9. O sexo e a poluição
p. 119-130
Texte intégral
1Numa sociedade onde as mulheres tendem a ser herdeiras favorecidas, onde a uxorilocalidade e a uxorivicinalidade são preferidas, onde as mulheres participam plenamente nos deveres da unidade social primária e no controlo da actividade produtiva que é cognitivamente mais importante (a agricultura de subsistência) e, ainda, onde a emigração tem uma longa tradição, a inserção do homem no tecido social torna-se necessariamente problemática. Na sua qualidade de irmão e de filho, o homem tende a ser suavemente posto de lado e, na sua qualidade de marido, a sua posição de autoridade tem de ser construída laboriosamente. O conflito entre o direito do homem a chefiar e o poder efectivo da mulher é, assim, profundamente sentido.
2O material seguidamente apresentado parece comprovar a tese de Mary Douglas, segundo a qual a insistência sobre a poluição sexual tende a coexistir com uma definição ambígua dos papéis sexuais (1966:169). Na verdade, como M. Bloch e J. Parry escreveram, «a fertilidade é separada e tornada superior aos processos biológicos do sexo e do nascimento por analogia com a diferença entre os sexos, que é tida por evidente» (1982:24). A reprodução da casa e a institucionalização efectiva da autoridade masculina exigem que a fertilidade seja dissociada do sexo e das mulheres, sendo reorientada para os domínios do casamento, da casa e dos homens — postulando uma forma de reprodução «pura» onde ambos os sexos participam, mas de formas diferentes, e que é tipificada pelo ritual da preparação do pão que já foi aqui descrito. No entanto, e de acordo com a explicação de Bloch sobre os rituais funerários, é possível afirmar que a instituição desta imagem da fertilidade social não pode ser concretizada positivamente, porque a sua expressão prática é negada de forma incessante pela realidade quotidianamente observável da fertilidade biológica. Assim, ela depende da construção de um oposto «fantasmagórico», por relação ao qual pode, então, ser definida. Constatamos novamente que «a criação de uma ordem simbólica depende da negação» (Bloch, 1982:218) e que o papel criativo pertence às mulheres, que funcionam simbolicamente como eixos entre a fertilidade social e a fertilidade biológica (e anti-social). A natureza dual das mulheres (enquanto seres tanto biológicos como sociais) é, portanto, mais conflitual e mais profundamente sentida do que a natureza dual dos homens.
I
3Na igreja, quando os paroquianos se unem num acto de contacto sublime com a divindade, os homens ficam situados num lugar mais próximo do altar, enquanto as mulheres ficam na metade inferior ocidental da nave. As mulheres só transpõem esta linha para receber a hóstia. Os homens, deste modo, não podem divisar as mulheres na igreja. Os seus olhos não pousam na «tentadora» e, assim, estão preparados para exercer uma maior disciplina ritual.
4A associação entre o sexo, o pecado e a morte é, e sempre foi, uma característica fulcral do pensamento cristão. A decomposição do corpo e a corrupção moral ou espiritual estão intimamente ligadas. O dogma da Assunção de Nossa Senhora fundamenta a sua autoridade precisamente numa equivalência simbólica entre o sexo e a morte. Na bula que estabeleceu o dogma, o Papa Pio XII cita S. João Damasceno: «Havia uma necessidade de que o corpo daquela que, no parto, preservou intacta a sua virgindade, fosse preservado incorrupto depois da morte» (citado in Warner, 1978:94).
5O sexo é poluente e espiritualente perigoso tanto para os homens como para as mulheres, mas de forma diferente. Para as mulheres, é considerado particularmente poluente, porque elas são espiritualmente avaliadas com base em critérios de resistência à tentação sexual que não são aplicados aos homens. A poluição sexual é, portanto, assimétrica.
6A natureza inevitavelmente negativa do sexo manifesta-se, por exemplo, no conto seguinte:
A Rapariga que Queria um Marido com Testículos Brancos5
Havia uma rapariga que não gostava de homens de colhões escuros, queria-os brancos. Vai daí já tinha tudo arranjado e perguntou ao namorado a cor dos dele, ele teve de confessar que eram escuros, e ela já não quis casar. Queria um que tivesse colhões brancos. Depois de isto acontecer umas tantas vezes, veio um rapaz que fez tudo para que ela pensasse que ele os tinha brancos. Pôs-se a lavar os colhões com muita espuma de sabão perto do rio onde ela ia passar. Ao passar, ela veio directo a ele e perguntou-lhe a cor dos colhões. Ele disse que tinha imensa vergonha mas que ninguém o queria porque os colhões dele eram brancos. Ela ficou muito satisfeita e propôs-lhe logo casamento.
Assim se fez. Na noite da boda foram para o treino. Assim que estavam satisfeitos, ele pegou a dormir, mas ela não dormiu. Acendeu a luz, levantou a roupa, viu os colhões amulatados e ficou muito zangada. Com o desgosto, quis deitar-se da janela abaixo. Mas bateu com a cabeça na beira da janela e caiu para trás com uma negrura na testa.
O homem acordou com o estrondo e viu a mulher desmaiada e perguntou-lhe o que se passava. Ela disse que se queria matar, por ele a ter enganado — disse-lhe que ele era um enganador. O marido respondeu: «Tens aqui uma negrura na testa, que é isto?» Ela explicou. Ele respondeu, «pois os meus não haveriam de estar pretos de baterem tanto?» Ela aceitou então ficar casada com ele6.
7A moral da história é que, se o casal fizer amor, os testículos terão necessariamente de ficar escuros, ainda que os homens tivessem nascido com testículos brancos. A analogia final entre a negrura na testa e os testículos é significativa: a cor dos testículos, como a da negrura, é semelhante a uma nódoa. Ao desejar um marido com testículos brancos, a rapariga tentava superar o que é localmente considerado como uma lei da natureza: o sexo é moralmente negativo, é sujo.
8Ouvi dizer várias vezes que a actividade sexual é boa para a saúde dos homens, porque os purga do sémen que é «como que um veneno». Mas, ao mesmo tempo, admitia-se também que uma desmedida actividade sexual (tanto no coito como na masturbação) acelera os processos de envelhecimento masculino e de impotência. Estas duas perspectivas parecem ser contraditórias. Como é possível que o sexo seja saudável se ele acelera o processo de envelhecimento?
9Tais contradições não são motivo de grande inquietação para os habitantes de Paço e de Couto. Quando os confrontamos com a sua existência, admitem quase sempre a possibilidade de estarem errados. Mas o que é importante compreender é que se, a um nível superficial, as duas concepções parecem estar em conflito, não existe qualquer contradição a um nível mais profundo, porque os três casos são congruentes nos valores que exprimem: se os testículos são analogicamente uma negrura ou uma nódoa, é possível entender que a própria actividade sexual acelere o processo de envelhecimento. A conclusão final é que o sexo é poluente (uma nódoa), é perigoso (um veneno) e está ligado à passagem do tempo irreversível e linear (o envelhecimento) — afirmações que, de um ponto de vista simbólico, são coerentes.
10II Na versão do mito de Adão e Eva que foi apresentada no início deste capítulo, a informante comentava que as mulheres eram incompletas, porque tinham sido feitas a partir da costela de um homem. Ao contrário de Adão, Eva não foi concebida «à própria imagem de Deus». Por isso, Eva não participou directamente da semelhança do homem com a divindade. Se a distância entre Deus e Satanás for considerada como um continuum (uma noção que parece ser justificada pela crença em santos e anjos, em diabos menores e em bruxas), pode afirmar-se que as mulheres, enquanto grupo, estão mais distantes de Deus que os homens e, portanto, estão mais próximas de Satanás. Esta ideia encontra uma certa ressonância na mentalidade camponesa, quando se sugere (num tom que é só superficialmente trocista) que, se as mulheres vão mais à igreja que os homens, é porque têm mais pecados a «pagar».
11O pecado de Eva é revivido em todas as mulheres. Eva foi incapaz de controlar os seus desejos sabendo, no entanto, que daí resultaria a sua punição. A incapacidade das mulheres em controlar os seus afectos, reflecte-se sobretudo na sua cupidez que, por seu lado, se manifesta particularmente em três domínios: a gula, a inveja e a luxúria.
12Os habitantes locais chamam «lambão» (do verbo lamber) ao indivíduo que se caracteriza pela sua gula. Na linguagem quotidiana, este termo aplica-se não só à gula propriamente dita, mas também aos casos de excessiva cupidez. O tom deste termo é mais suave, quando é empregado por um indivíduo para se descrever a si próprio ou quando é utilizado de uma forma afectuosa. Mas, quando usado como insulto, é extremamente contundente. O indivíduo acusado publicamente de ser «lambão» corre, aliás, algum risco, porque os vizinhos tendem a evitar entrar em esquemas de reciprocidade com tais pessoas. Suspeita-se que as pessoas marcadas pela cupidez sejam incapazes de orientar correctamente os seus negócios, não conseguindo, por exemplo, pagar os empréstimos que contraem.
13Apesar de alguns homens serem também acusados de «lambões», a expressão é aplicada mais frequentemente às mulheres («lambonas»). A gula é, aliás, uma característica quase especificamente feminina. Diz-se, por exemplo, que os homens preferem comidas salgadas. Ora, esta preferência parece implicar menos gula do que o gosto de coisas doces, que é atribuído às mulheres. Numas vindimas em que participei, os gracejos lascivos que dominaram a conversa durante todo o dia, focalizaram-se em torno da seguinte piada: «As raparigas gostam mas é de coisas doces, como marmelada, uvas, bolos, arroz, galinha, etc.» Esta piada joga com um trocadilho sobre «marmelada» (que coloquialmente significa também «apalpanço»). A manobra de diversão introduzida pelos dois últimos elementos salgados (o arroz e o frango) serve para chamar a atenção para a existência de um trocadilho e, ao mesmo tempo, para duplicar o absurdo. Notese que esta duplicação só é possível através da oposição binária implícita entre doce e salgado.
14A gula e a fome desmesuradas exprimem-se geralmente através de analogias com os animais. Por exemplo, «comi que nem um animal» ou «tenho uma fome de cão». O controlo sobre os afectos é a característica mais importante de uma vida social equilibrada. É este controlo que permite a rectidão e a ordem social. A piada acima transcrita sobre a «marmelada» opera uma analogia entre a gula e a concupiscência e aponta, assim, para a semelhança entre as duas enquanto manifestações de uma cupidez excessiva. A mesma analogia é encontrada ainda no uso frequente do verbo «comer» para referir as relações sexuais.
15Mas a cupidez é também relacionada com a corrupção física. Quando Adão comeu o pedaço da maçã, ficou engasgado; já o pedaço de Eva foi engolido sem dificuldade. Para os camponeses minhotos, este detalhe vem confirmar a sua crença de que «os homens são limpos por dentro e as mulheres são porcas». Disseram-me que os homens, ao contrário das mulheres, não têm um «ventre». Ora, é no interior desse ventre que se encerram todas as substâncias «podres» que rodeiam o bebé antes do nascimento, e que são, depois, expelidas quer na menstruação, quer no parto. Tudo consequências da Queda que foi provocada pelo Pecado Original.
16Durante a menstruação, as mulheres ficam rabujentas, exigentes e cúpidas. Durante a gravidez, de modo semelhante, as mulheres tendem a mostrar desejos incontroláveis e desmesurados por comidas estranhas. É considerado perigoso não satisfazer estes desejos, porque, nesse caso, quando crescer, a criança virá a deitar mau-olhado, mesmo sem intenção. Estabelece-se, assim, uma relação analógica entre a gula e a inveja (o mau-olhado) e entre estas e a corrupção física.
17Em Paço e em Couto, as mulheres utilizam muitas vezes a expressão «tristeza das mulheres» para designar a menstruação, porque esse período lhes evoca a sua condição impura e o perigo que a sua impureza representa para o grupo. No Alto Minho, o receio da mulher menstruada e a sua propensão para deitar mau-olhado está muito disseminado. O próprio sangue menstrual é temido por causa do seu forte poder destrutivo. Contaram-me que há alguns anos, em Paço, uma mulher apoiou-se descuidadamente numa oliveira, derramando algumas gotas de sangue menstrual sobre o tronco. Ora, passado pouco tempo, esse tronco secou, pelo que a culpa foi atribuída a essa mulher. No mercado, ao contrário do que sucede com os homens, não se permite que as mulheres saltem ou passem por cima das mercadorias expostas no chão. Os vendedores receiam que elas estejam no seu período menstrual, podendo cair uma minúscula gota de sangue sobre as suas mercadorias que, nesse caso, não seriam vendidas devido aos terríveis poderes mágicos do sangue menstrual que repele os clientes. Se o gado bebe de um tanque ou de um depósito com água que contém sangue menstrual, os animais podem contrair uma doença que, nos seus primeiros sintomas, se manifesta pelo aparecimento de nódoas brancas sobre a pele.
18Poderia relatar muitos outros exemplos deste terror ao sangue menstrual. A minha observação leva-me a crer que o processo de aparecimento de novas associações deste género — «crenças» — e o desaparecimento de outras mais antigas ocorre com uma certa regularidade. Trata-se sempre de formulações que, a um nível relativamente superficial são diferentes, mas cujo significado simbólico profundo permanece estável: no caso das «crenças» que temos vindo a discutir, a menstruação é associada à impureza e à cupidez, isto é, a tendências anti-sociais cuja difusão instauraria o caos na sociedade.
19Mas a menstruação tem uma valorização ambígua. A regularidade dos períodos menstruais é um facto muito desejado, porque é o sinal de uma mulher fértil. Se os períodos de uma mulher jovem se tornam irregulares ou desaparecem completamente, diz-se que «está estragada», assimilando-a a uma máquina que já não executa a função para que foi determinada. Do mesmo modo, segundo os camponeses, as mulheres que permanecem muito tempo com os pés em água fria ou que se sentam em pedras frias e húmidas correm o risco de terem uma «paragem do sangue», ficando «estragadas».
20O frio e a humidade são elementos antagónicos ao calor que é associado, juntamente com o vigor do corpo e a saúde, a uma menstruação regular. Por um lado, todas estas qualidades são sinais de bem-estar e de fertilidade e, enquanto tais, são bem-vindas; mas, por outro lado, como necessidades corporais que são, estão associadas à face animal da humanidade e, portanto, à sua condição decadente7.
III
21A perigosa ambiguidade, percepcionada pelos habitantes de Paço e de Couto no espaço marginal entre a humanidade e animalidade, é reencontrada no conceito de «monstro». Os minhotos supõem que as mulheres podem engendrar tais criaturas semi-humanas, semi-animais. Este conceito permite aglutinar um largo número de aberrações do processo de procriação que são entendidas pela ciência médica como fenómenos distintos (e.g., o aborto, a gravidez fantasma, o bebé malformado), incluindo também outros fenómenos cuja ocorrência chega até a ser rejeitada pelos médicos. Para cada caso que me foi relatado, foram dadas explicações diferentes. Para mim, nunca foram claros os motivos que levavam uma pessoa a preferir uma determinada explicação em desfavor de outra. No entanto, trata-se novamente de explicações que só divergem a um nível superficial, já que, a um nível mais profundo, elas são concordantes.
22As explicações que recolhi podem ser agrupadas, grosso modo, em três categorias globais. Primeiro, as mulheres dão à luz monstros como resultado da ingestão de água que foi poluída por excreções corporais (substâncias impuras que caracterizam o homem na sua condição decadente — a face animal do homem). Segundo, os monstros podem resultar da copulação praticada em circunstâncias impuras; por exemplo, durante a menstruação ou durante a quarentena que sucede ao parto — dois casos em que o homem se comporta como um animal, não se abstendo do contacto impuro. Terceiro, os monstros podem ser o resultado de práticas de bestialidade real, mas também de bestialidade metafórica (por exemplo, se durante a copulação a mulher olhar fixamente para um animal, a criança concebida terá semelhanças com esse animal e será qualificada como um «monstro»). Foram-me relatados alguns casos de bestialidade masculina; mas a bestialidade feminina num sentido real, e já não metafórico, parece ser demasiado revoltante para que seja sequer considerada.
23Fui informado de que os monstros devem ser mortos logo à nascença, porque, caso contrário, quando forem crescidos, matarão as suas próprias mães. Esta suposição é confirmada pela crença de que os monstros não são nem humanos nem animais. Na minha opinião, estabelece-se aqui uma analogia baseada nos seguintes argumentos: todos os animais e humanos respeitam essa lei «natural» básica que é amar a própria mãe (não devemos esquecer que a estrutura familiar local é marcada por uma forte tendência matrifocal); como os monstros não sãò animais nem humanos, comportam-se de uma maneira anti-natural. Os monstros matam, portanto, as suas próprias mães.
24Como o sexo é a área em que o homem mais se assemelha aos animais, a ruptura das regras da conduta sexual é geralmente criticada pelos habitantes locais através de insultos relativos a nomes de animais. A própria palavra «animal» é uma forma de insulto contra uma pessoa (normalmente um homem) que se comporta de uma forma descontrolada e grosseira.
25Devido a todas as suas conotações de caos e de poluição, a sexualidade animal é fortemente desencorajada, sobretudo quando ocorre dentro dos limites da casa. Para a «gente de respeito» de Paço e de Couto é «coisa fraca» (isto é, sem prestígio) e «escandalosa» ter em casa garanhões, porcos, carneiros e bodes de cobrição. Durante a visita pascal, o padre recusa-se a entrar nessas casas. Nesse momento em que todas as casas da freguesia se unem numa cadeia de ordem e de pureza, não pode tolerar-se que uma casa onde a sexualidade é desregulada constitua um elo fraco na cadeia. Tal casa não consegue desempenhar a sua principal função simbólica: a instituição da reprodução em pureza.
26Não surpreende, portanto, que tenha constatado que, em ambas as freguesias, os possuidores de porcos de cobrição, de carneiros e de bodes eram principalmente indivíduos sem terra ou mães solteiras, que assim obtinham algum dinheiro.
IV
27Esta relação incómoda com o mundo natural não se limita à relação entre seres humanos e animais, conforme se depreende do uso do termo «vício». Na sua etnografia dedicada a uma comunidade rural alentejana, Cutileiro descreve o «vício» como «a predisposição responsável pelos potenciais perigos sociais que decorrem da [...] vida social activa» das mulheres (1977:128).
28Esta interpretação não esgota todas as implicações possíveis do termo. Apresento, de seguida, um extracto das minhas notas de campo baseadas numa conversa com uma mulher que me explicava o significado desta palavra.
Para cortar madeira para obras deve-se cortar em Janeiro, que tem mais duração. Porque não se pica. Está sem vício. Quando dá rebentos, fica mole.
Quando a árvore está a arrebentar, diz-se que tem vício. Antes de Janeiro, podese torcer uma verga mas depois já não torce, que tem vício. Em Março é que arrebentam. Ao cair das folhas, começam a ficar mais fracas, já não têm vício. É como as pessoas. Em novas, as mulheres, enquanto dão filhos, são fortes; quando aca-'bam já perdem a força.
29Esta analogia entre o ciclo de vida das mulheres e o ciclo anual das árvores é um lugar comum. Mas se explorarmos o significado da palavra «vício», a questão revela-se de uma maior complexidade. Surpreendentemente, a palavra é também usada para referir tendências anti-sociais e auto-destrutivas, tanto de coisas como de pessoas; por exemplo, a dependência, os maus hábitos, os defeitos gerais e o que a Igreja denomina de pecados veniais. O dicionário Português-Inglês de Taylor (1958) oferece os seguintes significados ingleses para a palavra portuguesa vício8: «vício, falta, fraqueza, ponto fraco; mau hábito; habituação (ou dependência); depravação; imoralidade; cio, estro». A associação desta palavra com a fertilidade é, pois, intrigante, mas o repetido uso que a informante de há pouco fazia de palavras derivadas da raiz «rebento» («dá rebentos», «arrebentar») sublinha claramente esta relação.
30O uso da palavra vício na fala local resulta da convergência (ou indiferenciação) de duas palavras derivadas da mesma raiz latina» «vício» e «viço». A raiz latina vitium significava «falta, defeito, mancha, imperfeição, vício; falta moral, erro, ofensa, crime; um defeito nos auspícios ou augúrios» (Lewis & Shorter, 1962. s.v.). A fusão das duas palavras, que é rara no seio da burguesia, pode ser encontrada em usos mais específicos que são citados também pelos dicionários. Por exemplo, Morais, depois de enumerar uma vasta gama de significados, mais ou menos coberta pela definição de Taylor, fornece o seguinte significado para a expressão «ter vício»: «produzir a planta uma grande quantidade de rebentos que prejudicam a sua floração [...] desviando inutilmente a força vegetativa da sua seiva». «Viço», pela sua parte, tem duas entradas distintas. A primeira é «a força vegetativa da planta; vigor de vegetação» e mais alguns outros derivados. A segunda é «o mesmo que vício». Finalmente, a edição de 1865 do Elucidário de Viterbo inclui a entrada «Viços-Vícios».
31Portanto, a fusão dos significados das duas palavras é (ou foi ocasionalmente) frequente. Em alguns casos, ela foi realizada através do termo genérico «viço»; em outros casos, como no Alto Minho contemporâneo (e no Alentejo), é preferido o termo «vício». A complexidade dos significados ligados aos dois termos torna-se ainda mais óbvia pelo facto de, na linguagem popular, vício e viço poderem significar o cio dos animais e porque um dos significados-padrão de «vício», segundo Morais, é «sensualidade, lascívia, lubricidade».
32Verificamos uma vez mais que o vigor do corpo está associado à fertilidade, ao sexo e à sensualidade e que estas qualidades assumem uma conotação moralmente pejorativa, pois são identificadas com qualidades anti-sociais e autodestrutivas e com a sexualidade animal. Quando a força física atinge o zénite, a força moral desliza para o seu nadir.
V
33As mulheres não são os únicos seres humanos considerados moralmente inferiores. Os camponeses enquanto grupo julgam-se inferiores em relação à burguesia, porque qualificam o seu estilo de vida como mais «sujo» e porque se consideram incapazes de se controlarem a si próprios.
34Apesar das suas atitudes severas para com o valor simbólico do sexo, não seria razoável descrever os camponeses do Alto Minho como puritanos. No contexto português, as suas atitudes perante as actividades sexuais são mesmo relativamente liberais. Isto é manifesto tanto nas suas acções como no seu discurso. O uso de linguagem indecorosa é muito vulgar entre os camponeses, sendo utilizada, por um lado, como expressão de familiaridade e descontracção e, por outro lado, de cólera e hostilidade. Ao pontuarem as suas frases com termos indecorosos, as pessoas introduzem um conteúdo emocional no seu discurso. Uma grande parte da linguagem indecorosa baseia-se em termos que referem o sexo e as excreções corporais e, na sociedade rural, é utilizada indistintamente por todos, novos e velhos, homens e mulheres.
35A atitude dos camponeses face à linguagem indecorosa não escapa, porém, a uma valorização específica. Quem fala dessa maneira, «fala mal» ou é «malcriado». Os próprios indivíduos que empregam este tipo de linguagem reconhecem a sua inconveniência. Afirmam, no entanto, que é muito difícil evitar a sua utilização, o que, no entanto, seria considerado como um sinal de distinção e de status. É também a este aspecto que se referem quando se lamentam que «nem sequer sabemos falar direito português». A capacidade de não «falar mal» funciona, assim, como um índice da estratificação local.
36O conto seguinte elucida bem algumas destas questões:
O Amigo Malcriado
Havia dois rapazes que eram grandes amigos. Um dia, um deles decidiu casarse. Estava muito preocupado, porque tinha de convidar toda a gente fina e o seu melhor amigo falava tão mal que decerto o ia embaraçar. Decidiu que só lhe falava do casamento depois das bodas.
Mas os vizinhos foram logo dizer ao amigo, que ficou furioso. Quando se encontraram outra vez, o amigo protestou e o noivo teve que explicar que receava por ele falar tão mal... O amigo disse logo que não era nenhum animal, e que, quando necessário, sabia comportar-se. Acabou por ser convidado.
No dia do casamento apareceram muitas senhoras finas com luvas. À saída da missa, as senhoras tiraram as luvas para apertar as mãos. Quando o amigo viu as mãos de uma das senhoras, não conseguia tirar os olhos delas. Ficou ali espetado a olhar até que a senhora lhe perguntou porque é que ele estava assim a olhar para as mãos dela. Ele disse que nunca tinha visto mãos tão brancas. Ela respondeu que era porque usava luvas desde os oito anos de idade. E ele diz logo: «Pois, pois, mas eu uso cuecas desde os cinco e os meus colhões ainda são escuros!»9
37Tal como no conto «A rapariga que queria um marido com testículos brancos», a linha de força desta história radica na natureza específica dos órgãos sexuais que, embora cobertos, permanecem sempre escuros. Como no conto anterior, os testículos não podem ser simultaneamente sexuais e limpos (porque esta é a implicação da pele branca ou clara). A piada está na oposição entre a senhora que é «refinada» (não camponesa) e o homem que é grosseiro e «fala mal» (camponês ou membro das classes urbanas inferiores). A cor branca das mãos é associada à senhora e a cor escura dos testículos é associada ao amigo grosseiro: a senhora está para o homem da classe inferior como as mãos dela estão para os testículos dele. A linguagem indecorosa do homem significa que ele é impuro. Esta conexão entre a impureza e a linguagem é frequentemente referida; por exemplo, a pessoa que utiliza esse tipo de linguagem, tem a «boca suja».
38No seu estudo sobre os habitantes de uma vila montanhosa de Itália, Sydel Silverman afirma que eles «parecem pressupor que é nas vilas (ou nas cidades e nas aldeias semelhantes a vilas) ou no viver peculiar das vilas que o homem é mais humano» (1975:3). Este comentário que é aplicado à visão do mundo burguesa pode ser, paradoxalmente, aplicado também à visão do mundo camponesa. Os camponeses concebem-se a si próprios como seres que vivem algures entre o meio «humano» por excelência (a vila) e o meio natural. É por este motivo que qualificam a paisagem rural minhota, tão luxuriante e bela, como um «deserto», porque a presença humana é mais rarefeita, está aí subordinada à presença da natureza. Os habitantes de Paço e de Couto repetem muitas vezes que a vida que levam é «suja», que o seu trabalho é de «escravos»: a sua vida é impura e penosa. Detestam o silêncio. Os únicos lugares que, sem vacilarem, classificam como belos são as grandes cidades. Embora se lastimem porque «não sabem falar direito», apreciam muito a retórica e não hesitam em percorrer grandes distâncias para escutar o sermão de um pregador de fama — não tanto pela sua mensagem, mas pelas figuras de retórica, porque acham que «fala muito bem».
39Os camponeses consideram-se a si próprios como indivíduos mais ou menos «atrasados» (apenas semi-socializados), ou seja, o inverso de «educados». Os exemplos mais extremos desta característica são as pessoas conhecidas localmente como «bichos do mato». Entre as peculiaridades apresentadas pelos indivíduos que assim são descritos, encontram-se sempre alguns dos aspectos seguintes: falar de uma maneira deficiente; entrecortar o discurso com longos períodos de silêncio; usar uma linguagem particularmente indecorosa, especialmente fora de contexto; ser exageradamente desconfiado, inospitaleiro e insociável; trabalhar arduamente; viver em condições de grande isolamento; não possuir controlo sobre as suas excreções corporais (e ser desleixado na forma de se desembaraçar delas); ser, em certas ocasiões, demasiado violento devido à incapacidade de controlar as suas próprias emoções; enfim, aderir tenazmente a crenças que a burguesia qualifica como «superstições».
40Nem todos os camponeses são tomados como «bichos do mato», é claro, mas tal não significa também que sejam considerados «senhores» (pessoas de status elevado). Ora, esta limitação é precisamente confirmada tanto na opinião dos camponeses como na da burguesia urbana, pela reconhecida incapacidade de evitarem o emprego de linguagem indecorosa.
41Assim, os burgueses de província afirmam a sua superioridade, quando reagem com grande veemência à linguagem indecorosa. A sua imagem de «educados» passa pela recusa desse tipo de linguagem. Na verdade, para o burguês, o único contexto onde a utilização deste tipo de linguagem é permitido é o da amizade juvenil — ou situações que a simbolizem, como o grupo de amigos que vai à caça ou à pesca. Como diz Thomas Mann, «dir-se-ia que a juventude cria a única ponte apropriada entre o burguês e o estado de natureza; é um estado pré-burguês, do qual deriva todo o romance estudantil». (1968:113).
42A preocupação da burguesia de província com a disciplina sexual e o controlo dos processos corporais não se confina ao tipo de linguagem que é praticado. No seio da burguesia, vigoram padrões de fidelidade conjugal mais rígidos e é patente uma real inquietação sobre a virgindade das raparigas solteiras. Embora não adiram a estes padrões, os camponeses atribuem-lhe um valor positivo. Consideram a disciplina sexual e o controlo dos processos corporais como índices de estratificação social e, tal como afirmam que as pessoas a que chamam «bichos do mato» são excessivamente descontroladas, insistem também que aqueles a que chamam «nobres» são controlados em excesso. Os «nobres» são os membros de uma baixa aristocracia rural que se encontra em rápida extinção, pelo facto de ter vendido, durante os últimos vinte anos, uma grande parte das suas terras a emigrantes de torna-viagem. Dedicam-se sobretudo ao exercício de profissões liberais nas cidades e só visitam a aldeia no tempo das colheitas. Diversos camponeses de Paço e de Couto disseram-me que a maioria dos casais «nobres» dorme em quartos separados e que geralmente a mulher só permite a visita do marido num número especificado de noites por semana ou por mês. Os meus informantes mostravam-se particularmente críticos em relação a esta situação, argumentando que o controlo excessivo produz inevitavelmente o descontrolo, sendo até por isso que os «nobres» dormem com as criadas.
43O aparente paradoxo que existe na visão que os camponeses mantêm sobre si próprios, considerando-se incapazes de se controlarem e valorizando, ao mesmo tempo, positivamente os hábitos burgueses «civilizados», não é surpreendente (cf. Elias, 1978). James Peacock estudou um processo similar em Java que colocava em confronto os hábitos kasas (grosseiros) do proletariado de Surabaja e os hábitos alus (estilizados) da élite (1971:155-167). De um ponto de vista individual, a atitude do camponês minhoto é análoga à atitude do leigo que, qualificando o modo de vida monástico como superior ao seu, não se sente cápaz de o adoptar.
44Como Elias observou (1978:116-7), a disseminação de novas «maneiras» está intimamente relacionada com a estrutura de uma sociedade. Numa perspectiva a longo prazo, poderia afirmar-se que a distinção entre hábitos camponeses e hábitos burgueses corresponde a um processo de desenvolvimento histórico unidireccional; mas um olhar mais atento permite concluir que a aceitação camponesa da superioridade relativa das maneiras burguesas reflecte a interiorização da sua posição de inferioridade cultural no seio de uma tradição cultural global. Nesta tradição, cada uma das visões do mundo é influenciada pela outra, mas mantém a autonomia relativa que é alcançada com base num protótipo cultural básico específico. No entanto, o peso relativo de cada uma destas visões do mundo no interior da cultura global é variável e é também um factor essencial para a preservação do aspecto unitário da tradição cultural global. Se, por um lado, se verifica uma disseminação das maneiras «civilizadas» dos estratos urbanos em direcção ao campesinato — como, por exemplo, o costume de comer em pratos individuais, que foi adoptado pelos habitantes de Paço e de Couto apenas há três ou quatro décadas —, por outro lado, o campesinato mantém-se na mesma posição relativa. (O mesmo não se podendo afirmar acerca das relações entre a aristocracia e a burguesia.)
VI
45A fertilidade, a riqueza e o bem-estar físico são cruciais para a sobrevivência da casa, mas não são mais fundamentais que uma vida social ordenada. Ora, esta última exige o controlo da fertilidade, das propensões aquisitivas e dos desejos corporais do homem. Se estas três últimas tendências se manifestassem de forma caótica, seria impossível alcançar o ideal do protótipo de subsistência. Para o minhoto, a sociedade humana está situada entre o Céu e o Inferno, entre Deus e o Inimigo (o Diabo), entre o destino da alma e a escravidão do corpo. Esta batalha, que é travada individualmente no interior de cada ser humano, também é travada no interior de cada grupo social. A propensão natural do homem é ceder às forças vis que o habitam. Por isso, o controlo (e, particularmente, o controlo sexual) é um prenúncio da vitória da alma: representa a opção humana por uma vida social ordenada em vez do caos, pelo Céu em vez do Inferno.
46Cada indivíduo ocupa o seu lugar próprio na escala que vai da capitulação total perante o espírito (o Céu no alto) até à capitulação total perante a matéria (o Inferno em baixo). Mas a sociedade humana é composta por grupos de indivíduos. Estes grupos podem ser também classificados numa posição mais elevada ou mais baixa ao longo desta escala. As mulheres enquanto grupo e os camponeses como um todo são considerados descontrolados e escravos da matéria. Tal não significa que sejam malditos, mas sim que, pelo facto de serem mulheres ou camponeses, são forçados a lutar mais arduamente.
Notes de bas de page
5 O leitor deve ter em mente que a brancura da pele é valorizada como sinal de limpeza e de urbanidade. O valor associado à proverbial cor escura do escroto está estreitamente relacionado com esta concepção.
6 Nota do tradutor: Este texto é transcrito directamente das notas de trabalho de campo do autor.
7 Um outro exemplo desta identificação do calor corporal com as tendências anti-sociais pode ser constatado na primeira história de bruxas. Aí, o regresso da bruxa ao seu eu «social» é marcado pelo arrefecimento do seu traseiro.
8 Nota do autor à edição portuguesa: Recorre-se aqui a um dicionário inglês como forma de criar uma ideia do leque de diferentes implicações da palavra que, em português, seriam menos facilmente destrinçáveis.
9 Nota do tradutor: É uma transcrição directa das notas de trabalho de campo do autor.
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