10. A gravidez, o parto e o baptismo
p. 130-148
Texte intégral
E as máculas da mão da natureza
Não pesarão sobre os seus filhos;
Nem verrugas, nem beiço rachado, nem sinais,
Nem marcas prodigiosas que
Infamam os recém-nascidos,
Aparecerão em filhos seus.
w. shakespeare, A Midsummer Night’s Dream
1O conjunto de proibições, ritos e crenças que rodeia a gravidez, o parto e o baptismo responde essencialmente a duas finalidades: por um lado, a uma tentativa de controlar os perigos pressentidos no processo da reprodução humana; por outro lado, a necessidade de transformar a criança, ainda próxima da natureza animal, num membro pleno da sociedade.
2Os residentes de Paço e de Couto referem essas prescrições e proibições pelo termo «adágio»; mas as suas atitudes sobre eles são marcadas por uma grande ambiguidade. Quando lhes perguntamos se acreditam nesses adágios, os camponeses mostram-se evasivos, pois conhecem bem o preconceito burguês que deprecia os adágios como «superstições», qualificando os que acreditam neles como «atrasados». Os adágios continuam, porém, a fazer sentido para os camponeses minhotos. Assim, mesmo aqueles que negam acreditar neles, consideram que devem ser «respeitados». É grande o número e a diversidade dos adágios, pelo que apresentarei apenas alguns exemplos. Pretendi, no entanto, cobrir a maioria dos tipos que fui descobrindo e que se relacionam com os temas agora em discussão.
I
3Embora muitas proibições ligadas ao período da gravidez sejam formuladas de forma positiva (isto é, quem fizer X, provoca Y), o seu sentido real só pode ser compreendido se forem consideradas como explicações post facto, em relação a acontecimentos que os habitantes locais pretendem compreender. De um modo geral, a sua lógica interna é a da chamada «magia simpática»: isto é, baseiam-se no estabelecimento de ligações analógicas muito simples entre dois acontecimentos ou dois objectos às quais é então atribuído um valor causal. Assim, o seu significado sociológico reside, não tanto na ligação analógica específica em que se baseiam, mas sim nos aspectos do comportamento social que pretendem destacar. Podemos afirmar, portanto, que o conjunto de adágios que iremos apresentar reflecte uma preocupação acerca da simbiose mãe-criança.
4Um número significativo destas proibições está relacionado positiva ou negativamente, directa ou indirectamente com a gratificação oral da mãe. Por exemplo, a mulher grávida não deve comer polvo ou lampreia, porque isso faria nascer a criança com os ossos fracos ou até sem ossos. A ausência de uma estrutura óssea torna os polvos e as lampreias em anomalias classificatórias. Além disso, são considerados iguarias. As mulheres grávidas são muitas vezes acusadas de ser «lambonas»; esta proibição é, assim, uma crítica de carácter moral contra a tendência da mãe à auto-indulgência oral e sublinha a necessidade de um controlo sobre essa fraqueza moral para proteger a formação da criança.
5A proibição seguinte explora precisamente esta relação: os fortes desejos que as mulheres sentem por comida durante a gravidez têm de ser satisfeitos para evitar que a criança deite mau-olhado mesmo sem qualquer intenção, (cf. Lévi-Strauss, 1966:79).
6Os habitantes locais explicam que é a «invejedade» dos vizinhos que causa o mau-olhado. Pode, assim, parecer estranho que uma das razões mais comuns para se acusar certos indivíduos de deitarem mau-olhado não se relacione directamente com a «inveja». A ligação implícita entre estas duas convicções tornase clara, no entanto, se notarmos que os fortes desejos que uma mulher grávida sente em relação a certos alimentos derivam da sua incapacidade em controlar os seus desejos, o que, por sua vez, está associado à sua condição de grávida. Se os seus desejos não são satisfeitos, a mulher desliza para um estado de frustração do desejo que tem afinidades com o estado semelhante que caracteriza os vizinhos «invejosos». Há, assim, uma ligação analógica entre a «inveja» e a «cupidez», ou seja, duas manifestações igualmente anti-sociais causadas por uma falta de controlo.
7Na proibição seguinte observamos uma ligação idêntica; se a mulher grávida vira a cabeça ou olha para trás durante a elevação da hóstia, a criança virá a deitar mau-olhado mesmo sem qualquer intenção.
8O acto de virar a cabeça durante a elevação da hóstia é uma rejeição simbólica de um tipo muito especial de alimento. No decorrer da missa, Deus é literalmente «consumido» pelos membros da congregação. A hóstia (ela própria uma forma de pão) é o mais sagrado dos alimentos: o seu consumo purifica e é fonte de bênçãos para os vizinhos que estão unidos na igreja. A rejeição da hóstia equivale a uma rejeição do acto «social» por excelência: o acto que une todos os vizinhos com a divindade. Ao afastar os olhos da hóstia, a mulher grávida permite uma investida das tendências anti-sociais que, posteriormente, virão a manifestar-se na criança.
9Finalmente, a mulher grávida não deve beijar (ou mesmo tocar, apesar do risco ser aqui menor) um cadáver, porque a criança poderá ficar muda. Esta proibição obedece também à lógica da magia simpática: o cadáver é, de alguma forma, mudo. Tal como Thomas escreve, «le silence.fait corps avec la mort, naturellement puisque le cadavre est muet, et culturellement puisqu’il est ‘outre-significance’ » (1980:59). A proibição marca também a necessidade da mãe grávida, que é um ser pleno de vida, de evitar o contacto com a própria corporalização da morte.
10Há ainda um outro conjunto de proibições muito divulgadas em Paço e em Couto: se a mulher grávida tocar em flores, em carnes de fumeiro com cheiros fortes, em ratos, em toupeiras ou em baço de porco, a criança pode vir a nascer com um sinal. Para contrariar o aparecimento desta mancha numa parte do corpo, que desfiguraria a criança, a mãe deve tocar o objecto e colocar imediatamente a mão sobre as nádegas ou as coxas. O sinal congénito da criança é, assim, desviado para esta área do corpo onde é mais apropriado.
11As ligações analógicas específicas entre os referidos objectos e os sinais congénitos não são propriamente o que nos interessa aqui. Em muitos casos, a associação baseia-se simplesmente em semelhanças superficiais entre os sinais congénitos e os objectos — a cor avermelhada, o seu carácter chamativo, o aspecto piloso. Por vezes, estas ligações dissimulam-se misteriosamente na história da língua — por exemplo, baço deriva da raiz latina badiu que significa «avermelhado», «baio» (Corominas, 1980).
12O interesse específico deste conjunto de proibições reside sobretudo no facto de se sentir a necessidade de explicar os sinais congénitos. As partes escolhidas pela mãe para a sua localização (as coxas e as nádegas) são significativas pela evidente similaridade, que decerto não escapou ao leitor, entre os sinais congénitos escuros e pilosos e os órgãos genitais escuros e pilosos. É a incapacidade da mãe de controlar o seu comportamento durante o período impuro da gestação que explica o aparecimento destas manchas que, tal como os orgãos genitais, não devem ser visíveis.
II
13As proibições consideradas até este ponto referem-se à relação mãe-criança. Mas, devido à importância que o conceito de casa ocupa na visão do mundo local, não nos surpreende a descoberta de um outro conjunto de proibições prénatais que, desta vez, se aplicam a todos os membros da casa: «os que comem juntos». Além disso, as sanções, que supostamente resultam do desrespeito destas proibições, não se aplicam apenas à criança, mas também a muitos outros produtos da casa.
14Se estas proibições não forem respeitadas, os habitantes locais consideram que os filhos do animal ou da mulher em estado de gravidez pertencentes à casa virão a nascer com uma deformidade física. A deformação relaciona-se geralmente com a natureza da transgressão. Alguns dos meus informantes alargaram este raciocínio também ao acto de cortar madeira (que ganha caruncho se for cortada em determinados dias) ou ao acto de apanhar couves (que serão atacadas pelas lagartas).
15Em determinados dias do ano é proibido furar, serrar, cortar, atar ou torcer seja o que for. Trata-se de actos violentos que implicam uma transformação das fronteiras e da forma do objecto. Além disso, a maioria destes actos requer a intervenção de instrumentos metálicos cortantes.
16As proibições anteriormente referidas presumiam que o comportamento da mãe se reflectiria na criança que estava precisamente a percorrer o estágio vulnerável da sua formação. Este novo conjunto de proibições pressupõe que as acções de membros da casa que alteram as fronteiras dos objectos irão reflectir-se nos produtos da casa que atravessam também um estado vulnerável de metamorfose, de transformação biológica. Em Paço, um certo homem que passara todo o dia a atar videiras, levantou-se, a meio da noite, e desfez todo o trabalho da jornada, quando a mulher lhe disse que suspeitava estar grávida. O homem temeu que a criança pudesse nascer com as pernas ou os braços «atados».
17A ligação analógica que aqui se opera é rigorosamente a inversa da ligação analógica implícita na crença que diz que um lobisomem (o sétimo filho de uma linha de sete filhos) só poderá ser liberto do seu «fado» se for ferido com um instrumento metálico cortante e derramar sangue. O lobisomem vive num estado permanente de metamorfose; todas as noites, ele se transforma em animal e é forçado a frenéticas correrias. O seu ferimento com um objecto metálico produz a interrupção desse processo de metamorfose. Pelo contrário, no caso da criança ou da prole dos animais domésticos, o processo de metamorfose deve ser conduzido até à desejada conclusão.
18Esta ideia permite esclarecer a razão da utilização dos objectos metálicos cortantes em muitos outros contextos. Os metais, particularmente o ferro e o aço, são as substâncias mais estáveis de fácil acesso ao habitante local e, ao mesmo tempo, as que podem provocar um maior dano. Por isso, são utilizadas recorrentemente para marcar uma ruptura definitiva ou uma conjuntura crítica. Os objectos metálicos são utilizados para proteger a criança que não está baptizada contra as bruxas, delimitando, assim, uma barreira entre a criança e as suas origens corruptas. Uma lógica, inversa é observável no facto, ainda comum nos anos 30, dos ferreiros serem considerados como cirurgiões particularmente hábeis para curar feridas (Pires de Lima, 1938:180).
19Ambos os tipos de proibições pré-natais acima descritos podem ser, em graus diversos, tomados como explicações do infortúnio. Em termos gerais, os infortúnios são explicados, no primeiro conjunto de proibições, com base na suposta vulnerabilidade moral que caracteriza a mãe durante o período de gestação e estão associados à impureza dos sinais congénitos e ao mau-olhado. No segundo conjunto, onde as proibições afectam toda a casa, os infortúnios são atribuídos à vulnerabilidade do próprio período de gestação, quando é fácil a ocorrência de um desregramento no processo de transformação morfológica. Assim, a reprodução das pessoas e dos animais, e das casas em geral, é simbolicamente caracterizada pela fragilidade moral e física e é particularmente vulnerável a ameaças anti-sociais.
20Mas as diferenças entre os dois tipos de proibições permanecem importantes. No segundo tipo, a reprodução desloca-se do domínio da fertilidade feminina impura para o domínio da fertilidade plenamente «social» da casa. É elucidativo o facto desta deslocação se conjugar com uma alteração no tipo de vulnerabilidade que caracteriza as duas explicações. No primeiro tipo, a vulnerabilidade tem uma conotação moral (mau-olhado) e está ligada à poluição; no segundo tipo, ela é meramente morfológica.
III
21Mas o infortúnio associado ao parto não se limita às deformidades físicas. As mulheres podem ter partos prematuros ou nados-mortos e os seus filhos podem morrer precocemente. Quando esta ocorrência é esporádica ou é claramente imputável a causas externas, os habitantes locais tendem a consultar simplesmente um médico. Porém, se a mulher for afligida repetidamente pelo mesmo tipo de infortúnio e, sobretudo, se os médicos não conseguirem diagnosticar uma causa ou realizar a cura, as pessoas podem sentir a necessidade de uma aproximação mais global sobre o problema. Provavelmente, a mulher irá prometer uma oferta votiva a um santo ou à Virgem Maria na esperança de um resultado feliz. Em todo o caso, os minhotos conhecem um remédio específico para debelar este problema, sendo poucos os indivíduos desta zona que, numa situação extrema, não recorreriam a esta possibilidade. Trata-se do chamado baptizado da meia-noite.
22Há uma ponte do século xv sobre o rio Lima, próxima da vila de Ponte da Barca, que (a) liga dois concelhos e (b) está orientada numa direcção nortesul, pelo que satisfaz as condições reconhecidas como necessárias para o sucesso da cerimónia.
23E. Cruz que participou ele próprio numa destas cerimónias, oferece a seguinte descrição:
Numa das noites do último mês, a mulher vem postar-se na meia-laranja brasonada da ponte, extremo dos concelhos da Barca e Arcos de Valdevez, antes da meia-noite e aí espera a passagem da primeira pessoa que faça o baptizado, com água tirada do rio, por um púcaro de barro, suspenso de uma corda.
Neste particular, o ritual oferece dúvidas que o padrinho resolve, ordinariamente, consoante as circunstâncias, pois parece não estar bem assente se a água deve ser tirada, ao dar da meia-noite, por qualquer das pessoas presentes, ou se deve tirá-la o padrinho, quando chegar.
O que é essencial é que este passe, por acaso, e não propositadamente e que, antes dele, depois da meia-noite, não tenha passado fôlego vivo, cão ou gato, ou seja o que for.
O primeiro fôlego vivo terá que fazer o baptizado e um irracional não tendo alma, é óbvio que não a pode dar, [...]10
A cerimónia do baptizado é simples. Embebido na água um ramo de oliveira, asperge-se por três vezes no ventre da mulher, repetindo a fórmula: — Eu te baptizo, em nome do Padre, do Filho e do Espírito-Santo.
É preciso não dizer «Ámen». Nunca consegui averiguar a razão, mas não se deve dizer. Isso fica reservado ao padre, no outro baptismo, depois do nascimento da criança. Também não se lhe põe nome, na impossibilidade de saber se será macho ou fêmea (Notícias da Barca, 8/1980.T6).
24Depois, os pais servem uma refeição ao padrinho que pode comer quanto quiser. Este indivíduo, se possível, será também o padrinho do baptismo pela Igreja.
25Mas qual será o significado assumido neste ritual pelo rio? O rio Lima era designado pelos autores clássicos como Lethes, Oblivio ou Flumen Oblivionis. Estes nomes reenviam para uma tradição ainda familiar aos residentes do concelho, segundo a qual as pessoas que atravessavam o rio viriam a esquecer o seu lugar de origem. Uma tradição semelhante é encontrada hoje em relação à fonte de Fontainhas da vila de Ponte da Barca, situada nas proximidades do rio. Dizse que os forasteiros que bebem da sua água se prendem arreigadamente ao concelho e não desejam mais voltar às suas origens. Parece, de facto, existir uma coerência nos costumes e crenças ligadas aos rios em todo o Minho. Nestes costumes, desenha-se uma analogia entre, por um lado, a água que corre e que desvanece as coisas e, por outro lado, a memória das pessoas. Os rios são ainda fronteiras inscritas na paisagem e as canções populares contêm múltiplas referências às penosas travessias que é preciso efectuar. Os rios são como que suturas na paisagem: dividem a terra em espaços separados.
26Os vários actos rituais que constituem a cerimónia do baptizado da meianoite apresentam um conjunto de similaridades. A cerimónia é realizada à meianoite; sobre um rio (uma importante linha divisória); num ponto médio entre as duas margens; a água deve ser retirada de uma posição ao centro da ponte; e o lugar escolhido é a linha exacta da fronteira entre dois concelhos. As pessoas escolhem, assim, o tempo e o lugar mais aptos para representar a liminalidade. A necessidade da participação de um oficiante que não sabe antecipadamente da sua escolha pode ser interpretada de um modo semelhante. O conhecimento prévio da parte do oficiante representaria uma continuidade.
27Mas não pode esquecer-se que esta cerimónia é um baptismo e que os baptismos são ritos de purificação. A mãe grávida atravessa um estado impuro e perigoso. O baptismo da criança que se encontra ainda no ventre materno antecipa o momento em que ela recebe uma alma, ficando protegida pela graça de Deus.
28Além de ser um ritual de purificação, o baptismo é também um rito de incorporação (Van Gennep, 1960:62). Depois do baptismo, a criança torna-se um membro da sociedade no seu sentido espiritual e entra, portanto, no reino da ordem e da pureza, rompendo com o reino do caos e da corrupção. Devido à combinação de símbolos de liminalidade com o simbolismo da purificação e da incorporação, o baptizado da meia-noite pode ser entendido como uma tentativa de controlar o perigoso estado de liminalidade da mulher grávida.
29O relato de E. Cruz é ainda interessante sob o ponto de vista das relações entre a burguesia e o campesinato:
Mas não só às criaturas rudes do povo contagiou a fama dos baptizados da meia-noite. Mesmo na gente de cultura média, é geral nos meus sítios a crença no seu efeito [...] E a verdade é que os factos se têm encarregado de a robustecer. Poderia citar nomes de pessoas que se distinguiram no meio limiano e cuja vida ouvi atribuir ao miraculoso de tais baptizados (loc. cit.).
30O recurso da burguesia ao que, nas suas próprias palavras, são «superstições fantásticas» não se limita, decerto, a esta cerimónia. Apesar de serem firmes adversários da visão do mundo camponesa, os habitantes das vilas e pequenas cidades da província vivem em prolongado contacto com os camponeses e assim são necessariamente sensíveis à influência da significação simbólica dos ritos, práticas e crenças que aqui descrevemos. Os autores etnográficos e folcloristas referem por vezes este facto com alguma surpresa. Tendo em conta as atitudes militantes da burguesia provinciana, a sua participação em cerimónias desta natureza parece aos próprios actores uma forma censurável de fraqueza ou hipocrisia.
31Mas não são apenas os membros da burguesia que se debatem com conflitos pessoais derivados do choque entre as duas visões do mundo. Os próprios camponeses, quando são confrontados com os preconceitos burgueses, inclinamse a negar o valor e mesmo a existência das práticas rejeitadas pela élite urbana. Os camponeses
temem o ridículo, a alcunha de parolos, e só às escondidas, quando nem a sua sombra os vê, sem intrusos, apenas na companhia dos crédulos, fazem as suas práticas, brincadeiras e logros, quem sabe se restos de antigas cerimónias, fechando-se quando alguém tenta uma recolha:
— Eu disso não sei nada!... (Lopes Gomes, 1965:4)
32Alguns dos costumes referidos pertencem, assim, ao grupo de cerimónias que, realizadas ocasionalmente entre os membros da burguesia, e frequentemente entre os camponeses, tendem a ser dissimuladas ao observador casual, e a ser praticadas em segredo.
IV
33Nos últimos trinta anos, as técnicas do parto mudaram consideravelmente. Segundo uma estimativa de médicos locais, cerca de 31,4% de todos os nascimentos do concelho verificam-se actualmente11 na maternidade da vila. A assistência médica no parto era outrora quase inacessível. Nas casas ricas dedicavase algum tempo aos cuidados da mãe e da criança. Nas casas mais pobres, estes luxos não eram possíveis. Mas as mulheres mais desprotegidas eram, sem dúvida, as mães solteiras que não possuíam terra. Frequentemente, os seus filhos nasciam nos campos de lavoura, pois estas mulheres não podiam prescindir dos seus parcos rendimentos e, assim, trabalhavam até ao derradeiro momento. Para os meus informantes, era surpreendente o simples facto destas crianças, desprovidas praticamente de qualquer cuidado, terem sequer sobrevivido.
34Após o nascimento, a placenta deve ser expelida, dizendo-se da mãe que ainda o não fez que «nem está prenha, nem parida». Esta liminalidade é considerada perigosa, pelo que não se permite que uma mulher saia da casa nesse estado. Além disso, não deve retirar-se de casa qualquer parte da placenta antes de ela ter sido expelida na sua totalidade. Aliás, outrora, a placenta era enterrada no interior da casa, no curral das vacas (se estivesse situado no rés-do-chão) ou debaixo da pilha de lenha mantida num canto da cozinha para ser utilizada na lareira. Estes locais são supostamente compostos de «terra gorda», isto é, de terra fértil. No sítio onde a placenta caiu é pregado um prego. Se isto não for feito, e se uma gota de vinho for derramada nesse local acidentalmente, o sangue da mãe perde a cor e ela é atacada pela loucura.
35Tal como as excreções corporais, a evacuação da placenta é considerada uma violação das fronteiras normais entre o corpo humano e o mundo exterior. O local onde a placenta caiu premanece metonimicamente associado à mulher. Sabemos que o vinho é muitas vezes utilizado como um símbolo da força vital. O derramamento do vinho está, assim, metaforicamente relacionado com a perda da força vital da mulher. Já estamos familiarizados com o papel dos objectos metálicos cortantes como meio de operar uma ruptura simbólica entre duas áreas, esferas ou estados. Ao pregar um prego naquele sítio, os habitantes locais quebram a associação entre o local onde caiu a placenta e a mulher, desta forma marcando simbolicamente uma ruptura entre a mãe e a terra.
36O provérbio minhoto que diz «mulher parida, nem farta nem limpa», estabelece uma ligação entre a impureza e a cupidez e entre estas e o processo do parto. Por outro lado, tal como vimos, o parto é um momento de perigo para a mãe. Ao esperar que o processo se realize integralmente no interior da casa e ao enterrar a placenta também no interior da casa, os camponeses reutilizam o simbolismo da casa como o lugar seguro e «social» por excelência e, simultaneamente, impedem as manifestações da fertilidade feminina no exterior da casa.
37O período de liminalidade ligado ao parto só findará plenamente cerca de quarenta dias depois do parto. Até este momento, considera-se que a mãe não está ainda completamente curada, encontrando-se ainda impura. Assim, outrora, era proibida a sua entrada na igreja durante este período. Após os quarenta dias, a mulher era submetida a um ritual de purificação a fim de ser readmitida na Igreja, como se o seu período de liminalidade a tivesse colocado temporária ou parcialmente para além dos limites da Cristandade. (Este ritual foi entretanto abolido pela Igreja Católica Romana).
38Durante a «quarentena», a mãe não está pura nem «farta». Segundo a crença local, se a mãe não é devidamente alimentada depois do parto, pode ficar muito fraca e pode mesmo definhar e morrer. Por isso, ela deve comer todos os dias um frango e um pão e beber uma malga de vinho. (Trata-se de um ideal que só as casas mais ricas podem suportar). É uma dieta julgada muito «pura», saudável e um tanto excessiva. Mulher que não se satisfaça com esta dieta, caracteriza-se certamente por uma grande cupidez.
39O estado de impureza da mãe reflecte-se na cupidez que a caracteriza. Mas, se os desejos pré-natais são irregulares, imprevisíveis e habitualmente estão ligados a alimentos insalubres, já a cupidez pós-natal é regular e normalmente é saciada por uma alimentação sadia. Estas diferenças podem ser interpretadas como manifestações da crença que considera o momento do parto (quando a mãe, anteriormente singular, se transforma na dualidade mãe/criança) como o mais perigoso e impuro. À medida que dele se aproxima, a mãe distancia-se das normas do controlo e da probidade sociais; à medida que dele se afasta, a mãe vai sendo reintegrada na sociedade no seu sentido espiritual.
40Nem todas as crianças sobrevivem ao parto; de facto, algumas nascem mesmo antes de estarem plenamente formadas. A palavra «aborto» é vulgarmente utilizada para designar o nascimento de nados-mortos, os partos prematuros e os abortos induzidos. Uma velha parteira disse-me que baptizava sempre estes nascidos, porque eles poderiam ter ainda alguma vida dentro de si. Esta prática foi-lhe ensinada por um padre; desconheço a amplitude da sua divulgação entre os camponeses. Esta mulher costumava recolher o aborto dentro de um bacio e baptizava-o, pronunciando a fórmula: «Se ainda estás vivinho, eu te baptizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito-Santo, Amén». O uso do bacio, decerto uma escolha pessoal desta mulher, constitui, a meu ver, uma indicação significativa do modo como ela, apesar de os baptizar, categorizava os abortos como substâncias impuras.
41Quando crianças gravemente malformadas nascem no interior da casa, elas são baptizadas, esperando-se então pela sua morte. O seu enterro é bastante sumário, o que confirma o argumento de Hertz que caracteriza esses enterros como «acontecimentos infra-sociais» em todo o mundo (1960:84). No passado, estes «abortos» c «monstros» eram sepultados no interior da casa no mesmo local onde a placenta era enterrada. Segundo Hertz, este tipo de enterro representa um retorno ao «mundo dos espíritos». Na sua análise de uma prática similar entre os Venda, Schutte afirma que se trata de um «ritual de reversão do nascimento» (1980:262), uma explicação que me parece ser mais adequada. Devemos relembrar a identificação da criança com a mãe e a analogia entre a mãe e a casa que encontrámos em relação ao conjunto de proibições sobre o trabalho. A criança que morre tão precocemente ou que quase não nasceu, retorna à sua origem. A criança é um produto da casa e, portanto, é sepultada no seu interior, porque não assumiu ainda uma personalidade independente.
42Nos tempos mais recentes, o enterro no interior da casa tem sido menos frequente; muitas vezes, o pai enterra a criança no cemitério sob o segredo da noite. Isto reflecte a mudança das atitudes sobre o cemitério. As campas modernas, por oposição ao adro da igreja, onde anteriormente se efectuavam os enterros, são lugares individualizados; cada casa tem a sua campa. Assim, a campa é uma extensão simbólica da casa. Não há, portanto, necessidade de realizar o enterro fisicamente no interior da casa.
43Logo depois de nascer, a criança é completamente lavada. Este banho não é uma inovação imposta por conceitos científicos de higiene; é antes uma velha prática, investida de grande significado na visão do mundo camponesa. A criança que não é bem lavada virá a ser no futuro «desconfiada», o que, como já vimos, é uma das características dos «bichos do mato», isto é, os indivíduos semi-socializados. Tal como o baptismo, este banho é um rito de purificação e de separação.
44Este primeiro acontecimento da vida de uma pessoa — pois assim ele é concebido — determina o resto da sua vida. Por esta razão, colocam-se objectos valiosos (moedas, cordões de ouro) no banho para que a criança possa enriquecer. Depois do banho, a água é também, muitas vezes, lançada do alto para um buraco «de maneira que corra». A intenção é evitar que a criança venha a ser medrosa, «temorata».
45Em Paço e em Couto, os habitantes locais dizem que aparece uma película escura («o pano») sobre o rosto das mães durante a gravidez. Esta película está relacionada com a impureza das mulheres grávidas e só desaparece se a mãe lavar a cara com a água do primeiro banho da criança. Tal como expurgara a impureza da criança, esta água serve também para expurgar a impureza da mãe.
46A prática de queimar o cordão umbilical da criança na lareira, logo depois de ser cortado, é muito comum. Se o cordão umbilical for apanhado por ratos, a criança terá tendência no futuro a roubar. Se tal suceder (e particularmente em casos declarados de cleptomania), a mãe deve apanhar um rato vivo e fervêlo numa sopa até que ele fique quase dissolvido. Esta sopa é então servida à vítima que deve desconhecer o seu conteúdo. Diz-se que depois desta refeição, ela nunca mais sentirá ímpetos para roubar — uma manifestação de cupidez — sentindo-se mesmo extremamente «farto». A sua cupidez foi satisfeita. O roubo perpetrado pelo rato impossibilitara a separação total entre a criança e a mãe; a «socialização» da criança não fora efectivada e os seus desejos escapavam a um controlo. Invertendo a situação original em que o rato comeu uma parte da pessoa (o cordão umbilical), o remédio auxilia a vítima a libertar-se da cupidez herdada do ventre da mãe.
47Antes de a criança completar um ano de idade ou, segundo outros informantes, antes de começar a falar, não deve cortar-se o seu cabelo. As unhas só podem ser roídas e apenas pela mãe. Se estas proibições forem ignoradas, a criança pode ficar muda. É óbvio que, mesmo depois do nascimento, a criança continua a ser encarada como um ser morfologicamente instável. Os cabelos e as unhas são partes do corpo que crescem até à morte (e, em alguns casos, mesmo depois da morte). Se a mãe os cortasse com um objecto metálico cortante, isso impediria a criança de se desenvolver, nomeadamente em relação à qualidade humana que adquire em último lugar: a capacidade de falar.
48Vimos já que a simbiose mãe-criança no período da gravidez não é resolvida abruptamente durante o parto. Isto pode ser verificado tanto no tratamento da película que aparece na face da mãe, como no facto de ser a mãe que deve roer as unhas da criança. O mesmo se poderá dizer sobre a interdição de beber ou comer durante a amamentação da criança. Se isto sucedesse, a criança correria o risco de vir a sofrer de gota. Para prevenir esta eventualidade, era costume as mães assistirem à missa no dia da festa de S. Gregório, amamentando as crianças viradas para o altar durante a elevação da hóstia. (O padre actual aboliu esta prática, qualificando-a de «pouco própria».) A relação simbólica existente entre a mãe e a criança significa que, ao comer simultaneamente com a criança, a mãe está a transmitir à progenitura a sua gula ou, noutras palavras, a incapacidade de controlar os seus desejos. Esta interpretação é confirmada pela natureza da sanção que impende sobre o acto de transgredir a proibição: a gota. Esta enfermidade é associada pelos residentes locais à ingestão desmesurada de comida. O rito realizado no dia de S. Gregório esclarece, de algum modo, o significado da elevação da hóstia durante a missa. Tal como no caso de algumas das proibições pré-natais anteriormente descritas, se a mãe se virar nesse momento, ela está a rejeitar o mais puro de todos os alimentos; pelo contrário, ao comer simbolicamente a hóstia, ela transmite à criança a pureza simbolizada pela hóstia.
V
49O período que medeia entre o nascimento e o baptismo era considerado, no passado, como muito perigoso. Os habitantes de Paço e de Couto dizem que, até aos anos 50, era generalizado o receio de que o Diabo se viesse a apoderar da criança se, entre o nascimento e o baptismo, ela saísse de casa, podendo mesmo vir a morrer. Por isso, cobria-se a criança com um par de calças pertencentes ao pai ou colocava-se no berço uma tesoura ou um jugo dos bois. Tratavase de uma protecção contra as bruxas que, por causa destes instrumentos, não podiam chegar até à criança. As calças do pai, à semelhança do seu chapéu no ritual de preparação do pão, operam uma deslocação do domínio da impureza e do perigo da fertilidade feminina para o domínio seguro da fertilidade (masculina e feminina) da casa. A tesoura (objecto metálico cortante) e o jugo tinham sido já encontrados no contexto das proibições pré-natais que se aplicam a toda a casa. Eles desempenham aí o papel de instrumentos de transformação morfológica, afectando as fronteiras e deformando os produtos da casa. No presente contexto, eles criam uma barreira entre a criança e o mundo anti-social de que ela se separou recentemente e a que ainda pertence parcialmente, porque não foi integrada na sociedade cristã. Tal como as calças, o jugo representa o domínio sobre a força animal (no caso do jugo, significada pelos bois; no caso das calças, significada pela sexualidade feminina).
50Até meados dos anos 1890, as crianças de Paço e de Couto eram baptizadas nos primeiros onze dias de vida. Apesar de algumas excepções, esta regra recebeu uma forte adesão local até à década de 1950, altura em que o intervalo de tempo entre os dois acontecimentos começou a ser alargado. Na opinião dos habitantes locais, há duas razões principais para esta alteração. Em primeiro lugar, o novo padre, empossado em meados dos anos 50, considera «supersticioso» o baptizado precipitado das crianças e, por isso, recusa mudar a sua rotina. Nos últimos cinco anos, de facto, o padre instituiu a prática dos baptizados em grupo, realizados duas vezes por ano em Agosto e na época do Natal (coincidindo com os períodos de férias dos emigrantes). Em segundo lugar, reconhecese o decréscimo radical da mortalidade infantil, o que tranquiliza mais os habitantes locais contra a possível morte da criança antes do baptismo.
51Porém, a sorte dos que falecem antes do baptismo é ainda motivo de grande lástima entre pais, parentes e vizinhos. Estas crianças «ficam às escuras», não vão nem para o Inferno nem para o Céu. Para os minhotos, é uma injustiça que estas «criaturinhas tão purinhas» não aproveitem dos benefícios do Céu. Para mais, ao baptismo são atribuídas virtudes profilácticas e terapêuticas. Mesmo o padre admite que as crianças débeis e enfermiças devem ser baptizadas tão cedo quanto possível porque, desse modo, a sua morte precoce talvez possa ser evitada.
52Os habitantes locais afirmam que a criança não possui uma alma antes do baptismo e é por esta razão que eles se revoltam com a ideia de que há pessoas que não baptizam os filhos, que assim «ficam como animais». Isto não significa que eles pensem que estas crianças se comportam como animais, mas sim que, espiritualmente, mantêm afinidades com os animais. O baptismo é o limiar da sociedade humana. No passado, para reafirmar a distância entre as origens impuras da criança e a sua pertença à sociedade, os pais biológicos não podiam assistir ao baptismo. Mesmo hoje, frequentemente, a mãe não assiste à cerimónia, a despeito das determinações do padre em contrário.
53Contrastando com os casamentos, onde são muitos os convidados, e com os funerais, onde todas as pessoas que mantêm relações com a casa do falecido se sentem obrigadas a participar, os baptismos caracterizam-se pela presença de um pequeno número de parentes e de vizinhos próximos, que, geralmente, não são sequer convidados.
54Na manhã da cerimónia, os sinos da igreja anunciam a todos os vizinhos que um baptismo vai ter lugar, repicando a «toque de festa». Outrora, só o baptismo de uma criança ilegítima não era celebrado desta maneira. Hoje, os padres insistem que os sinos devem tocar para todos.
55No passado, o baptismo individual era uma cerimónia complexa cujo simbolismo era seguido intensamente pelos fiéis. Hoje, depois de ter suprimido a cerimónia individual e das recentes alterações litúrgicas, o padre pratica uma outra mais simples, que não possui grande atractivo para os fiéis.
56E no baptismo que a criança recebe o seu nome. Antes de se vulgarizar a presença dos pais no baptismo, o nome da criança era escolhido pelos padrinhos, cuja decisão final devia ser precedida de uma consulta aos pais. Actualmente, a escolha do nome pertence aos pais que, no entanto, se sentem obrigados a escutar a opinião dos padrinhos. Em todo o caso, é frequente a criança receber o nome dos avós quer se encontrem vivos ou não. A isto liga-se também o facto muito corrente dos avós serem padrinhos.
57O papel dos padrinhos é «fazer o que os pais não podem». De um ponto de vista espiritual, isto significa que os pais não podem conduzir a criança à pia baptismal. De um ponto de vista material, isto significa que os padrinhos exigem dos pais uma educação apropriada da criança que eles próprios podem vir a tomar a seu cargo no caso de ficar órfã.
58Actualmente, em Paço e em Couto, o padrinho oferece a «baeta» (originalmente uma espécie de flanela quente e colorida que resguardava a criança). A prenda da madrinha é o vestido de baptizado. (É interessante observar que tradicionalmente a prenda masculina tinha de ser comprada, enquanto a prenda feminina era feita em casa.) Ambos os padrinhos são responsáveis pelas despesas da cerimónia e, além disso, é agora habitual oferecerem uma peça de ourivesaria à criança.
59Hoje, os deveres dos padrinhos confinam-se sobretudo à cerimónia. A escolha dos padrinhos cabe aos pais. Em teoria, a selecção dos padrinhos não deveria constituir um problema, porque a recusa em ser padrinho, quando se é convidado, é considerada como um pecado; mas, na prática, a escolha é muitas vezes difícil. Muitas das pessoas que são abordadas pelos pais não recusam abertamente, preferindo sugerir que um outro indivíduo seria melhor como padrinho. Isto equivale a um não. Esta dificuldade, que é um tema recorrente nos contos populares, é acrescida pelo facto dos pais pretenderem sempre padrinhos dotados de um prestígio superior ao seu.
60Na prática, e sobretudo no caso dos filhos mais velhos, o problema é geralmente contornado pelo recurso aos avós que desejam auxiliar os pais da criança e que, devido à diferença de idade, possuem mais prestígio. À falta de outros padrinhos, podem ser escolhidos irmãos germanos mais velhos para desempenharem esta função. Por último, é possível escolher santos como padrinhos da criança. Esta opção pode ser tomada em baptizados de emergência, quando não há outros padrinhos disponíveis ou como resultado de uma promessa feita pelos pais. Muitas das crianças que, em Paço e em Couto, receberam santos como padrinhos, são filhos ilegítimos para os quais a mãe não conseguiu encontrar uma pessoa interessada em assumir a responsabilidade do futuro da criança. Isto poderá também explicar parcialmente o facto constatado no estudo dos registos de baptismos de os filhos ilegítimos serem geralmente baptizados mais tarde do que os filhos legítimos.
61No Minho, o papel do compadrio (a relação entre pais e padrinhos) não é tão importante como no sul de Portugal, onde esse papel é muito mais relevante no conjunto da vida social. A descrição de Cutileiro (1977), no seu capítulo sobre o parentesco espiritual pode ser, porém, aplicada também à área minhota e assim escusar-me-ei a reproduzir aqui a sua argumentação.
62Apesar de todas as suas implicações no plano da reciprocidade, o compadrio é, na verdade, uma relação assimétrica. Ao convidarem determinados indivíduos para serem padrinhos, os pais colocam-se numa posição de devedores face a esses indivíduos. Este desequilíbrio é reconhecido como uma relação patrono-cliente, quando um caseiro ou um jornaleiro pede ao seu senhorio ou ao seu patrão para ser padrinho, ou quando um citadino aceita ser padrinho de um camponês. Mas quando a relação é criada entre vizinhos, assume uma configuração diferente, porque favorece a manutenção ou a criação de um tipo de relação de «amizade» entre casas mais ricas e casas mais pobres que se exprime segundo os termos de uma reciprocidade entre iguais mas que, de facto, dissimula uma dependência económica.
VI
Rapariga, tu és tola!
Eu não sou o teu amante,
Ou tu nasceste sem lua,
Ou no quarto minguante.
Cantiga minhota
63Os camponeses minhotos, como tantos outros povos do mundo, acreditam que o sol e a lua têm poder para influenciar os acontecimentos terrenos. Isto não significa que eles antropomorfizam os corpos celestes, mas sim que o poder destes corpos é tratado de forma semelhante ao poder do fogo — uma força que pode causar o bem ou o mal, dependendo da maneira como é utilizado. O termo empregado para referir este poder é precisamente «força».
64Mas o sol e a lua são muito diferentes entre si e, assim, as suas «forças» são opostas em muitos aspectos. Um provérbio minhoto diz que «a lua governa a noite e o sol governa o dia». Os dois poderes devem estar separados. Assim, os eclipses do sol são temidos, porque confundem as categorias do dia e da noite. Um residente de Couto disse-me que um eclipse «é como uma batalha, a lua quer vencer o sol». Mas o sol é, e deve permanecer, o mais forte dos dois. Se a lua ganhasse a «batalha», seria o fim do mundo: o caos completo.
65Os minhotos mostram uma particular preocupação com o poder da lua. Acreditam que este poder pertence a um género específico e que concerne a coisas específicas — uma crença que não é, de modo algum, exclusiva do Alto Minho. Os conceitos que discuto nesta secção referem-se principalmente às fases da lua e à sua relação com o crescimento e a reprodução dos seres humanos, dos animais e dos vegetais.
66Tal como no caso dos adágios anteriormente descritos, a crença no poder da lua colide com a visão do mundo burguesa. As afirmações dos camponeses a este propósito são, assim, geralmente ambíguas. Os residentes das «meias de baixo» não gostam de reconhecer o facto de perfilharem estas crenças, atitude que é fortemente criticada pelos residentes das «meias de cima», que a consideram uma tentativa hipócrita de reivindicar um estatuto burguês. Salientam que os residentes das «meias de baixo», embora neguem a crença em tais coisas, «fazem os seus trabalhos agrícolas ao mesmo tempo que o resto da gente» (segundo um calendário baseado nas fases da lua).
67Os habitantes locais chamam «lua nova» à lua na sua fase de crescimento (vidé Diagrama N.o 6). Isto é o contrário da prática burguesa que aplica esse termo ao período em que a lua é invisível. A terminologia camponesa implica uma interpretação das fases da lua que faz sobressair o facto de não haver lua durante um certo período de tempo, quando se está «entre luas» (o «entrelunho» ou «antrelunho»). No início do ciclo da lua, a sua força está a crescer. Eis porque há duas designações alternativas que descrevem o mesmo estado: «lua cheia» e «a força da lua». De um modo semelhante, os residentes locais falam frequentemente de coisas que são feitas «no forte da lua» ou «na fraqueza da lua». O período «forte» estende-se do primeiro quarto da lua até ao dia seguinte à lua cheia: trata-se, noutros termos, do período de crescimento da lua, o período em que a lua alcança a sua maior potência em contraste com a «fraqueza» que caracteriza a sua primeira aparição no firmamento. Quando começa a decrescer, a lua vai manifestando uma progressiva «fraqueza»: é a lua em quartominguante. Finalmente, quando a lua desaparece, pensa-se que a lua deixa de existir.
68A força de todo o mundo natural é suposta crescer e decrescer de acordo com as fases da lua. Por exemplo, os minhotos acreditam que o ar do mar é muito saudável. Quando vão à praia por razões terapêuticas, escolhem sempre o período que coincide com a «força da lua»; é nesse período que as ondas do mar recrudescem de violência, que o vento é considerado mais forte e pode mais facilmente «penetrar a carne e os ossos». Pensa-se que isto é muito saudável «para os ossos».
69Muitas espécies de plantas devem seguir a regra geral de serem semeadas, plantadas ou enxertadas durante o «forte da lua» para obterem um melhor crescimento. Porém, há muitas especificações relativas às plantas que não obedecem a esta regra. Por exemplo, a madeira deve ser cortada durante o quartominguante, porque durante o quarto-crescente a árvore possui um excesso de seiva que impede uma boa secagem e faz aparecer bicho. Foi também esta explicação, como o leitor se recordará, que foi dada para não se cortarem árvores com «vício» (quando a seiva aumenta) e para não se cortar ou apanhar lenha em certos dias. À semelhança de tantos outros casos que já encontrámos, os processos de crescimento e gestação são acompanhados pela vulnerabilidade e pela fraqueza.
70Estas prescrições e proibições baseiam-se num pressuposto básico: o ciclo da lua conjuga-se com um processo de força crescente que é seguido por um decréscimo. A «morte da lua» proclama também o seu renascimento, à semelhança da morte e ressurreição de Cristo, que é revivida todos os anos no primeiro domingo depois da lua cheia que sucede ao equinócio vernal.
71Os residentes locais pensam que a concepção dos seres humanos e dos animais deve ocorrer à noite. Como eles dizem, «esperamos sempre até à noite para essas coisas». É de noite que as marrãs, as cabras e as vacas podem ser fecundadas. Não só porque a copulação é uma coisa «pouco própria» que não deve ser presenciada, mas também porque, como os habitantes locais sublinham, é a lua que «governa» estes assuntos. As crianças e os animais concebidos ou nascidos durante a lua cheia ou durante o quarto-crescente serão mais fortes e mais inteligentes. Quando a mulher tem um parto fácil, as pessoas asseveram que a concepção «foi durante a força da lua». Trata-se de uma frase proverbial, porque não há qualquer preocupação em estabelecer a data de facto em que a concepção ocorreu.
72Por outro lado, segundo os residentes locais, as crianças que nascem ou são concebidas no quarto-minguante ou no período de desaparecimento da lua, serão sempre «ríticas». Esta debilidade afecta os corpos e também as mentes. Há diversas palavras dialectais que expressam esta ideia. Um indivíduo idiota ou desmiolado é para os locais um «luato» ou «antrelunhado». A cantiga citada como epígrafe a esta secção expressa esta crença na debilidade (mental, física e mesmo moral) dos que nascem durante estes períodos — a rapariga comportava-se apaixonadamente em relação a um homem que não era seu amante; há algo de imoral neste comportamento indiscriminado. O cantor conclui, portanto, que ou ela nasceu «sem lua, ou no quarto-minguante». A fase de desaparecimento da lua, o «antrelunho», é alvo de uma particular desconfiança, acreditando-se ser neste tempo que as bruxas aparecem.
73As bruxas saem durante a morte da lua, ao passo que a morte redentora de Cristo aconteceu durante a lua cheia. A lua é um símbolo da morte, do renascimento e da vida continuada através da alternância. Neste aspecto, apresenta algumas similitudes com os seres femininos, cuja fertilidade obedece ao ciclo da lua. Não surpreende, assim, que a Virgem Maria, quando é representada como Nossa Senhora da Conceição — Santa Padroeira de Portugal —, seja associada à lua em quarto-crescente.
74Nestes termos, o adágio seguinte, que me intrigou durante largo tempo, tomase inteligível, «se a noite de Natal calhar na força da lua, vai haver muito vinho nesse ano». Já introduzimos um conjunto de crenças relativas à predição, durante a época do Natal, do tempo meteorológico do ano seguinte. Tal como a vida de uma criança é afectada pelo ouro colocado no seu primeiro banho, também o ano pode ser influenciado no momento do renascimento anual de Cristo.
75Já vimos que, quando nasce uma pessoa e a lua está na sua «força», essa pessoa será forte e saudável, plena de força vital. Mas qual será o nexo que existe com o vinho? Porque é que a lua cheia na noite de Natal anuncia uma boa colheita de vinho? Onians, em The Origins of European Thought (1954), escreve que o vinho era, entre os romanos e os gregos, o «líquido da vida». Esta ligação simbólica perdura ainda hoje: as pessoas bebem «à saúde»; o vinho é parte central dos ritos de hospitalidade; os camponeses prescrevem-se continuamente uns aos outros o vinho como meio de revigorar a saúde. Para eles, o vinho produzido localmente possui singulares propriedades terapêuticas e profilácticas, porque está impregnado de força vital. Isto é sobretudo verdade no caso do vinho tinto.
76Embora o vinho branco local seja mais comercializável e de qualidade superior, os camponeses preferem produzir vinho tinto, explicando o facto com o argumento de que o produzem principalmente para consumo doméstico (o que, frequentemente, não é verdade). Só consomem vinho branco ao pequeno-almoço e durante a missa. Apesar dos camponeses saberem que o conteúdo alcoólico do vinho branco é idêntico ao do vinho tinto, defendem que o branco é menos «forte» ou «pesado». É por isso que é julgado mais apropriado para a missa do que o vinho tinto, que é um vinho demasiado vigoroso, demasiado carregado de uma força vital que pode desregular-se.
77Embora Onians pareça discordar dos autores que traçaram uma ligação entre o vinho e o sangue nos tempos clássicos (1954:278, nota 3), deve notar-se que esta ligação está firmemente implantada no Minho contemporâneo. Além de serem habituados a ver o sangue de Cristo sob a forma de vinho, os camponeses associam também o vinho e o sangue na linguagem quotidiana corrente. Quando fazem a pisa das uvas, exibem orgulhosamente aos vizinhos que os visitam as suas pernas recobertas de polpa vermelho escura, insistindo que «até parece sangue». Quando o vinho está a fermentar, é agitado com uma vara comprida «para dar cor». Seria lamentável para eles que o vinho, apesar disto, viesse a ser demasiado palheto. Esta preocupação explica também a preferência de beber em malgas brancas e opacas e o gesto que os homens sempre fazem, de mover os pulsos de maneira a fazer correr o vinho em redor do recipiente, mostrando assim um matiz vermelho escuro que contrasta com as paredes brancas da malga.
78Sendo o Natal uma síntese de todo o ano, no caso da lua aparecer na sua plena «força» durante essa noite, o ano vindouro será marcado por uma grande força vital que, por seu lado, não pode ser melhor representado do que por uma boa colheita de vinho.
VII
79A despeito das especificidades de outras regiões do mundo (Lévi-Strauss, 1973:251-261), em Portugal é certamente significativa a atribuição do género feminino à lua e do género masculino ao sol. No domínio da lua, tal como no domínio das mulheres, cabem «todas as coisas que crescem». A lua é mais fraca do que o sol; o sol é constante e a lua é mutável. Isto corresponde precisamente à visão camponesa sobre as forças físicas e morais relativas dos dois sexos e às suas ideias sobre a volubilidade e a impureza irremível atribuídas ao sexo feminino.
80Não será surpreendente descobrirmos, além disso, que a diferença entre as maneiras burguesas e as maneiras camponesas se expressa num idioma idêntico. Todas estas oposições estão ancoradas nas mesmas premissas implícitas. Qualquer tentativa para delimitar estas premissas tem necessariamente de situar-se a um nível muito geral e, assim, na melhor das hipóteses, só pode ser parcialmente satisfatória.
81As oposições entre a alma e o corpo, os homens e as mulheres, o sol e a lua, a população urbana e a população rural devem ser vistas como situadas no interior de uma oposição mais lata entre princípios opostos cuja diferenciação se caracteriza, sobretudo, pela oposição que é percepcionada entre, respectivamente, a moderação e a fertilidade. A própria existência das proibições e prescrições acima descrita é em si uma prova da sensibilidade da cultura aos problemas inerentes à complementaridade necessária destes princípios. Uma excessiva preocupação com a satisfação dos desejos corporais seria a origem inevitável de «vícios»; uma excessiva ligação à terra transformaria a pessoa num «bicho do mato». Estes excessos precisam de ser temperados pela moderação e pela ordem, pelos sacramentos, pela casa, pelas normas sociais. A fertilidade é amplamente desejada, mas é necessário afastá-la do domínio da desordem da fertilidade feminina e recolocá-la no domínio da ordem da fertilidade da casa. A sociedade camponesa não pretende apenas obter uma vida abastada; o seu objectivo fulcral é o de uma vida abastada e ordenada, uma vida «social».
Notes de bas de page
10 Uma outra explicação que me foi dada é que esta proibição talvez se deva ao receio de que o Diabo, sob forma animal, se tente apoderar da alma do nascituro.
11 Nota do autor à edição portuguesa: Chama-se mais uma vez a atenção do leitor para o facto de que o presente etnográfico se refere ao período 1978-1981.
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