As relações com mal
p. 197-200
Texte intégral
1A adesão ao ideal de comunidade e igualdade consagrado no protótipo de subsistência significa que os próprios camponeses minhotos se apercebem do desfasamento entre este ideal e a sua vida social real. Este desajustamento é, para eles, um fracasso que se manifesta não só na existência do conflito e da desigualdade sociais, mas também em muitos tipos de infortúnio considerados como desvios do estado ideal de bem-estar. O mal moral e o mal do infortúnio estão profundamente interligados, porque ambos são aspectos da mesma coisa—são imperfeições face à vida ideal desejada pelo grupo. A fertilidade, a riqueza, o bem-estar físico não bastam; há que encontrá-los dentro de um mundo social. Isto é, um mundo caracterizado pela ordem, distinguindo-se, assim, do mundo animal. Por «ordem», entende-se a capacidade de controlo que permite aos seres humanos predizer e ajustar a realidade a um conjunto de objectivos comuns.
2Logo, o problema de explicar as razões da crença na eficácia da «magia» é um problema falso. Wittgenstein, num comentário a Frazer, escreve: «Queimar em efígie. Beijar o retrato de um amado. Isto não está baseado, obviamente, na crença de que se produzirá um efeito definido no objecto representado pelo retrato. Pretende alguma satisfação e consegue-a. Ou antes, não pretende o que quer que seja; procedemos desta maneira e, depois, sentimo-nos satisfeitos» (1982:4e). Quando as pessoas, por exemplo, pedem a Deus a chuva que, com toda a probabilidade, está prestes a cair, não estão a cometer um «erro»; estão sim a interpelar a natureza unitária da sua imagem da vida. Não desejam simplesmente chuva, desejam chuva «bendita», aquela que cai no momento certo e que dura o tempo certo.
3O conceito cristão de «bênção» é aqui perfeitamente adequado. As bênçãos podem ser invocativas, quando o favor de Deus é suplicado para alguém ou para o bom uso de alguma coisa; ou constitutivas, quando alguma coisa ou alguém é dedicado ao serviço sagrado. Normalmente, são acompanhadas por um gesto purificatório: a aspersão de água benta. Surpreendemos aqui também uma associação entre o bem moral e o bem material. Mas a natureza elucidativa do conceito reside, particularmente, num conjunto complementar de associações, isto é, o da ordem, do uso correcto, do serviço sagrado e da purificação. A bênção é, então, um acto de comunicação (porque pode ser dirigida a Deus ou provir de Deus) que tenta instituir a vida ideal — assim, os seus benefícios materiais estão indissoluvelmente ligados aos benefícios espirituais, porque são a mesma coisa. Podemos compreender, pois, os motivos que levam a Igreja Católica Romana a permitir que a sua bênção seja concedida aos não católicos, mas apenas nos casos em que eles desejam suplicar a dádiva da fé ou, a par desta, a dádiva da saúde. Um não católico não pode invocar um benefício de ordem material, porque carece do seu correlato essencial que é o benefício espiritual da fé.
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