A taberna: lugar e revelador da aldeia
p. 167-199
Texte intégral
1A taberna/mercearia da aldeia tem sido muito irregularmente e, com frequência, acidental ou indirectamente tratada pela literatura antropológica. Daí a dificuldade sentida, por exemplo, por J. Davis (1977), no balanço que faz dos estudos na área mediterrânica, ao propor a breve síntese de questões que insere na secção «Mercados e comerciantes». Nela destaca o autor, com recurso aos textos de que pôde dispor, alguns traços genéricos do pequeno comércio local de que podemos reter os que julgamos mais significativos. Assim, torna-se evidente a não exclusividade da actividade do logista que não deixa de trabalhar a terra, pelo menos até ao momento em que considera garantido o êxito do seu negócio e a ele se passa a dedicar inteiramente. Também parece produzir-se uma diversidade de situações entre os comerciantes de origem local e os forâneos que, vindos do exterior, estão aparentemente menos dependentes de relações pessoais pré-existentes que obrigam ou suscitam a concessão de facilidades e, em particular, do crédito, podendo eventualmente encontrar-se em condições de melhor sucesso económico. Um outro aspecto que a este se liga é o da parcial dependência da existência, disponibilidade e custo do crédito da quantidade de comércios que no local existem, assim como a relação, em determinados contextos, entre aquele e a constituição de uma clientela com que se conta para apoiar uma das facções que localmente se opõem ou, mais instrumentalmente, dispôr de votos. Uma outra questão levantada prende-se com a provável relação (que nunca chega a ser problematizada) entre o número de comerciantes e a população local. Finalmente sugere o autor um possível princípio geral a apontar para o facto de que «quanto mais pobre é a comunidade mais o comércio local aparece como escoadouro dos excedentes camponeses», o que lhe permite referenciar formas de pagamento em géneros ao comerciante.
2Todos estes aspectos, que não só não esgotam as referências ao tema contidas na bibliografia da obra1, como não tomam, evidentemente, em conta trabalhos de investigação exteriores à área geográfica contemplada e outros de publicação posterior2, não podem valer per se, tratando-se afinal de pistas de pesquisa ou elementos de aproximação que também nós aqui retomaremos num contexto devidamente situado: a taberna na aldeia raiana de Rio de Onor no nordeste de Trás-os-Montes. O termo, já o deixámos sugerido, refere-se a um local que não se restringe à simples venda de vinho, mesmo que, em geral, seja esse o único género objecto de negócio nos primeiros tempos da actividade do seu proprietário, progressivamente ampliado a outros que vão preenchendo as procuras locais. Por isso sempre que utilizamos a expressão taberna é já com o sentido amplo de pequeno comércio onde, para além do vinho e outras bebidas, existem para venda produtos de mercearia, drogaria, vestuário e alfaias e outras utilidades mais correntemente consumidas pelos habitantes da aldeia3.
3Com a escolha da taberna/mercearia como locus de análise — espaço de circulação de bens, pessoas e ideias e de produção e reprodução de relações sociais — pretendemos mostrar como nela se espelham e revelam estruturas e forma de organização local, homogeneidades e diferenciações ou desigualdades entre os habitantes que dela são clientes e se exprimem dimensões da temporalidade da aldeia no que esta tem de universo autocentrado e na diversidade das suas ligações com o exterior. Os dados trabalhados resultaram da observação e informação recolhida ao longo de sucessivas estadias em trabalho de campo (entre 1975 e 1988, com algumas longas permanências na aldeia) e do tratamento de uma fonte que tem origem na própria taberna: os livros de registos de gastos, débitos e pagamentos. Isto faz com que a constituição da taberna em objecto destas notas e o seu questionamento como espaço social percebido no contexto aldeão, seja sobretudo feito a partir de um exercício de leitura de uma fonte que, de nosso conhecimento, não foi ainda proposta na literatura antropológica das sociedades rurais e que, em si mesma, pode fornecer preciosas informações a articular com todas aquelas que são facultadas pelas fontes documentais com que o antropólogo normalmente trabalha.
4Rio de Onor situa-se a 28 km a nordeste de Bragança com metade deste percurso rompido em estradão pelos habitantes pouco tempo antes das primeiras visitas de estudo de Jorge Dias, estradão esse refeito no começo dos anos 70 e alcatroado em 1978. A aldeia configura-se em moldes similares aos que manifestam todas as aldeias da região: povoamento concentrado no aglomerado que constitui o núcleo habitado; no centro de um território (o termo) sujeito ao regime de afolhamento bienal (em cada ano a «folha do pão» e a «folha do restolho» ou pousio); o calendário estruturado pelas actividades determinadas por uma economia agro-pastoril com lugar destacado para a criação de vacas (animais de trabalho e de produção de carne e estrumes), gados miúdos, centeio, batata e culturas hortícolas de auto-consumo. Combinam-se na aldeia formas de propriedade colectiva particular e privada, produzindo-se formas de organização, económica, social e política que a gestão e fruição dos amplos e diversificados recursos comunais em parte explica. No cerne da organização local encontra-se o conselho ou assembleia aldeã, instituição que delibera sobre os asuntos de interesse comum e executa como colectivo e equipa de trabalho múltiplas actividades no decurso do ano. A situação fronteiriça de Rio de Onor tem como particularidade acrescida o facto da sua localização contígua à aldeia espanhola de Rihonor de Castilla, com o mesmo tipo de estruturação do território, cobertura vegetal, actividade económica e organização social. As unidades constitutivas de ambas as aldeias são as casas ou vizinhos que integram o todo que é o conselho ou povo4.
5No começo dos anos 50 — para que remete directamente a fonte que neste texto é analisada — a produção dirige-se fundamentalmente para o auto-consumo, vendendo-se escassos excedentes, o carvão feito a partir das raízes de urzes livremente colhidas no monte comunal, as crias das vacas e um ou outro cordeiro e cabrito. O comércio local é reduzido e frágil, traduzindo-se pela vinda de vendedores ambulantes, pelas idas esporádicas à feira em Bragança ou Puebla de Sanábria e pela taberna/mercearia local. A abertura destas nunca chega a ser um empreendimento exclusivo por parte do seu proprietário, vizinho da aldeia — que, por este meio busca complementar a sua unidade de exploração — e está dependente de variações nos câmbios locais (que interferem directamente na escolha dos géneros vendidos num e noutro lado da fronteira), dos consumos e, principalmente, da capacidade económica de aquisição e fornecimento do estabelecimento. Por isso, elas têm por vezes vida efémera, discreta mesmo no espaço físico que ocupam, em geral um baixo ou dependência da casa que não chega a autonomizar-se totalmente como local de permanente porta aberta para o público. Se alguém precisa de comprar algo vai chamar o proprietário a casa que por vezes não é no mesmo edifício onde se encontram os géneros a vender. Nos últimos anos existiram em Rio de Onor vários vizinhos que montaram pequenas tabernas posteriormente abandonadas, sendo a última (e hoje também a única) instalada numa pequena casa para isso preparada com o rés-do-chão com um balcão e duas mesas para venda de bebidas e o andar superior (de reduzida dimensão como o anterior) com mercearias e utensílios de uso doméstico e uma arca frigorífica com algum peixe e carne congelados. O seu proprietário abandonaria o conselho (na acepção mais restricta: os que têm vacas) em 1982, passando a dedicar mais tempo ao seu negócio, apesar de nem sempre o estabelecimento se encontrar aberto, sendo necessário o cliente ir chamá-lo (ou à mulher) se precisa de comprar algo. Na aldeia espanhola já a situação é levemente diferente pois que, pelo menos desde há 60/70 anos, uma taberna existe — aquela que é o objecto deste texto — primeiro como simples lugar de venda de vinho, ainda em vida da mãe do proprietário actual e nos primeiros anos em que este dela tomou conta, e posterior e progressivamente ampliado à dimensão comercial que hoje apresenta. Aí se vende uma grande diversidade de géneros alimentares que não levantam problemas de conservação — são raros e ocasionais os produtos frescos —, vestuário (meias, boinas) e calçado, drogaria vária onde se incluem os produtos de limpeza, petróleo, velas e alguns produtos químicos localmente utilizados para tratamento das culturas e animais, ferragens, alguns instrumentos de trabalho e utilidades de uso corrente, além de uma grande diversidade de bebidas. Muitas destas, assim como doçarias, conservas e chocolate têm os seus principais clientes nos forasteiros de nacionalidade portuguesa que visitam Rio de Onor e vão «a Espanha» fazer compras. São eles que, a partir do começo dos anos 70 — e, de forma mais acentuada, com a maior liberdade de circulação decorrente das mutações políticas e sociais posteriores a 25 de Abril de 74 — estão na origem de um cada vez mais diversificado conjunto de mercadorias em venda e é sobretudo em função deles que o proprietário da taberna a vai organizar internamente com prateleiras onde os produtos são expostos o que não se tornava necessário em relação aos clientes locais, os vizinhos da aldeia que, quando ali se dirigem, sabem o que desejam comprar. Toda esta remodelação da taberna com o novo reaproveitamento do mesmo espaço onde sempre funcionou (uma loja da casa onde o seu dono habita em que a parte posterior era o antigo curral do cavalo e hoje serve de pequeno depósito de mercadorias) foi feita após o regresso do seu proprietário da Argentina para onde havia emigrado com mulher e filhos no começo dos anos 60. Nestes anos de ausência o negócio da taberna foi cedido a um vizinho da mesma aldeia de Rihonor que, com a volta do primeiro, emigraria por sua vez para Barcelona onde trabalhou e viveu até 19895.
6Esta taberna/mercearia ocupa assim um lugar muito estável e duradouro no tempo, em contraste com todas as outras tabernas que abriram e fecharam e até com as que nos últimos anos têm existido em ambas as aldeias, pois o seu proprietário, Manuel, a ela dedicou a sua actividade exclusiva claramente pensada e dirigida como exploração comercial. Por outro lado, é também ela um espaço permanente de encontro e sociabilidade para os que a frequentam como clientes ou para passar o tempo e conversar e jogar às cartas, numa reprodução de continuados contactos entre vizinhos espanhóis e portugueses. Do mesmo modo, a taberna funciona como espaço de contacto com o exterior, tanto em relação aos forasteiros que vivem temporariamente na aldeia e ali convivem com os habitantes de ambas as aldeias (Carabineiros, Guardas-Fiscais, etc.) como aos visitantes de passagem, técnicos e notáveis que, por qualquer motivo vêm à aldeia e ali são conduzidos, convidados ou convidando a uma bebida.
7É indissociável a frequentação da taberna/mercearia da própria familiaridade de trato com o seu dono, da sua simpatia e do seu posicionamento no âmago das relações sociais de que todos os vizinhos (de ambas as aldeias) participam, assim como do seu papel de intermediário com o espaço regional mais amplo em que a aldeia se insere. O profundo conhecimento que tem da vida de cada um resulta (como para qualquer habitante) do facto de ele também ser originário da aldeia e vizinho de Rihonor de Castilla e de ele próprio estar inserido nas redes de parentesco que o ligam a várias casas de um e de outro lado da fronteira. Mas para além desse traço de homologia que resulta da sua inserção local partilhando memórias comuns, o dono da taberna exercita uma permanente postura de neutralidade face a todos os outros que são seus clientes, mantenha ou não com eles, a título particular, relações de amizade, simpatia, antipatia ou distância. É desta relação entre taberneiro-vendedor e cliente-comprador que lhe advêm saberes e segredos que resultam dos actos de compra em si mesmos — sempre feitos com extrema discrição, tendendo ao ocultamento perante os outros do que cada um à taberna vai comprar6 — como de uma avaliação mais próxima da situação conjuntural em que se encontra cada casa pelo volume dos gastos e por outras relações diádicas que podem traduzir-se em empréstimos em dinheiro, pedidos para tratar algo na vila, etc. Todavia, este posicionamento nodal da taberna e do taberneiro não significa em si mesmo uma posição de preponderância efectiva que leve, por exemplo, a descurar a atenciosidade e deferência de tratamento dado à generalidade dos vizinhos, clientes da taberna. Pelo contrário, o dono da taberna procura mostrar uma total disponibilidade para atender um cliente a qualquer hora do dia. De facto, a taberna não tem um horário fixo nem o seu dono o pode estabelecer (cumprindo a lei geral que teoricamente o impõe) para dispôr para si de algum tempo, durante o dia, de descanso sem ser incomodado. Esta total disponibilidade que tem de mostrar para abrir a taberna e atender os clientes sempre que para tal é solicitado configura-se mesmo como um direito ao acesso e frequentação de um espaço que tem algo de público e coisa da aldeia no qual o papel do taberneiro é também de servidor de esta7. É com bastante frequência, ainda hoje, que este é acordado altas horas da noite por grupos de homens ou de rapazes solteiros que, em momentos festivos, ali vão para beber. Lembremos que o taberneiro é, ele próprio, vizinho de Rihonor de Castilla e membro do espaço social mais alargado constituído pelas duas aldeias e, neste plano, visitá-lo altas horas da noite no decurso de uma «ronda» na noite que precede a celebração de um dia festivo traz consigo, como para qualquer outro vizinho a obrigatoriedade de abrir a porta e receber quem o chama.
8É nesta rede complexa de inserção local da taberna e do seu proprietário que a sua actividade como comerciante se desenvolve. O taberneiro tem de atender a dois universos de clientela perfeitamente separáveis: um é constituído por todos os forasteiros que, como dissémos, são cada vez em maior número pela frequentação da aldeia e a «curiosidade» de, ao visitar Rio de Onor, ir a Espanha, o outro, são os habitantes das duas aldeias. Para estes mantém o taberneiro livros de registo de despesas e débitos, o que não acontece em relação aos primeiros. O livro utilizado é uma agenda de grande formato ou um caderno de contabilidade de uso comercial com a página inicial contendo os nomes dos vizinhos clientes com a remissão para o número da folha (número de ordem por que vão sendo registados) das contas de cada um. Sucedem-se indiscriminadamente — à medida que foram fazendo compras são abertas as contas respectivas — sem atender à sua pertença a uma ou outra aldeia. O livro de que fizémos o tratamento sistemático foi aberto em Janeiro de 1952 e regista, sem solução de continuidade, os consumos até 1955. Nele se encontram as contabilidades respeitantes a 40 vizinhos da aldeia portuguesa e 17 da aldeia espanhola. Cada um deles representa uma das casas existentes e, nas contas de cada um destes clientes da taberna englobam-se, portanto, os consumos que podem ter sido feitos por qualquer membro do grupo doméstico. São estas anotações a fonte utilizada para interrogar a taberna como lugar na aldeia e no que desta revela como universo social feito de homologias e diferenciações.
Consumos e ritmos da vida aldeã
9Muitos dos consumos na taberna/mercearia acompanham os ritmos da vida aldeã cadenciando o trabalho, os tempos de festa e os momentos que marcam o ciclo de vida dos habitantes. Comecemos por ver como o calendário agro-pastoril exprime a sua sazonalidade para alguns dos bens sobre que incide a actividade económica através de consumos específicos ou da forma como são registados pelo proprietário da taberna. Assim, quanto ao cereal é comum a anotação feita respeitando gastos efectuados pelos grupos domésticos nos dois principais momentos do seu ciclo produtivo: «gasto segada» e «gasto malhas». Ambos assinalam consumos melhorados e em maior quantidade e que, em geral, nem são especificados no livro de contas. Diferem no entanto pela diferente natureza da equipa de trabalho implicada em cada uma daquelas operações. Na segada esta é constituída por todos os membros da casa com a colaboração de um ou outro jornaleiro vindo de fora da aldeia e sem a reunião de grupos domésticos em colaboração, já que cada um está, ao mesmo tempo, ocupado com a segada do centeio nas suas próprias terras. As malhas, diferentemente, são realizadas pelas duas quadrilhas pelas quais se encontram distribuídas todas as casas que compõem a aldeia, tratando-se pois de grupos estáveis e de muito maiores dimensões. O proprietário do centeio a malhar é ajudado por uma ou duas pessoas de cada uma das casas que pertencem à sua quadrilha, servindo de comer e de beber. Nos registos aparece com mais frequência, para situar o consumo, a indicação «sociedad fulano», sendo o vinho o mais significativo. Este é também comprado pelo conselho, como posteriormente diremos, pois as malhas são um assunto que diz respeito ao todo que é a aldeia e em que esta é directamente interventora pelo facto de serem efectuadas com a malhadeira comunal por ela adquirida, situação que se mantém até 1957, recorrendo-se a partir de então ao serviço de ceifeiras-malhadeiras de proprietários exteriores.
10Também certas operações que incidem sobre a vinha se projectam no livro de contas da taberna, apesar de se tratar de uma cultura que, como já observara Jorge Dias (1953) era objecto de muito poucos cuidados, fugindo os habitantes à realização de despesas com elas. É aliás dessa altura da publicação de Rio de Onor (e dos anos que correspondem às anotações do taberneiro que temos em análise) o começo de uma maior atenção prestada às vinhas que se traduziu na aquisição das primeiras máquinas de sulfatar pelos vizinhos depois de ter sido o conselho a adquirir uma para uso de todos8 Entre 1952 e 55 (este último ano incompleto na série de registos por nós tratada) foram adquiridas 13 máquinas de sulfatar aparecendo igualmente anotações frequentes de gastos com produtos químicos para tratamento das plantas (arseniato de chumbo e sulfato). Este facto ilustra situações de aquisições de alfaias na pequena taberna/comércio das zonas raianas, tal como para outros locais já fora observado, (Lema, 1978,) traduzindo-se em verdadeiras portas de entrada local de inovações. O mesmo se passa com a taberna de Rihonor — para além deste exemplo concreto das máquinas de sulfatar detectadas no registo — pois é aí que são comprados alguns dos instrumentos de trabalho sobre os quais se ponderam as vantagens de aí os adquirir ou em Bragança e que hoje persistem por exemplo em relação à foice (gadanho).
11Os ciclos que marcam o crescimento vegetativo e a exploração dos lameiros, pastagens e animais que lhe estão associados, não se projectando com evidência nas contas dos vizinhos, passam a sê-lo, como veremos, nas do conselho enquanto cliente da taberna. Apenas um animal — o porco — dá lugar a despesas sazonais registadas pelo taberneiro. Delas se depreende a dupla finalidade a que se destinam: a preparação da carne para a sua conservação — pimentão, sal, alho, vinho — e géneros para a refeição melhorada que é servida aos participantes — arroz, massa, azeite, pão, açúcar — refeição onde não entra carne do animal abatido (com excepção do sangue e de algumas vísceras) e para a qual é morto um cordeiro ou cabrito. Um último género comprado por altura da matança que também se encontra nos registos é o petróleo para melhorar a iluminação da casa numa altura em que esta consta, no dia-a-dia, de pequenas candeias de gordura e se poupa o máximo nos gastos que implica.
12Tanto a matança do porco que acabámos de referir, como as malhas, são actividades do ciclo agro-pastoril com uma dimensão que ultrapassa a simples funcionalidade técnica do trabalho e as projecta no território lúdico e excepcional da festa que afinal vem a ser denunciado pelos consumos nessas ocasiões efectuados. Mas outros aparecem no livro de contas do taberneiro estritamente ligados ao calendário festivo local. Já foi notado que «do ponto de vista da quantidade de mercadoria que se vende no decurso do ano esta varia tanto com os períodos de realização de dinheiro por parte dos habitantes, como com certas festas, quando todos fazem compras excepcionais» (Stahl, 1939, III: 218). A sazonalidade dos recursos económicos dos habitantes da aldeia será considerada ao falarmos dos pagamentos ao taberneiro, importando-nos ver agora como o calendário ritual e festivo se projecta na quantidade e qualidade dos consumos.
13Um dos registos mais sistemáticos respeita aos gastos efectuados pelo Natal, celebrado em família, no espaço de cada casa e que aparece expresso na especificação feita pelo taberneiro: «gasto noche buena». Mesmo quando esta indicação não é dada (o que, de facto é o mais frequente), os géneros adquiridos a 23 e 24 de Dezembro dão perfeitamente conta deste momento festivo ritualizado também pelo tipo de comida que assinala aquela noite e o próprio dia: bacalhau (em alguns casos polvo), pão (ou seja o trigo a acompanhar uma comida de um dia especial), figos e outros «mimos» como «torrón» e também bolachas, marmelada e caramelos. Estes consumos excepcionais associados a um momento do calendário são perfeitamente identificáveis no livro de contas em relação a cerca de metade de todos os vizinhos (de ambas as aldeias) clientes da taberna. Outros não o farão, fugindo a despesas que agravem a economia mais débil das suas casas, outros ainda terão adquirido dias antes alguns dos géneros que naquele dia vão consumir e que podem estar incluídos nos «gastos matanza».
14A festa do Padroeiro é a mais importante de todas que actualmente se celebram. Em Rio de Onor é o S. João (24 de Junho) que, a partir de finais da década, se viu acompanhado de N.a S.a de Fátima com a sua festa a 13 de Maio que se manteria em lugar discreto em relação à primeira celebração até que a viria a superar em investimento social e circulação de bens a partir de finais dos anos 70. Em Rihonor é a Virgem do Rosário (no 2.° Domingo de Outubro). Qualquer destas festas é participada pelos habitantes das duas aldeias. A recorrência de anotação «gasto fiesta» é constante em relação aos dois padroeiros e traduz-se, para as três, em alimentação melhorada e diversificada (arroz, massa), doçaria ou açúcar para bolos, bebidas finas. De entre outros géneros (por vezes isolados como a pomada para calçado, por exemplo) merece particular destaque a compra de calçado então feita e cuja sistematicidade nos permite ilustrar com números a expressão dos ritmos e especificação do tempo aldeão. Recorde-se que nos anos 50 o calçado localmente utilizado é, durante o Inverno, os socos (para homens e mulheres) normalmente de fabrico local utilizando as gáspeas das botas já gastas, mas também comprados na cidade9. No Verão, podendo ainda usar-se os socos, são sobretudo as botas compradas na feira em Bragança que os homens usam (e que mais tarde adaptarão para socos) enquanto as mulheres usam alpergatas ou sapatilhas e, no decurso de certos trabalhos, também botas. As crianças andam em geral descalças. A quantidade deste calçado ligeiro — alpergatas ou sapatilhas — registada nas contas da taberna (e que deve aproximar-se do consumo total de calçado de Verão por parte das mulheres) levou-nos a proceder ao seu cômputo (Fig. 1). Assim, os 268 pares vendidos nos anos completos de 1952/3/4 (91, 112 e 65, respectivamente), abrangem a totalidade das casas das duas aldeias, sendo apenas 33 (12,3% do total) os que foram comprados nos 5 meses de Novembro a Março. O consumo deste artigo começa a tornar-se manifesto em Abril, em torno da Páscoa, aumenta no mês seguinte por altura da Festa de N.a Sr.a de Fátima para atingir o seu máximo em Junho. Decresce no mês seguinte com valores idênticos aos de Agosto, caindo acentuadamente em Setembro, decréscimo este que em Outubro é compensado (Festa de N.a Sr.a do Rosário), para os consumos se tornarem a partir daí insignificantes. Este género de utilidade e uso corrente é assim, adquirido novo nos momentos de festa e torna-se índice desta e da sua inserção nos ritmos anuais, correspondendo a práticas ritualizadas que pontuam determinados momentos do calendário e muitas vezes se traduzem em provérbios normativos do género «quem não estreia nada no dia de Páscoa anda todo o ano à rastra». Se tomarmos o mês de Junho, com cerca de ¼ de todo o calçado comprado (61 pares) 37 são adquiridos nos 6 dias que antecedem a festa de S. João. A mesma tendência verifica-se em relação aos dias que precedem as outras festas (Páscoa incluída).
15O carnaval não permite descobrir qualquer excepcionalidade nos consumos da taberna. A comida tradicional deste dia é o butiêlo (ou «chouriço de ossos») acompanhado com batatas e cascas (vagens de feijão secas) que os vizinhos têm em suas casas. Apenas deparamos com uma anotação de «gasto carnabal», certamente feito para situar o conjunto das despesas que determinado vizinho fez naquele dia do ano.
16Com a Páscoa, para além da sua sinalização com o começo da curva ascendente na compra de calçado, e da vinda do padre para realizar as confissões com despesas custeadas pela aldeia de que encontramos o registo na taberna e referiremos mais tarde, há comida de festa enriquecida com artigos comprados. Não tomam a dimensão e a diversidade que manifestam aquando das matanças, do Natal ou das malhas, mas aumentam os gastos efectuados pelos vizinhos e pode mesmo acontecer que seja vendida carne pelo taberneiro, como a vitela (que só se come em momentos festivos) adquirida em 11.4.1952 (a Páscoa caiu a 13 nesse ano) de que encontramos o registo em relação a 10 casas.
17Considerando em simultâneo o dia de Todos os Santos e o dia de Reis, os intervenientes principais que marcam a ritualidade que os acompanha são os rapazes solteiros que têm, como veremos, uma contabilidade própria na taberna, enquanto colectivo instituído. Mas em relação ao primeiro as contas revelam ainda a compra de velas (é este o momento em que mais incide) pelos vizinhos para a celebração dos seus mortos, velas que também, em menos casos, são compradas pela Páscoa e pelo S. João.
18Retomando num primeiro balanço, o que temos indiciado sobre os ritmos da vida na aldeia e a sazonalidade em que se exprimem e as contas da taberna revelam, espelha-se nestas a diferenciação Verão/Inverno em que este último apresenta os tempos fortes das matanças e do Natal e no primeiro se intensificam as actividades, as relações, os consumos com, logo a partir de Março, os cuidados da vinha, a segada e as malhas em articulação com os tempos festivos da Páscoa, 13 de Maio, S. João e com o seu fecho tardio em meados de Outubro com a festa da padroeira da aldeia espanhola. Mas um outro indicador por nós identificado revela exemplarmente esta oposição Verão/Inverno. É-nos dado pela anotação «gasto juego» ou, apenas, «juego» e regista os momentos em que um pequeno grupo de homens ou rapazes solteiros (mais os primeiros) joga às cartas na taberna — onde existe um baralho que o taberneiro põe à disposição — e faz despesa em vinho e algum petisco pago pelos parceiros que perdem. Esse jogo é a sueca ou o «tute», relativamente parecido. Dos 90 registos para os anos de 1952, 53 e 54 (30, 29 e 31 respectivamente) 79, ou seja, 87,7% do total, correspondem aos 3 meses de Novembro a Janeiro não havendo nenhum de Junho a Setembro inclusive (Fig. 2). O menor número que constatamos em Dezembro (em relação aos meses anterior e posterior) está seguramente relacionado com a indisponibilidade gerada pela actividade e preenchimento festivo do período das matanças, dias em que aos serões também se joga muito às cartas nas casas onde se realizam.
19A escrituração do taberneiro revela ainda novos aspectos da temporalidade aldeã nas indicações que dá sobre momentos importantes do ciclo de vida dos habitantes. Como ritos de passagem que directamente dizem respeito a cada indivíduo, são etapas decisivas do ciclo reprodutivo do grupo doméstico do mesmo modo que investem a totalidade da aldeia (mais exactamente das duas aldeias) pela dimensão pública e colectiva que tomam, a participação e o significado social que alcançam.
20Aquele que com mais expressão e destaque é denunciado pelos registos é o casamento. Dos 6 que foram celebrados em Rio de Onor nos anos de 1952/55, 3 ficaram registados nas contas da taberna (o último destes anos está, como dissémos, muito incompleto no documento consultado). De igual número de casamentos realizados na aldeia espanhola neste mesmo período ali aparecem despesas que correspondem a 5. A explicitação é normalmente feita. Assim, por exemplo: «vino vouda 10 cantaros a 35,81. aceite a 15» (casamento realizado a 25.4.1954); «gasto boda total 426pts.» (realizado a 19.6.55); «resta de la boda 28pts.» (anotação de 26.13.53, data de pagamento parcial das despesas de casamento realizado 3 semanas antes). Noutros casos o taberneiro não especifica o evento que está na origem dos gastos efectuados e só o tipo e valores dos consumos, junto com o conhecimento dos registos paroquiais (numa articulação de fontes) nos permite identificar estes consumos feitos com a boda. Assim acontece com o casamento realizado no mesmo dia e com boda conjunta com o primeiro que referimos — a noiva daquele que virá a ser um vizinho português é irmã do noivo que virá a constituir uma casa espanhola —, através da anotação «arrôz, azucar, três cantaros de vino»; neste caso as compras feitas na taberna distribuiram-se pelas duas casas suas clientes. A mesma ausência de referência explícita à boda aconteceu com os casamentos «por troca» (como os dois anteriores) de um irmão e irmã portugueses, com um irmão e irmã espanhóis, dando azo ao registo «10 cantaros vino (...) 2 botellas cofia (...)», etc. As despesas com a boda, apesar de normalmente anotadas na casa dos pais da noiva, onde a refeição será servida, é dividida em duas partes iguais entre as duas casas implicadas (então como hoje). O vinho adquirido será bebido pelos convidados nas várias refeições que são servidas e, na sua maior parte, pelos habitantes da aldeia a quem é oferecido, na rua, durante o dia ou dias de festa, enquanto nessa mesma rua dura o baile. O volume total de vinho consumido por ocasião das bodas faz com que seja quase sempre necessário recorrer à compra de parte dele dada a produção própria dos vizinhos ser em geral escassa e no limite dos gastos quotidianos no decurso do ano.
21Um registo mais difuso e menos aparente das compras da taberna sinaliza um outro decisivo momento do ciclo de vida dos indivíduos e das casas: a morte. Esta nunca é explicitamente referida mas aparece denunciada pela compra de velas por parte da casa enlutada ou de parentes próximos. Outras compras relacionam-se com os ofícios e missas de aniversário e de «cabo de ano» que os registos de óbito permitem corroborar. Numa anotação de 26.8.52 alguém da casa cuja dona está prestes a falecer compra 4 velas e meio litro de azeite; a morte deu-se no dia seguinte. As velas vendidas — num total de 106 e 4 círios em 3 anos — distribuem-se contudo, por outros momentos do ano que já antes foram referidos: Dia de Todos os Santos em que se decoram e iluminam as sepulturas, Páscoa e S. João.
Pagamentos e ritmos anuais
22O pagamento dos débitos que vão sendo registados no livro de contas é efectuado tanto em dinheiro, como em géneros e serviços, nestes últimos claramente se projectando sazonalidades inerentes ao ciclo produtivo. Já o pagamento em dinheiro é irregular e feito de forma continuada ao longo do ano, procedendo-se com frequência a acertos e fechos de conta em geral no Outono e final do ano. Um traço que transparece da nossa fonte é a manutenção da conta aberta mesmo nos casos em que ela é saldada na sua totalidade, deixando-se em dívida os géneros comprados no dia em que se procedeu àquele pagamento e fecho do passivo até aí acumulado. Estamos pois perante a situação exemplarmente descrita por Arensberg e Kimball quanto às relações de crédito na Irlanda rural. Lembremos as duas vertentes de maior significado no quadro da presente análise: a inserção num complexo de relações sociais da relação mais específica de crédito entre o dono do pequeno comércio local e o seu cliente nunca se autonomizando a sua estrita dimensão económica e jurídica; a preocupação por parte de ambos os sujeitos dessa relação (no âmbito desse mesmo contexto local) em manter aberta a conta — nunca definitivamente saldada — como sinal de manutenção de uma relação social que, caso contrário, poderia ser considerada em rotura. É certo que em Rio de Onor a taberna/mercearia que temos em análise ocupa um lugar destacado e, em relação a um conjunto diversificado de géneros, mesmo único, sem verdadeira competição local por parte de outros comerciantes. Isto faz com que exista uma diferença relativa em relação ao contexto irlandês antes referido onde a existência de contas em débito em determinado comércio são garantia de não haver fugas de clientes para outro. No entanto, um outro espaço de competição se depara ao dono da taberna com a cidade (Bragança) e vila (Puebla de Sanabria) de relação, não apenas no espaço de recorrência cíclica das feiras e mercados que aí se realizam e onde os habitantes podem procurar os géneros de que necessitam, mas ainda em alguns dos comerciantes aí estabelecidos, com os quais também se mantém relações preferenciais para a aquisição de determinados produtos. É todavia no espaço da aldeia — das duas aldeias — que a relação de crédito inerente à conta corrente que cada vizinho mantém na taberna/mercearia tem de ser percebida. Sempre em aberto, traduz-se ela na permanência, formal e substantiva, do lugar ocupado por cada um e todos os vizinhos que lhes dá o acesso aos bens de que necessitam (e que, segundo as economias domésticas respectivas, podem adquirir) numa identidade de circunstâncias e em que as garantias de pagamento são, desde logo, um viver em comum num espaço entretecido de reciprocidades, sociabilidades e do próprio inter-conhecimento e vigilância comunais, aspecto este também relevado por Arensberg e Kimball no seu estudo sobre as relações de crédito e as garantias sociais do seu cumprimento.
23Outros pagamentos dos débitos na taberna são efectuados em géneros. Apesar de muito frequente no começo dos anos 50 esta forma de pagamento diminui em importância na década de 70 com o saldo das contas a fazer-se progressivamente em dinheiro. O centeio é o que mais frequentemente aparece nos registos, sendo também ele, até um passado ainda recente, o principal meio de pagamento. O livro de contas regista a sua maior frequência nos meses de Agosto a Outubro, ou seja, no período imediatamente após as malhas, funcionando o mês de Setembro como charneira do ano e, para o taberneiro, o principal momento de acerto das contas com os vizinhos seus clientes. Também se detectam pagamentos com o cereal já transformado em farinha, o que ocorre principalmente entre Maio e Agosto, num período do ano em que ela escasseia para alguns, e também em Novembro/Dezembro, podendo neste caso denunciar carência do próprio taberneiro para a ceva do seu porco. Finalmente, de forma mais irregular e dispersa ao longo do ano, também este recebe um pão já feito cujo valor é amortizado na dívida e que, tanto pode ser utilizado para o consumo do seu próprio grupo doméstico, como para ser vendido na taberna a acompanhar um petisco servido junto com o vinho. Um outro género dado como meio de pagamento é a batata, nos meses de Junho a Setembro, mas em quantidades reduzidas. No começo dos anos 50 os excedentes que os vizinhos dispõem desta produção são ainda pequenos como pequena é a procura que a taberna/mercearia pode satisfazer — trata-se sobretudo de um ou outro Guarda-Fiscal ou carabineiro de serviço na aldeia, que necessitam comprá-las para seu consumo. A castanha é entregue como meio de pagamento logo após a colheita, nos meses de Novembro e Dezembro, apesar de só aparecer registado o movimento de entrada deste género para os anos de 52 e 53 em que 7 vizinhos clientes da taberna (5 de Rio de Onor e 2 de Rihonor) entregaram um total de 35 arrobas para amortização da sua conta. Também as cepas ou raízes da urze arrancadas no monte comunal são meio de pagamento frequente para todos os anos cobertos pela nossa fonte. O período em que se intensifica a sua circulação ocupa, grosso modo, todo o Inverno (11 num total de 17 carros), correspondendo tanto à maior necessidade deste combustível, como a época de maior disponibilidade por parte dos habitantes para o ir colher. Assim, nunca há qualquer transporte de cepas para a taberna nos meses de mais intensa actividade de Julho e Agosto e é muito raro nos 3 meses anteriores. Além disso alguns dos carros de cepas de Novembro (o mês de maior aquisição por parte do taberneiro) correspondem certamente às «cepas das almas» colhidas e postas em arrematação pelos moços no dia de Todos os Santos e que o dono da taberna arremata, por vezes, para consumo próprio. Refira-se ainda que também aparecem os ovos como forma de amortização das dívidas correntes, mas sempre em muito pequena quantidade coincidindo em geral com os momentos festivos em que são utilizados — Páscoa, festa de N.a Sr.a de Fátima e Natal10. Enfim, todos os outros géneros dados para pagamento e desconto nos débitos são esporádicos e, em geral, decorrem de situações pontuais de interesse por parte do taberneiro: carne, galinhas, melões, estrume, cesto, mel, aguardente e, também, vinho (este último é vendido na taberna junto com aquele que o taberneiro adquiriu para tal fim).
24Alguns dos géneros referidos são negociados pelo taberneiro e por ele vendidos fora da aldeia, sobretudo em Puebla de Sanabria, podendo em relação a alguns deles dispôr de alguma margem de manobra para beneficiar dos preços já que os recebe por altura das colheitas (momentos em que estão baixos) e poderá esperar um período de alta — estão sobretudo neste caso o centeio e a castanha. As cepas, para além das que ele próprio consome são também vendidas para pequenas indústrias (fornos, forjas) na vila. Outros géneros ou mesmo uma pequena parte de todos eles circulam localmente a partir da taberna, o que acontece no pequeno mercado constituído por aqueles que não produzem de modo a satisfazer as suas necessidades (é esta a situação por exemplo de um ou outro guarda-fiscal ou carabineiro, ou mesmo de um vizinho com menores posses). Em síntese a situação revelada por todo o tipo de pagamentos em géneros é aquela que foi descrita por John Davis (1977: 55-59) da taberna/mercearia como escoadora de pequenos excedentes locais e que, em relação às cepas extraídas livremente no monte por quem o deseje se apresenta como pequeno mercado que permite a realização de algum dinheiro.
25Para além do pagamento em dinheiro e em géneros, o dono da taberna contabiliza no seu livro serviços prestados cujo valor é abatido nos débitos de quem os presta. Estes serviços que se apresentam como meios de pagamento das contas são «jeiras» (dias de trabalho) e «carretos» feitos com o carro e junta de vacas. Estes últimos, nos três anos completos contemplados pelos registos foram em número de 56, tendo sido fornecidos por 10 vizinhos (6 portugueses e 4 espanhóis). Com eles supre o taberneiro a necessidade de transporte para fora da aldeia dos géneros recebidos em pagamento e por ele vendidos (o que acontece com o cereal, a castanha e parte das cepas, por exemplo) e para trazer da vila as mercadorias que localmente vende. Já as jeiras que o taberneiro paga amortizando o seu valor na conta corrente daqueles que as fornecem — em igual número de 56 para os mesmos 3 anos — cobrem outras necessidades do dono da taberna. Para além do trabalho efectuado nos campos que pertencem à sua própria casa, que o taberneiro garante com o recurso aos trabalhadores eventuais que são, simultaneamente, vizinhos da aldeia e seus clientes da taberna, tem ele outros deveres comunais que cumpre pelo mesmo processo. Como vizinho do conselho da aldeia de Rihonor de Castilla, para alguns dos trabalhos por este realizados a que ele não pode estar presente, faz-se representar por alguém a quem paga as «jeiras». Foram 9 os vizinhos que aparecem registados no livro de contas da taberna, no período considerado, com «jeiras» fornecidas ao taberneiro e amortizadas nas respectivas contas que ali mantêm.
Gastos, pagamentos e diferenciação das casas
26Procurámos revelar até ao momento recorrências e perfis de semelhança que, em traços genéricos, acompanham consumos e pagamentos no que revelam de ritmos e ciclos da vida aldeã e que nas contas da taberna/mercearia se reflectem. Mas estas permitem, do mesmo modo, perceber as diversidades que as casas, ou seja, os vizinhos seus clientes, apresentam.
27Uma primeira diferença é a própria escala e volume global dos gastos feitos variando do muito ao muito pouco sem que isto traduza necessariamente (e directamente) uma diferença real de riqueza entre as casas. Já em 1977, por exemplo, os valores dos consumos efectuados mensalmente pelos vizinhos do povo português oscilavam entre quantidades baixas (200 pesetas) e bastante elevadas (4000 pesetas). Neste último caso trata-se de uma unidade de exploração que tem na base um património em terras médio à escala local (ou mesmo abaixo da média), mas com entradas de dinheiro líquido que resultam das remessas efectuadas pelas filhas solteiras a trabalhar como empregadas domésticas em Espanha e que, não apenas compensa o menor volume das produções próprias da casa, como criou a habituação de consumos em géneros alimentares mais diversificados adquiridos na taberna. Na primeira situação de consumos muito pequenos encontra-se, por exemplo, uma das casas mais «fortes» da aldeia (em unidades construídas, terras e animais) de onde nenhum membro emigrou e que mantém o modelo mais tradicional de auto-consumo baseado na máxima diversidade das produções da casa. Também nesta situação se encontram algumas das casas dos emigrantes regressados da Europa que, apesar do capital aí acumulado e depositado no banco, mantêm hábitos de poupança, certamente marcados pela memória de carências das suas casas de origem, procurando suprir com o que produzem as suas necessidades correntes. Em relação a determinados artigos torna-se particularmente interessante uma informação que nos foi prestada pelo taberneiro que aponta como factor decisivo para o maior consumo de certos bens (em especial o azeite e o açúcar) o mecanismo dos preços e do racionamento durante a Guerra Civil de Espanha e nos anos imediatos. Como esses géneros tinham um preço altíssimo no mercado normal em Espanha e também bastante elevado (se bem que inferior) em Portugal, ninguém ficava (ou poucos ficariam) sem levantar as senhas de racionamento que atribuíam para cada vizinho uma certa quantidade a preços proporcionalmente muito baixos — por exemplo, o azeite custava 12$00 o litro contra 65 a preço de mercado e 25 em Portugal. Este facto, na sua interpretação, terá contribuído para a criação de hábitos de consumo de bens antes praticamente inexistentes11.
28Retomando o livro de contas da taberna, nos anos concretos a que se referem (1952-55), constatam-se diferenças acentuadas de consumo. Assim, a casa de José onde, devido aos muitos filhos vivem 11 pessoas, os gastos são feitos fundamentalmente em condutos alimentares e alguns géneros para a confecção-base de algumas refeições — sardinhas de escabeche, bacalhau, azeite, massa — comprados correntemente ao longo do ano12. Este vizinho é um claro exemplo das transformações vividas na aldeia nas décadas de 40-50, quando, perante a ameaça de intervenção no monte comunal por parte dos Serviços Florestais do Estado, o conselho autoriza que se façam roturações livres para cultivo do centeio (Brito, 1989).
29Tratando-se de um grupo doméstico extenso reunia força de trabalho que permitiu grandes sementeiras com uma produção crescente de ano para ano, possibilitando não apenas sair de uma situação de grande carência alimentar, mas produzir excedentes e dispôr de dinheiro para aquisição de bens de consumo que as contas da taberna tornam perfeitamente patentes. Um outro exemplo pode ser dado pela casa de João, de parcos recursos em património como o anterior e de grupo doméstico muito reduzido (o que não lhe permitiu beneficiar do mesmo modo da conjuntura antes referida), com gastos na taberna/mercearia muito menores, e ao mesmo tempo, com pedidos suplementares de empréstimos ao taberneiro e assinatura de letras que este vai anotando na mesma folha corrente de consumos feitos. Também se verificam situações isoladas de casas com um homem só (celibatário ou guarda-fiscal/carabineiro de serviço na aldeia) e cujos gastos na taberna se restringem, quase exclusivamente, ao consumo praticamente diário de vinho e ao escasso complemento alimentar ali adquirido. Trata-se de casos isolados que, ou correspondem a situações de exterioridade em relação ao modo de vida e actividade agro-pastoril dos vizinhos (de ambas as aldeias) ou, para alguns destes, de grupos domésticos imperfeitos e frágeis. Um outro tipo de diferenciação reflecte-se ainda, de forma indirecta no registo das despesas feitas com o vinho consumido no decurso dos jogos de cartas durante o Inverno. Do total dos 15 vizinhos (9 espanhóis e 6 portugueses) responsáveis pelos débitos da despesa feita nessas ocasiões, 6 são os mesmos que efectuam pagamentos entregando cepas e efectuando carretos e trabalhos à «jeira». São, portanto alguns representantes de casas com menos posses e, também por isso, menos pressionados pelo tempo que lhes tomaria outras ocupações caseiras. Estes vizinhos que fazem pagamentos em cepas, «jeiras» e carretos representam as casas mais «fracas» de qualquer das aldeias contrastando mesmo, por exemplo, com os que efectuam pagamentos em castanha que, não sendo o meio usual de saldo de dívidas em géneros (ao contrário do centeio, que todos, em maior ou menor quantidade colhem) sugere uma diferença de número de castanheiros possuídos em propriedade privada, permitindo dispôr de um excedente. De facto, com uma só excepção nenhum coincide com os que efectuam os pagamentos anteriores.
30Para além da aproximação a diferenciações de carácter mais estrutural (no sentido de mais estáveis no tempo) entre as casas, outras há, de tipo conjuntural, como são a existência ou não de moços solteiros. Como veremos em seguida, estes têm (como colectivo) uma conta própria na taberna, mas cada um deles, ao fazer despesas que o taberneiro debita na conta do vizinho que representa a casa, acrescenta a especificação do autor da despesa, o que também por vezes acontece em relação a um ou outro membro do grupo doméstico, apesar da responsabilidade pelo pagamento ser sempre do chefe da casa, aquele que é vizinho. Refira-se por fim, outro tipo de anotações mais esporádicas no livro de contas da taberna, dando notícia de movimentos de pessoas e acontecimentos locais que preenchem o quotidiano aldeão e são registadas na conta corrente de algumas casas. Assim, as despesas feitas pelos serradores ou pelo ferreiro a fazerem serviço na aldeia são debitados sob o nome do vizinho para quem na altura estão a trabalhar. Por outro lado, também alguns gastos extraordinários suportados sob forma de empréstimo pelo taberneiro aparecem contabilizados como acontece com as despesas com uma deslocação de alguém a Puebla de Sanábria ou a Zamora, ou com a viagem de partida para o serviço militar, ou mesmo com doenças (o taberneiro vende também medicamentos que lhe pedem que compre na vila). Diversidades momentâneas entre os clientes que, todavia reenviam para o universo social local do quotidiano aldeão.
A aldeia, cliente da taberna
31Mas não é apenas cada um dos vizinhos (de cada uma das aldeias), com os gastos, débitos e pagamentos das respectivas casas, que podemos identificar nos livros de contas da taberna. Esta tem outros clientes que nos revelam novos aspectos da estrutura e organização social da aldeia. Comecemos por referir os moços ou rapazes solteiros que, enquanto grupo ou classe de idade englobando todos os que, na aldeia, se encontram nesta situação, aparecem em folha própria nos registos da taberna, sob a epígrafe «Mozos portugueses» e «Mozos espanoles». Para este grupo a que Jorge Dias já havia prestado atenção (Dias: 317-320, 342-343 e 358-359) entra-se a partir dos 16 anos de idade, mediante o pagamento de uma taxa de admissão (em geral vinho) e dele se deixa de fazer parte com o casamento ou quando os anos vão transformando o solteiro num celibatário e este tende a auto-excluir-se. Com a saída de parte da população mais jovem, a partir de meados dos anos sessenta, emigrando temporariamente para França ou Alemanha e, nos últimos dez anos, buscando emprego nos corpos de polícia (sobretudo GNR e GF), para este grupo dos rapazes solteiros pode agora entrar-se com 12-13 anos de idade. Continua, no entanto, a assumir, em Rio de Onor como na generalidade das aldeias transmontanas, um conjunto de competências rituais que aqui se condensam em dois momentos principais: o dia de Todos os Santos e o dia de Reis. No primeiro, vão os moços, com vacas e carros tomados de empréstimo, arrancar cepas (raízes da urze utilizadas como combustível) no monte baldio, regressando à aldeia com grandes cargas que aí, com todos os habitantes reunidos, serão leiloadas, aplicando o dinheiro conseguido em missas que se mandam rezar pelas almas dos mortos da aldeia. À chegada à povoação são esperados pelas moças ou raparigas solteiras com cestos de castanhas assadas e cozidas que continuarão a comer, em conjunto, em torno da fogueira que de noite fazem num dos largos. O vinho que nesse dia bebem pode ser oferecido pelo conselho ou por eles comprado (assim como os géneros necessários para a ceia que fazem). O dia 6 de Janeiro ou dos Reis é, propriamente, o dia da Festa dos Rapazes, no qual, reunidos estes numa casa emprestada por algum vizinho (com a participação dos mais novos que nesse ano foram admitidos), comem várias refeições com o resultado do peditório que fizeram, visitando, mascarados, a totalidade das casas da aldeia. Os que, na madrugada do dia da festa, chegam tarde são multados (vinho, bebidas brancas, chocolate) o que vem aumentar os gastos na taberna. Nesse mesmo dia as moças preparam o ramo — pernada de árvore donde pendem enchidos por elas também pedidos, fazendo a ronda das casas, doçaria e uma ou mais garrafas para tal fim compradas — que será leiloado à saída da missa. Por isso, numa ou noutra anotação do taberneiro no registo dos géneros adquiridos para o ramo, são elas que aparecem referidas.
32A leitura das contas da taberna permite identificar dois níveis de expressão e reconhecimento social deste grupo — os moços — apesar de, no quotidiano da aldeia, se confundirem. Este colectivo instituído que, em cada ano, tem um número determinado de membros e se organiza em torno dos seus líderes, assume, em datas precisas, competências e funções de que, afinal, é responsável perante a aldeia, como mediador e catalizador de relações no seu interior e com os mortos em que se prolonga, na celebração e reafirmação de si própria. E é exactamente a estes momentos reconhecidos e em que a aldeia se reconhece — é esta que actua através dos seus moços — que inequivocamente correspondem os gastos e débitos repertoriados pelo taberneiro na folha própria dos «Mozos», portugueses ou espanhóis. Mas, ao longo do ano e fora daquelas situações pré-figuradas e perfeitamente caracterizadas, os rapazes solteiros agem com as prerrogativas próprias da categoria a que pertencem: beber, fazer patuscadas, organizar bailes e outros divertimentos ou intervir face aos moços de outras aldeias, nas festas ou na imposição de multas quando um destes vem namorar uma rapariga da aldeia. Assim, nas contas da taberna, por eles bastante frequentada, são contínuas as indicações de despesa desta classe etária que o taberneiro, cautelarmente, vai anotando na folha que corresponde à casa de um deles, sempre com a especificação mozos. E isto, mesmo quando este grupo, a reproduzir uma instituição bem conhecida da literatura etnográfica europeia, age como um todo, na afirmação de direitos e exigência do pagamento do piso, patente ou vinho àquele que, vindo do exterior, veio namorar e buscar mulher na aldeia. No exemplo de que dispomos, com a data de 3/6/1953, o taberneiro, para melhor identificação da despesa e garantia futura de pagamento, registou-a na casa dos pais da rapariga e a anotação diz «vino escabeche piso 96’00», o que pode corresponder, aos preços de então, a um cântaro de vinho e um quilo de sardinhas.
33Um último lugar de anotação de gastos e débitos por parte dos moços é a folha que corresponde a um outro cliente da taberna: a própria aldeia. De facto, para além dos vizinhos devidamente individualizados e dos rapazes solteiros da aldeia, nos termos acabados de referir, também esta tem registo próprio nos livros de contas, em folhas abertas com a indicação «Pueblo Portugues» e «Pueblo Espanol» e de que nos foi possível consultar a série completa para os anos de 1950 a 1960. Rio de Onor como Rihonor de Castilla, enquanto colectivos corporizados nos respectivos conselhos, mantêm uma conta corrente com consumos semelhantes e por idênticas causas. O gasto maior é feito em vinho, bebido em conselho nas muitas reuniões em que se discutem e decidem assuntos do povo e durante os trabalhos realizados ao longo do ano que se ligam com a gestão e usufruto das pastagens comunais, arranjo e feitura de represas e canais de irrigação, reparações nas infra-estruturas colectivas como moinhos e forjas, lavouras, cultivos e colheitas em vários tipos de propriedades comunais (entre elas, as que pertencem aos santos locais), etc., para além dos conselhos mistos, sob a indicação «Los dos Pueblos» e que podem ter a ver com o arranjo do caminho internacional que conduz às vinhas de ambas as aldeias ou com a gestão de águas comuns, entre outros motivos. Nesta década, os conselhos da aldeia portuguesa perfarão um mínimo de 45-50 dias por ano (Brito, 1989). A este gasto em vinho acrescenta-se o que à taberna se vai comprar para pagamento de multas individuais aplicadas pelo conselho e que também encontramos registado nas contas de um ou outro vizinho. Ainda um consumo importante de vinho é o que é feito nas malhas, em Agosto, que em Rio de Onor, para além daquele que é fornecido pelo dono do centeio, em cada uma das malhas, aos elementos da quadrilha que nela participam (a aldeia está, para este efeito, dividida em duas quadrilhas a que se pertence por descendência) e que nós vimos já anotado nos gastos das casas, obriga a despesas do conselho. A aldeia é proprietária — até 1957, ano em que começou a servir-se de máquinas alugadas vindas de fora — da malhadeira com que se procede à debulha do cereal, facto que exige a presença de um mecânico (um vizinho da aldeia) e dois homens do conselho a conferir, por turnos, a quantidade de grão colhido, pois as despesas (amortização e combustível) são pagas proporcionalmente à colheita de cada um. Assim, o conselho intervem directamente nas malhas, para as quais necessita levar vinho. As contas da taberna permitem-nos, por exemplo, saber que, nas que decorreram em 1950, entre os dias 12 e 29 de Agosto «O povo português» adquiriu aí 19 cântaros e, em geral, patenteiam a grande quantidade de vinho comprado como sugerem os valores globais para a aldeia espanhola em 1952 e 1953 — 32 e 40 cântaros, respectivamente — ou os 56 cântaros da aldeia portuguesa neste mesmo ano de 1953, e que, sabemo-lo, está longe de corresponder à totalidade do vinho consumido pelo conselho.
34Mas não se esgotam aqui as despesas do conselho de qualquer das aldeias. Há registos de compra de azeite e vinho branco para a igreja ou velas para as almas, de arseniato para a vinha do Santo, de sal para enriquecer a alimentação das cabras no início do Inverno, de foguetes para a festa. Além de que a aldeia faz gastos com convites (presente, dádiva) a notáveis/técnicos dos Serviços Florestais, de saúde, da Direcção de Estradas ou outras autoridades político-administrativas, junto dos quais pugna pelos interesses do povo e o tipo de artigos comprados revela a excepcionalidade/ritualidade do momento: coñac, chocolate, bolachas, melocotón, turrón ou, até, os foguetes e mais gastos com a visita de um governador à aldeia espanhola, em Maio de 1956.
35Paralelamente à semelhança dos débitos das duas aldeias, que nos levou a tratá-los em conjunto, a diversidade e detalhe relativo nas anotações de despesa revela uma diferença fundamental que decorre da condição do taberneiro como vizinho da aldeia espanhola. Este facto está na origem, desde logo, de uma mais cuidada especificação dos momentos a que corresponde o consumo de vinho e em que este também participa como representante de uma casa da aldeia (em relação a Rio de Onor essas indicações, em geral, não são dadas). Assim, por exemplo, em Agosto de 1953 escreve que os 23 cântaros vendidos «son del linar de la Veiga», com a anotação «paga el Santo en dos anos» e o remate «debemos el Santo 156» (pesetas). Este vizinho que é o taberneiro é parte interessada, como todos os outros, na contabilidade da aldeia e faz, igualmente, adiantamentos vários em pagamento de encargos colectivos e que virão a ser descontados da quota-parte que deles lhe caberá: materiais e gastos relacionados com o arranjo da escola e da igreja; refeições do padre, canteiros ou arquitecto; remuneração do primeiro aquando da confissão pascal (Março de 1953 e 1960 e Abril de 1954), da benção dos campos (Maio de 1956) ou outros dias festivos; vinho para os moços no dia de Todos os Santos (1955: «a los mozos para bino le di 40$00»; 1959: «½ cantaro vino mozos 48’00»); ou despesas gerais com a festa anual (padre, sacristão, padroeira, velas, música, foguetes). Nas suas deslocações a Puebla de Sanabria, o centro comercial e administrativo de que depende Rihonor de Castilla, o taberneiro encarrega-se ainda do pagamento de contribuições que impendem sobre a aldeia (por exemplo, do moinho), além de também ali ter de ir, com um ou mais homens do conselho em representação deste e os gastos feitos aparecem claramente identificados para futuras contas. Por fim, o dono da taberna pode ainda surgir como mandatário do conselho ao ser-lhe entregue, para depósito na vila, o dinheiro que este apurou quando, no começo do ano, faz o balanço das suas finanças (é disto exemplo as 1.692 pts. que lhe foram entregues em Janeiro de 1956).
36Uma ocorrência relativa ao conselho de Rio de Onor e que remonta a uma quinzena de anos anterior aos primeiros registos da fonte que temos vindo a analisar, servirá para ilustrar e reflectir algo mais sobre a inserção local da taberna e do taberneiro. Resumimo-la aqui:
O conselho foi regar um dos lameiros de posse colectiva da aldeia, operação realizada em conjunto e em clima festivo, levando cada um a melhor merenda e transportando, em carro de bois, uma pipa de sete ou oito almudes (251) de vinho que aí é bebido ao longo do dia.
Acabam de regar ainda cedo e os mordomos, dando o trabalho por concluído e pela necessidade de aproveitar o tempo, dizem que cada um irá à sua vida, a regar as suas próprias terras.
A maioria contesta, insistindo em permanecer em conjunto e assim regressar à aldeia para continuar a beber.
Os mordomos opõem-se, discutem, mas a maioria determina que vão voltar todos juntos e aquele que não estiver presente será multado.
Já na aldeia, os mordomos não aparecem e são multados num cântaro de vinho cada um e, para além da multa, são demitidos do cargo.
Os homens do conselho decidem ir até à taberna, em Espanha, e ao dirigirem-se para lá encontram no caminho que corta a linha de fronteira o comandante do posto local da Guarda Fiscal a quem pedem autorização e esta é-lhes negada.
Com a determinação que levavam, não atendem à interdição e vão para a taberna onde ficam a beber e a comer os seis quilos de sardinha de escabeche que aí compram.
No dia imediato o comandante do posto faz uma participação do povo, este tenta ainda negar, mas a dona da taberna confirma que ali havia estado e aquele é multado em 60 escudos.
A irmã da dona da taberna é mulher de um dos mordomos depostos e em sua casa (na aldeia portuguesa) vive um cunhado que vai ser o meio para a «vingança» do conselho sobre o testemunho prestado pela taberneira e, simultaneamente, o comportamento dos mordomos, permitindo reaver o valor da multa paga: a pretexto de ter deixado escapar as ovelhas para os lameiros, no seu turno de guarda do rebanho colectivo da aldeia, é multado pelo conselho em 60 escudos (multa não só ostensivamente excessiva como excepcional, já que, para estas faltas, elas traduzem-se normalmente em alguns litros de vinho estipulados por votação).
37Estes factos passaram-se no ano de 1935 ou 1936. São o resumo de uma narração feita por um participante daquele conselho, casado com a neta de um dos mordomos (cunhado da dona da taberna), e foram-nos contados com a intenção de revelar excessos e formas de injustiça que por vezes se cometeram (tomando o narrador o partido do mordomo de que é familiar longínquo por aliança). A taberna é a mesma de que temos estado a falar e a sua dona a mãe do taberneiro actual que, na altura, já dela também se encarregava. Não nos ocuparemos agora da sua importância como texto de antropologia política naquilo que pode revelar do conselho como instituição de cúpula da aldeia que anualmente elege — e pode destituir — os seus chefes responsáveis, detentores de uma autoridade delegada e subsumida à autoridade colectiva13. Importa sim reter alguns traços fundamentais nele indiciados quanto à inserção local da taberna.
38O primeiro aspecto a referir diz particularmente respeito à aldeia concreta de que nos ocupamos — mais exactamente, a Rio de Onor e Rihonor de Castilla — com a sua situação de internacionalidade e a taberna a ser frequentada pelos dois povos que só se identificam na sua individualidade própria quando instituídos no colectivo conselho ou povo, sujeito passivo de débitos no livro de contas — «El Pueblo Português», «El Pueblo Español» — ou de forma menos evidente e estável no colectivo mozos. Quanto às casas da totalidade dos vizinhos clientes da taberna sucedem-se indiscriminadamente nos registos, sem ter em conta a aldeia a que pertencem ou outro qualquer critério de ordenação que não seja a ordem aleatória por que vêm fazer compras e que determina a abertura sucessiva de folhas encabeçadas com o nome de cada vizinho. Aquela frequentação difusa, permanente e sem os obstáculos que poderiam estar supostos na existência de uma fronteira política exprime-se também no texto através do gesto do conselho como afirmação de um direito ou coisa da aldeia a que, no entanto, não corresponde o poder inequívoco de o exercer. A confrontação surgida com um poder instituído exterior que desautorizou o conselho teve da parte deste uma resposta visando repor a sua autoridade à escala local por um acto de vindicta que, indirectamente, atingia a dona da taberna.
39Um segundo aspecto de outra natureza, prende-se com a importância e volume da circulação e consumo colectivo do vinho, aqui patenteada na quantidade transportada para o local de trabalho (entre 175 e 200 litros) e na posterior vinda para a taberna para continuar a beber (o que deve ser visto igualmente, e numa relação complexa, como pretexto para continuar juntos). Já vimos que se bebe em inúmeras ocasiões e a origem deste vinho está na comparticipação que cada um dá enquanto membro do conselho e por este exigida, no que este compra e no que resulta das multas que, no âmbito da sua acção são aplicadas por faltas várias e que, no texto uma situação extrema exemplifica14. O consumo do vinho, sendo um elemento energético e excitante do grupo, é também, e por isso mesmo, um factor de coesão. Daí a ritualidade que o envolve: ao consumir-se o vinho de uma multa quem primeiro bebe é o faltante e, só depois, todos os outros quando, pela sua libação, o primeiro já está afinal «reintegrado» e a situação de normalidade absolutamente reposta. Por outro lado, duas das alfaias do conselho são a canada (3,5 litros) e o copo com que se serve o vinho, tendo já sido aplicada como sanção e opróbrio, numa questão grave ocorrida cerca de 1912, a proibição de beber pelo copo do conselho. Esse vinho, num período em que não se usou o copo (anos 40?) e cada um levava uma caneca por onde o bebia, não podia ser trazido para casa, mas sim bebido no conselho, tendo nós conhecimento de uma multa em vinho imposta a um vizinho — e por este lembrada como injustiça — que, tendo-se afastado e distraído, deixara a caneca ao sol e não podendo beber o vinho a escaldar e não o querendo levar para casa, o deitara para o chão. São formas similares de ritualidade, de aplicação de multas em vinho e de grandes quantidades consumidas que, na bibliografia sobre colectivismo ou comunitarismo agro-pastoril, vamos encontrar em locais onde se produziu o mesmo tipo de estrutura e modelos de organização social em torno da posse de vastos e diversificados recursos comunais, constrangimentos colectivos ligados à sua gestão e fruição e instituições reguladoras à escala aldeã. Esse consumo de vinho foi do mesmo modo, o ponto de apoio ou pretexto para ataques de vários a esses sistemas locais e à manifestação da sua autonomia relativa como pode ser exemplificado (na notícia directa mais antiga que conhecemos) com a contundente crítica feita pelo pároco de Rio Frio de Ávila aos «borrachos» do conselho da aldeia, num texto de finais do séc. XVIII descoberto por Azorin (1946), que corresponde, genericamente, à posição de autoridades civis e religiosas que se agudiza e intensifica em determinadas conjunturas históricas e locais como ocorreu finda que foi a Guerra Civil de Espanha em relação à suposta violência verbal dos conselhos das aldeias de Sayago (Arguedas, 1968) intervenção censória a que Ruth Behar (1986) prestou particular atenção identificando sinais dela ao longo de séculos no seu estudo sobre a aldeia leonesa de Santa Maria Del Monte. E no entanto, é essa necessidade, valor social e volumes do consumo de vinho que se prende também a existência de uma instituição revelada pelo precioso inquérito conduzido por Joaquin Costa e seus colaboradores, no final do século em Espanha: a taberna do conselho. Lembrem-se os exemplos mais configurados retidos por Serrano Gomes para Bermillo de Herrero (Burgos) e pelo próprio Costa para as aldeias de Sayago onde a taberna pertence ao conselho, o ofício de taberneiro apresenta-se como um cargo comunal e alcança-se por arrematação em hasta pública, devendo fazer parte do pagamento uma determinada parte de vinho que o conselho necessitará para as suas reuniões e trabalhos a efectuar ao longo do ano. Em Sayago o taberneiro é ainda obrigado a manter a lareira acesa durante o Inverno e por isso tem a liberdade de colher a lenha que desejar no monte comunal, garantindo assim a manutenção daquele espaço onde os homens se reunem. Nas aldeias de León e Astúrias, não havendo nos textos então produzidos referência explícita à taberna como instituição ou coisa do conselho, é como tal que ela se apresenta. Em ambas as zonas as multas (em vinho) são garantidas por penhoras de objectos ou alfaias transportadas para a taberna e marcados pelo taberneiro com sinais que correspondem à quantidade imposta e que será fornecida ao conselho sempre que este o exija, sendo a despesa satisfeita pelo vizinho multado directamente ao taberneiro.
40Em alguns dos locais ou zonas referidas em que se vieram a fazer estudos a partir dos anos 50, já não há notícia da taberna do conselho ou, expressamente se diz que esta instituição deixou de existir, sem que os seus autores se debrucem sobre as formas actuais de inserção local desse lugar e revelador da aldeia. Em toda a bibliografia por nós consultada sobre Portugal não deparámos com exemplos claros como os que citámos assim como não existe memória local, em Rio de Onor ou Rihonor de Castilla sobre a existência passada da taberna como instituição comunal com o lugar de taberneiro ocupado por delegação formal do conselho. No entanto, um documento manuscrito por nós descoberto com o inventário de despesas efectuadas pelo consejo de Rihonor, no ano de 1780, faz referência explícita ao «dia en que se mudo el estanco», tratando-se certamente do lugar de venda de vinho controlado pela assembleia de vizinhos. Mas, mesmo sem aquele estatuto formal, são muitos os traços que apontam para a dimensão pública aldeã, da taberna, hoje constatáveis: lugar de frequentação geral e constante; de sociabilidades intensas e de antecâmara de relações da própria aldeia com o seu espaço exterior; espaço em que ritualmente se celebra o fecho do negócio ou contrato com o «alboroque» ou «robla» (é este último o termo registado nos livros de contas); disponibilidade permanente em atender os habitantes que, nas muitas «rondas» ao longo do ano, feitas sobretudo pelos moços, o obrigam a levantar-se da cama a qualquer hora da madrugada; organização formal dos registos de débitos que respeitam às casas (e não a indivíduos isolados) suas clientes; individualização perfeitamente caracterizada do conselho que, em determinada fase da sua história, foi mesmo o seu principal cliente.
41E é a partir desta relação do taberneiro com a aldeia (ambas as aldeias) enquanto colectivo instituído que propomos uma última reflexão sugerida também pelo texto que narra os acontecimentos do ano de 1935 ou 36. Aí vemos esse cliente — o conselho — a dirigir-se à taberna atravessando a fronteira; a procurar ocultar o facto para escapar ao pagamento de uma sanção formal que lhe foi aplicada; a pretender que a taberneira colabore nesse ocultamento, coisa que ela não fará; a atingi-la, enfim, discricionariamente reenviando, de alguma forma, para sua casa o valor da multa que pagara. Mas não é apenas enquanto tal — por ser bom cliente ou pela força e coercividade que é capaz de manifestar — que as relações conselhotaberna são fulcrais no modo de existência desta e na sua reprodução. De facto, os membros do conselho são, além disso, outros tantos vizinhos com contas próprias e que nunca aparecem apenas nesta última qualidade e, portanto, numa individualidade que o taberneiro poderia gerir. Assim este encontra-se inserido numa delicada rede de relações em que, para além de ele próprio ser um vizinho, ocupa um lugar que se organiza e constitui em espaço de referência polar, em torno do qual circulam, pessoas, bens, palavras, conflitos, alianças, tensões canalizados pelas casas e indivíduos, numa posição que o torna melhor informado, com a contrapartida da discrição e do silêncio geridos com a arte e diplomacia negociai de quem sabe que, mesmo quando lida com os vizinhos isoladamente, o seu cliente é a aldeia e é no quadro desta que o seu comportamento é avaliado.
42Este contexto altera-se com a progressiva frequentação da taberna por forasteiros, sobretudo depois de 1974 e 1978 (agora com a estrada alcatroada), que vão visitar a aldeia e fazer compras a Espanha diversificandose e aumentando a qualidade dos géneros vendidos, diminuindo o volume e o espaço de circulação do vinho e variando a presença física de pessoas na taberna. Mas, os vizinhos, os moços solteiros e o conselho continuam clientes com conta própria.
Bibliographie
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Notes de bas de page
1 Recorde-se era particular o livro de Laurence Wylie que, inserido na bibliografia, J. Davis não utilizou na secção acima referida, apesar de fornecer preciosas informações sobre a pequena mercearia local e os factores que condicionam o seu sucesso relativo, dos quais constam, entre outros, a naturalidade local ou a situação de forasteiro do seu proprietário e, em função disso, as facilidades de crédito que concedem e de que podem vir a ser vítimas (Wylie, 1972: 216-220).
2 De particular importância são os estudos clássicos e pioneiros de Arensberg (1937: Cap. V) e Arensberg/Kimball (1940: 285-287 e Cap. XX) sobre a Irlanda rural, que as notas de Cresswell (1969: 464-470) complementam. Ver, posteriormente à publicação da rèferida obra, as observações de F. Zonabend (1980: 279-298) sobre as relações entre o dono do pequeno comércio em Minot e os habitantes seus clientes.
3 Para se avaliar do grau de frequência e generalização desta taberna/mercearia das aldeias transmontanas, consulte-se o estudo de Paula Bordalo Lema sobre a distribuição e organização espacial das funções que servem os habitantes da região; em maior número e dispersão encontra-se exactamente a «taberna» logo seguida da «mercearia», apesar de na realidade concreta da sua existência local se confundirem, como dizemos no texto (Lema, 1980: 273, Quadro XXXII).
4 Consulte-se a obra de J. Dias (1953) quanto à caracterização geral da aldeia, actividades dos habitantes e ritmos que as cadenciam. No estudo mais recente a que procedemos foi dada particular atenção aos processos temporais que remetem para a historicidade da aldeia, chamando a atenção para as mutações ocorridas nas últimas décadas da sua história (Brito, 1989).
5 Em Rihonor existe ainda uma outra pequena taberna, com escasso movimento e praticamente encerrada desde que o seu proprietário (um homem de Rio de Onor aí casado) adoeceu no começo dos anos 80.
6 É sempre com preocupações de descrição e reserva que alguém procura comprar os géneros, se possível numa relação a sós com o taberneiro. É isto particularmente patente em relação às mulheres (as que, em geral, fazem as compras para a casa) e foi esse comportamento reservado e sigiloso que também F. Zonabend foi encontrar na aldeia de Minot.
7 A este propósito recorde-se o caso descrito por F. Zonabend (1980) do merceeiro que se viu forçado a abandonar a aldeia devido à reacção de afastamento dos seus clientes provocada pela sua determinação em impôr um horário rígido de abertura e fecho.
8 Veja-se a informação dada por J. Dias sobre a chegada desta inovação e o importante documento que constitui a fotografia de uma reunião do conselho junto à máquina de sulfatar.
9 Desde final dos anos 60 e começos de 70 generaliza-se o uso das galochas, de origem espanhola, compradas na taberna.
10 A entrega de pequenas quantidades de ovos para pagamento na taberna/mercearia parece ser frequente e foi referida para uma aldeia Zamorana por Esteva Fabregat (1978).
11 Uma afirmação por nós ouvida a um habitante de Rio de Onor em 1976, exprime já esta incorporação local de uma dependência do mercado em relação a alguns bens de consumo corrente entre os quais se encontram os que referimos no texto: «aqui produzimos tudo; se não fosse algum bacalhau, sal, açúcar e azeite, nem era preciso comprar nada».
12 É a casa com maiores quantidades compradas dos géneros referidos, de entre todos os clientes da taberna: entre 11 e 13 quilos por ano de escabeche, bacalhau e massa (em valores muito aproximados para qualquer deles), e cerca de 13 litros de azeite também por ano. Estes valores correspondem ao período de 1952 a 55 inclusive.
13 Sobre os modos de funcionamento do conselho da aldeia de Rio de Onor e da sua produção enquanto poder, veja-se o nosso estudo mais recente sobre a aldeia e os capítulos dedicados àquela instituição (Brito, 1989).
14 Tivemos oportunidade de analisar noutro lugar com mais detalhe a profusa circulação de vinho, a sua origem e significado social que acompanha o seu consumo (Brito, 1989).
Auteur
Professor Auxiliar do Departamento de Antropologia Social do ISCTE, membro do Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE) e do Centro de Estudos de Etnologia (INIC). O seu principal trabalho de investigação tem incidido no estudo das pequenas comunidades agro-pastoris de montanha, com especial ênfase nas estruturas e formas de organização comunitária, objecto de uma tese de doutoramento recentemente concluída — A aldeia, as casas: Organização comunitária e reprodução social numa aldeia transmontana (Rio de Onor). Outras áreas da pesquisa conduzidas pelo autor reenviam para o campo vasto e complexo das culturas populares: a oralidade e as festividades cíclicas. Fundador e director desta Colecção Portugal de Perto — Biblioteca de Etnografia e Antropologia.
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