16. Os bruxos
p. 211-220
Texte intégral
1A despeito de todo um conjunto de medidas preventivas, o infortúnio é inevitável. As coisas do mundo correm mal e os indivíduos necessitam de instrumentos para fazer face ao infortúnio. Não repetirei aqui o famoso exemplo de Evans-Pritchard sobre o celeiro Azande (1937:69-70). Bastará dizer que, mesmo no caso das pessoas saberem como é que as coisas correram mal, elas querem quase sempre conhecer também o porquê. Ou seja, precisam de uma explicação moral para o infortúnio — uma explicação do género da que é fornecida pela «inveja». Em seguida, apresentarei alguns dos meios terapêuticos utilizados pelos minhotos para explicar e fazer face ao mal. Neste contexto, há uma figura central, que os habitantes do concelho de Ponte da Barca designam geralmente através de um termo depreciativo: a «bruxa».
I
2Nos últimos cinquenta anos, a população rural começou a ter acesso a meios técnicos anteriormente inexistentes para enfrentar a doença e os acidentes. Os serviços de saúde, embora rudimentares, estão já disponíveis e os veterinários e técnicos agrónomos começam a implantar-se na sociedade local, fornecendo instrumentos úteis para enfrentar tipos específicos de infortúnio. O infortúnio sob a forma de conflito social dispõe também de uma solução técnica — os tribunais. Nas áreas menos isoladas desta província (como as freguesias aqui estudadas), o recurso aos tribunais como meio de resolver o conflito social é objecto de alguma aversão, apesar de ser uma prática antiga (cf. Coutinho, s.d.). Outros especialistas que, já há muito, são utilizados pelos minhotos são o farmacêutico, a parteira (sem formação especializada), o «endireita» e os «entendidos das vacas». Antes da Segunda Guerra Mundial, atribuía-se aos ferreiros uma habilidade especial para curar as feridas. Finalmente, os santos e os seus ex-votos ocupam também uma posição como assistentes nos períodos de infortúnio.
3Quando são confrontados com um determinado infortúnio, os camponeses geralmente não recorrem apenas a um especialista. Por exemplo, se uma criança adoece, os pais levam-na ao médico; modificam a receita médica de acordo com os conselhos do farmacêutico; prometem um ex-voto a um santo; e, enfim, consultam uma bruxa para saber se os vizinhos estão a deitar mau-olhado ou se a criança está «augada».
4Esta multiplicidade de especialistas pode ser explicada através de duas atitudes. Primeiro, embora os meios práticos para curar a doença se possam obter facilmente (como, por exemplo, no caso de uma infecção local), os camponenses acreditam que a cura não terá efeito se não for acompanhada pelo tratamento das razões morais do sofrimento (como no caso do «feitiço»). Segundo, tal como sugeri a respeito do conceito de «milagre», os camponeses minhotos não subscrevem a visão científica e mecanicista de causa e efeito que é partilhada pela burguesia «educada». Não possuem qualquer concepção de necessidade no devir dos acontecimentos, nem qualquer conceito de «leis da natureza». Esta particularidade é especialmente notória no caso de cadeias complexas de acontecimentos, cujo mecanismo exacto escapa à compreensão das pessoas iletradas. Tanto a medicação que é prescrita pelos médicos como a que é receitada pelas bruxas têm alguma probabilidade de ser bem sucedidas, mas nenhuma delas detém um controlo absoluto sobre os acontecimentos futuros e, por isso, nenhuma merece uma confiança total. Através de uma aproximação múltipla no seu esforço para a resolução de um infortúnio específico, os camponeses pretendem alargar as suas probabilidades de sucesso.
5Alguns especialistas, no entanto, são mais eficazes que outros para resolver determinados tipos de problemas. Se uma pessoa suspeita que o filho está «augado» não vai ao padre, que rejeita a existência dessas coisas, e sim a uma bruxa. Assim, os camponeses distinguem entre as «doenças de cá» ou «doenças de médico» e «as doenças de lá» ou «doenças que não são de médico».
6Algumas doenças físicas são óbvias e um indivíduo considera desnecessário acompanhar o tratamento médico com outros procedimentos. Mas se a doença é grave ou prolongada, se exige uma intervenção cirúrgica ou se o médico não consegue diagnosticar imediatamente a verdadeira natureza da doença, então mesmo as «doenças de médico» carecem de uma intervenção sobrenatural.
7Na sua grande maioria, as doenças sobrenaturais correspondem ao que nós designaríamos como problemas psicológicos. Os seus sintomas podem ser visões, tremores, transes, dores e aflições, fenómenos de espiritismo, comportamentos estranhos, atitudes de alheamento da vida social, comportamentos maníacos, sonhos perturbadores. Deve salientar-se também que esta distinção entre «doenças de cá» (doenças naturais) e «doenças de lá» (doenças sobrenaturais) pode representar, desde logo, uma resposta aos padrões de pensamento burguês, porque os médicos fracassam muitas vezes no tratamento dos doentes mentais e, além disso, mostram-lhes, por vezes, uma particular hostilidade. Os médicos são geralmente citadinos para quem o vocabulário usado pelos camponeses para descrever os problemas mentais é não só completamente opaco, mas também repugnante. A situação dos farmacêuticos é diferente, porque apesar de serem membros da burguesia provinciana e de exteriormente rejeitarem as crenças camponesas, têm uma grande familiaridade com elas: controlam o vocabulário camponês sobre a doença e sabem explorá-lo em seu benefício próprio. Por exemplo, os farmacêuticos vendem os purgantes contra o «feitiço» como se se tratasse de algo de clandestino, embora não exista qualquer razão oficial que o justifique. Com este procedimento, os farmacêuticos demonstram a sua familiaridade com a visão do mundo camponesa, a qual exige que todas as questões que estão relacionadas com o «feitiço» devem ser tratadas com o maior secretismo.
8Nas palavras dos jovens médicos do centro de saúde de Ponte da Barca, os seus maiores inimigos locais são a igreja que se opõe ao planeamento familiar e os farmacêuticos que sabotam as receitas médicas. Os camponeses têm interesse em mostrar respeito aos farmacêuticos, pois eles são residentes permanentes com os quais os camponeses precisam lidar continuamente, enquanto os médicos são normalmente residentes temporários. De resto, o farmacêutico é mais convincente, porque explora a sua familiaridade com a linguagem camponesa da doença.
9Embora subscreva sistematicamente as atitudes da burguesia das grandes cidades contra a visão do mundo camponesa, a burguesia provinciana é colhida entre dois mundos. O seu conhecimento da visão do mundo camponesa permitelhe utilizar o vocabulário camponês nos casos em que os seus interesses saem beneficiados. O que sugerimos a respeito dos farmacêuticos pode ser, aliás, aplicado a todos os comerciantes, advogados e burocratas da vila.
10Há alguns especialistas entre os camponeses, como os endireitas («pandôrco» é o termo local), os vedores de água e os entendidos das vacas, que não estão cercados por uma aura sobrenatural. (Em particular, os últimos actualizam as suas técnicas de tal maneira que os seus serviços são, por vezes, quase indistinguíveis dos serviços dos veterinários.) Eles possuem um «dom», que provavelmente emana de Deus, mas que não tem qualquer utilização fora da sua esfera de acção. A sua popularidade não parece ter enfraquecido com a competição com alternativas mais científicas.
II
11A despeito das mudanças ocorridas num passado recente nas atitudes e imagens que projectam, as bruxas continuam a ser figuras centrais da vida camponesa. A impressão que retive na minha experiência de trabalho de campo foi que o número das bruxas e a frequência com que são consultadas estão a aumentar. Mas estas transformações são, decerto, impossíveis de avaliar com um suficiente grau de exactidão.
12A palavra «bruxa» cobre uma ampla gama de significados. Num sentido primário, refere-se a «uma mulher que supostamente possui poderes e conhecimentos sobrenaturais ou mágicos, usualmente através de um pacto com o Diabo ou com um espírito maligno inferior» (Chambers Dictionary). Mas quando os camponeses dizem que «fulano ou sicrano foi ontem à bruxa», não estão a referirse a uma bruxa neste primeiro sentido e sim a uma pessoa dotada de poderes sobrenaturais, que pode anular os efeitos das forças anti-sociais e, inclusive, mover-lhes um contra-ataque. Essa pessoa pode ser um adivinho, um feiticeiro, um benzedor, um médium, um exorcista ou mesmo um certo tipo de padre. Embora as pessoas possam temer ou falar ironicamente destes especialistas, não os confundem, por certo, com as bruxas no sentido primário da palavra. Aliás, é ponto assente que as bruxas no sentido primário, são sempre mulheres, enquanto os bruxos, no sentido de especialistas rituais, podem ser homens ou mulheres.
13Esta ambiguidade não se circunscreve, de resto, ao norte de Portugal. Vários etnógrafos ibericistas mencionam a existência de uma distinção entre bruxas no sentido primário e bruxas no sentido de especialistas rituais, vincando sempre, porém, que esta distinção é caracterizada por grande ambiguidade (Caro Baroja, 1961:317-8; Pitt-Rivers, 1971:195; Lisón Tolosana, 1971b:322; Christian, 1972:192; Cátedra Tomás, 1976:40).
14Um outro exemplo desta ambiguidade pode ser surpreendido na utilização da palavra «feiticeira» que significa originalmente «uma pessoa que faz feitiço» (Morais, 1952). Na fala local, no entanto, há uma inversão peculiar entre esta palavra e a palavra «bruxa». Quando os habitantes locais desejam expressar a diferença entre bruxas no sentido primário e bruxos/as no sentido de especialistas rituais, designam as primeiras como «feiticeiras» e os segundos como «bruxos/as». Estas palavras podem ser, noutras circunstâncias, usadas como sinónimos, com a ressalva de que «feiticeira» refere-se sempre a uma mulher e tem implicações muito mais abomináveis. A utilização desta palavra para descrever uma bruxa (no sentido de especialista ritual) é uma maneira de denegrir o seu carácter implicitamente. Uma mulher de Paço a quem sugeri, ironicamente, que o melhor seria adoptar a profissão de bruxa, porque ganharia muito mais que na agricultura, respondeu-me que nunca o faria, já que «os vizinhos iam chamarme feiticeira».
15Mas as mulheres que, nestas freguesias, são acusadas de serem bruxas no sentido primário não são bruxas no sentido de especialistas rituais e vice-versa. A afinidade entre estas duas figuras, que os residentes locais exprimem através da ambiguidade lexical acima descrita, deve ser, portanto, procurada a um nível de significação mais profundo. De facto, nunca me foi dito que os especialistas rituais que têm um comportamento particularmente anti-social se transformam em bruxas no sentido primário. De resto, os próprios padres podem ser bruxos no sentido mais lato.
16As atitudes clandestinas, que dissimulam as visitas dos camponeses aos especialistas rituais, podem sugerir uma possível explicação para esta ambiguidade lexical. Quando um camponês pretende os serviços de um «bruxo», ele evita utilizar os transportes públicos para que o destino da sua viagem não seja evidente. Prefere recorrer a um táxi ou a um automóvel de parentes próximos ou de amigos. Normalmente, as pessoas partem de noite e regressam no dia seguinte, depois do anoitecer.
17Uma explicação parcial para este secretismo é que os poderes dos «bruxos» podem ser utilizados de uma forma anti-social, para atacar e tentar influenciar os vizinhos. Mas isto não basta para explicar o motivo que leva, por exemplo, a que os purgantes, que contribuem para a expulsão do feitiço, sejam comprados e vendidos em segredo apesar do seu carácter puramente de protecção. Na verdade, um dos tópicos favoritos dos mexericos locais são as visitas aos «bruxos» efectuadas pelas outras pessoas. A visita a um «bruxo» diminui ligeiramente o prestígio de uma pessoa e, por isso, as mexeriqueiras locais, elas próprias frequentadoras dos «bruxos», não deixam de publicitar qualquer visita das suas vizinhas. A explicação sugerida para o secretismo das visitas próprias e a preocupação em publicitar as dos outros é que «os que vão mais vezes aos bruxos são os que causam mais mal». Nenhuma pessoa admitiria que faz mais visitas aos «bruxos» que os seus vizinhos. Como o «bruxo» lida sobretudo com os efeitos deploráveis das forças anti-sociais, a pessoa que recorre aos seus serviços está a acusar implicitamente os seus vizinhos de permitirem a expressão dessas forças. Uma vez que, idealmente, a sociedade local deveria estar liberta das forças anti-sociais, o facto de um indivíduo reconhecer explicitamente a necessidade de se proteger contra elas equivale a afirmar que está a participar abertamente na acção combinada dessas forças. Aliás, muitos dos meios utilizados pelos «bruxos» como protecção contra o mal podem ser também utilizados para causar o mal.
18Mesmo quando operam com poderes que se baseiam manifestamente na graça revitalizadora de Deus, os «bruxos» são considerados como os sinais da existência de forças anti-sociais, ligadas ao mal e à morte, no interior da sociedade humana. Assim, em termos analógicos, são associados à cupidez e à inveja femininas: os protótipos da fraqueza moral humana. Isto explica a ambiguidade lexical entre duas personagens que, exteriormente, se distinguem facilmente: os «bruxos» no sentido de especialistas rituais e as bruxas no sentido primário do termo.
III
19Há uma grande diversidade de tipos de «bruxos». De uma forma aproximativa, podem distinguir-se fundamentalmente duas categorias: (1) os que se baseiam sobretudo em fontes tradicionais de conhecimento e possuem uma clientela local constituída principalmente por camponeses pobres e (2) o novo tipo de «bruxo», citadino, frequentemente burguês e educado e que baseia o seu trabalho em diversas fontes de informação. Não me é possível estabelecer rigorosamente o momento em que este segundo tipo emergiu. Parece, no entanto, que o seu impacto original remonta a meados dos anos 60, um período de grandes transformações económicas e ideológicas. No Alto Minho, este segundo tipo substituiu praticamente o tipo mais antigo de «bruxo». Por outro lado, apropriouse progressivamente de muitos dos atributos e funções que pertenciam aos padres que, devido à «modernização» do sacerdócio iniciada nos anos 60, foram impedidos de os exercer.
20Estes novos bruxos apoiam-se fortemente numa rede de intermediários que lhes encaminham os seus clientes: mulheres solteiras, com inclinação para o negócio ou taxistas que estabelecem um acordo especial com o bruxo. Para a imagem dos novos bruxos é vital residir nas cidades ou nos centros urbanos (excepto no caso dos padres), porque, como repetem invariavelmente, não são «um labrego qualquer», mas sim «pessoas educadas» com status. De resto, a distância geográfica que os separa da residência dos seus clientes liberta-os de preocupações sobre a preservação da sua reputação; quando esgotam uma área rural particular, podem renovar facilmente a sua clientela noutras zonas. De facto, o taxista de Paço confessou-me mesmo que substitui regularmente o bruxo que recomenda aos seus co-fregueses para evitar que o atractivo da novidade esmoreça.
21Os «bruxos» do primeiro tipo são actualmente muitos raros. Incluem-se aqui as «mulheres de virtude», as «entendidas», as «habilidosas» e as «curiosas». Estas mulheres desempenhavam duas funções básicas: adivinhar e curar. Mas as suas imagens e atributos variavam consideravelmente desde a parteira que detinha algum conhecimento mágico até à especialista possuidora de uma grande clientela e que vivia exclusivamente dos rendimentos da sua actividade.
22A maioria dos relatos que obtive sobre as acções dos bruxos do tipo tradicional baseia-se em visitas que foram efectuadas há mais de vinte anos. Estas mulheres colhiam o seu conhecimento em todas as fontes possíveis, resultando uma miscelânea de informação que, ocasionalmente, incluía mesmo conselhos de natureza médica. Mas a sua fonte principal de conhecimento esotérico era o Livro de S. Cipriano. Aí aprendiam a deitar as cartas, o que parece ter constituído o seu instrumento principal para a aquisição de conhecimentos sobre o passado e o futuro do cliente.
23Algumas destas mulheres sobreviveram à competição do novo tipo de «bruxos». Entre os casos notáveis na região da Ponte da Barca, poderemos citar uma mulher de uma freguesia da margem oposta do rio que se especializa em poções de amor, e uma mulher residente numa vila próxima que «deita as cartas» e que, em estado de transe, prevê o futuro dos clientes.
24A descrição seguinte narra a visita a uma bruxa efectuada por uma vizinha de Paço no princípio dos anos 60. O marido desta mulher ia fazer em breve o exame de condução e o sucesso era absolutamente essencial, porque só assim poderia ser taxista, e ganhar o suficiente para se livrar das suas dívidas. A mulher partiu, muito cedo, acompanhada pela irmã, e passou toda a manhã a caminhar pelos montes. Por volta do meio-dia, chegaram à casa da bruxa, onde se encontrava já um grande número de clientes. As duas mulheres foram, finalmente, recebidas pela bruxa e entregaram-lhe um lenço que pertencia ao marido, porque as bruxas exigem quase sempre uma peça de roupa da pessoa sobre quem se pretende informações. A bruxa pegou no lenço e deitou as cartas. Depois de terminar, procurou um crucifixo e murmurou algumas orações. Disse, então, à mulher que o marido passaria no exame de condução, mas teria mesmo assim de emigrar para o Brasil, porque não ganharia dinheiro suficiente na terra. (A mulher lembra-se muito nitidamente da consulta, dado que esta previsão se revelou correcta: o marido foi forçado a abandoná-la, a si e aos seus dois filhos, durante dez anos). Antes de regressarem a Paço, ofereceram algum dinheiro à bruxa, porque «ela não leva nada, mas é costume agradecer-lhe.» Eu próprio fiz uma visita a um homem de um concelho próximo que desfruta de uma grande reputação como adivinho. Verídica ou não, a história deste homem é particularmente interessante. Os seus clientes acreditam que ele morreu e que, durante o velório, «regressou» subitamente. Infelizmente, prossegue a história, nesse preciso momento, um seu velho amigo aspergia o pseudo-cadáver com água-benta, como é costume fazer-se durante os velórios. Quando o amigo viu o cadáver a erguer-se, sofreu um choque terrível, foi acometido por um ataque cardíaco e morreu no local. Devido à sua viagem pelo «outro mundo», atribuem-se a este homem especiais poderes divinatórios. O seu caso foi o único desta natureza de que tomei conhecimento. Desconheço, pois, se corresponde a uma tendência recente ou antiga. Em todos os demais aspectos, este homem comportava-se como um bruxo da maneira antiga, era pobre, sem educação, não exigia qualquer pagamento e aceitava apenas um «presente».
25O poder de adivinhar divide genericamente os «bruxos» de renome das simples mulheres locais que adquiriram algum conhecimento sobre orações e técnicas curativas — as «curiosas» ou as «rezadeiras». Estas orações são frequentemente dedicadas a santos particulares e são acompanhadas por curas que utilizam ervas e produtos locais dotados de presumíveis poderes: azeite, ramos de oliveira benzidos, loureiro, buxo, trovisco, folhas de eucalipto, alho e rosmaninho. Os objectos benzidos pelo padre (como os ramos de árvores, as velas, a água e o azeite) são também revestidos de poderes especiais, à semelhança dos objectos que acompanham a Eucaristia (a pedra de ara, as franjas da estola e do manipulo e as chaves do tabernáculo). Algumas destas mulheres especializam-se, além disso, na incineração de substâncias em ligação com o lançamento de feitiços ou contra-feitiços («defumadouros») e à feitura de amuletos contra o feitiço e o mau-olhado que são usados quer pelos humanos quer pelos animais.
26Antes do aparecimento do novo tipo de «bruxos», o único competidor dos «bruxos» era o padre. Os padres costumavam exorcizar e curar através da oração. Já antes dos anos 60, a aptidão demonstrada por alguns padres no exercício destas actividades lhes atraía um grande renome. Actualmente, porém, muitos padres recusam executar estas práticas e o seu papel foi ocupado pelos novos «bruxos» e por alguns padres especializados neste domínio. Estes últimos também são designados pelos residentes locais como «bruxos». O seu papel e a sua posição serão discutidos na próxima secção.
27O novo tipo de «bruxo» depende muito dos símbolos de status urbano, do simbolismo da igreja, do jargão médico e do conhecimento esotérico de carácter literário — astrologia, espiritualismo, parapsicologia. Recorre, fundamentalmente, a um novo tipo de literatura, oriunda sobretudo do Brasil, que inundou o mercado português principalmente depois da revolução de 1974, com a eliminação da censura sobre os livros. Estes bruxos rodeiam as suas actividades de um surpreendente profissionalismo: muitos exibem cartões de visita e publicam mesmo anúncios nos jornais. Finalmente, há uma maior percentagem de homens relativamente às mulheres, o que sugere outro interessante desvio em relação ao tipo tradicional de «bruxos».
28O prestígio crescente da tecnologia e da ciência nas décadas recentes ligouse a um crescente sentimento de impotência entre os que não dominam tais recursos. O novo tipo de bruxo explora este sentimento; utiliza o status burguês e os símbolos da instrução como meios para valorizar o seu próprio prestígio e para impressionar os camponeses com o seu poder. Porém, as ideias essenciais, as cerimónias e os intrumentos rituais manipulados são bastante similares aos dos bruxos tradicionais. O que mudou foi o estilo de linguagem e a apresentação, e não tanto a essência ritual — o que era de prever, já que, de contrário, seria menor a atracção exercida sobre os camponeses.
29O facto de cobrarem «honorários» pelas suas consultas, a níveis próximos ou mesmo superiores aos que são praticados pelos médicos, invocando o pretexto da sua educação profissional, é uma das inovações mais relevantes. Com este procedimento, os novos «bruxos» reivindicam a sua adesão ao mundo urbano. Os «bruxos» do tipo tradicional, inseridos no interior da esfera cultural do protótipo de subsistência, apoiam-se no sistema antigo de não receberem pagamento; mas fazem crer aos clientes que os seus serviços terão maior eficácia se forem devidamente «agradecidos». No dizer destes «bruxos», esta atitude é uma forma de evitar que os clientes os acusem de serem «comedores», ou seja, de visarem o lucro pessoal em detrimento do bem-estar dos clientes. Mas, apesar de tentarem evitar esta imagem, os «bruxos» tradicionais são considerados como potencialmente interesseiros e, logo, como «comedores». Por lidarem com o lado obscuro da humanidade, são olhados com suspeita e desconfiança. Neste aspecto, estão numa posição similar à dos cangalheiros, malquistos por uma actividade desprezível que, no entanto, é fundamental para a comunidade que servem. A insistência por parte do cliente no pagamento de algo ao «bruxo», mesmo no caso do tipo tradicional de «bruxo», nunca é inocente e não é prioritariamente um sinal do «agradecimento» dos clientes, mas sim uma demonstração da sua desconfiança: os clientes temem que, se não pagarem, o bruxo possa sentirse ofendido, tornando ineficazes os seus serviços ou virando-os até contra o cliente.
30Os «bruxos» são consultados por diversos motivos. Alguns casos são prolongados e envolvem repetidas consultas. A maioria, no entanto, são bastante simples. Uma bruxa do Porto (que afirma ter um «curso de espiritualismo») revelou aos proprietários de uma loja de Paço que lhes tinham posto um feitiço para repelir os fregueses. A bruxa deslocou-se à loja, praticou exorcismos, fez um defumadouro e adivinhou o lugar onde o feitiço fora dissimulado. Quando o encontrou, o feitiço consistia em simples poeira que, no entanto, segundo a «bruxa», devia ser atirada ao mar. Um vizinho de Couto consultou outra «bruxa», porque tinha sonhado com um amigo defunto, que lhe disse que ele morreria brevemente; uma mulher queria saber se o marido era infiel; outra queria confirmar a sua suspeita de que um certo homem roubara dinheiro da sua casa; enfim, outra queria descobrir o que se passava de mal com o seu filho enfermiço.
31A escolha do «bruxo» depende da gravidade do caso. Tratando-se de um problema menor, os camponeses consultam uma «bruxa» das imediações; se é um problema mais sério, preferem dispender mais dinheiro e deslocam-se a um dos poderosos novos «bruxos» da cidade. Muitos clientes são mulheres que raramente se ausentam dos seus concelhos de residência, não tendo motivos para visitar regularmente as cidades. Uma visita ao «bruxo» é, assim, um prazer aguardado com grande impaciência. O sucesso dos «bruxos» urbanos não é, aliás, alheio à prosperidade recente dos camponeses que lhes possibilita a realização destas viagens. Outrora, seria impensável para os camponeses o recurso aos serviços dispendiosos de tais «bruxos». Nesses tempos, a sua única alternativa eram as «entendidas» locais.
IV
32Quando um camponês minhoto pretende persuadir uma pessoa sobre as qualidades de um «bruxo», começa, geralmente, por salientar que ele ou ela detém, entre outros poderes, uma capacidade particular de acesso a informações que normalmente são inacessíveis. Os termos «curiosas» e «entendidas» indicavam precisamente essa busca da aquisição de um conhecimento esotérico. Este é um dos aspectos que os próprios «bruxos» gostam de destacar. Muitos outros vão mais longe, porque afirmam possuir conhecimentos que estão absolutamente vedados às pessoas comuns: podem «adivinhar». Os relatos que obtive sobre consultas a bruxos fazem convergir sempre a atenção do ouvinte na extraordinária capacidade dos «bruxos» de revelarem coisas que nunca lhes tinham sido ditas. É este, aliás, o motivo mais importante que leva a maioria das pessoas a consultar os «bruxos». Os medicamentos receitados são, geralmente, pouco importantes; foi com alguma surpresa que me apercebi que os meus informantes nem sempre se mostravam muito interessados por esta característica. Fascinava-os, sobretudo, o facto de os «bruxos» poderem sentir nos seus corpos a localização das doenças do paciente ou o facto de outros «bruxos» poderem «ver» para além dos poderes humanos normais.
33Em geral, é com a demonstração do seu conhecimento sobre a vida passada de um cliente que o «bruxo» valida as afirmações que faz, em seguida, sobre o futuro. À medida que se vai deslocando dos aspectos mais facilmente previsíveis para os aspectos mais concretos da vida de um cliente, o «bruxo» é guiado pelas respostas do cliente à sua adivinhação. O que me intrigou mais, nas sessões que observei, foi o modo como os clientes participavam activamente com o «bruxo» na construção de uma resposta específica aos seus problemas, a partir das suas próprias afirmações gerais. As asserções do «bruxo» funcionam principalmente como dispositivos mnemónicos ou como um encorajamento ao pensamento lateral. Como David Parkin escreveu a propósito dos adivinhos africanos, «o estilo e o tema narrativo do discurso divinatório é um exemplo paralelo da especificação-de-um-problema como solução-de-um-problema» (1979:147). Nos casos mais complexos, a solução do problema só irá emergir lentamente ao longo de um processo composto por diversas consultas a diferentes bruxos. Noutros casos, é obtida com brevidade uma resposta que satisfaz o cliente. A uma mulher que se lamentava pelo facto de o marido, que trabalhava em Lisboa, não querer regressar a casa, uma «bruxa» explicou que a amante do homem tinha lançado um feitiço ao mar que era, portanto, irrecuperável. A solução não lhe foi muito agradável, mas, pelo menos, funcionou como uma resposta satisfatória, porque lhe permitiu enfrentar a deserção do marido sem a perda total da sua dignidade.
34Enquanto curandeiros, os «bruxos» fornecem aos minhotos a possibilidade de actuarem para além dos poderes humanos normais; enquanto exorcistas, fornecem uma protecção contra os poderes sobrenaturais. O minhoto que consulta um «bruxo» tenta aceder a poderes que normalmente lhe são inacessíveis, a fim de contrariar as forças malignas que assediam o seu mundo. Mas esta não é talvez a função principal dos «bruxos». Através da adivinhação, os habitantes locais podem situar o infortúnio no interior de um quadro cognitivo e, assim, transformar a sua ausência radical de significado numa realidade que é possível de compreender.
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