fugira de Espanha no início do século XVI e se instalara na cidade de Viana do Castelo. A quinta de Santa Eulália foi-lhe dada cómo parte do dote de Ana da Rocha (da família Rocha de uma aldeia vizinha), quando casaram. Em 1548, o filho de ambos comprou metade do padroado de Santa Eulália ao convento de S. Salvador da Torre, e outro descendente, abade da freguesia entre 1594 e 1621, adquiriu a metade restante em 1618.
45Os Ricaldes aliaram-se e casaram com outras famílias nobres da região (os Abreus, os Pereiras, os Castros e os Lobatos), nas gerações seguintes. Muitos deles assumiram lugares importantes no Governo, entre os quais Frei Sebastião Pereira de Castro, ministro de D. João V (1706-1750). Era fruto do segundo casamento de Francisco de Abreu Pereira, que, nos meados do século XVIII, construiu um novo solar em Santa Eulália, para substituir a velha casa que no século XVII se encontrava em ruínas. O irmão de Frei Sebastião, José Pereira de Brito Abreu, assumiu o papel de senhor do solar de Santa Eulália, por morte de seu pai, e casou com sua prima Dona Isabel Maria Peixoto Cyrne. Seu filho Francisco Abreu Pereira Cyrne casou com Dona Maria Victoria Menezes Bacelar, da casa de Covas, mais para o interior do vale do Lima, e seu neto Sebastião casou com Maria José de Lencastre, filha de Gonçalo Pereira da Silva, primeiro herdeiro do solar de Bertiandos, uma aldeia muito próxima. A única filha de Sebastião e Maria José, Maria Francisca, que nasceu em 1801, casou com seu primo D. Antão, segundo conde de Almada e décimo quarto conde de Abranches, em 1818. Os Almadas haviam recebido o título de condes de Abranches do rei Carlos VII de França, devido ao seu heroísmo. Os feitos desta família prosseguiram em Portugal através de D. Antão Vaz de Almada, que foi um dos quarenta fidalgos que conspiraram pela restauração de Portugal, em 1640. Os descendentes de D. Antão Vaz detinham todos os cargos governamentais e casaram com membros de outras famílias nobres.
46O filho de D. Antão, D. Lourenço, sucedeu a seu pai, como terceiro conde de Almada, em 1835, tendo-lhe, por sua vez, sucedido seu quarto filho e segundo varão (o mais velho era doente mental), D. Miguel, em 1874. D. Miguel é recordado pelos mais velhos de Santa Eulália em virtude dos progressos que introduziu na agricultura local, enquanto a quarta condessa é lembrada pela sua «bondade». Muitas das raparigas das famílias da freguesia trabalharam para os condes, quer no solar na freguesia quer na sua casa em Lisboa, onde a família residia durante oito ou nove meses por ano. Quando D. Miguel morreu sem deixar descendentes, em 1916, D. Lourenço Vaz de Almada, seu sobrinho, tornou-se o quinto conde, e é o filho dele que é actualmente o sexto conde de Almada, embora o título não exista já legalmente.
47Antigamente, a maior parte das terras que os Almadas possuíam em Santa Eulália era administrada por um feitor que instalava na propriedade famílias que trabalhavam para ele (caseiros). Algumas das terras eram também arrendadas a agricultores locais. Hoje, o actual conde, que vive na cidade do Porto, formou uma sociedade com uma família de caseiros. Essa família trabalha a terra e o produto do seu trabalho é dividido com a família Almada. Embora não existam dados que nos informem com precisão de quantas terras a família Almada-Ricalde tinha outrora, os registos de propriedade de 1940 enumeram noventa e oito parcelas separadas em seu nome, dentro dos limites da freguesia, num total de 343 361 metros quadrados (aproximadamente 34 hectares).27 Cinco destas propriedades, as que parecem ter sido herdadas directamente dos antepassados, têm mais de 10 000 metros quadrados (68 381, 75 274, 27 953, 26 420 e 11 560 metros quadrados, respectivamente), e se as excluirmos do total da área que possuem, o tamanho médio das parcelas é de 1571,85 metros quadrados, ou menos do que um quarto de hectare. Na sua maioria, essas parcelas parecem ter sido adquiridas a outros habitantes da aldeia, embora a data dessa compra não seja clara. Variam quanto à sua natureza: em algumas cultivase milho; outras, estão cobertas de mato. Obviamente, ainda que os Almadas sejam os maiores proprietários de Santa Eulália e que, não contando as terras na posse da Igreja, o tivessem sido outrora, o total de terras em seu nome não é de modo algum comparável ao das grandes propriedades do Sul de Portugal. Mais — e isto é um ponto importante a sublinhar —, cerca de um terço do total das terras desta família está dividido em minúsculas parcelas arrendadas e cultivadas por outras pessoas da freguesia. Por último, o grosso das terras passou de geração em geração para um único herdeiro varão. Na realidade, muitas das filhas nunca casaram, enquanto os filhos varões mais novos seguiram a carreira eclesiástica ou militar.
48A outra «casa» ilustre de Santa Eulália é a Casa da Barrosa, com a sua capela construída no local de um eremitério erguido em data desconhecida em honra de Nossa Senhora da Esperança. Nos começos do século XVIII, este eremitério estava em ruínas, e um dos padres do arcebispado que foi a Santa Eulália fazer a habitual visita anual em 1723 ordenou que a capela fosse deitada abaixo ou restaurada. Em 1732, um padre natural da freguesia, Francisco Alves Franco, que fizera fortuna no Brasil, encarregou-se de restaurar a capela e, posteriormente, construiu uma casa anexa a ela num terreno comprado ao reitor da Correlhã (uma aldeia mais para o interior), que, por sua vez, o comprara ao fundador do eremitério original. A capela foi restaurada em 1737 e a casa foi edificada.
49Quando o padre Francisco faleceu, em 1749, deixou a administração da capela a sua sobrinha Maria Micaella, filha de sua irmã Isabel e do marido desta, Domingos da Rocha. No seu testamento, vinculou a propriedade; essa restrição sobreviveu muito provavelmente até aos anos de 1860, em que os vínculos foram finalmente abolidos em todo o Portugal. Este testamento consta de um livro de testamentos da freguesia de Santa Eulália que ainda se conserva. Vale a pena citar uma parte, uma vez que constitui um excelente exemplo do tratamento dado às grandes propriedades, a fim de garantir a posição social de uma família que enriquecera com base nos recursos de um padre regressado do Brasil.
Declaro que dos meus bens de raiz serão retiradas propriedades no valor de quatro mil cruzados, entre as quais incluo a que possuo em Casal Maior, no campo de Agra, e as dívidas relacionadas com essas propriedades. São excluídas dessa a propriedade da Barrosa e a terra de Agra de Baixo e Campo de Rio, que serão para meu sobrinho João, filho da minha irmã Isabel e de seu marido Domingos, quando for ordenado padre; e, se ele não chegar a sê-lo, passarão para seu irmão António, quando for padre, recaindo sobre qualquer deles a obrigação de dizer missa todos os domingos, dias de festa e sábados... e uma missa pela minha alma na Capela de Nossa Senhora da Esperança... e estes bens ser-lhes-ão transmitidos por vínculo, de modo a que nunca os possam vender, mas antes os mantenham juntos e indivisos.
50O testador, padre Francisco Alves Franco, diz, a seguir, que o capelão deveria, se possível, ser um parente do administrador do vínculo e que se pode ordenar à custa do vínculo ligado à capela. Se o administrador não mandar o filho mais velho estudar para padre, pode ser nomeado capelão o parente mais próximo do administrador que seja padre. Depois, designa sua sobrinha Maria Micaella como administradora «na condição de não casar com uma pessoa de um país abominável, um negro, um mulato ou um mouro nem com um natural de qualquer outra nação proibida pela lei». Obriga a sobrinha e o futuro administrador a viver na casa da Barrosa pelo menos durante metade do ano. Por último, estipula que na sucessão da Casa da Barrosa deveria ser dada preferência à filha mais velha de sua sobrinha Maria Micaella, devendo aplicar-se essa mesma regra daí em diante. Embora se trate de uma prova curiosa da importância atribuída as mulheres como herdeiras, no codicilo do testamento datado de 1748, essa preferência é revogada a favor do filho primogénito.
51Tudo me leva a crer que esse codicilo foi escrito a pedido do marido de Maria Micaella. Em 1745, portanto antes da morte do padre Francisco, ocorrida em 1749, Maria Micaella casara com o Dr. Miguel Tinoco de Sá Pereira Velho de Viana do Castelo. Foi em consequência deste casamento e graças ao codicilo ao testamento do padre Francisco que a Casa da Barrosa passou para as mãos da família Tinoco, uma família que possuía muitos bens na aldeia vizinha de Fontão. Miguel Tinoco e Maria Micaella tiveram um filho, que casou com uma mulher da aldeia de Darque em 1779 e herdou a Casa da Barrosa, por morte de sua mãe. Por sua vez, estes últimos tiveram dois filhos, José Joaquim, que faleceu muito novo, e Miguel. Miguel herdou a propriedade de Santa Eulália e, mais tarde, casou com Dona Maria José Pimenta Furtado de Mendonça, da aldeia de Miranda, no concelho de Arcos de Valdevez.28 Desta união nasceram quatro filhos: António, que morreu solteiro; José, o herdeiro; Catarina, que casou com o senhor do solar da aldeia de Vitorino das Donas; e Maria José, que casou com um natural de Santo Tirso, perto do Porto, e que morreu sem ter tido filhos. Havia ainda um filho ilegítimo, Joaquim José, que veio a ser padre e que foi mencionado no testamento do pai.
52O herdeiro, José, que nasceu cerca de 1816 na aldeia vizinha, casou em 1843 com uma viúva, Dona Ana José Malheiro de Meneses, de Monção. Dona Ana faleceu em 1882, sem ter dado à luz um herdeiro. Porém, José teve dois filhos de uma criada, Miguel e Rosa Maria, na década de 1870. Antes da sua morte, em 1893, José foi convencido pelo padre de Santa Eulália a casar com Francisca Rosa e legitimar assim os seus dois filhos. Segundo os velhos da freguesia, esta tornou-se uma «egoísta» assim que assumiu o papel de «patroa». «Costumava andar pelos campos com uma sombrinha, a fim de se certificar de que os pobres trabalhadores estavam a trabalhar e nenhum deles se queixava porque precisavam de trabalhar.»
53Por morte de José, o herdeiro foi Miguel. Sua irmã, que casara com um homem de Arcos de Valdevez, morreu quando era ainda nova, e não deixou filhos. José tinha também outro filho ilegítimo na aldeia vizinha de uma tal Dona Maria da Agonia de Viana. Este filho herdou a Casa de Retiro, propriedade da família Tinoco em Fontão, casou e teve onze filhos. Miguel nunca casou e, quando faleceu, na década de 1950, os seus bens foram divididos entre o seu meio irmão pelo lado paterno, José, e a filha da sua meia irmã pelo lado materno (filha ilegítima de Francisca Rosa e de outro homem). Esta meia irmã herdara também outros bens por morte da mãe, mas tinha casado com um homem que, para pagar as frequentes viagens que fazia ao Brasil, vendera a Miguel a maior parte do que a mulher herdara. Hoje, esta família já não existe em Santa Eulália, e a Quinta e Casa da Barrosa foram recentemente compradas por um empresário local que fez dinheiro em Angola, mas regressou a Portugal, pouco depois da revolução de 1974. A capela foi vendida ao irmão do actual pároco de Santa Eulália, um emigrante nos Estados Unidos, que posteriormente a entregou à autoridade eclesiástica da aldeia.
54Das outras famílias ricas e importantes que viveram em Santa Eulália numa determinada altura ou que pelo menos possuíram propriedades na freguesia, sabemos muito menos. A sua presença é confirmada por relatos orais, por alguns casamentos celebrados na freguesia, por certos óbitos constantes dos registos paroquiais, e por referências periódicas em registos notariais, em testamentos e outros documentos, onde são mencionadas parcelas específicas de terra. Uma dessas famílias era a dos Pimenta da Gama. Possuíram terras e tiveram caseiros até a seguir à II Guerra Mundial. Nos cadernos eleitorais de 1870, um certo António Pimenta da Gama Barreto é referido como tendo bens na aldeia avaliados em 9320$500, o valor mais alto do documento. Provavelmente, a família da casa da Barrosa e os Almada votaram noutro sítio. O nome deste Pimenta da Gama dos finais do século XIX mostra que, a determinada altura da história local, a família Pimenta da Gama se ligou (obviamente por casamento) com os Rego Barreto, viscondes da aldeia de Geraz do Lima, na margem sul do rio Lima. Na realidade, os Rego Barreto residiam também e possuíam terras em Santa Eulália, nos finais do século XVIII e princípios do XIX.
55Embora estas famílias aristocráticas não constituam o centro da atenção deste livro, é importante reconhecer a influência que podem ter tido na vida da freguesia. A sua mera presença sublinha o facto de Santa Eulália não estar isolada nem carecer de diferenças hierárquicas a nível social. Elas eram uma recordação viva das diferenças entre ricos e pobres e de que estas diferenças se mediam sobretudo pela posse de terras. Provavelmente, seguiam certas práticas — morgadio, casamentos consanguíneos —, a fim de conservar a riqueza e a posição social. Por último, davam emprego aos habitantes mais pobres da aldeia, quer como criados, quer como jornaleiros, quer ainda como lavradores-rendeiros.
Lavradores: Os Camponeses Proprietários de Terras
56Abaixo dos fidalgos estão os camponeses proprietários de terras. Na província do Minho, aplica-se o termo lavrador a todo aquele que cultiva a sua própria terra, quer como pequeno ou grande proprietário. Todavia, em Santa Eulália, há que distinguir entre os chamados lavradores abastados, e os lavradores que cultivavam terras que arrendavam além das que possuíam. Enquanto os lavradores abastados cultivavam eles próprios as suas terras, recorrendo à contratação de camponeses sem terras durante a estação das colheitas, o pequeno agricultor médio ou conjugava o cultivo da terra com algum tipo de trabalho artesanal (como pedreiro, carpinteiro, etc.) ou trabalhava ou punha os filhos a trabalhar no campo por conta de camponeses mais ricos ou da aristocracia.
57Num arrolamento dos bens de 1871, eram mencionados 253 agregados em Santa Eulália, 164 dos quais tinham como chefes lavradores. A cada agregado era atribuído um valor em réis correspondente aos bens que possuía (Quadro 1.2). Embora não seja muito claro como se chegava a esse número (presume-se que era um tipo de imposto), esses valores dão-nos uma ideia dos elementos componentes da classe dos lavradores durante o último terço do século XIX. Aproximadamente a 64% destes agregados era atribuído um valor inferior a mil réis; aos restantes 5% correspondiam mais de dois mil réis. Dos seis agregados do topo da escala, três têm como chefes irmãos — duas irmãs e um irmão — os três filhos mais velhos de uma família que vivia na freguesia pelo menos desde 1700. Todas estas famílias tinham ainda filhos adultos — com vinte e muitos ou trinta e poucos anos — a viver em casa, embora isto seja igualmente característico dos pequenos e médios lavradores. Alguns destes camponeses mais ricos estão ligados a quintas importantes de Santa Eulália, algumas das quais ainda existem; outras, porém, foram desmembradas num passado recente. Na verdade, a história oral corrobora o facto de estes lavradores abastados enriquecerem muitas vezes devido a heranças ou graças a dinheiro ganho no estrangeiro, que usavam para comprar terras.
Quadro 1.2 Agregados familiares por profissão do chefe de família Santa Eulália, 1871
Número Total de Agregados Familiares | 253 | |
Agregados Familiares de Lavradores | 164 | |
chefiados por um homem | 118 | |
chefiados por uma mulher | 46 | |
Agregados familiares de jornaleiros | 36 | |
chefiados por um homem | 19 | |
chefiados por uma mulher | 17 | |
Agregados familiares de pedreiros | 13 | |
Agregados familiares de oleiros | 6 | |
Agregados familiares de alfaiates/costureiras | 10 | |
chefiados por um homem | 6 | |
chefiados por uma mulher | 4 | |
Agregados familiares de sapateiros | 6 | |
Outros artesãos | 10 | |
chefiados por um homem | 9 | |
chefiados por uma mulher | 1 | |
Outros (barqueiros, cirurgião, farmacêutico, moleiro, padeiro, etc) | 8 | |
chefiados por um homem | 6 | |
chefiados por uma mulher | 2 |
fonte: Arrolamento dos Bens, 1871; Arquivo Municipal de Viana do Castelo.
58As famílias mais ricas de lavradores citadas pelos velhos da freguesia não correspondem às seis que constam do arrolamento de 1871. Destes lavradores abastados mencionados em relatos orais, uma, a proprietária da Quinta da Boa Vista, no lugar da Corredoura, tinha sido casada com um homem que era boticário e que emigrara para o Brasil, onde fizera fortuna; um segundo é dono da Quinta da Granja, uma propriedade comprada graças à boa sorte de um filho que fora padre e fizera dinheiro no Brasil durante os primeiros anos do século XX; uma terceira família surgiu quando um homem jovem, natural de Refoios, no interior, e feitor de uma quinta em Santa Eulália, na década de 1840, se tornou rico por ter herdado de dois irmãos padres e ter posteriormente comprado terras na freguesia.
59Existem vários, embora esporádicos, cadernos eleitorais relativos a Santa Eulália, os quais datam de meados do século XIX, que nos mostram algumas variações de riqueza entre a classe de lavradores da freguesia. Ao contrário do arrolamento de 1871, que fornece uma lista completa dos agregados, estes cadernos mencionam apenas os homens que eram chefes de família e tinham direito de voto (esse direito dependia em grande medida da possibilidade de pagar uma taxa mínima). O Quadro 1.3 fornece um resumo dos cadernos eleitorais de 1855 e 1864. Tal como no arrolamento de 1871, os lavradores estão incluídos, na sua maioria, no escalão mais baixo dos pequenos proprietários. Além disso, e isto é mais evidente em 1855 do que em 1864, parece que a categoria superior é constituída por lavradores mais velhos que acumularam a sua riqueza ao longo do tempo.
Jornaleiros, Caseiros e Lavradores-Rendeiros
60Segundo Sampaio (1979), em 1864 apenas 24,5% da população do Alto Minho possuíam terras, um factor que explica, no seu entender, o número dearrendeiros (ou lavradores-rendeiros), jornaleiros e caseiros entre a população total. Estes três grupos formam as três categorias inferiores da hierarquia socio-económica da região em geral, e de Santa Eulália, em particular.
61Abaixo de todos estão os jornaleiros, as famílias que praticamente não possuem terras e ganhavam (e ganham) a vida a trabalhar na agricultura para outros, a troco de jornas. Segundo um ditado popular, o jornaleiro «não tem eira, nem beira, nem sombra de figueira». De facto, muitas, se não a maioria, destas famílias de jornaleiros podiam ter um quintalejo contíguo à casa, onde cultivavam couves, nabos e talvez algumas batatas, mas não suficientemente grande para permitir a cultura do milho. Basílio Teles (1903) comentou que os jornaleiros eram, realmente, as pessoas do Norte de Portugal que viviam na maior miséria. «O salário é exíguo e irregular... duzentos, duzentos e quarenta, e mesmo trezentos réis uma vez ou outra... que é isto para custear as despesas duma família, sobretudo se numerosa e constituída por menores?» (Teles 1903:18).
62No início do século XX, em Santa Eulália, o salário habitual de um jornaleiro era de trezentos réis a seco e cem a comer; para as mulheres, era de duzentos réis a seco. Entre estas famílias, havia muitas em que o marido tinha outra profissão mal remunerada, como a de sapateiro, tamanqueiro ou barqueiro, enquanto a mulher trabalhava como jornaleira. Efectivamente, na sua maioria, os jornaleiros eram mulheres, porque ganhavam menos e porque o trabalho na agricultura, especialmente o remunerado, era tradicionalmente um domínio feminino. As raparigas começavam a ganhar para a família, ainda muito novas e, se nunca casassem, podiam trabalhar a vida inteira como jornaleiras. Em alguns casos, em particular quando uma rapariga provinha de uma família numerosa, ia para casa de uma família de lavradores mais ricos, onde vivia como criada, um termo que implica, no contexto rural português, não só fazer o serviço doméstico mas também trabalhar no campo. No arrolamento de 1871, há quase tantas casas de jornaleiros com mulheres como chefes de família como com homens (a todas foi atribuída a avaliação de 180 réis). Na verdade, muitas mulheres com filhos ilegítimos viviam sozinhas como chefes de família e trabalhavam como jornaleiras; era esse o meio principal de assegurarem o seu sustento.
63Enquanto as jornaleiras eram frequentemente filhas de caseiros, de lavradores pobres ou de jornaleiros já radicados na freguesia, parece que, na sua maioria, os jornaleiros que identificámos como tal ao longo da história de Santa Eulália eram oriundos de outra freguesia, mas ali casaram e se fixaram. Isto é uma prova não só da mobilidade geográfica característica da região mas também da existência na freguesia de trabalho para membros desse grupo social. O facto de haver nela uma feira bimensal pode tê-la convertido em poiso de homens ainda jovens em busca de trabalho.
64Ligeiramente acima dos jornaleiros (sobretudo devido a uma maior estabilidade económica) ficavam os chamados caseiros, que cultivavam as terras de famílias nobres da região, às quais pagavam uma renda. A maioria destes caseiros provinha originalmente da classe dos jornaleiros — provavelmente, eram escolhidos os mais empreendedores. Teles (1903) teceu o seguinte comentário acerca da classe dos caseiros:
«As suas necessidades são poucas; e a principal delias que é a necessidade de comer, e com os fructos do prédio arrendado que a satisfaz. Desde que a terra dê o pão, os legumes, o vinho... para alimentação sua e dos seus e para solver a renda ao senhorio que lhe importa que os legumes, o vinho e o pão subam de preço?... Pode attingir quase sempre o seu equilíbrio económico... Resalvo uma única hypothese: a de o senhorio lhe levantar o preço da renda... nesse caso, o nosso homen não põe a menor dúvida em regressar a jornaleiro, em procurar vida nas cidades, ou, em última instância, em largar-se a tentar fortuna no Brazil. » (Teles 1903:15-16)
65Há provas de que os caseiros fizeram sempre parte da estrutura social da freguesia, embora fosse provavelmente uma pequena percentagem. Por exemplo, em 1706, Domingos Alves Seixas casou com Maximina França Rocha. Quando Maximina teve um filho no ano seguinte, o casal era apontado como sendo residente na Quinta de S. João, e Francisco Abreu Pereira Cirne era indicado como padrinho da filha de ambos — uma boa relação senhor-criado, estabelecida entre um pobre caseiro e o seu patrão rico. Em Outubro de 1722, um certo Bento Alves casou com Andresa da Costa. Quando faleceu, em 1769, foi descrito como um «caseiro do tenente-coronel António Luís Bandeira». Provavelmente, o tenente-coronel vivia noutro sítio qualquer, como acontecia com muitos outros indivíduos que possuíam terras em Santa Eulália, as quais eram cultivadas por caseiros.
66Parece que, no século XIX, a maioria das famílias de caseiros vinha de aldeias vizinhas para trabalhar nas terras dos Almadas, dos Pimenta da Gama e, na última parte do século, nas propriedades de uma família de militares, os Pereira de Castro, que possuía uma grande quinta em Santa Eulália. Segundo um informador, muitos destes caseiros eram oriundos de Santa Marta e Perre, aldeias que ficavam mais perto da cidade de Viana do Castelo e nas quais era supostamente mais comum a herança indivisível. No seu entender, os caseiros eram os filhos deserdados que procuravam noutro local da região uma vida estável dedicada à agricultura. Os descendentes de algumas destas famílias ainda permanecem na freguesia; outros desapareceram. Alguns dos homens chefes de famílias de jornaleiros, juntamente com os seus compatriotas lavradores, seguiram as correntes emigratórias para o Brasil e Espanha, dos finais do século XIX e princípios do século XX.
67O terceiro grupo a analisar nesta categoria de famílias que trabalhavam em terras que não lhes pertenciam é o dos lavradores-rendeiros, que podiam possuir uma pequena parcela de terra, mas provavelmente arrendavam a maior parte da que cultivavam. De facto, é possível que muitos dos lavradores a quem foram atribuídos impostos mais baixos nos cadernos eleitorais ou nos arrolamentos dos bens fossem, na verdade, lavradores-rendeiros. Estes eram pequenos agricultores que conseguiam sobreviver, provavelmente atravessando momentos difíceis nos anos em que as colheitas eram más. Em alguns casos, a distinção entre eles e os caseiros não é muito evidente — aliás, na ausência de registos de propriedade, é impossível definir em relação a qualquer família quais as terras que possuía e as que arrendava. Os verdadeiros caseiros não possuíam terra e, efectivamente, os que são identificados como tal nos finais do século XIX não constam do arrolamento dos bens de 1871.
68As rendas pelas terras eram normalmente uma determinada parte da colheita, estabelecida de acordo com o tamanho da propriedade e não segundo a colheita de cada ano. Os testamentos e registos notariais existentes dão-nos uma ideia da natureza destes contratos de arrendamento, muitos dos quais eram celebrados a longo prazo, sob a forma de foros, com várias intrituições religiosas ou indivíduos de fora da aldeia que possuíam terras na mesma. Por exemplo, num testamento conjunto de 1795, João Araújo e sua mulher Maria Alves afirmavam que eram «donos e senhores» de um contrato com o Convento de S. Domingos relativo a uma parcela na veiga de Santa Eulália e pelo qual pagavam anualmente doze razas (provavelmente cerca de sessenta litros) de milho. Legavam esse contrato a seu filho e nora, pedindo-lhes para pagarem essa quantia anual. Num testamento redigido dois anos antes, José da Rocha deixou a sua filha Luísa os seus prazos no Casal Maior e Bajouca, ambos pertencentes ao Convento de Santa Cruz de Viana, e pelos quais pagavam uma renda anual de dois alqueires e meio de milho.29 Noutros testamentos, estes foros e prazos eram divididos em partes iguais pelos herdeiros. Os registos notariais dos começos do século XIX contêm numerosos exemplos da efectiva celebração de tais contratos. Especificam a localização e área das terras, o montante da pensão, a duração do contrato, o dia em que a pensão deve ser paga e a sanção pelo incumprimento do acordado.
69Um dos maiores proprietários da freguesia, a quem os camponeses arrendavam terras, era a Igreja. Em 1789, por exemplo, um jovem de quinze anos chamado José Martins, com a autorização de seu pai, Bento Martins, reconheceu as obrigações que tinha como enfiteuta do «Reverendo Padre» relativamente ao prazo de Casal Maior. A renda anual era 0$540, três galinhas e dois frangos,30 Um outro casal, Carlos António e Esperança da Costa, cultivavam sete quintalejos que pertenciam à igreja da aldeia, pelos quais pagavam sete alqueires de milho todos os anos. Além disso, tais reconhecimentos de deveres figuram entre os documentos dos arquivos paroquiais preservados, datando na sua maioria dos finais do século XVIII. Em Março de 1790, o viúvo Paulo Gonçalves, bem como três homens casados — Domingos Alves, José Gonçalves e Bento Alves — reconheceram que cultivavam terra que era propriedade da igreja da freguesia e pagavam de renda pelas mesmas um, um e meio, dois e meio e cinco alqueires de milho, respectivamente. Todos estes quintalejos ficavam na veiga, à beira do rio, e parece que eram faixas compridas e estreitas de terreno; uma delas era tão estreita que tinha apenas três varas e meia de largura, ou seja, aproximadamente 3,85 metros. Num outro reconhecimento do mesmo ano, um casal pagava um alqueire por um terço de um quintalejo que partilhava com uma viúva que também pagava um alqueire. Os três são classificados no documento como simples colonos, uma expressão que remonta claramente aos colonos do século XIII, e que, portanto, sugere a persistência de um certo tipo de sistema fundiário ao longo de vários séculos. Embora não se saiba concretamente o que aconteceu aos bens da Igreja em Santa Eulália na década de 1830, havia trinta e oito indivíduos incluídos numa lista de foros pagos por habitantes de Santa Eulália em 1875, e alguns deles eram mencionados mais do que uma vez. As quantias pagas variavam entre 0$015 e mais de 1$000.
70Obviamente, estes agricultores mais pobres, quer fossem caseiros, lavradores-rendeiros ou jornaleiros, dependiam dos lavradores abastados, da aristocracia rural do Norte e da Igreja para subsistir, num sistema que se caracterizava simultaneamente pela desigualdade e fluidez. Por vezes, as jornaleiras casavam com «aristocratas»; os lavradores-rendeiros ou mesmo os jornaleiros podiam, especialmente se a sorte lhes sorrisse na emigração, regressar e comprar terras. Possuir terras era um símbolo de status sócio-económico; para sobreviver, era necessário ter alguma terra para cultivar (mesmo que fosse cultivada a troco de um salário). Precisamos, pois, de voltar ao tema de como é que a terra, uma vez obtida, era transmitida de uma geração para a seguinte. Ainda que manter a posição social e económica fosse evidentemente importante para os membros dâ aristocracia, será que o era também para as classes camponesas detentoras de terras? Será que era sequer viável? Embora a herança de terras seja abordada de novo na secção dedicada ao estudo dos modelos de casamento em Santa Eulália, é útil referir aqui em traços gerais como se transmitiam os bens.
A Herança de Bens
71Na freguesia de Santa Eulália, existem três livros de testamentos que abrangem um período entre 1742 e 1859. É evidente que nem todos os que morreram na freguesia durante este período de cem anos fizeram testamento; e nem todos os que o fizeram, o registaram num dos Livros dos Testamentos que ainda se preservam. No entanto, os testamentos que se podem estudar fornecem-nos elementos históricos importantes, embora não necessariamente quantificáveis nem sistemáticos, sobre o que era legado por morte e sobre as relações de família em geral. Por outro lado, provam que mesmo neste regime de herança supostamente divisível, um dos descendentes era normalmente favorecido relativamente aos restantes, ao ser-lhe atribuído o terço. Parece-me útil analisar o conteúdo destes testamentos depois de ter estudado o sistema fundiário e a estrutura social, a fim de fornecer uma base para uma investigação posterior da relação entre os modelos de herança e outros fenónemos demográficos. Começarei por tecer algumas considerações gerais acerca desses testamentos no seu conjunto, e depois analisarei alguns deles com mais pormenor — ou seja, exporei o que têm em comum e depois debruçar-me-ei sobre aquilo que os distingue.
72Na sua maioria, os testamentos foram escritos ao pé da cama do testador, pouco antes da sua morte; alguns deles revogavam um documento anterior. São, em geral, passados a escrito pelo que parecia ser um escriba da aldeia (hoje ainda existem tais indivíduos, que escrevem para os iletrados), na presença de uma ou duas testemunhas. Como Descamps (1935:72) uma vez referiu, muitos desses testamentos eram essencialmente documentos religiosos, começando por precisar, através de fórmulas próprias, o trajo com que o testador pretendia ser enterrado (no caso dos habitantes de Santa Eulália, o hábito mais escolhido parece ter sido o dos franciscanos) e o número de missas que o moribundo queria que se dissessem pela sua alma e, por vezes, pelas almas dos seus familiares já falecidos. Mais que não fosse, a redacção de um testamento era, na opinião de Descamps (1959), um dever moral imposto pela Igreja. O testamento que se segue, feito em 1759 por Domingos Rodrigues das Possas, viúvo, serve para exemplificar os aspectos religiosos desses documentos:
Eu, Domingos Rodrigues, viúvo de Antónia Golçalves, do lugar de Possas, nesta aldeia de Santa Eulália, nas proximidades da cidade de Vianna, sentindo que vou para os braços de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, e que portanto estes são os meus últimos dias de vida, e estando em pleno uso da razão, declaro que este é o meu último desejo — peço que rezem dez missas pela minha alma e dez pela da minha companheira, oferecendo em cada uma delas quatro vinténs (0$80); peço também que mandem dizer dez missas pela alma do meu pai e da minha mãe, cada uma por 0$80; e ainda dez pela alma do meu sogro e da minha sogra, oferecendo por cada uma delas quatro vinténs.
73Depois destes preâmbulos, por vezes longos, os testamentos passam a focar assuntos mais terrenos, principalmente a designar o testamenteiro e o destinatário do terço dos bens móveis e de raiz. Se um casal fazia um testamento em conjunto (de mão comum), coisa que era frequente e que provavelmente pressupõe um casamento entre pessoas do mesmo nível socioeconómico, o terço era legado ao cônjuge sobrevivo e, por morte deste, a um herdeiro especificado. Em regra, o testador reconhecia se tinha ou não herdeiros forçosos, descendentes directos reconhecidos pelo nome e, se isso não acontecesse, era livre de escolher como herdeiro quem quer que lhe aprouvesse. Por exemplo, António Rodrigues e Maria Gomes da Rocha, num testamento de mão comum de 1826, declararam que «não tinham filhos legítimos nem naturais, nem adulterinos, nem incestuosos e, por essa razão, podiam dispor livremente dos seus bens». Obviamente, este excerto prova que os direitos dos filhos ilegítimos eram reconhecidos. Voltarei a este ponto no Capítulo V.
74Embora haja numerosos exemplos, alguns dos quais serão analisados a seguir, de divisão da herança em partes aparentemente iguais (cabendo a cada filho uma parte dos bens dos pais), normalmente um dos herdeiros era beneficiado com o terço. Como Descamps (1935) sublinhou, este herdeiro favorecido nunca era escolhido sem motivo; em geral, era a pessoa (filho, parente ou até uma pessoa sem qualquer laço de parentesco) que cuidava do testador na velhice e na doença e que este esperava que o continuasse a fazer até ele falecer. Por exemplo, a certa altura, o testamento de António Alves Franco, viúvo de Maria Rodrigues, que morreu em 1857, com oitenta e dois anos de idade, diz:
Tendo em conta os bons serviços e as provas de dedicação que ele (António, testador) recebeu de sua filha Maria, que vive com ele, cuida dele na doença e faz com que não precise de nada, deixa-lhe a ela o terço dos seus bens móveis e de raiz.
75Neste caso, foi pedido ao marido de Maria, José da Costa, que servisse de testamenteiro. António Alves Franco tinha tido quatro filhas, duas das quais haviam chegado à idade adulta e casado (aliás, com dois irmãos). Noutro testamento, da viúva Francisca Luísa, que morreu em 1819, a testadora reconhecia que tinha dois filhos vivos (dos seis que dera à luz), um filho, João, que emigrara para Espanha, onde casara, e uma filha Maria, que tinha ficado solteira e a viver com a mãe. Pelos cuidados que Maria lhe havia dispensado tanto na doença como quando estava de saúde, a mãe deixou-lhe, como recompensa, «esta casa onde vivo, com todos os móveis, os cortes, a eira e a latrina perto da casa de Manuel Correia». A herdeira, Maria, morreu, solteira, em 1875, com setenta e seis anos. Tivera filhos ilegítimos.
76Em alguns casos, eram impostas à herança certas restrições. João Franco de Castro e sua mulher Isabel Gonçalves fizeram um testamento, em 1845, em que deixavam todos os seus bens a uma parente, Isabel, filha de José Correia e Luísa da Costa, «desde que ela (Isabel, a herdeira) continue sempre a mostrar o mesmo amor e dedicação que tem mostrado até agora, que viva honestamente e que, se quiser casar em vida dos ou de um dos testadores, escolha um rapaz do seu agrado e do agrado dos testadores... se não respeitar estes desejos, o testador que sobreviver ao outro pode designar outro herdeiro».31 Manuel Morais e Luísa Gonçalves estipularam uma condição semelhante num testamento escrito em 1792, quatro anos antes da morte de Manuel. Como este casal não tinha filhos legítimos vivos (havia tido dois filhos, falecidos na infância), legaram o terço um ao outro e deixaram a nomeação do herdeiro final ao critério daquele que sobrevivesse. Acrescentaram, no entanto, «criámos uma sobrinha em nossa casa, chamada Francisca, filha de Simão Luiz e da nossa cunhada e prima Domingas Gonçalves, e é a esta sobrinha, porque gostamos dela e dela recebemos muitos serviços que esperamos que nos continue a prestar, que deixamos a nossa casa no lugar da Rocha e as terras, estábulos, vinhas, eira e anexos... na condição de que se continue a portar bem e de não casar sem o nosso consentimento, e de continuar ao nosso lado até morrermos, porque se demonstrar ingratidão, estes testamento não produzirá efeitos».32 Aliás, há algumas provas de que houve quem mudasse de opinião. Numa inscrição notarial com data de 1813, Maria Pires, solteira, revogou um documento anterior pelo qual legava todos os seus bens a José Gonçalves Pereira e sua mulher. O casal não tinha tratado dela como ela queria e, por conseguinte, fora obrigada a depender da «cristandade» dos vizinhos. No novo testamento, deixa os seus bens à Igreja. Entre os testamentos que se conservam, este é o único caso em que foi tomada uma tal decisão.
77Um último exemplo do processo e motivos por detrás da designação de um herdeiro é o testamento de Manuel Barbosa de Castro, que faleceu seis anos antes da mulher, em 1849, deixando seis filhos. Deixou o terço da casa e das terras onde ela ficava situada ao filho ou filha que vivesse com a sua mulher até ao fim da vida desta. Se fosse mais do que um, determinou que competia à mulher escolher dentre eles o destinatário do terço (que incluía provavelmente a casa). Em 1855, quando a mulher morreu, não apareceu novo testamento. À data, uma filha, Rosa Luísa, casara, mas o filho, Francisco (dezoito anos) e as filhas, Luísa (trinta e dois anos) e Rosa (dezasseis) pareciam continuar na casa. Um ano depois, Luísa morreu, solteira, e fez testamento, designando a irmã Rosa Luísa e o cunhado, Francisco Antunes, seus «herdeiros universais». À sua afilhada Rosa, filha de Rosa Luísa e Francisco, então com catorze meses, deixou «um campo em Trogal de Veiga, que a mãe podia usar (usufruto) enquanto vivesse». A seu irmão Francisco deixava 40$000 e ao testamenteiro, Gonçalo do Monte, legava «o campo de mato e pinheiros nas proximidades da capela do Senhor do Cruzeiro». Voltarei, a breve trecho, a analisar os testamentos de indivíduos solteiros, mas os exemplos anteriormente mencionados mostram claramente que a herança, ou para ser mais preciso, a escolha de um herdeiro favorecido, era utilizada pelos idosos como um meio de garantir que alguém tratasse deles na velhice. Segundo parece, tinham o direito de discriminar e exerciam esse direito com astúcia. Este motivo de «segurança social» parece ter tido muito mais força do que qualquer outro relacionado com manter intacta a propriedade. O facto de serem frequentemente mulheres, muitas vezes filhas que ficavam solteiras, as destinatárias do terço, é mais uma prova da motivação «segurança/recompensa».
78Parece que os testadores tinham consciência de que favorecer uma pessoa, em especial um filho, em relação aos outros, podia ser uma causa de atrito. Este receio de desavenças levou alguns deles a pedir aos filhos, nos testamentos, para «se portarem como deviam». Por exemplo, Isabel Francisca de Castro, viúva de Felipe Gonçalves da Fonte, fez um testamento, em Novembro de 1831, que revogava outro feito anteriormente com o marido. Neste novo testamento, nomeava o filho Manuel como testamenteiro, deixava-lhe o terço e pedia-lhe para pagar daí as despesas do funeral. Em seguida, pedia que, depois de subtraído o terço, o resto dos bens fossem divididos em partes iguais por todos os filhos — tinha tido cinco, quatro dos quais, dois filhos e duas filhas, ainda viviam, estando todos casados em 1831. Exortava «todos os filhos e filhas a não fazer exigências nem a criar conflitos nas partilhas, mantendo antes a paz e a amizade para que Deus os abençoasse». Manuel, o herdeiro que favorecera, era o filho mais velho, e o primeiro testamento, redigido pouco antes da morte do pai, em 1821, referia que ele vivia com os pais (muito provavelmente com a mulher, com quem casara em 1810 e os filhos de ambos). Neste primeiro testamento, os pais haviam estipulado que fossem dados cem réis a Manuel, cinquenta por morte do primeiro e cinquenta por morte do segundo.
79Um receio semelhante ao expresso por Isabel Francisca de Castro é o que está reflectido no testamento de Vitória Araújo, que morreu em 1837. Embora não favorecesse um dos seus três filhos (Maria, casada, de 56 anos; Vitória, casada, de 53; e Manuel, casado de 49) em relação aos outros, esperava que «se comportassem como irmãos e que não houvesse discórdias e que fizessem as partilhas amigavelmente, de acordo com a lei de Deus». Designava como testamenteiro o filho e deixava-lhe, por ter prestado esse serviço, 30$000 como oferta. Vitória dizia no testamento que vivia «na casa da Quinta do Pilar», o que talvez aponte para que se trate de uma família de lavradores abastados.
80Isabel da Rocha, viúva de Joaquim Soares (que falecera em 1842), fez uma escolha ligeiramente diferente no seu testamento de 1849. Isabel deserdava o único filho que tinha, filho do seu primeiro casamento com Bento Gonçalves, em 1797, em favor de um homem em cuja casa tinha vivido e que, com a sua família, a «tratara com amor». Acerca do filho dizia: «Declaro mais que o meu filho foi para Espanha em rapaz aonde casou há muitos anos, sem nunca me dar nada nem servir de amparo na minha avançada velhice e grandes doenças... Declaro mais que o meu filho não deve tomar a mal esta minha deposição porque quando cá veio, dei-lhe dinheiro, roupas e ouro, e deste modo se ausentou e sem nunca mais me escreva». Obviamente, achava que tinha feito por ele o suficiente e que ele nada fizera por ela em troca. Sentia, pelo contrário, gratidão pelo herdeiro que designara, um homem cuja relação com ela não é clara, mas «em cuja casa se encontra, paralisada». Na parte principal do testamento, pedia também a todos os que lhe deviam dinheiro que o pagassem ao dito herdeiro, Manuel Gonçalves Marinho, e a sua mulher Maria Alves Franco, após a sua morte.
81Nos testamentos deste período, aparecem repetidas vezes referências, como a de Isabel Rocha, à partida de filhos para Espanha. Em alguns casos, os filhos dos testadores faleciam no estrangeiro ou desapareciam (ou seja, os pais desconheciam o que fora feito deles). Noutros, os filhos utilizavam o dinheiro ganho em Espanha para melhorar as propriedades dos pais ou para comprar mais terras ou uma junta de bois. Maria da Costa Pereira morreu com setenta e dois anos, em 1828; era viúva de Felipe António Gonçalves. No testamento, declarou que tinha seis filhos, «alguns dos quais já morreram em Espanha».33 Aos que lhe sobrevivessem, legava dois terços dos seus bens, uma vez que já prometera o terço a sua filha Maria, quando do casamento desta com Manuel Machado da Rocha. Maria Franco da Rua, viúva de João Esteves, reconheceu ter seis filhos, no seu testamento de 1841. Seu filho António falecera em Espanha e outro, Francisco, nas Províncias Ultramarinas. Deixou o terço à filha Maria, que a tinha «tratado bem, e para aliviar a consciência, pois Maria tinha mais de dezoito anos quando o seu marido morrera e podia ter exigido à mãe um salário quando concordou ficar junto dela».
82Num testamento escrito cinco dias antes da sua morte, em Novembro de 1851, José Barbosa de Castro deixou o terço aos três filhos: Maria (nascida em 1830), Domingos (nascido em 1834) e António (nascido em 1838). Seu filho mais velho, Manuel (nascido em 1825), «está no Brasil há mais de seis anos e nunca mais teve notícias dele». Isabel Francisca de Castro, num seu testamento de 1843, pedia que mandassem dizer missas pelas almas de sua filha Maria (nascida em 1785) e de seus filhos José (nascido em 1786 e que casara noutra aldeia) e Frutuoso (nascido em 1790), este último «se tiver morrido, pois já há um tempo que se ausentou para a América». Legou o terço a sua filha ilegítima Luísa (que nascera em 1799, três anos depois da morte do marido), «pela bondade com que sempre me tem tratado», na condição de metade desse terço ser para a filha de Luísa, Maria. Segundo ela, o filho José recebera a sua parte quando casara. A parte que pertence a Frutuoso «ficará em suspenso até que a sua morte seja confirmada e depois passará para Luísa, que deverá mandar dizer duas missas por ano por alma de Frutuoso». Isabel pedia ao genro, José Alexandre, marido de Luísa, que fosse seu testamenteiro, e deixava-lhe 48$000 por prestar esse serviço. Pedia também à filha que desse um alqueire de trigo ao seu compadre Manuel da Cunha no primeiro dia de S. Miguel (30 de Setembro) ocorrido depois da sua morte.34
83Quando os filhos regressavam do Brasil ou de Espanha, uma das grandes preocupações dos pais nos testamentos era que aquilo com que aqueles haviam contribuído para o património familiar não fosse incluído na avaliação e divisão dos bens. José Martins da Costa, viúvo de Maria Francisca, fez um testamento em 1830, em que deixou o terço à filha Maria Franca, casada com José de Sousa Vieira. Declarava que o genro comprara mais terras com dinheiro ganho em Espanha e que elas não deveriam ser consideradas para divisão dos bens entre Maria e os seus outros dois filhos. António Correia fez uma declaração semelhante em 1840, relativamente ao seu terceiro (dos quatro vivos) filho, João (nascido em 1786 e casado em 1814), que vivia com o pai.
Para pagamento do dinheiro que gastou para bem da alma de minha mulher e em reconhecimento pelo seu trabalho para mim e pelas despesas que fez, deixo-lhe o terço da junta de bois que temos para trabalhar as terras, e declaro que uma parte das terras que cultivamos foi comprada por ele com dinheiro que ganhou no reino de Castela e não deve, portanto, ser tomada em consideração para as partilhas, depois da minha morte.
84José da Costa, que morreu viúvo em 1844, dá uma explicação bastante longa da situação. Afirma ter quatro filhos, dois filhos e duas filhas; três deles haviam recebido como dote 100$00 na altura do casamento. Além disso, o filho José recebeu um redolho da vinha em Campello, avaliada em 24$000. O filho mais novo, António (nascido em 1802 e casado em 1826) não só não recebeu dote como deu ao pai 60$000, para ajudar este a completar o dote da filha Ana, por ocasião do casamento dela, em 1825, e ainda lhe deu mais 40$000. Por esta razão, deixa ao filho António o terço, do qual deve ser subtraída a soma de 20$000 para o neto António, filho de João Abrigueiro, por viver com ele. Em seguida, declara que o filho, António, comprou algumas terras e o lagar e que estes bens não devem ser incluídos nos que se destinam a ser divididos. Todas estas compras, declara ele, foram feitas com dinheiro ganho por António em Espanha.
85Um exemplo útil, aliás muito mais claro do que os anteriores, que faz referência à emigração e que também sublinha a noção de igualdade e justiça é o representado pelo testamento da viúva Vitória Pereira, regidido em 1779. Vitória declara que tinha quatro filhos. (António, Francisca, José e João) e que são todos herdeiros legítimos. Acrescenta que seu filho José gastou 28$000 numa viagem ao Brasil e que deseja que essa quantia seja deduzida da sua quota legítima «pois nunca quis nem foi minha tenção prejudicar as legítimas dos meus outros filhos». E continua:
«Deixo a minha nora, mulher do meu filho João Pereira, o meu tear, aparelhado, pela boa asistencia que me faz na minha doença, e que espero me faça até o fim da minha vida. Deixo a minha mantilha nova à minha neta Maria, filha de António, por me assistir na minha doença. Deixo a minha neta Maria, filha de António da Costa, o meu tonel de vinho. Declaro que meu filho João Pereira pagou na Barrrosa de juros que eu tinha deixado 8$950) quando veio para este lugar. Declaro que António Rodrigues tem 25$000 e António da Costa, 30$000, da minha meação, quantias que quero que sejam deduzidas das suas legítimas porque todos ficam iguaes. Declaro que meu filho João vendeu, para pagar a viagem para o Brasil, o campo de Borralha, que era do casal. Deixo a minha pipa de ter vinho a meu filho João pela boa assistencia que me faz e espero me faça até ao fim da minha vida. Deixo a minha neta Maria, filha de António, uma terra para ella fazer uma eira e onde o seu marido, José Gonçalves, pode fazer telhas — isto pela boa asistencia que me faz na minha doença.»
86O testamento de Vitória Pereira mostra vários outros aspectos que vale a pena analisar melhor: o desejo de, não obstante o terço, conseguir uma certa igualdade, o pagamento de dívidas (ou seja, a declaração da existência das mesmas) e algumas provas de outros tipos de bens, além das terras, que eram suficientemente valorizados para merecerem ser mencionados num testamento.
87João Martins da Costa morreu viúvo um mês depois de sua mulher ter falecido, em Março de 1850, com sessenta e quatro anos de idade. À hora da morte, tinha cinco filhas (Ana, nascida em 1819 e casada em 1848; Maria, nascida em 1823 e casada em 1861; Josefa nascida em 1825 e que morreu solteira; Luísa, nascida em 1827 e que também morreu solteira; e Rosa, nascida em 1829 e que morreu igualmente solteira) e um filho, Manuel, nascido em 1831 e casado em 1871. Deixou o terço às quatro filhas solteiras na condição do usufruto ser de sua cunhada Ana. Ordenou às filhas que do terço retirassem 5$000 para dar ao seu filho Manuel e 2$000 para dar à sua filha mais velha e casada, Ana. Reconheceu também que esta tinha em seu poder quinze alqueires de milho e um tear, os quais deveriam ser tomados em consideração quando da divisão dos bens. Designou como testamenteiro seu filho Manuel ou sua cunhada Ana e declarou que, quando casara, a sua filha levara de casa algum linho e outras coisas e que as outras filhas deveriam receber o equivalente em valor.
88Por último, Assunção Alves da Costa preocupa-se com a igualdade de uma maneira pouco comum, no seu testamento de 1849. Embora deixasse em usufruto o terço da sua metade dos bens a seu marido e sua irmã, pedialhes que fosse dividido pelas suas filhas e seu filho Manuel, após a morte do marido e da irmã, mas expressava o desejo de que sua filha Ana não recebesse nenhuma parte, em virtude de já ter herdado da irmã da testadora. Além disso, pedia também que o terço fosse formado igualmente por mato e veiga, de modo a não cometer injustiças em relação aos seus herdeiros.35
89Esta preocupação com um tratamento igual dos filhos está também presente em vários testamentos redigidos por pessoas cujos filhos tinham ido para padres. José Gonçalves Pereira morreu viúvo em 1842, com quarenta e dois anos de idade. Designou como herdeiros seus quatro filhos Gualter, João, Maria e Luísa, «não falava no seu filho António, padre, porque esse tinha o seu património e nada mais esperava herdar». Além destas partes da herança que parecem ser dadas pelos pais antes de morrer, a fim de mandarem os filhos para os seminários para se tornarem padres, alguns pais concediam também em vida um dote em espécie aos filhos e, quando tal acontecia, sentiam-se obrigados a mencioná-lo no testamento. Já mencionámos anteriormente um exemplo disso (ver nota da pág. 65), mas há muitos outros. Simão Luís de Castro e Catarina Rodrigues Pereira afirmavam no seu testamento de mão comum, de 1759, que haviam dado a sua filha, além do enxoval, um dote de 100$000. A seu filho António, tinham dado a soma de 30$000. João Lourenço da Rua, que casara com Domingas Castro, em 1706, teve sete filhos, um dos quais morreu em criança, cinco que casaram e um (o segundo filho) que morreu solteiro com oitenta e cinco anos de idade. Quando João morreu, em 1754, deixou o filho mais novo, Domingos (que casara seis anos antes), um valor de 20$000, além do que ele e os irmãos receberiam por morte da mãe. Por outro lado, diz ter dado 15$000 ao filho mais velho, para se casar, em 1743; 70$000 à filha mais velha Maria, para o seu casamento, em 1733; e 60$000 à sua filha Sebrónia quando do seu casamento, em 1738. Na altura, estas quantias eram avultadas e provam que se tratava de uma família próspera. Quando sua mulher, Domingas, faleceu, dois anos depois, confirmou todos estes dotes em dinheiro e designou o filho Domingos como herdeiro da sua metade da casa como recompensa por todas as despesas pessoais que tivera. Quando o filho solteiro Manuel morreu, em 1802, nomeou seu herdeiro universal o sobrinho e afilhado Manuel.
90Um último exemplo é o constituído pelo testamento que António José Pereira Palma e sua mulher fizeram pouco antes da morte de António, em 1731. Declaram que tinham prometido metade do terço, por morte do último deles, à filha mais nova, Maria, a fim de ela poder casar com José Machado da Rocha, um sargento do 22.° Regimento. A outra metade deveria ser para a sua filha Ana, desde que permanecesse a seu lado até ao fim e os respeitasse «como os bons filhos devem fazer»,36 Na realidade, em alguns casos, o dote refere-se não a uma soma ou legado concedidos na altura do casamento, mas simplesmente a uma promessa de herança por morte dos pais. Um dos casos mais elaborados de divisão pormenorizada e explícita dos bens é o testamento de Lourenço Pereira, viúvo de Mariana Josefa, que morreu em 1822, com oitenta e seis anos. Este casal não tivera filhos (Mariana tinha quarenta anos quando casaram), mas parece que vivia com ele uma jovem órfã (exposta), Rosa Maria. Lourenço designou seu sobrinho João Pereira, marido de Rosa Maria, como seu herdeiro. Rosa Maria morrera em 1818, e Lourenço Pereira estipulou que, se João Pereira viesse a casar, os únicos herdeiros seriam os filhos (Lourenço, António, Maria e Manuel) do casamento de João Pereira com Rosa Maria Exposta. Em seguida, passou a especificar os bens (terras e outros) que deixava a esses quatro descendentes e a outros parentes. A Lourenço, legava a casa e lugar que pertencera a Ana Franca, em Roupeiras, e também uma leira no mesmo lugar, que pertencera a Manuel Pereira; a António deixava uma leira em Agra de Baixo; a Maria, uma leira em Bajouca; a Manuel, uma leira na veiga de Ponte de Lima; a sua irmã Ana Pereira, duas leiras em Roupeiras, onde ela vivia e um olival perto da fonte de Roupeiras (quando ela morrer, este deveria passar para o afilhado dela Lourenço); a sua irmã Maria, uma pinhal perto da fonte de Roupeiras e uma porção de terra em Salgueiras; a sua irmã Ana, a junqueira ao pé da oliveira; a seu sobrinho e afilhado Lourenço Gonçalves Pereira, filho de Francisco Gonçalves e Ana Pereira, uma parcela de terra com uma oliveira, duas pereiras, carvalhos e mato no sítio da fonte de Roupeiras; a sua irmã Domingas, metade da leira em Fujacos de Cima, e um campo de mato e carvalhos na bouça de Três Lamas; a sua afilhada Maria, filha de Ana Pereira, uma leira que pertencera a Manuel Seixinha; e, por último, a seu afilhado José, uns carvalhos junto da fonte de Roupeiras.
91Enquanto alguns testamentos, como o de Lourenço Pereira, mencionam parcelas concretas de terra e definem para quem são, há outros bens que pareciam ser altamente valorizados e que, por conseguinte, eram especificamente mencionados nos testamentos: as casas de habitação; objectos tais como tonéis de vinho, carroças e recipientes de cozinha em ferro; moedas de ouro e cordões também de ouro; peças de linho, quer se tratasse de vestuário (havia diferenças entre a roupa de todos os dias e a dos dias festivos), toalhas de mesa ou roupa de cama; teares e outras peças de mobília, em especial arcas para guardar os artigos de linho; e, por último, como já foi demonstrado, determinadas quantias em dinheiro. Um bom exemplo da variedade de bens incluídos numa herança é o testamento, de 1828, da viúva Francisca Gonçalves. A sua filha Antónia, deixou tudo o que pertencera à sua outra filha, já falecida, Ana — os frutos no local onde reside, com árvores de fruto, mais dois campos em Fontainhas, um campo em Arneiros, uma caixa de pinho que mandara fazer, e ouro, bem como peças de vestuário, incluindo uma saia, uma mantilha e roupa interior, e também alguns lençóis de linho; além disto, um campo em Largo sobre o qual recai um foro de um alqueire de milho, um campo de videiras e oliveiras, e um campo de castanheiros, todos no mesmo lugar. Deixou-lhe ainda metade da casa «tudo isto em pagamento e desconto das suas soldadas».
92O testamento de Lourenço Pereira mencionado anteriormente é também um exemplo interessante de quem herdava os bens de casais sem descendentes directos, um caso que não era raro na história de Santa Eulália. Em geral, os principais beneficiários eram sobrinhos ou sobrinhas, alguns dos quais eram também afilhados ou viviam com a tia ou o tio. Outro bom exemplo é a herança de Maria Correia Pereira, viúva de Domingos Alves, que faleceu em 1837. Ela e o marido haviam tido dois filhos, mas ambos tinham morrido em criança. Quando Maria faleceu, designou como herdeiro universal seu sobrinho Albino Pereira de Castro, filho ilegítimo de seu irmão António, ou a mulher dele Ana Rodrigues Franco. Porém, também referiu outros beneficiários. A seu cunhado Manuel Alves Franco, deixou dois campos; a sua cunhada Domingas, um campo em Campo da Veiga (na condição de, se o marido não pagasse a caução de cinco moedas que devia a José António Monteiro de Viana, esse campo ser usado para pagar a dívida); ao sobrinho de seu marido, duas propriedades (uma bouça e um campo); 48$000 a outro sobrinho do marido; 18$000 e 30$000 a seu sobrinho José, quantias essas que lhe emprestara para comprar uma carroça; a seu sobrinho Lourenço, metade do campo em Fujacos (a outra metade fora dada a Albino); e a uma sobrinha e afilhada, 0$800.
93Além dos casais sem filhos, também as pessoas solteiras, em especial as mulheres que nunca haviam casado mas que possuíam obviamente bens para distribuir, eram livres de escolher os seus herdeiros. Luísa Gonçalves Marinho, «sentindo-se doente», fez um testamento em Setembro de 1833. Era solteira e tinha quarenta e seis anos e era um dos cinco filhos vivos de Manuel José Marinho e Antónia Gonçalves. Designou a irmã mais velha (imediatamente a seguir a ela) Ana Quitéria, mulher de António do Rego, sua herdeira universal. À sua primogénita Maria, mulher de Antónia da Rocha, deixou cinco moedas que esta lhe devia e metade de um campo de cebolas. À filha de Maria, Rosa, deixou outro campo. A seu irmão mais novo, Manuel, deixou cinco moedas que ele lhe devia e mais 39$000, que lhe devia e cujo empréstimo estava registado num cartório notarial, com os respectivos juros. A Margarida Exposta, uma órfã que vivia com ela, deixou 60$000 em dinheiro, quantia que seu irmão Manuel ficava obrigado a conceder-lhe no dia do casamento; se não casasse até aos vinte e cinco anos, devia receber 60$000 mais os juros desde o dia da morte da testadora até ter atingido essa idade. Deixava ainda a sua irmã e herdeira 40$000 e pedia-lhe para cuidar de Margarida como se fosse sua filha e estipulava que Margarida pagasse a sua irmã, até casar ou até fazer vinte e cinco anos, os juros dos 60$000, a fim de cobrir as despesas. Em seguida nomeou outros contemplados, alguns dos quais eram afilhados, com determinados bens e terminou com uma lista de todas as pessoas que lhe deviam pequenas quantias, declarando que essas dívidas deveriam ser pagas a sua irmã e herdeira, após a sua morte.
94O desejo de explicar pormenorizadamente as dívidas, quer se tratasse de dinheiro que o testador devia ou que lhe deviam, está bem patente nos testamentos de Santa Eulália que chegaram aos nossos dias. Em numerosos casos, os testadores ofereciam a quantia ao devedor, perdoando-lhe, assim, a dívida. Por exemplo, Maria Fernandes da Rocha, solteira, num testamento de 1828, dizia que seu irmão lhe devia cinco moedas espanholas (puros duros castilharios) que ela entregara ao filho dele para pagamento de uma dívida, e eximia-o de pagar essa dívida. Noutros casos, tal como o de Luísa Gonçalves Marinho, já citada anteriormente, a dívida era simplesmente transferida para o novo herdeiro. Luiz Pinto, que morreu solteiro em 1816, estipulou que o herdeiro da sua casa e da terra onde ela ficava situada pagasse, com juros, os 30$000 que ele devia à Confraria de Santo António. Por último, outros testadores decidiam divulgar que certa dívida fora saldada. António de Castro Palma, viúvo, declarou num testamento de 1830 que sua filha Domingas e seu marido haviam já «satisfeito» a dívida de 16$660 que tinham para com ele.
95Vale a pena tecer um último comentário acerca destes testamentos. Há diversos casos de indivíduos, com ou sem herdeiros obrigatórios, que reconheciam os serviços prestados por um criado ou criada que trabalhara para eles. Em 1813, Maria Gomes da Rocha, viúva de António Rodrigues, deixou a sua criada Domingas um campo em Estonturas «para satisfazer ordenados não pagos e os que estiverem por liquidar até ao dia da minha morte». Outros deixavam pequenas somas ao pároco da aldeia e, o que era mais raro, designavam-no como testamenteiro.
96Os testamentos existentes relativos a Santa Eulália demonstram claramente que as terras, casas e outros bens eram transmitidos por morte de acordo com instruções muito explícitas. Contudo, há também provas, tanto nos testamentos como nos registos notariais, que alguns bens eram transferidos quando do casamento sob a forma de «dote», talvez para assegurar um parceiro digno,37 Há igualmente provas de que muitas terras eram compradas e vendidas durante a vida do indivíduo. Numa escritura de Janeiro de 1820, Francisco Alves Pereira e sua mulher, Francisca Teresa de Sousa, venderam uma parcela segundo um contrato «com três anos de retroactividade» a João da Silva. A parcela incluía videiras, uma horta e uma oliveira, e estava arrendada, como foro, ao pároco da aldeia por 0$025 por ano. Os proprietários reconheciam também que essa parcela estivera hipotecada à Confraria das Almas por 24$000, que pretendiam pagar na data da escritura por terem sido alvo de pressões judiciais nesse sentido, e que se elevara para 35$832, devido aos juros. A terra foi, portanto, vendida com o mesmo foro por 37$500 segundo o contrato com três anos de retroactividade que obrigava os anteriores proprietários a pagar uma pensão anual de seis alqueires e um quarto de milho ao comprador. Se não pagassem essa pensão anual, o comprador ficava com direito de possuir a terra. Este casal parece ter vendido várias terras neste período. O marido estava na casa dos sessenta anos e tinham oito filhos, o mais novo dos quais com menos de dez anos. É legítimo supor que estavam a atravessar tempos difíceis e se viam, portanto, obrigados a vender. O comprador tinha mais ou menos a mesma idade, era viúvo e tinha duas filhas maiores e casadas.
97Durante o período entre 1770 e 1850, foram efectuadas outras vendas de terras, com ou sem foros, com ou sem «contratos com uma determinada retroactividade». Em 1777, por exemplo, um casal que vivia na aldeia de Vitorino das Donas, do outro lado do rio Lima, vendeu uma parcela que herdara, em Santa Eulália, juntamente com o respectivo foro e dízimo, por 8$000. Numa escritura de Abril de 1820, Isabel Alves Rocha, viúva de José da Costa, vendeu várias terras ao Capitão Miguel Tinoco, como já referimos um membro da aristocracia da aldeia. A venda incluía um campo em Sobral por 21$000, outro no lugar de Alvite, um campo no lugar de Colada por 2$500 e ainda outro no mesmo lugar por 20$000, uma latada de videiras por 3$000 e uma parcela não cultivada por 10$000.
98Estes casos concretos demonstram que muitas das terras de Santa Eulália eram exploradas por caseiros e lavradores-rendeiros, de acordo com contratos de arrendamento de duração variável. Um outro exemplo é um acordo notarial com data de Agosto de 1819. Segundo este contrato, António Rodrigues e sua mulher Maria Gomes do lugar da Feira concordaram em pagar todos os anos, no dia de S. Miguel, a Francisco Alves Franco e sua mulher, Francisca Teresa de Sousa, 9$000 em dinheiro de renda de uma porção de terra arável com árvores de fruto, uma oliveira e videiras, e com uma área de 48,5 varas (53,5 metros) de comprimento e 15,5 varas (17,1 metros) de largura no extremo norte e seis varas (6,6 metros) de largura no extremo sul. O acordo abrangia metade da água de um poço existente na propriedade. O contrato ficaria nulo e sem efeito no primeiro ano em que os arrendatários não efectuassem o pagamento. Os arrendatários ficavam também obrigados a conservar a terra como a tinham encontrado, tratando-a como se fosse sua; se o não fizessem, seriam postos na rua e responderiam por todos os anos de danos causados.
99Alguns dos outros registos notariais tratam de dívidas, a juros (5%), a indivíduos ou a várias confrarias religiosas da aldeia, de que voltaremos a falar mais adiante. Como garantias, eram dadas parcelas de terra ou uma casa. Os empréstimos destinavam-se em grande parte a introduzir melhorias numa casa ou a aumentar a área cultivada. Por exemplo, em 1819, João de Araújo e sua mulher Vitória Francisca de Castro pediram emprestados 67$200 a António Franco, solteiro, de S. Salvador, a fim de poderem «garantir a segurança da sua casa». Como garantia, deram um campo cultivado na veiga da aldeia vizinha que tinha de pagar uma pensão anual de seis alqueires de milho ao mosteiro de S. Salvador.
100Esta longa análise dos livros de testamentos e registos notariais relativos a Santa Eulália demonstra vários factores que vale a pena voltar a sublinhar. Em primeiro lugar, partindo do princípio do tratamento igual de todos os filhos, os testadores eram livres de escolher — e efectivamente escolhiam, com frequência — um determinado filho ou indivíduo como herdeiro preferido do terço.38 O principal critério que determinou a sua escolha parece ter sido o apoio recebido—ou seja, quem tinha cuidado deles e continuaria a fazê-lo na velhice e na doença. Dado este critério, não é de surpreender que as filhas solteiras fossem herdeiras habituais. O que isto sugere é que talvez devêssemos mudar a nossa interpretação da relação de causalidade entre herança e celibato feminino definitivo ou, pelo menos, admitir uma relação mais complexa e culturalmente variada. Voltaremos a abordar este assunto no Capítulo III.
101Em segundo lugar, a liberdade de designar herdeiros bem como as provas de que as terras eram frequentemente compradas, vendidas ou hipotecadas sugere um regime flexível no qual teria sido irrealista da parte dos filhos orientar as suas vidas com base na expectativa de herdar. Evidentemente, isto tem enormes ramificações de hipóteses que relacionam quer o casamento quer a idade no casamento com a herança de terras e a idade dos pais quando morrem. As ligações podem não ser directas, e é neste contexto complexo que se deve considerar o papel da emigração. Também este ponto será desenvolvido mais adiante.
102Em terceiro lugar, embora os historiadores demográficos tenham contribuído muito para os nossos conhecimentos quantificáveis acerca da vida das famílias camponesas no passado histórico da Europa, pode acontecer nunca dispormos de um quadro completo dos aspectos mais de ordem qualitativa das relações familiares destas populações rurais. Contudo, atitudes como as que é possível detectar através de uma análise de documentos como os livros de testamentos lançam um pouco de luz sobre a qualidade dessas relações numa aldeia portuguesa de antigamente. As possibilidades de discórdia derivadas de partilhas dos bens não teriam sido referidas com tanta frequência pelos pais nos testamentos, se essas discórdias tivessem sido raras. Ainda hoje, a divisão de terras continua a ser uma situação potencialmente geradora de instabilidade. Além disso, noutros aspectos menos imediatos, estes testamentos tendem a apontar para famílias não muito «felizes». Há um elemento prático que consiste em pagar aos filhos (até sob a forma de uma promessa de lhes deixar o terço) pelos cuidados continuados que eles dispensam. Referir-se a eles como sendo «como criados» é a expressão extrema desta atitude, que, a longo prazo, sublinha a importância atribuída à independência do indivíduo mais do que à unidade de uma propriedade ou de uma casa, como acontece noutras partes da Europa ocidental e meridional. Nesta região de Portugal, os bens eram muito importantes como meio de reforçar as relações sociais entre gerações.
103Por último, estes testamentos poucos fundamentos proporcionam às teorias de Goody (1983) acerca do controlo omnipotente da Igreja, pelo menos no caso português. Parece que os casais sem filhos, e os celibatários de ambos os sexos não tinham dificuldade em arranjar herdeiros. Entre os beneficiários designados encontravam-se sobrinhos e sobrinhas, filhos ilegítimos, filhos adoptivos trazidos da Casa da Roda, até criados. Embora a Igreja estivesse presente na elaboração dessas «últimas vontades e testamentos» e beneficiasse com eles, graças às missas em memória do moribundo ou das almas dos seus entes queridos, só num caso a Igreja recebeu o grosso dos bens de um indivíduo e apenas houve algumas situações em que foram legadas quantias especiais ao pároco da freguesia. Porém, os preâmbulos muito religiosos dos testamentos persistem até aos finais do século XIX, um facto que Daniel Scott poderia apontar como indício do continuado e alto nível de religiosidade desta população, sobretudo em contraste com a população de Hingham, no Massachusetts, onde os preâmbulos de carácter religioso dos testamentos começaram a escassear em meados do século XVIII e, em 1820, tinham desaparecido praticamente. Além disso, como já anteriormente dissemos, a Igreja era uma importante proprietária de terras da região, pelo menos até o confisco dos seus bens na década de 1830 e, mais tarde, na I República. Não há dúvida de que o papel da Igreja na história de Santa Eulália é complicado; gostaria de o analisar melhor na última secção deste capítulo.
A Igreja e a Religião
104No seu estudo sobre a fecundidade em Portugal, Livi Bacci acaba por sugerir que a religiosidade pode ser a variante mais significativa para explicar as variações regionais de comportamento demográfico no país. Ainda que se nos deparem enormes dificuldades sempre que procuramos avaliar o impacte da religião no comportamento, é evidente que a Igreja tem sido a mais importante instituição nacional, a nível local, ao longo da história portuguesa, e o ponto fulcral da vida na aldeia do Norte de Portugal até aos nossos dias. De facto, era a Igreja que intervinha em momentos cruciais da vida — nascimento, confirmação, casamento, morte — e que registava estes acontecimentos para o historiador demográfico do futuro. Embora volte a abordar o assunto noutros capítulos mais adiante, a fim de proceder a uma avaliação mais completa da relação entre religião e fecundidade e ilegitimidade, é importante focar, ainda que brevemente, nesta secção deste capítulo, a posição da Igreja e dos padres na história de Santa Eulália.
105Tenho necessariamente de começar por afirmar que é impossível compreender o papel da Igreja numa comunidade local desligado do seu papel no conjunto de nação. Durante os dois séculos e meio que constituem o âmbito temporal deste estudo, a posição da Igreja Católica em Portugal sofreu melhorias ou reveses, de acordo com as mudanças de governo e as ondas de anticlericalismo. Ao longo da maior parte do período inicial da sua história, a Igreja tinha gozado de um estatuto privilegiado. Várias ordens religiosas detinham enormes propriedades nas zonas rurais, que lhe haviam sido concedidas por sucessivos monarcas.39 Como já dissemos, a própria Santa Eulália fazia parte de um couto, até ao século XVI. Quando a expansão colonial portuguesa se iniciou, a aliança entre a Igreja e o Estado foi ainda mais reforçada. Na sua missão conjunta de conquista e colonização, estabeleceram uma relação que era benéfica para ambas as partes e que contribuiu para a prosperidade económica e poder político das duas.
106Enquanto a «Igreja da missão» manteve a sua posição forte e importante até este século, a «igreja mãe» da metrópole começou a presenciar o declínio do seu poder, tanto económico como político, com o domínio do Marquês de Pombal, nos anos de 1750. Pombal cortou relações com Roma, expulsou os Jesuítas, e colocou a educação sob controlo do Estado, desencadeando um processo de secularização que se deveria prolongar por uma grande parte do século XIX. Muitas das reformas de Pombal foram revogadas durante o reinado da devota rainha D. Maria I. Os sucessores desta adoptaram uma linha segundo a qual, embora reconhecendo a religião católica como religião oficial do Estado, se procurava conseguir um mais amplo controlo da monarquia sobre o clero e numerosos regulamentos da Igreja.
107Em 1831, uma segunda onda de anticlericalismo varreu o país e foram abolidos mosteiros, conventos e colégios pertencentes a várias ordens religiosas. A Inquisição foi dissolvida e muitos dos bens na posse da Igreja foram leiloados. Embora muitas ordens religiosas tenham sido restabelecidas mais tarde, ainda nesse século, a Igreja ficara praticamente privada da sua riqueza. Os sentimentos anticlericais persistiam, mas no caos financeiro e político dos finais do século XIX, não eram expressos insistentemente. Só com o advento da I República, em 1910, surgiu um novo movimento, aliás bem mais forte. As faculdades de teologia existentes nas universidades portuguesas foram encerradas, foi abolida a educação religiosa nas escolas, as leis do divórcio foram alteradas e a comemoração de festas religiosas foi dificultada. Segundo uma nova Lei de Separação da Igreja e do Estado, todos os bens da Igreja foram arrolados e os padres e freiras foram proibidos de envergar hábitos religiosos. A Igreja era o símbolo por excelência de uma ordem tradicional com que a nova República pretendia acabar por inteiro. Um Congresso de Livres Pensadores, realizado em 1911, profetizou que, em duas gerações, a Igreja Católica desapareceria de Portugal. Porém, em 1917, três pastorinhos afirmaram ter visto a Virgem Maria numa colina perto da vila de Fátima. Nasceu um novo culto que constituiu a base para o reforço da posição da Igreja Católica portuguesa no Estado Novo, criado pelo Dr. António Oliveira Salazar.
108Embora Salazar tenha completado a separação entre a Igreja e o Estado, com a Concordata de 1940, um dos seus amigos mais íntimos era o cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Cerejeira. Juntos, estes dois homens estabeleceram uma nova ordem, fundamentalmente assente em princípios católicos. Ainda que o papel da Igreja na política do Estado tenha sido seriamente restringido, voltou a assumir o seu papel na vida social, na educação e na vida moral do povo português, se é que a sua influência não aumentou.
109O resultado de quase duzentos anos de secularização, com alguns movimentos anticlericais activos, foi a criação de um importante segmento da população que, embora nominalmente católico, não estava, em geral, interessado ou até era contra qualquer forma de expressão religiosa e não estava disposto a permitir que o clero influenciasse as suas vidas. Contudo, é importante reconhecer que os anticlericais que eram católicos de nome constituíam apenas um segmento da sociedade portuguesa, encontrando-se concentrados numa determinada região. Embora a reduzida prática do culto e a procura de religiões alternativas, especialmente o protestantismo, tenham caracterizado a maneira de viver no Portugal urbano e do Sul, o Norte continuou ligado à Igreja Católica.40 Durante a guerra civil da década de 1830, foi o clero rural que mobilizou os camponeses do Norte contra a causa liberal, e dez anos depois, em 1845 e 1847, foi a influência do clero que esteve por detrás do levantamento popular conhecido geralmente por movimento da «Maria da Fonte».41 Mais de um século depois, no rescaldo da revolução de 1974, que pôs termo a quase cinquenta anos de salazarismo, a população rural do Norte juntou-se em defesa da Igreja Católica que foi alvo de ataques crescentes devido ao seu papel durante o «Estado Novo», e contra a «ameaça» de comunismo que se lhe afigurava uma possibilidade real, nos primeiros passos hesitantes da nova democracia.42
110Não é fácil encontrar explicações para as enormes diferenças regionais no que se refere à situação da Igreja Católica. Nem avaliar em termos históricos (com excepção de movimentos como o da Maria da Fonte) o impacte de mudanças da posição da Igreja, ao longo do tempo, sobre uma população que vivia a sua existência quotidiana em pequenas aldeias, com frequência isoladas, do Norte de Portugal, onde os padres eram muitas vezes as únicas pessoas letradas e o principal elo de ligação com o mundo que ficava para lá daquela região. Obviamente, o facto de a sede da Igreja portuguesa, bem com sete (oito desde 1980) dos seus bispados ficarem situados no Norte tem algo a ver com a maior influência exercida nesta região. Porém, por sua vez, isto explica-se provavelmente pelo facto de o Norte ser mais densamente povoado. Até há bastante pouco tempo, cada freguesia, por mais pequena que fosse, tinha o seu próprio pároco e, muitas vezes, ainda um ou dois coadjutores.43 Também é possível que, numa zona densamente povoada de agricultura em pequena escala, onde os padres eram frequentemente, embora nem sempre, de origem camponesa, tal como os seus paroquianos, houvesse mais tolerância em relação ao clero do que no Sul, onde os padres eram não raras vezes os segundos filhos de lavradores abastados, e onde as diferenças de riqueza eram, sem dúvida, muito mais notórias.
111Isto não quer dizer que não existisse anticlericalismo no Norte, porque existia e ainda existe — mas é um anticlericalismo especial, mais dirigido contra o padre como indivíduo do que contra a Igreja como instituição ou contra a religião como um conjunto de crenças (Pina-Cabral 1981, Riegelhaupt 1973). O grande etnógrafo português José Leite de Vasconcelos, nas suas «Notas Sobre a Religiosidade dos Portugueses» (1958) chegou a sugerir que esse anticlericalismo era uma prova de que os Portugueses não eram fundamentalmente religiosos.
O Português parece não ser fundamentalmente religiouso. Sem dúvida a religião católica teve nele grande influência, desde todos os tempos. Levou-o a lutar com os Árabes, na Península e fora dela, durante longos séculos;... Mas entre nós não se desenvolveu o misticismo, como en Espanha, e sempre cá existiu algum espírito forte, como Gil Vicente e António José, que, chasqueia do clero, o que também acontecia na literatura medieval francesa, onde os cleros são a cada passo fustigados. (Vasconcelos 1958: 508)
112Todavida, ser anticlerical não quer dizer que se é quer anti-religioso quer a-religioso (Riegelhaupt 1973).
113Um dos aspectos mais importantes do anticlericalismo rural reside nas críticas à conduta moral dos padres e, de facto, é no carácter e, portanto, na influência de padres concretos a nível local que provavelmente se tem de procurar a força da prática ou das crenças religiosas num determinado momento. Mereciam respeito? Instilavam medo ou inspiravam piedade? Em contraste com o que se passava na Irlanda, ou pelo menos na Irlanda do período após a fome, onde os padres são conhecidos por praticarem o que pregavam e são louvados pela sua pureza (Connell, 1968, Larkin, 1972, 1976), as referências à falta de castidade do clero português têm raízes históricas profundas. Dias (1960) registou que, já no século XIV, havia protestos públicos contra o comportamento escandaloso dos padres católicos, a quem chamavam homens estravagueiros e barregueiros — palavras muito fortes que se aplicavam a homens que tinham amantes. Nas Memórias das Cortes de Santarém, do século XVII, os padres são acusados de dar maus exemplos aos leigos, aos quais deveriam ensinar a doutrina e educar através do seu bom comportamento. Alguns viajantes ingleses (que, é certo, podem ter tido um preconceito anticlerical) referiram-se abertamente nos seus escritos à ausência de um comportamento moral íntegro do clero português.
Os homens são trabalhadores e corajosos, e as mulheres são castas. Devem estas boas qualidades unicamente à Providência, de modo algum ao seu clero; a maioria dos membros deste utiliza os seus momentos de ócio para arquitectar maneiras de perverter as suas paroquianas. São essas as vantagens do voto de celibato. (A. P. D. G., 1826:340)
114O observador passa depois a referir a «influência tirânica que os padres exercem sobre os assuntos pessoais e a economia interna de cada família».44
115Parece que até a hierarquia católica portuguesa tinha consciência do problema. Por exemplo, entre os documentos que se conservam nos arquivos paroquiais de Santa Eulália há uma circular enviada aos párocos locais pelo arcebispo de Braga em 1856. O arcebispo avisa os seus padres de que um dos seus principais deveres consiste em dar ao povo provas da sua honestidade e em evitar qualquer comportamento que possa merecer críticas. Por isso, informa-os de que é proibido ter em sua casa ou na sua companhia indivíduos do sexo feminino com menos de cinquenta anos, que não sejam suas mães, irmãs ou sobrinhas até ao segundo grau de consanguinidade. Ficam também proibidos de confessar mulheres de qualquer idade em eremitérios, em casas particulares, na sacristia ou à noite. A confissão só é permitida «em confessionários de madeira com divisórias que separem completamente o penitente do confessor e os que estejam colocados em lugares da igreja à vista de qualquer pessoa que entre nela.45
116Uma circular distribuída quatro anos mais tarde mostra que tinham chegado aos ouvidos do arcebispo notícias de padres que participavam nas esfolhadas (celebrações tradicionais que rodeavam o trabalho de desfolhar os cereais, nos finais de Agosto e Setembro) «trajando de modo indecente, dançando e tendo contacto com pessoas do sexo oposto, depois do anoitecer». O arcebispo condenava todas essas actividades e exigia que acabassem. Embora seja obviamente impossível sustentar que qualquer destas circulares era especialmente aplicável ao clero de Santa Eulália, é neste contexto que se deve analisar o papel da Igreja e dos padres em qualquer freguesia rural do Norte de Portugal.
117Santa Eulália tem sido uma freguesia independente, com pároco próprio, para satisfazer as necessidades da população, desde, pelo menos, meados do século XVI. Alguns desses párocos eram naturais da freguesia, enquanto outros eram oriundos de outras terras; alguns eram de origem relativamente humilde; outros — poucos — eram membros das famílias mais ricas já mencionadas neste capítulo. As pessoas mais velhas que ainda vivem em Santa Eulália são capazes de falar sobre e comparar os párocos e padres residentes na freguesia durante a sua vida e de que se recordam: o que lá esteve entre 1890 e 1911, que era lavrador como o resto das pessoas e que só queria as beatas aos domingos; o filho de uma família da terra, padre em Nogueira, que foi obrigado a fugir para o Brasil, depois do advento da I República, devido ao seu apoio público à causa monárquica, e que voltou rico mais de uma década depois; o «padre santo e piedoso» que dirigiu a comunidade entre 1911 e 1927 e de quem se diz que «dormiu numa cama de pregos»; e o severo disciplinador que dominou a vida na aldeia durante quase todo o tempo em que o salazarismo existiu em Portugal (1927-1967).46
118A gente de Santa Eulália também fala dos filhos de padres, mas só há um exemplo recente.47 No século XVIII, aparecem nos registos uns quantos casos em que havia efectivamente filhos ilegítimos de padres, embora nenhum deles pareça ser filho de um padre ou coadjutor de Santa Eulália (ou seja, são filhos ilegítimos de mulheres oriundas de outras freguesias). Além das críticas aos padres actuais pelo seu interesse excessivo pelo dinheiro, há referências ocasionais à sua «sensualidade», embora, em última análise, muitas pessoas de Santa Eulália, tal como em geral os camponeses do Norte do país (Pina-Cabral 1981) admitam que os padres «são como os outros homens».
119As comparações entre os padres de antigamente e os de hoje são manifestações do tipo de anticlericalismo actualmente expresso em Portugal. O facto de serem alvo de murmuração é por si só uma prova do importante papel que desempenham na vida da freguesia. Certamente, pode dizer-se a favor do actual padre de Santa Eulália, como muitos paroquianos reconhecem, que contribuiu para aumentar as oportunidades de instrução na freguesia. Dedica uma grande parte da sua vida a orientar um programa de ensino secundário que não existia antes de ele ter assumido as suas funções como pároco da aldeia. Embora o seu comportamento possa não agradar a certas pessoas de Santa Eulália, parece, pelo menos a uma pessoa de fora, ser um verdadeiro chauvinista em relação à freguesia, cuja comunidade quer ver evoluir.
120Se o padre é o centro humano da vida religiosa de Santa Eulália, a igreja é o seu centro geográfico. Situada numa elevação no coração da freguesia, pelo que pode ser vista de longe, o actual edifício data da última metade do século XVIII, embora tenha sido restaurado e modificado frequentemente; as obras mais recentes foram levadas a cabo nos começos da década de 1970 com a ajuda das contribuições, em grande parte, dos emigrantes em França, Austrália, Canadá e Estados Unidos. De facto, muitas das alterações e acrescentamentos feitos ao longo do tempo foram resultado da generosidade dos naturais de Santa Eulália residentes no estrangeiro (em 1928, um grupo de emigrantes no Brasil comprou o relógio). A área que ficava à volta do edifício da igreja, o passal, era a terra que o padre tinha o direito de cultivar. A igreja foi despojada desta terra durante a I República; pertence agora a um emigrante no Canadá, depois de ter passado pelas mãos de diversos proprietários. Embora a reitoria adjacente à igreja tenha sido também confiscada na mesma altura, foi comprada pela paróquia pouco depois e manteve-se como residência do pároco. Hoje, como o pároco é da freguesia e vive na sua casa paterna, a reitoria foi transformada numa escola onde funciona o ensino secundário.
121O cemitério da freguesia, situado a noroeste da igreja, foi inaugurado nos anos de 1890. Antes disso, as pessoas eram enterradas no adro da igreja e, antes das reformas dos princípios do século XIX, em túmulos situados dentro da própria igreja. Além da igreja principal há várias pequenas capela espalhadas pela freguesia, algumas das quais ligadas a rituais específicos que preenchem o ano agrícola e/ou o calendário religioso, e outras originalmente construídas como capelas particulares pela «aristocracia» local detentora de terras.
122A associação de vários acontecimentos agrícolas com o culto de santos é um excelente exemplo do carácter da religião popular no Norte de Portugal. Em Santa Eulália, todos os anos, em Maio, se realiza uma procissão à capela de Santo Antão, a fim de benzer os bois e o gado leiteiro. O novo vinho é provado pela primeira vez no dia de S. Martinho, em Novembro, e as rendas agrícolas são pagas no dia de S. Miguel, nos finais de Setembro. Também todos os anos, no dia 8 de Dezembro, há uma missa solene e procissão até à capela de S. Frutuoso, no lugar de Outeiro, em honra da padroeira da freguesia, Santa Eulália.48
123A capela mais importante e mais significativa do ponto de vista arquitectónico existente em Santa Eulália é a do Senhor do Cruzeiro, erguida em meados do século XVIII, num terreno adjacente à igreja paroquial. Registos conservados no arquivo de Braga revelam que, em 1756, numa petição ao arcebispo de Braga, o padre Manuel da Silva e outros funcionários de Santa Eulália defendiam que «tinham na paróquia uma grande cruz com a imagem de Cristo, que a imagem tinha feito e faz milagres e que, com donativos, esperavam poder cobrir a imagem com um arco esculpido e um nicho fechado». Graças a essa petição, foi construída a capela e, uma década mais tarde, foi fundada a Confraria do Senhor do Cruzeiro, com os seguintes estatutos:
1. Nesta confraria haverá um juiz, um secretário, um tesoureiro e dois mordomos eleitos pelos responsáveis do ano anterior (esta era a mesa da confraria);
2. Os funcionários serão obrigados a utilizar os seus rendimentos para celebrar uma festa solene, todos os anos, na citada capela, no dia da invenção da cruz (3 de Maio).49
124Embora não fosse a festa do santo padroeiro, a festa do Senhor do Cruzeiro tornou-se a celebração mais importante do calendário religioso.
125Consoante a Igreja Católica gozava ou não das boas graças do poder, a confraria e festa do Senhor do Cruzeiro conheceram períodos de prosperidade e de decadência. Recentemente, a festa sobretudo recuperou o seu antigo brilho, em parte devido aos esforços do actual pároco, que a considera um meio de fazer colectas de dinheiro na freguesia, e também em parte graças à dedicação de emigrantes em França que programam as suas férias de Verão de modo a coincidirem com o fim de semana da festa, que lhes proporciona uma oportunidade de manifestar a sua ligação à freguesia e à pátria. Todavia, ao mencionar tanto a festa como a confraria do Senhor do Cruzeiro, é possível focar de uma maneira mais geral o significado de ambas as confrarias na vida religiosa, social e económica de Santa Eulália e na província do Minho.
126Ainda que agora sejam com frequência um pomo de discórdia entre os chamados «padres modernos» (Pina-Cabral 1981) e os leigos, as festas e romarias têm constituído uma parte importante da vida religiosa no Norte de Portugal e em especial na província do Minho. A festa do Senhor do Cruzeiro em Santa Eulália é, hoje, mais um ciclo de festas relizadas por todo o vale do Lima durante o Verão, ciclo que culmina na talvez mais secular Feira da Agonia, celebrada na cidade de Viana do Castelo, no fim de Agosto. De facto, muitas destas festas conjugam o sagrado com o secular, o aspecto social e comercial com o religioso, uma característica que Sanchis (1976) aponta como um excelente exemplo do carácter prático da religião no Norte de Portugal. Embora isto tenha sido e continue a ser um problema para a hierarquia da Igreja, para o povo não levanta qualquer problema. A devoção ao santo, a realização e cumprimento de uma promessa e um piquenique familiar são tudo partes fundamentais e aceitáveis destes acontecimentos religiosos. Além de participarem na sua própria festa, as gentes de Santa Eulália tomam frequentemente parte em muitas outras festas e romarias regionais, algumas das quais têm uma história tão antiga como a festa do Senhor do Cruzeiro. Uma das romarias mais importantes da região é a que se faz à ermida de S. João de Arga, na Serra de Arga, a norte da freguesia. As promessas simbolizam a estreita ligação entre religião e saúde: crê-se que S. João de Arga cura os quistos e outras doenças da pele; Santa Justa (que também tem uma ermida na montanha) protege as pessoas da gota; S. Brás intercede em caso de doenças da garganta; e Santa Marta, em doenças de mulheres (Araújo, 1957). Na realidade, nestas devoções a santos está bem manifesta a estreita associação entre religião e medicina popular.
127Se as festas têm, ao mesmo tempo, aspectos sagrados e seculares, o mesmo se pode dizer das confrarias locais. Em Santa Eulália há sete confrarias, e quase toda a gente é membro de pelo menos uma delas, e muitos sãomo de todas. Todos os membros têm de dar uma pequena contribuição anual e, em troca, é-lhes garantido o funeral, bem como um certo número de missas por ano depois da morte. Além disso, os membros têm o direito a levar o estandarte da confraria ou confrarias a que pertencem no funeral. De acordo com um aldeão, é uma vergonha não levar nenhum estandarte, prova de que não se era muito católico, coisa que as pessoas criticam e de que falam, «e ninguém quer ser criticado depois de morto».
128A documentação histórica sobre estas confrarias locais é escassa, e é impossível determinar com precisão quando surgiram algumas delas, mas com toda a certeza remontam aos começos do século XVIII e, por conseguinte existiram durante o período abrangido por este estudo. Embora o seu papel na vida religiosa da comunidade, em especial ligado à morte, deva ser sublinhado, o seu papel como instituições de crédito dentro da economia local é igualmente — se é que não é ainda mais — importante. Os registos de confrarias existentes demonstram que numerosos habitantes da freguesia pediram dinheiro emprestado, em geral ao juro de 5%, a estas confrarias, designando parcelas de terra como garantias e, por vezes, determinados indivíduos como fiadores. Por exemplo, numa nota de 17 de Fevereiro de 1876 no livro de registos da Confraria das Almas, consta que José Machado da Rocha, de Santa Eulália, devia à dita confraria a soma de 20$000, ao juro de 5%, nos termos de um contrato registado no notário Barreto de Viana do Castelo; como garantia, oferecia um campo arável, videiras e oliveiras adjacentes a sua casa e como fiador nomeava seu filho José. Ainda em 1975, um natural de Santa Eulália comprou uma casa e terra no Lugar da Feira (que transformou num café e numa estalagem) a uma viúva. Tanto a casa como a terra haviam sido hipotecadas à Confraria do Rosário, em Fevereiro de 1889, por 60$900, ao juro de 6%. Quando o comprador pagou a dívida, quase um século mais tarde, a fim de poder adquirir a terra, o montante em dívida elevara-se para mais de sete mil escudos.
129Estas dívidas passavam frequentemente de uma geração para outra e, em regra, os empréstimos eram registados em notários. Os registos notariais da vila de Santa Eulália, entre 1826 e 1835, e bem assim os das cidades de Ponte de Lima e Viana do Castelo, contêm numerosos exemplos desses contratos escritos de empréstimo. Em resumo, quando não existia qualquer forma de crédito rural apoiado pelo Estado, a Igreja, através das suas várias confrarias, desempenhava esse papel fundamental e, desse modo, participava — na realidade controlava parcialmente — na vida económica dos seus paroquianos.
130Além das contribuições para as confrarias e da acumulação dos juros, os fiéis pagavam ainda um dízimo anual. Esta contribuição específica ainda se mantém, obrigando os paroquianos, mais pelo medo da reprovação do que pela lei, a dar presentes anuais aos padres. Faz parte das celebrações anuais da Páscoa. Tradicionalmente, o padre e os mordomos (mais recentemente, o sacristão) visitavam todas as casas, sendo-lhes dado de comer e um copo de vinho para beber e ainda ovos e galinhas. Hoje, o padre distribui envelopes para que lhe seja remetido dinheiro, prática que alguns aldeões não apreciam. A natureza desta e de outras contribuições foi formalmente revelada num documento de 1 de Novembro de 1779, em que os habitantes da freguesia citavam os seus usos e costumes em relação aos seus deveres religiosos. Se é certo que, hoje em dia, o Estado recolhe uma certa percentagem da produção através dos impostos, o pároco da freguesia também o fazia no século XVIII e presumivelmente no XIX, no Portugal rural. Esse documento está integralmente reproduzido no Apêndice, e constitui um forte indício da posição vital da Igreja na vida da comunidade local.
131A intervenção da Igreja e, portanto, do padre, em pontos importantes do ciclo de vida individual e o seu papel na vida económica da família camponesa de Santa Eulália, eram complementados pelo papel que desempenhava na vida política da freguesia. O padre funcionava e continua a funcionar como uma ligação entre a freguesia e a nação, lendo circulares importantes na missa de domingo ou interpretando a legislação importante do governo, através do boletim paroquial. Antes I República, os padres participavam activamente no órgão político local, a Junta de Freguesia. De facto, o padre da freguesia, aquando da viragem do século, foi, a certa altura, presidente da Junta. Obviamente, esta posição política diminuiu entre 1910 e 1926, e a gente da freguesia insiste em que o seu «santo» chefe espiritual durante esse período nunca se meteu em política. No tempo de Salazar, foram criadas as Comissões Fabriqueiras, que integravam o pároco da freguesia e dois leigos. Embora fossem diferentes do órgão civil — a Junta —, essas comissões podiam ser tão poderosas como as autoridades do poder local, se a personalidade do padre o favorecesse. Além disso, mesmo só como membro ex officio da Junta da aldeia, o padre continuava a deter um enorme poder no que se referia às decisões da freguesia, sobretudo como um dos poucos indivíduos letrados disponíveis. À medida que aumentou o número de leigos instruídos e interessados na política, multiplicaram-se os conflitos com o padre pelo controlo da vida política da freguesia. Na realidade, esses conflitos tornaram-se mais significativos desde a revolução de 1974. Se Santa Eulália puder constituir um exemplo, e não obstante a separação entre a Igreja e o Estado que até Salazar defendeu, a Igreja, através do pároco, continua a intervir na vida civil e secular do Norte de Portugal. Por exemplo, quando a nova Casa do Povo construída pelo Estado em Santa Eulália, em 1978, foi inaugurada, as cerimónias comemorativas tiveram lugar a 15 de Agosto, um dos principais dias santos do calendário da Igreja Católica.
132Num estudo recente acerca da família e do casamento na Europa, Goody (1983:45) defende que a Igreja «se insinuou no próprio tecido da vida doméstica, da herança e do casamento... A religião infiltrou-se nas unidades básicas de produção e de reprodução. O mundo inteiro pecava e pagava por isso». No seu entender, a Igreja tinha de acumular bens para prover às necessidades dos devotos e daqueles que se tinham empenhado em realizar o seu trabalho. Acumular bens significava controlar a transmissão dos mesmos e controlar essa transmissão significava influenciar os modelos de casamento, fecundidade, legitimidade e ilegitimidade.50 Obviamente, o poder que a Igreja detinha nestes campos variava de acordo com a relação que mantinha com o Estado. E, como o próprio Goody nota, as «práticas das pessoas» divergiam com frequência da «ideologia da Igreja» (p. 185). Pecavam, mas pagavam pelos seus pecados.
133Na medida do possível, a convergência e divergência entre ideologia e prática no que se refere a casamento, fecundidade e ilegitimidade em Santa Eulália serão estudadas nos capítulos seguintes, a fim de se poder avaliar o papel da Igreja nos habitantes da freguesia ao longo de mais de dois ou três séculos e, portanto, do impacte da «religiosidade» no comportamento demográfico. Contudo, nessa análise haverá que ter presente que a Igreja propriamente dita ou, para ser mais preciso, os seus servos, também podem não ter praticado aquilo que pregavam. Também podem ter pecado, mas ao contrário do resto da população, sem pagar por isso, a não ser por ver a sua influência junto dos seus paroquianos, sobretudo do sexo masculino, diminuir. É impossível responder à pergunta sobre se os padres que estiveram à frente da freguesia de Santa Eulália desde 1700 inspiraram medo, piedade e obediência, ou cepticismo e independência, mas podemos pelo menos fazer a pergunta em relação a questões que, se Goody tiver razão, podem ter tido uma enorme importância para a Igreja. De facto, se levarmos a uma conclusão lógica em relação a Portugal aquilo que Goody diz, o contraste entre uma população composta fundamentalmente por jornaleiros pobres e sem terras no Sul, e uma população de camponeses proprietários de terras, ainda que em pequena escala, no Norte, pode explicar algumas das diferenças quanto à «religiosidade» destas duas regiões.
Notes de bas de page
1 Leal (1873, 4:93) cita o romano Tito Lívio: o cônsul Decio Junius Brutus queria atravessar o rio (o Lima), para lutar contra os habitantes da Galécia, cerca de 135 d. C. Ao ver que os soldados receavam atravessá-lo, arrancou a bandeira das águias da mão do porta-estandarte. Atravessou-o e do outro lado chamou cada um dos seus soldados pelo nome, a fim de provar que não perdera a memória. Isso serviu de estímulo para as legiões romanas. Ver relatos semelhantes em Padre Jeronymo Cortador de Argote (1732) e Denis (1846).
2 A ponte sobre o rio Lima, na cidade de Ponte de Lima, fazia parte de uma importante estrada militar que ligava a cidade de Braga à cidade de Tuy, na Galiza. Efectivamente, foram encontrados vestígios de assentamentos romanos em toda a região.
3 Para um estudo mais completo deste período da história de Portugal, ver Marques (1972).
4 Marques (1972:28) comenta que, mesmo neste tempo, o sistema fundiário de Trás-osMontes era diferente do do Minho. «Os aforamentos eram dados a pessoas que dividiam os trabalhos entre si, como entre os Romanos na cúria municipal, ou entre os Russos da comunidade de uma aldeia, no tempo dos czares.»
5 Marques refere que quarenta e três das setenta e quatro vilas novas e aldeias novas se situam no Norte, no distrito do Porto.
6 Ver Balbi (1822), para um dos primeiros estudos sobre a população de Portugal antes do século XIX.
7 Um couto era uma propriedade cujos limites eram estipulados por ordem do rei, em que os donatários administravam a justiça, recebiam rendas, foros e outros rendimentos, impondo inclusivamente impostos. Os colonos faziam pagamentos em produtos agrícolas, em pensões ou em serviços ao senhor. Balbi (1822) referiu-se a estes coutos como «incluindo vários lugarejos e pequenas populações que, em certas zonas, ainda gozam do direito a ter uma jurisdição especial para causas civis de pequena importância». Declarou que pertenciam a bispos ou frades, ao contrário das honras, que eram senhorios dados aos leigos pelo rei. Ver uma análise em Denis (1846). Os coutos foram oficialmente abolidos em 1790 (Leal 1873).
8 Em 1560, o mosteiro e as terras de lavoura foram unidos ao mosteiro de S. Domingos, e os monges dominicanos detiveram a sua posse até 1834, ano em que, tal como muitos outros de Portugal, o Convento de S. Salvador foi confiscado. As terras e os edifícios do mosteiro foram leiloados publicamente e adquiridos pelo Senhor Valadares de Valadares do Minho, um patriota que regressara do Brasil. A palavra portuguesa freguesia deriva por vezes do latim filiu gregis — filho da igreja —, constituindo uma prova da ligação religiosa, que já remonta ao tempo dos Romanos. Ver Oliveira (1950), para mais pormenores.
9 Contou-se o seguinte número de agregados familiares em cada uma das cinco províncias: Minho, 55 066; Trás-os-Montes, 35 616; Beira, 66 804; Estremadura, 65 178; Alentejo, 48 804; Total: 271 468. Balbi calculou que o número de agregados do Algarve (que na altura foi omitido) devia ser aproximadamente 18 532.
10 Esta posição era partilhada com os Rochas da aldeia vizinha.
11 Costa (1868) cita o Dr. Gonçalo Mendes de Brito, juiz da corte e superintendente do tabaco em Lisboa, e seu irmão, Francisco de Abreu Pereira, sargento-mor da comarca de Barcelos, como senhores de Santa Eulália, os quais partilhavam esse padroado com os Rochas, família de uma aldeia vizinha.
12 Na década de 1930, houve um incêndio na câmara municipal de Viana do Castelo, durante o qual foram destruídos muitos documentos.
13 As outras aldeias tinham 79, 87 e 122 agregados familiares.
14 Este cadastro foi dado a um monge do Mosteiro de Alcobaça, dezassete anos depois da trágica morte de Napoleão, durante a invasão napoleónica.
15 100 réis = 10 centavos = 1 tostão. Cem réis escreve-se 0$100, dez mil réis, 10$000.
16 No conjunto da comarca havia 39 964 homens, 49 249 mulheres (ratio de sexo de 81 homens para 100 mulheres), 17 461 rapazes e 17 523 raparigas, 1177 padres, 14 mosteiros com 315 monges, 5 conventos com 189 freiras, e 257 mercados. Vale a pena notar a diferença de quase 10 000 pessoas entre indivíduos do sexo masculino (presumivelmente com mais de 14 anos) e indivíduos do sexo feminino — mesmo nesta altura, anterior ao êxodo maciço para o Brasil, a emigração tinha impacte sobre a população masculina do distrito.
17 De facto, Costa (1789:v) defende que o declínio de Viana começou em meados do século XVIII, à medida que a cidade do Porto absorvia cada vez mais o seu comércio.
18 Ver o artigo de Francisco Cyrne de Castro sobre a cólera no distrito de Viana do Castelo (1952).
19 Ver Dias (1949), para um excelente estudo da geografia do Minho.
20 Ver, por exemplo, Freeman (1970). Sampaio (1923:480) refere que as pessoas do Minho são muito dotadas para encontrar fios de água subterrâneos e tirar partido deles, construindo aquedutos, quer debaixo quer por cima da terra. Ainda hoje, nos meses secos de Verão, há disputas em torno do uso da água canalizada para irrigação.
21 Propriedade de terras noutras aldeias é um resultado da exogamia e das práticas sucessórias da freguesia.
22 Silbert (1968:53) cita uma petição de conservação dos baldios apresentada no princípio da década de 1820 pela aldeia de Ancora, no concelho de Viana. Os seus habitantes diziam que, sem os baldios, não haveria mato, nem estrume, e sem este não haveria agricultura. «Pedimos — rezava a petição — que deixem os baldios como estão, sem muros nem sebes.» A discussão da questão dos baldios prosseguiu, por vezes em termos inflamados, ao longo do século XIX (ver Cabral 1974). Em 1904, os baldios de Santa Eulália foram, finalmente, divididos, e a cada agregado familiar foram atribuídas duas parcelas — uma, no sopé, e outra, na encosta da montanha. De acordo com um inquirido da freguesia, nessa altura, a maior parte dos habitantes era a favor da divisão. Os poucos que se opunham a ela eram os que tinham rebanhos de ovelhas ou se dedicavam a actividades ligadas ao abate de pinheiros.
23 Recentemente, em consequência da grande expansão no sector da construção civil, provocada pelos emigrantes em França, foram criados dois novos lugares, através da conversão de terras anteriormente destinadas à agricultura em zonas urbanizadas.
24 Muitas destas lojas e cafés são recentes, e constituem o resultado da nova prosperidade. Porém, as lojas de tecidos, as padarias e as tabernas faziam já antigamente parte da vida comercial da freguesia, na praça principal da mesma. A Casa do Povo é, fundamentalmente, uma instituição de crédito rural, que foi criada nos primeiros anos do Estado Novo de Salazar. O seu âmbito de acção aumentou durante o período pós-Salazar.
25 O conde de Aurora, que era um proprietário do vale do Lima, escreveu um livro intitulado Roteiro da Ribeira Lima (1929), que descreve muitos dos solares da aristocracia local. O termo fidalgo deriva das palavras filho e de algo.
26 Para um estudo do sistema de enfiteuse em Portugal, ver Carvalho (1814).
27 O incêndio que deflagrou na Câmara Municipal de Viana do Castelo, na década de 1930, destruiu todos os registos de propriedade anteriores a essa data. Em 1940, foram feitos novos registos relativos à propriedade de terras; são actualizados periodicamente.
28 Os Furtado Mendonça eram uma família que chegou à região vinda de Angola, no começo do século XVIII. Num testamento, com data de Outubro de 1812, o padre António da Rocha Franco, irmão de Maria Micaella, declarou que os bens que possuía faziam parte do vínculo de seu tio Francisco Alves Franco, e legou a maior parte a seu sobrinho Miguel, «herdeiro da Casa da Barrosa».
29 Um prazo é um contrato de aluguer de terras por um determinado período. Um alqueire é uma medida de capacidade, usada para líquidos e sólidos, variável ao longo do país. No Alto Minho equivale a cerca de 17,8 litros.
30 É fascinante tentar reconstruir a história deste prazo. Parece ter sido herdado pela avó de José Martins, Mariana Gonçalves, em 1742, por morte de seu marido, João Alves, um viúvo com quem casara em 1729 e residia em Casal Maior (e presumivelmente o rendeiro do prazo). Em 1742, o seu direito ao prazo parece ter sido contestado por um homem do concelho de Geraz de Lima, mas a decisão judicial foi-lhe favorável a ela. Provavelmente, quando Mariana faleceu em 1762, transmitiu o prazo à única filha viva que deixara, Ana, que, em 1773, casou com Bento Martins. Ana morreu em 1783, e é de crer que transmitiu o prazo ao filho mais velho, José. Quando José faleceu (casou em 1803, com 29 anos) deixou-o a seu irmão João, pois não tinha filhos. Este irmão tinha casado com uma rapariga de outra freguesia, mas vivia em Santa Eulália.
31 Os testadores não tinham filhos e, dois anos depois de Isabel ter falecido, João Franco de Castro voltou a casar. Morreu em 1854 e parece não ter registado um novo testamento. A herdeira, Isabel, nascida em 1825 (o seu parentesco com os testadores não é claro) é uma das várias filhas do casal formado por José Correia e Luísa da Costa, casou, em 1851, com um homem de uma aldeia do outro lado do rio Lima. Parece ter saído de Santa Eulália.
32 Francisca casou, seis meses depois da morte de Manuel Morais, com a idade de vinte e cinco anos. Não é claro se permaneceu o não com Luísa Gonçalves, mas continuou a viver na freguesia.
33 As mortes em Espanha não eram raras e eram, em geral, registadas no livro de óbitos da freguesia, presumivelmente com base em informação transmitida ao pároco. Nos Livros dos Testamentos, há dois que parecem ter sido feitos por homens ainda novos falecidos em Espanha; um tem data de 1753 e o outro, de 1762. O primeiro testador, José, com vinte e três anos de idade, filho de Silvestre de Lobatos, declarou que estava «na cidade de Cordova no reino de Espanha, doente de cama, e na companhia e entregue aos cuidados de amigos». Deixou a parte que lhe cabia da casa dos pais a seu irmão João. O assunto voltará a ser analisado no Capítulo III.
34 Em Fevereiro de 1835, dez meses antes do casamento de sua filha Luísa com José António Rodrigues (José Alexandre), Isabel Francisca de Castro registou no notário Francisco José Mesquito Rego de Santa Eulália a concessão de um dote à filha. Presumivelmente, queria de certo modo legitimar o direito da filha aos seus bens. O texto a que se refere esta nota é revelador, pelo que se cita parcialmente: «Disseram que ela (Isabel Francisca de Castro), que se encontrava no terceiro estado (viuvez), tinha essa dita filha (Luísa Francisca de Castro), que criara sob a sua tutela, que pôs a servir como criada em diferentes casas, até que, quando tinha dezasseis anos, ficou ao serviço de José da Caridade de Vila Franca; ali esteve durante quatro anos e, então, como a doadora precisava de que filha vivesse com ela e a servisse, foi obrigada a apresentar o caso em tribunal, a fim de que a filha fosse dispensada de trabalhar para José da Caridade. A mãe ganhou o caso e a filha foi-lhe confiada, na condição de pagar os salários (0$500) que devia à filha e bem assim o custo de um fato (0$300); esses salários nunca foram pagos até à data, com excepção de algumas peças de vestuário necessárias; e como esta filha está agora noiva e a mãe está contente com isso, é obrigada a pagar esses salários. Além disso, a mãe reconhece o direito da filha à sua herança legítima, a qual inclui a casa em Sobral e os campos em Trogal (hipotecados a Santo António de Meixedo e a Santo António de Santa Eulália por 23$000) e Ponte de Linhares, na condição de a filha cuidar dela até ela morrer; por esses cuidados, receberá um salário. A mãe declara que é senhora e administradora do que é seu até morrer. A mãe reconhece que tudo o que a filha e o marido desta comprarem será deles, pois não formaram qualquer sociedade, acontecendo apenas que a filha e o marido desta são como seus criados.»
35 Para um estudo acerca da maneira como a terra é dividida consoante a sua natureza e valor, nas aldeias das montanhas suíças, ver Weinberg (1972).
36 Este casal tinha ainda mais três filhos vivos: um filho, Bento, nascido em 1783 e casado em 1811; e uma filha, Rosa, nascida em 1785 e casada em 1811; e um filho José, nascido em 1804, cujo destino se desconhece. A herdeira, Ana, morreu, solteira, em 1860, com a idade de sessenta e um anos.
37 Para este estudo, foram apenas consultados os registos notariais que se referiam a Santa Eulália quando foi uma vila (entre 1790 e 1835). Para mais pormenores, ver o Apêndice I.
38 Lison-Tolosana (1976) descreve um sistema semelhante de herança no interior da Galiza espanhola. De facto, só nesta província de Espanha, ele observa três modelos de herança muito diferentes, que correspondem a três tipos de família. Para um estudo da herança no Nordeste de Portugal, ver também O’Neill (1983, 1984).
39 Ezequiel de Campos (1943) apontou a acumulação de muitas terras nas mãos das corporações religiosas como um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento do sector agrícola na história de Portugal.
40 Vários adágios populares simbolizam essas diferenças regionais entre o Norte e o Sul de Portugal: «O Minhoto é submisso aos padres; o Alentejano é orgulhoso e independente»; «O Minhoto é religioso por tradição, o Alentejano, por convicção». Para mais adágios, ver Sanchis (1976).
41 Riegelhaupt (1981) levou a cabo uma investigação profunda acerca do movimento da Maria da Fonte. Ver também Pinto (1979).
42 Para um estudo estatístico contemporâneo das variações regionais de comportamento religioso, ver Franca (1980).
43 Na análise estatística de 1861, de Cândido Furtado Coelho, são mencionados os quatro conventos mais importantes do distrito de Viana do Castelo. Além disso, estima que havia um padre por cada 178 leigos.
44 O viajante inglês William Young teceu um comentário semelhante: «Mas têm de permitir que expresse a minha plena convicção de que não pode haver qualquer garantia acerca da honra ou pureza feminina numa sociedade onde, sob a máscara de deveres religiosos, as mulheres de todas as classes estão sujeitas à contaminação de homens como os que constituem a grande maioria do clero português» (Young 1828:4). Ver também Pardoe (1832:ii:327).
45 Almeida (1921) cita uma circular semelhante de um século antes distribuída pelo bispo Morato.
46 Os estudiosos da Igreja em Portugal tentaram com frequência dividir os padres em vários tipos. Ortigão (1887), por exemplo, distinguia os padres das missões, dos padres d’aldeia e dos padres da sala. Subdividia os padres das missões em aventureiros que iam para África ou para o Brasil, por gostarem da vida de emigrante, em busca de recompensas materiais ou para se envolverem nas intrigas da política colonial; e os místicos, um tipo mais raro, que se consideravam mártires. Descrevia o padre da aldeia como sendo «geralmente uma óptima pessoa»; «Nos dias ordinários engrola a missa das almas ao romper do dia n’um latim abreviado, mastigado a pressa, e vãe podar as cepas, sachar o cebolo, enxertar os limoeiros ou caçar as perdizes, palmilhando o monte, saltando vallados, e regressando a casa ao toque das Ave-marias com os perdigueiros adeante, a espingarda na bandoleira; dando as boas noites para a direita e para a esquerda ao atravessar a aldeia; bateando no hombro aos homens, beliscando na cara as raparigas com a boa jovialidade carnal do seu velho confrade de Meudon o reverendo Rabelais.» (Ortigão 1825:24). Por outro lado, o terceiro tipo fazia parte da mise en scène do salão aristocrático da cidade portuguesa, «um criado assexuado» que se envolvia nas vidas e actividades das classes superiores.
Mais recentemente, Pina-Cabral (1981) distinguiu o «padre moderno» do «padre antigo» e do «padre bruxo» e reconheceu que, actualmente, a maioria dos padres pertence à primeira categoria. Estes são padres que não usam batina diariamente e que, em regra, ensinam numa escola secundária, além de celebrar missa e estar ao serviço de uma freguesia. Na sua maior parte, são contra as festas tradicionais e as crenças superticiosas. Vivem em casas modernas e andam de automóvel.
47 Fortunato de Almeida, na sua monumental história da igreja portuguesa (1921) referese também a escândalos ligados ao facto de haver padres que viviam com os filhos.
48 Participei na festa da santa padroeira em Dezembro de 1975. Na altura, o novo coro da freguesia, que o meu marido e eu havíamos organizado, cantou um hino à Virgem Maria da varanda da igreja, ao passar a procissão. Era um hino muito belo, que tínhamos ensinado ao coro havia pouco e que as pessoas da freguesia nunca tinham ouvido. A palavra mãe era repetida muitas vezes, ao invocar a Virgem e pedir-lhe que viesse em auxílio dos fiéis. Muitos deles começaram a chorar naquela que foi uma das cerimónias religiosas mais comoventes a que já assisti. A Virgem Maria, a maternidade e a santa padroeira da freguesia eram reunidas de uma maneira que tinha obviamente um significado muito emocional para aqueles que assistiam à missa naquela tarde. É impossível falar da ausência de fé religiosa, depois de ter observado as reacções a esse hino.
49 Para um estudo mais completo da festa do Senhor do Cruzeiro em Santa Eulália, ver Brettell (1983).
50 Como referimos no final da secção anterior deste capítulo, embora os testamentos indiquem claramente que, às portas da morte, a salvação da alma era da maior importância para os testadores (daí os pedidos de várias missas, a diversos preços), apenas num caso é que foram transmitidos à Igreja bens por esse meio. Contudo, é evidente que a Igreja já possuía vastas propriedades (confiscadas e devolvidas em vários momentos da história) que eram cultivadas por camponeses que pagavam uma renda anual. E também obtinha riqueza das suas congregações de muitas outras maneiras.
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