Introdução
p. 17-30
Texte intégral
Ao analisarmos os registos paroquiais, listas de habitantes e documentos similares, podemos investigar as vidas das pessoas comuns de outros tempos... Quando os registos necessários foram preservados, é possível chegar-se às origens da sociedade, quase como um antropólogo social procura conhecer uma sociedade contemporânea ouvindo os seus membros falar acerca dos grandes acontecimentos das suas vidas e dos conjuntos de atitudes sociais, costumes e sanções que se relacionam com eles. (Anthony Wrigley 1969:12.)
Examinar minuciosamente arquivos, documentos ou censos significa dar a si próprio os meios para reflectir sobre a realidade do passado e o significado de uma tradição. (Marc Augé 1982:103).
1Durante a última ou as duas últimas décadas, tem havido tentativas significativas da parte da comunidade de estudiosos de ultrapassar as fronteiras entre as várias disciplinas, de partilhar metodologias e conhecimentos teóricos e de, ao mesmo tempo, pôr novas questões e criar vias de investigação inteiramente novas. Um dos intercâmbios mais frutuosos verificados deu-se entre as disciplinas de História e Antropologia (Kertzer 1984a). A um nível, o intercâmbio foi simultaneamente essencial e específico. Como Stone (1982) refere, os antropólogos têm feito perguntas acerca de estruturas de parentesco, regras de residência, perguntas que são de interesse vital para uma nova geração de historiadores da família e da sociedade. A formulação de certos princípios gerais acerca da «natureza do homem» ou da «natureza da vida social» com base num estudo intensivo da dinâmica da vida numa comunidade local tem uma tradição igualmente longa em antropologia. Em meios ligados à história, é um fenómeno mais recente. Aquilo a que Stone chama «história total» não é senão o que os antropólogos há muito designaram por «holismo»1.
2De uma perspectiva alternativa, a história contribuiu para que a análise antropológica se afastasse da abordagem estrutural-funcional, estática e sincrónica, que prevalecia nesta disciplina em meados do século XX. Em certa medida, o afastamento foi maior entre os antropólogos cujos trabalhos se debruçam sobre as culturas ocidentais, nas quais nos são acessíveis os registos escritos, pois foi a ausência destes registos que levou o grande etnógrafo da Melanésia, Malinowski, a concluir que só se poderia encontrar uma explicação das origens culturais nas funções recorrentes das práticas culturais ou das instituições sociais. E talvez o mais importante ainda, sobretudo se se aceitar uma abordagem mais dinâmica da matéria, seja a alternativa que a história proporciona àquilo que é, essencialmente, um visão extremamente «presentista» das forças de mudança social.2 Por exemplo, pode vir a descobrir-se que fenómenos que têm sido atribuídos à urbanização, modernização ou desenvolvimento industrial são muito mais profundos do ponto de vista histórico. A história possibilita que o antropólogo se interrogue, de uma maneira mais elaborada e menos empírica, sobre se, quando e por que é que a mudança se deu. Permite-lhe, como Marc Augé (1982:103) afirmou, «pensar acerca da realidade do passado e do significado de uma tradição». Se a antropologia propicia as comparações através do espaço, a história propicia as comparações ao longo do tempo (Thomas, 1963).
3A um outro nível, as contribuições inter-disciplinares entre a história e a antropologia têm sido de um carácter mais geral ou abstracto. Quando o historiador procura perceber as provas documentais do passado através dos olhos de quem legou essas provas, a sua tarefa em pouco difere da do antropólogo que tenta compreender uma sociedade ou uma cultura a partir das suas coordenadas, através dos olhos de um participante desta cultura. Quando o objectivo do antropólogo é distinguir o que as pessoas dizem que deveriam fazer daquilo que efectivamente fazem, o seu trabalho é muito semelhante ao do historiador que procura distinguir a ideologia, ou ideal do passado histórico, do comportamento nesse passado.3 Ambas as disciplinas se debruçam sobre o contraste potencial entre a interpretação de um participante nos acontecimentos e a de uma pessoa exterior aos mesmos ou um observador. Ambas estão, ou deveriam estar, igualmente atentas à importante diferença entre as regras, impostas quer pela lei quer pelo costume, e a transgressão das mesmas. Talvez a vantagem que o antropólogo tem sobre o seu colega historiador consista em que pode muitas vezes deduzir ou observar ambos os tipos de informação, enquanto o historiador é amiúde obrigado a especular apenas sobre uma com base na outra, tal como parece ou está descrita nos registos escritos. Contudo, nem sempre é assim, e é, indubitavelmente, verdade que, quando sujeito a prova histórica ou mesmo a prova mais rigorosa e quantificável, aquilo que foi interpretado por alguns antropólogos como regras já existentes há muito tempo, relativas ao comportamento ou à selecção de indivíduos numa sociedade, se revela como um conjunto de expressões de um ideal que não se manifesta na prática.
4Num sentido mais lato, estes são alguns dos princípios em que assenta este estudo da mudança demográfica e da história da família numa freguesia do Noroeste de Portugal, durante os séculos XVIII e XIX e primeira metade do século XX, um estudo que associa a análise de dados quantitativos extraídos dos registos paroquiais e outros documentos históricos a elementos de ordem qualitativa que recolhi no campo, como etnógrafa, registando não só as recordações de indivíduos participantes numa sociedade mas também as minhas próprias reflexões acerca dessa sociedade. Ao contrário dos modernos historiadores de comunidades, que escolhem frequentemente o objectivo do seu estudo com base na qualidade dos documentos históricos à sua disposição, no meu caso foi a curiosidade acerca do passado histórico de uma aldeia onde trabalhara anteriormente como antropóloga, e acerca do significado de certas tradições demográficas e culturais que faziam parte da vida contemporânea, que motivou a minha incursão pelos registos históricos.
5Parti do princípio de que não só os dados históricos poderiam dar um passado ao presente etnográfico como as observações feitas no campo poderiam ser utilizadas para estudar mais de perto algumas das conclusões extraídas de estudos demográficos estritamente históricos, ou, pelo menos, poderiam proporcionar um contexto no qual reunir e compreender melhor as fontes escritas.4 Por um lado, tive a sorte de descobrir que essa freguesia dispunha de um conjunto muito completo de registos fundamentais que remontavam aos finais do século XVI.5 Por outro, o conhecimento do seu passado revelado pelos próprios aldeões contribuiu extraordinariamente para uma melhor compreensão dos padrões que emergiram da análise dos registos históricos. A relação entre estes dois tipos de dados, os etnográficos e os documentais, está patente nas semelhanças entre o método fundamental do demógrafo histórico — reconstituição de famílias — e o de pelo menos alguns etnógrafos — a recolha de genealogias e de histórias orais.6
6Se a complementaridade e compatibilidade entre os métodos de investigação dão uma explicação para o estudo em que este livro se baseia, uma outra reside no interesse em certas questões que achei que poderiam ser melhor abordadas por meio de uma análise intensiva da história da população de uma comunidade local. Essas questões inserem-se basicamente em três áreas, uma relacionada com a chamada transição demográfica (passagem de uma fertilidade alta para uma baixa), que será retomada no Capítulo IV, a segunda com a emigração, e a terceira com os papéis desempenhados pelas mulheres. Não se trata de áreas que se excluam. De facto, o objectivo subjacente a este livro é investigar a relação entre a emigração e um conjunto de outros fenómenos demográficos (incluindo a fecundidade) num contexto local e, assim, estudar a relação entre os modelos de população e os papéis sexuais. Recentemente, Ross e Rapp chamaram a nossa atenção para as maneiras como a antropologia e a história se podem associar para descrever a inserção social da sexualidade individual. «As relações sociais», dizem eles, «que parecem periféricas às práticas sexuais individuais podem, na realidade, afectá-las profundamente através de forças sociais intervenientes» (1981:54). Embora a ideia não seja necessariamente nova,7 merece ser melhor analisada, e certas regiões do Noroeste de Portugal, nas quais a emigração tem sido uma constante da maneira de viver há vários séculos, proporcionam-nos uma excelente oportunidade para o fazermos. É certamente correcto dizer que a emigração faz parte do ethos cultural de Portugal. A sua importância na literatura (Brettell, 1979, Cesar, 1979) é um reflexo da sua importância na vida portuguesa.
7Como sociólogos e antropólogos da vida moderna, estamos habituados a encarar a emigração, em especial a do campo, como uma solução para os problemas do desemprego e do subemprego, da densidade populacional e das grandes famílias. Estamos também acostumados a considera-la um fenómeno recente, a consequência da urbanização e da industrialização, isto é, dos factores catalizadores associados às transformações socioeconómicas contemporâneas. Até ao aparecimento do importante estudo de Olwen Hufton sobre os pobres do século XVIII em França (1974), os historiadores eram, talvez, igualmente culpados por esboçarem uma imagem de uma sociedade rural imóvel anterior à grande era da industrialização e do desenvolvimento urbano. Porém, o que Hufton descreve no século XVIII é uma «economia de expedientes» a nível rural, em que «os rendimentos dos emigrantes, tal como as remessas essenciais para os camponeses da Irlanda e do Sul de Itália dos nossos dias, apoiavam a débil economia regional» (1974:69).8 Em seguida, apresenta os diversos tipos de emigração (sazonal, temporária, permanente) e sustenta que são os factores culturais e socioeconómicos a nível local que influenciam a forma predominante adoptada pela corrente migratória. Por sua vez, é possível afirmar que estes tipos variáveis de migração, cada um dos quais tem as suas próprias motivações, podem ter efeitos muito diferentes na vida social, económica e demográfica da comunidade rural local. De facto, há uma tendência para olhar para a migração como uma variável dependente, como o resultado de diversas formas de sistema fundiário e costumes sucessórios ou de diferentes sistemas de parentesco e de organização de agregados familiares. Todavia, é também uma variável independente — ao mesmo tempo, causa e efeito.
8Tanto a continuidade e variedade de tipos específicos de emigração como o seu significado para uma economia local ou regional são importantes em qualquer estudo da história demográfica do Noroeste de Portugal; o mesmo se pode dizer do seu duplo carácter de simultaneamente causa e efeito de diversas formas de comportamento demográfico e social. Num tal contexto, são várias as questões que se podem pôr. A elevada emigração do Noroeste de Portugal será uma manifestação de procura de fontes alternativas de rendimentos, uma solução de recurso para os filhos de famílias numerosas? A pressão populacional abrandava mais por meio da emigração do que graças à limitação do número de filhos? Por outro lado, não é possível que a resistência ao controlo da fertilidade por qualquer outra razão (por exemplo, a religião) tornasse a emigração necessária, ou que os espíritos mais «modernos» ou ambiciosos emigrassem, permitindo assim a preservação de normas ou preferência por uma fertilidade elevada na sua terra natal? Há ainda que definir de uma vez para sempre nos meios sociológicos e antropológicos e, por conseguinte, nos círculos ligados à história, se a emigração é uma força conservadora ou um estímulo para a mudança social e em que circunstâncias é uma coisa ou outra, ou ambas, ou muda de carácter.9
9A questão de saber se considerar a migração como o resultado de uma resposta de adaptação à pressão populacional ou como um fenómeno provocado por outros factores (mas que tem a consequência útil de ser um meio eficaz de controlo da população) conduz directamente ao conceito da homeostase, um conceito essencial no actual debate teórico nos campos da demografia e da demografia histórica.10 Aplicada ao comportamento demográfico, a tese sustenta que as sociedades se esforçam por manter um equilíbrio populacional e que utilizam uma série de fenómenos (fecundidade, migração, idade no casamento, celibato permanente) como mecanismos reguladores destinados a manter a população a um dado nível. Obviamente, a origem deste conceito encontra-se em Malthus e, no pensamento moderno, está no âmago do modelo de transição demográfica.
10Um dos enunciados clássicos da homeostase está contido na palestra feita por Kingsley Davis, em 1963, à Associação de População da América, publicada no Population Index, nesse mesmo ano. Davis expõe uma «Teoria de Mudança e Resposta do Comportamento Demográfico», sustentando que, quando a pressão da população é grande, as sociedades respondem de uma forma «multifásica», a fim de atenuar essa pressão. Assim, após um período de mortalidade decrescente e constante crescimento natural, os Japoneses responderam não só aumentando a taxa de abortos, mas também por meio do adiamento do casamento, de programas de esterilização e contracepção, e da emigração. O mesmo se pode dizer acerca da maior parte da Europa ocidental. Friedlander (1969:359-360) levou a tese mais longe, especialmente no que se refere à migração como resposta reguladora. Sugere que «o ajustamento no comportamento reprodutivo em resposta ao agravamento de uma “tensão”... pode variar consoante a facilidade com que a comunidade é capaz de aliviar essa “tensão” por meio da emigração». Nas observações finais, Friedlander apela para uma análise aturada das circunstâncias precisas que levam as pessoas a utilizar várias respostas demográficas ou combinações de respostas demográficas».11 Daniel Scott Smith insistiu nesse ponto de vista, defendendo que, embora o modelo homeostático pareça funcionar teoricamente, se deveria sublinhar o carácter da homeostase como «um modelo empírico universal cujas causas requerem uma explicação» (1977:38). Em seguida, aponta a diferença entre normas sociais e actos individuais, e afirma que se deveria prestar mais atenção a estes últimos.
11Esta polaridade e interdependência simultâneas entre o indivíduo (ou a família) e o grupo (ou a sociedade) tem preocupado tantos os historiadores como os estudiosos das ciências sociais. São uma preocupação perfeitamente compreensível de qualquer estudo da mudança social, porque, em última análise, são os indivíduos que, ao tomarem as suas decisões particulares para alterar um costume já muito antigo, provocam colectivamente uma transição na estrutura da sociedade ou da cultura como um todo. Num estudo clássico da mudança social, Daniel Lerner explicou precisamente isso: «O grande drama da transição da sociedade verifica-se através de indivíduos empenhados em solucionar os seus problemas pessoais e em viver as suas próprias vidas» (1958:74).12
12O facto de a relação entre o indivíduo e o grupo ser igualmente importante para a actual história demográfica e social está bem patente no artigo básico de Wrigley acerca das estratégias de grupo e individuais da formação da família. Põe o problema em termos da diferença entre racionalidade consciente e inconsciente: «Os actos dos homens foram sempre influenciados pela sua avaliação dos seus interesses pessoais e pelas suas respostas às normas sociais, (e) é interessante estudar estratégias de formação de família como se os casais se comportassem de acordo com estes estereótipos de pensamento e acção» (1978:152). A essência do problema consiste em apurar quais as características que levam os indivíduos ou as famílias, ao tomar decisões sobre as suas vidas pessoais, a escolher as linhas de acção separadas que se conjugam para formar o comportamento colectivo e produzir um modelo de comportamento, uma resposta homeostática. Inversamente, o que é que os padrões que se revelam a um nível colectivo nos dizem — se é que dizem alguma coisa — acerca das motivações individuais? Em que medida são os historiadores demográficos culpados da chamada «falácia ecológica» quando atribuem decisões racionais e premeditadas a indivíduos, com base nas relações significativas que captam entre variáveis, em relação a uma comunidade ou sociedade como um todo? O salto quantitativo de um nível de análise para o outro é problemático, e reflecte preocupações sociológicas é antropológicas mais amplas acerca da localização de normas ou da «cultura». Na realidade, em nada beneficia o saber considerar a cultura a fonte de regras e regulamentos obrigatórios. Pelo contrário, a cultura define um contínuo ao longo do qual se encontra uma série de acções ou escolhas aceitáveis que podem ser levadas a cabo por indivíduos com vista a alcançarem os seus próprios objectivos. Resumindo, a ligação da manifestação de um determinado comportamento a uma motivação específica deve ser estabelecida com o maior cuidado e com plena consciência de todas as alternativas que são possíveis num contexto cultural determinado. Isto transporta-nos de novo à relação entre as disciplinas de História e Antropologia, e em especial à maneira como Silverman (1976) definiu a sua intersecção. Segundo ela, a análise histórica revela as coacções sociais que influenciam as decisões, enquanto as entrevistas antropológicas revelam as escolhas efectivamente feitas.
13Antes de passarmos ao estudo dos pontos fundamentais deste livro, deveríamos dizer algo mais sobre o problema dos papéis sexuais. Mais uma vez somos confrontados com uma curiosa contradição entre ideologia ou normas de comportamento e comportamento real. É evidente que a dominação masculina faz tanto parte da cultura portuguesa como das outras culturas mediterrânicas, e, no entanto, no Noroeste de Portugal também se encontra um elemento de, digamos, na falta de uma palavra melhor, «matricentralidade». Manter-se virgem até ao casamento é um valor expresso e, contudo, a ilegitimidade nesta região não tem sido de modo algum um fenómeno raro. Em certo sentido, estas contradições reflectem as diferenças entre aparências e realidade já descritas relativamente a outras sociedades mediterrânicas (Friedl 1967). Tal como Gilmore (1982:180) diz, «a visão da mulher [em todo o Mediterrâneo] é já em si dualista: é, ao mesmo tempo, Virgem Maria e prostituta». Embora esta contradição seja de facto, complexa, os fenómenos de elevada ilegitimidade e matricentralidade, num certo sentido, separam Portugal, ou pelo menos o Noroeste de Portugal, dos seus vizinhos mediterrânicos, ainda que sejam partilhados pela região vizinha e, portanto, cultural e geograficamente semelhante da Galiza espanhola. Em ambas estas zonas, diria eu, a emigração, como um elemento integrante da história das suas populações, teve um impacte decisivo. Para compreender a demografia das mulheres nestas regiões e o modelo dos papéis dos sexos em geral, é fundamental estudar os modelos de migração. Ainda que esta afirmação não constitua de modo algum uma novidade, merece que nos debrucemos sobre ela, e é isso que me proponho fazer quando passar ao estudo do casamento, fecundidade e ilegitimidade numa freguesia do Noroeste de Portugal, desde 1700 até agora.
14Tal como acontece com todos os trabalhos de investigação, o âmbito deste projecto foi alterado e ampliado à medida que avançava. Dado o meu interesse em conjugar dados qualitativos extraídos de trabalho etnográfico no campo e histórias orais com dados quantitativos baseados numa análise dos registos paroquiais e material censitário, o estudo começou por se debruçar sobre os finais do século XIX e o século XX. Foi escolhido como data inicial o ano de 1860, em primeiro lugar porque, nesse ano, os padres introduziram notáveis aperfeiçoamentos no registo de nascimentos, óbitos e casamentos, e, em segundo, porque o primeiro censo nacional de Portugal foi efectuado em 1864. Além disso, talvez se pudesse fazer recuar até à década de 1870 ou 1880 a memória oral que fundamenta os dados quantificáveis. Todavia, assim que se revelaram certos modelos ou tendências, a minha curiosidade em descobrir as origens desses modelos, ou pelo menos de ver até quando era possível recuar no tempo e encontrá-los, sentiu-se estimulada. Por conseguinte, acrescentei mais um século e meio à minha análise dos registos paroquiais e, portanto, pude incluir material retirado de fontes documentais anteriores a 1860. Naturalmente, este processo de investigação «arqueológica» dos registos paroquiais poderia continuar ad infinitum, até onde os próprios documentos chegassem. No entanto, optei pelo período de dois séculos e meio, desde o começo do século XVIII até meados do XX, por razões de carácter histórico.
15O século XVIII foi a última grande era de prosperidade portuguesa e de supremacia a nível internacional. Em 1687, tinha sido descoberto ouro na grande colónia do Brasil, um tesouro que garantia à pequena mãe-pátria uma fonte segura de rendimentos para pagar as importações, incluindo as de cereais, necessárias para uma economia interna estagnada. Em 1703, um tratado entre Portugal e a Inglaterra, dava a este país preferência relativamente à exportação de vinhos e, ao mesmo tempo, eliminava as restrições à importação de produtos ingleses. A estreita ligação, quase dependência, tanto ao Brasil como a Inglaterra iria continuar a ser significativa, se é que não, em última análise, prejudicial para a subsequente história económica de Portugal.
16O rei D. João V (1706-1750) dirigiu firmemente o país à frente de um governo altamente centralizador, quase até ao fim da vida. Após a sua morte, ocorrida em 1750, as rédeas do Governo foram postas nas mãos de Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde Marquês de Pombal, pelo novo rei, D. José I (1750-1777). Quando este subiu ao trono, Portugal quase não possuía indústria, e o sector agrícola estava num caos. Pombal, governando praticamente como ditador absoluto, regulamentou os mercados ligados ao comércio do vinho, expulsou os Jesuítas, reformulou os impostos, limitou as ambições da nobreza e do clero e introduziu um período de bem-estar económico sob controlo do Estado. Com a morte de D. José I e a demissão de Pombal, a chefia do país coube à devota D. Maria I, que viria a enlouquecer. Contudo, foram abolidas inúmeras restrições impostas por Pombal e uma classe mercantil em ascensão crescente conduziu o país até ao século XIX, num ambiente de continuada prosperidade e deixando intacta uma grande parte do seu Velho Regime.
17Todavia, os Ingleses assumiam cada vez mais o controlo das empresas comerciais, e a balança comercial tornou-se mais desfavorável. A dominação económica da Inglaterra levou Napoleão a enviar tropas francesas a fim de «libertar» o país e, em 1816, a corte fugiu para o Brasil; do exílio continuava a governar, sob a protecção britânica. O Velho Regime desmoronara-se e seguiu-se-lhe um século de instabilidade política e fragilidade económica. Em 1822, o rei D. João VI aceitou a posição de monarca constitucional de Portugal e regressou do Brasil. Este, entretanto governado pelo seu herdeiro, o infante D. Pedro, declarou a independência, facto que representou um duro golpe para a mãe-pátria, que levou muito tempo a recompor-se.
18A fraqueza da monarquia portuguesa e a perda do Brasil dividiam o país em duas facções — os liberais e radicais anti-clericais, que apoiavam a revolução política continuada, e os monárquicos tradicionais, que defendiam um regresso ao absolutismo. As décadas de meados do século caracterizaram-se por lutas acesas entre essas duas facções, cada uma das quais tinha um candidato a herdeiro ao trono. Os liberais acabaram por alcançar o poder e governaram o país durante a maior parte do resto do século. A economia continuou a depender fortemente da reexportação dos produtos coloniais e manteve-se a estagnação da produção agrícola interna. A dívida nacional cresceu e, nos alvores do século XX, Portugal era um país pobre e atrasado, pouco restando já dos seus tempos de esplendor político e económico.
19Embora a população aumentasse extraordinariamente durante a última metade do século XIX, o crescimento foi praticamente contrabalançado pela emigração maciça mais significativa da história do país, um movimento sem paralelo até à emigração para França depois de 1960. As causas e carácter dessa emigração para o Brasil, nos finais do século XIX, são analisados com mais pormenor num capítulo posterior, mas é importante sublinhar que as populações rurais do Noroeste de Portugal que trabalhavam no campo tinham já começado a emigrar para o Brasil durante o século XVIII.
20Em 1914, a emigração para o Brasil abrandara e Portugal conhecia, pela primeira vez na sua história, um governo republicano. Todavia, ao fim de quinze anos, sete presidentes e dezoito golpes militares, o regime parlamentar caía, e a chefia do país foi entregue a um governo militar e, finalmente, em 1933, ao Estado Novo autoritário, à frente do qual se encontrava o Dr. António de Oliveira Salazar. A Igreja Católica, que sofrera enormes reveses durante a I República anti-clerical, voltou gradualmente a ocupar a sua posição dominante na vida social portuguesa. A dívida nacional diminuiu sob a acção da política de austeridade de Salazar: o fardo dessa austeridade caiu sobretudo sobre os ombros da classe trabalhadora urbana e dos trabalhadores rurais. O nível de vida melhorou em algumas zonas, mas noutras, em especial no Norte e no interior do país, o modo de vida tradicional pouco mudou. Só após a II Guerra Mundial, e principalmente depois de 1960, com os melhoramentos introduzidos na educação e com a prosperidade provocada pelos francos franceses enviados para Portugal sob a forma de remessas dos emigrantes, é que a vida começou a mudar; só então algumas partes do Portugal rural entraram realmente no século XX. Em resumo, apesar das mudanças quanto às formas de governo ocorridas ao longo de mais de duzentos anos — do Velho Regime para a Monarquia Constitucional, desta para a República e daí para a ditadura de direita —, a maioria da população portuguesa de 1950 enfrentava os problemas da vida de uma maneira muito semelhante à dos seus antepassados em 1750. Este facto ajuda a explicar o sistema social e demográfico de que este livro trata.
21A freguesia de Santa Eulália13, que constitui o objecto deste estudo, fica no centro do Noroeste de Portugal, que foi a região que conheceu uma emigração mais elevada desde os finais do século XVIII. Hoje, é aquilo que se poderia chamar uma freguesia moderna, mas a modernização só chegou em décadas recentes e, de momento, a freguesia é uma curiosa amálgama de passado e presente. Situada apenas a catorze quilómetros do mar, não é especialmente isolada, mas foi só no final do século XIX, com os melhoramentos das estradas nacionais, que o movimento para e da freguesia e em especial para a costa se tornou mais fácil. Hoje, é uma freguesia bastante grande, com uma população que ronda as duas mil almas. Um século atrás, a população era apenas metade disso. Nos começos do século XIX, Santa Eulália tinha o estatuto administrativo de vila, sede do concelho de Santa Eulália, que abrangia várias freguesias limítrofes. Detinha, portanto, uma posição fundamental na região e talvez seja por isso que os registos paroquiais sobreviveram de uma forma tão completa até aos nossos dias.
22Embora hesite, como aliás faria qualquer antropólogo, em chamar a Santa Eulália uma «comunidade portuguesa típica», a sua história demográfica não pode, no meu entender, deixar de ser considerada característica da região, e é, com certeza, um local adequado para um estudo das relações entre papéis sexuais, emigração e outros fenómenos de população. De facto, foram emigrantes de Santa Eulália que haviam participado no êxodo para França que me puseram em contacto com a sua terra natal e, num certo sentido, estavam apenas a continuar uma tradição iniciada pelos seus antepassados uns séculos antes. Sempre que possível, tentei explicar o que pode tornar Santa Eulália diferente das comunidades vizinhas mais próximas e das distantes, e situar a sua história demográfica num contexto regional mais amplo. Ainda que, teoricamente, um estudo regional das questões abordadas neste livro pudesse acalmar os receios dos que têm reservas quanto a mais um estudo sobre uma comunidade (embora certamente não se possa falar de «mais um estudo» no contexto português), esse estudo sacrificaria a profundidade à amplitude, e a profundidade é a principal preocupação do antropólogo. Recentemente, Peter Laslett (1983) referiu-se a Portugal como um «puzzle». Se este trabalho conseguir pôr mais algumas peças desse puzzle no lugar que lhes compete, então já terá dado a sua contribuição.
23Gostaria de focar mais um aspecto relativo à escolha do local que constitui o objecto deste livro. Macfarlane (1977) enunciou claramente os prós e os contras do método de estudo de uma comunidade, debruçando-se em particular sobre o problema da delineação de limites. Com que precisão delimitamos a comunidade que estudamos? As suas fronteiras são definidas pela arena geográfica dentro da qual se fazem os casamentos ou dentro da qual os produtos são trocados? Agimos segundo uma divisão política ou administrativa? Ou centramo-nos no grupo de pessoas que praticam juntas os seus actos de culto? Estes critérios raramente coincidem e podem, sem dúvida, mudar ao longo do tempo. Santa Eulália não é uma excepção. Houve e continua a haver casamentos com pessoas que não são naturais da freguesia. Os indivíduos de outras aldeias trazem os seus produtos à feira quinzenal, desde que foi criada no final do século XVIII. Durante várias décadas do princípio do século XIX, o seu estatuto de vila implicou jurisdição administrativa sobre várias freguesias das redondezas. Contudo, julgo ser possível afirmar com segurança que, até onde chegam os documentos, a gente de Santa Eulália tem praticado o culto na sua própria igreja, que funcionou no centro da sua comunidade como símbolo da sua identidade.14 Embora alguns tenham deixado a freguesia para casar ou emigrar e, por conseguinte, tenham morrido e sido enterrados noutros lados, a capela onde foram baptizados manteve-se uma âncora nas suas vidas. Assim, podemos começar pela comunidade da freguesia e os seus registos, e passar depois a outros pontos, submetendo os outros tipos de comunidade com que os naturais de Santa Eulália se relacionam a uma investigação empírica.
Notes de bas de page
1 O holismo é um conceito antropológico extremamente sensato que incita o investigador a atender a todas as partes de um sistema e à maneira como se integram de forma a constituir um todo. Também inclui a consideração das consequências, tanto a longo como a curto prazo, de uma mudança do sistema.
2 De facto, Cohn (1982:252) refere que «muitos antropólogos [...] se voltaram para a história como um meio de escapar às hipóteses de uma cultura nativa imutável e intemporal.
3 É precisamente esta a implicação subjacente à importante, embora controversa, obra de Laslett, The World We have Lost, ou à frase criada por William Goode «a família da nostalgia ocidental».
4 Embora esteja de acordo com Freeman (1981) em que o presente pode não ser um guia fiel para o passado (de facto, isso seria cometer de novo todos os erros do funcionalismo estrutural), esta abordagem pode orientar-nos em áreas de investigação em que de outro modo poderíamos não entrar.
5 Ver o apêndice, para uma breve análise dos registos históricos utilizados para este estudo.
6 Dyke e Morril (1980) expressam esta compatibilidade em termos de combinação de abordagens, de uma a que chamam etnográfica, que se baseia nos relatos das pessoas interrogadas, e da documental, que se apoia nos registos escritos. Apontam o facto de muitas das genealogias recolhidas oralmente serem com frequência inexactas, simplificadas no tempo ou redutoras, deliberada ou inconscientemente, da realidade biológica. A informação documental pode, no seu entender, servir de verificação da genealogia etnográfica. Desse modo, recorreram aos registos documentais em busca de informação demográfica mais exacta. O que falta na sua abordagem é precisamente o que os historiadores procuram ao aplicarem o que consideram um ethos antropológico; ou seja, que estes registos possam fornecer informação de carácter não só demográfico mas também cultural.
7 Kennedy (1973), por exemplo, focou também a relação entre a condição da mulher e a mortalidade diferencial na Irlanda. Mais recentemente, Guttentag e Secord (1983) estudaram o impacte de diferentes razões de masculinidade (elevadas ou baixas) no comportamento sexual, nos costumes sexuais, modelos de nupcialidade e divórcio, estabilidade da família, etc. Sustentam, por exemplo, que uma elevada ratio de sexo está associada à importância da pureza das mulheres que, neste contexto, são objectos muito valorizados. Inversamente, a uma baixa ratio de sexo pode estar associada uma elevada ilegitimidade, segundas núpcias apenas para homens, etc. Ainda que haja, obviamente, factores culturais que geram excepções à regra (a Irlanda é um caso), o estudo é interessante.
8 Eugen Weber (1976) também estudou a questão da migração no seu estudo das populações rurais de França, nos finais do século XIX e princípios do XX. No seu livro, chama à migração «a indústria dos pobres», dando com isso a entender que era a única alternativa, na ausência de outras oportunidades locais a nível da indústria. Para mais comentários, ver Kertzer (1984b).
9 Para um excelente estudo acerca deste ponto ver Watson (1975).
10 Em termos de funcionalismo estrutural, tem feito igualmente parte das bases teóricas das disciplinas de sociologia e antropologia. Para uma das melhores explicações, ver o estudo de Gluckman (1968) acerca do chamado «modelo de equilíbrio».
11 Friedlander continuou, de facto, a estudar este tema da mudança e resposta múltipla, e, num artigo recente em Demography (1983) concluiu que «a emigração e a descida da fertilidade conjugal são respostas-sucedâneos», em especial entre as populações agrícolas rurais. O seu trabalho mais recente será analisado no Capítulo IV.
12 O sociólogo Robert K. Merton, no seu ensaio clássico sobre funções manifestas e latentes, defende uma posição semelhante: «Não se deve partir do princípio de que as razões que as pessoas apresentam para o seu comportamento (“agimos por razões pessoais”) coincidem com as consequências observadas destes tipos de comportamento. A intenção subjectiva pode coincidir com a consequência objectiva, mas pode também não coincidir» (Merton 1967:78).
13 Santa Eulália é um pseudónimo. Os nomes das pessoas ainda vivas ou recentemente falecidas também são alterados.
14 Estou a aludir aqui ao sentimento de sociocentrismo analisado por etnógrafos tanto de Espanha (Caro-Baroja 1957, Freeman 1979, Pitt-Rivers 1954) como de Itália (Bell 1979, Silverman 1975). Em Itália, a palavra usada para expressar este conceito é campanilismo, que se refere literalmente a um laço comum entre os que vivem perto do sino da igreja da aldeia, e em sentido figurado ao chauvinismo da aldeia. Embora Kenny e Kertzer (1983) concluam que o campanilismo é, fundamentalmente, um «conceito urbano» que se manifesta entre as populações migrantes, tem, efectivamente, um equivalente a nível da aldeia, que surge, por exemplo, durante as festas religiosas anuais. É precisamente neste contexto que Riegelhaupt (1973) estuda o sociocentrismo em Portugal.
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