8. Os papéis sexuais
p. 109-119
Texte intégral
I
1Um dia, pedi a uma velhinha de Paço para me dizer quais eram as principais diferenças entre os homens e as mulheres. Riu-se de mim e respondeu que eram evidentes. Da próxima vez que a encontrei, no entanto, tendo-se entretanto apercebido que não havia qualquer malícia na minha questão, disse-me que já tinha uma resposta para mim. Contou-me, então, a seguinte versão do mito de Adão e Eva:
Quando Deus fez o homem, fê-lo de barro e a mulher só de uma costela... o homem já foi inteiro e a mulher da costela. Já há diferença. Quando o Adão e a Eva comeram a maçã veio a serpente (havia uma árvore que não podiam comer — Nosso Senhor deu-lhes de fazer tudo menos passear nessa árvore) disse para a mulher: «Olha, come que tu ficas sabendo tanto como Deus.» Nessa altura [a Eva] disse para o marido que comesse, que ficava a saber tanto como Deus. O marido disse que Deus não queria... mas comeu. Mas como era contra-gosto ficou-lhe entalado na garganta e ele portanto ficou com a maçã de Adão no pescoço. Mas para a mulher foi tudo para dentro.
Nosso Senhor soube (sabe tudo) e chamou: «Adão, Adão.» Eles andavam nus, mas depois foi-se cobrir com folhas de figueira. Deus chamou duas e três vezes e só depois [o Adão] veio. Até ali andava coberto com a graça de Deus e portanto não precisava de se cobrir. O Adão disse: «Senhor, eu pequei, a mulher que me destes enganou-me, disse para comer do fruto proibido.» Nosso Senhor disse à Eva: «Tu pecaste.» Ela diz que foi a serpente que a enganou. Nosso Senhor: «Pois por terdes prevaricado a minha lei, vós tereis de comer (foi a nossa desgraça) o pão amassado com o suor do vosso rosto, e a mulher ficará sujeita ao marido e terá dores para ter os filhos» (foi daí que começou de nós sermos umas infelizes). E para o homem disse: «Agora ficarás sujeito a comer o pão amassado com o suor do teu rosto.» Disse à serpente: «Tu serás o animal que rastejarás toda a tua vida pelo chão e comerás pó e terra.»
Isto é o princípio do Mundo. Foi daí também que veio a morte, até ali não morria ninguém. Foi daí que começou1.
2Para esta mulher de Paço, o mito demonstra que as mulheres foram sempre moralmente fracas e que os homens, que sabem o que está certo, são controlados e tentados pelas mulheres a cometer actos ruins. No contexto do Alto Minho, esta história assume um significado específico, porque reflecte o conflito e a ambiguidade inscritos nos papéis sexuais: embora moralmente mais fracas, as mulheres são muito poderosas como pilares da casa. Mas o conflito entre os sexos é, de algum modo, mitigado pela divisão sexual do trabalho. Como a mesma velhinha acrescentou mais tarde, «o marido tem uma superioridade, a mulher tem outra. O marido vai trabalhar, a mulher fica em casa. Tem que olhar pelos filhos, marido e casa. A mulher tem vida muito diferente.» Cada cônjuge está incumbido de um aspecto particular da gestão da casa. Os homens cuidam do gado, das árvores de fruto, das vinhas, das oliveiras e dos pinhais; as mulheres cuidam dos porcos e das galinhas, do milho, dos feijões, das batatas, das abóboras e do quintal. As mulheres ocupam-se principalmente com o governo da casa e os homens dedicam uma maior fatia do seu tempo às actividades exteriores, por exemplo, tarefas burocráticas e trabalhos assalariados.
3Não há uma demarcação rigorosa dos papéis sexuais, porque os homens e as mulheres participam conjuntamente nos trabalhos agrícolas. Quando os maridos estão ausentes durante largos períodos de tempo no estrangeiro ou quando estão empregados de dia no sector não agrícola da economia, são as mulheres que desempenham a maioria das tarefas agrícolas e burocráticas. As mulheres que são incapazes de assumir estes deveres suplementares, por serem fracas ou tímidas, são objecto de fortes críticas. Na escolha de uma esposa, um dos factores principais é o facto da mulher ser trabalhadora.
4Há, porém, um conjunto de actividades que estão interditas aos membros de cada sexo: os homens estão proibidos de lavar pratos, de lavar roupa, de coser e de varrer o chão; as mulheres estão proibidas de subir às árvores e de podar videiras.
5Nesta divisão sexual do trabalho, os homens estão mais ligados ao que os camponeses chamam os produtos do ar, isto é, coisas que crescem acima do solo. (Deve lembrar-se que as vinhas, nesta área, são cultivadas em ramadas ou em árvores). As mulheres ocupam-se normalmente dos produtos da terra, coisas que crescem dentro ou rente ao solo. Pode assim compreender-se a proibição que impede as mulheres de subirem às árvores: elas não devem deixar a «terra». Além de estarem mais enraizadas na terra, as mulheres têm supostamente uma menor mobilidade, porque estão intimamente ligadas a uma determinada parcela de terra — a sua «terra». O governo da casa pertence às mulheres, enquanto os trabalhos exteriores são atribuídos aos homens. Num estudo sobre a região vizinha de Barcelos, F. Lopes Gomes descreve um rito que frisa claramente esta situação. Quando a criança recém-nascida terminou o seu primeiro banho,
há o cuidado de lançar a água (só a água...) na lareira, sendo do sexo feminino, e fora da porta, sendo masculino. Assim, a menina será caseira, amiga do lar, e o menino não ficará preso às saias da mãe, à terra, correndo mundo como convém (1965:6).
6Na prática, apesar de trabalharem frequentemente juntos nos campos, os homens e as mulheres só muito raramente executam as mesmas tarefas. Mas no tempo das colheitas, quando largos grupos de homens e mulheres trabalham em conjunto, vindimando ou segando o milho, instala-se uma atmosfera de alegre excitação, acompanhada invariavelmente por dizeres brejeiros. É uma luta de palavras entre homens e mulheres que gira sempre em torno da questão das diferenças entre os sexos. Com este comportamento jocoso, os homens tentam recriar ou manter a divisão sexual do trabalho que fora perturbada temporariamente pela sua participação conjunta numa mesma tarefa.
7O «adágio» seguinte, que ouvi muitas vezes quando participava nesses trabalhos comunais, destaca as diferenças entre os sexos: «os homens olham para cima, as mulheres olham para baixo». Este adágio possui três significados distintos: refere as diferenças entre o estado de excitação dos orgãos genitais masculinos e femininos; refere a divisão sexual do trabalho; e, finalmente, refere uma utilização muito mais global da oposição dimensional alto/baixo na medida em que ela está relacionada analogicamente com as oposições céu/inferno, vida/morte, mente ou espírito/corpo, pureza/corrupção, socialmente benéfico/anti-social.
8A história de Adão e Eva permite demonstrar que as mulheres são moral e fisicamente mais vulneráveis à impureza. Afirmações tais como a deste adágio legitimam a pretensão dos homens à superioridade. Mas não nos esqueçamos de que a posição das mulheres nesta sociedade não pode, de forma alguma, ser considerada desprivilegiada. É verdade que a influência feminina se limita sobretudo ao domínio doméstico mas, contrariamente ao que ocorre nos meios urbanos, tal não implica uma diminuição do seu poder e da sua relevância, já que as actividades produtivas centrais se desenvolvem no contexto da casa.
II
9Em 1966, num texto sobre o Soajo, Colette Cailler-Boisvert afirmava que as mulheres exerciam um domínio total sobre os trabalhos agrícolas, devido à recente emigração masculina. Porém, já em 1861, Furtado Coelho escrevia que «há no distrito [de Viana do Castelo] o hábito muito antigo de se fazer pesar sobre a mulher todo o trabalho do campo. A mulher aqui lavra, cava, distribui o adubo pelas terras; enquanto que os homens ou estão fora do País, ou os que ainda se conservam nas suas casas ocupam-se em outros misteres» (1861:10). Esta prática parece ser genuinamente antiga: Sílio Itálico, depois de uma descrição sobre as danças guerreiras dos soldados desta região, que se reuniram aos exércitos de Aníbal, afirma (em 344-353) que
Este é o repouso e o desporto dos homens, este é o seu solene regozijo. Todo o outro trabalho é feito pelas mulheres: os homens julgam pouco viril lançar a semente no sulco da charrua ou lavrar a terra com o arado. Mas a mulher do galego nunca está sossegada e ocupa-se em todas as lides salvo a da dura guerra (1934:139).
10Justino, o historiador romano, escreve numa perspectiva semelhante: «As mulheres dedicam-se aos trabalhos domésticos e estrumam a terra; os homens vivem pela espada e pela pilhagem» (1672:426).
11Mas as mulheres camponesas não são meras escravas, «bestas de carga» dos maridos, como Camilo nos quis fazer acreditar (1885:67). Embora o papel da mulher se limite principalmente à casa e à feira, não é razoável concluir que as mulheres não possuem qualquer poder económico, tal como sucede no seio da burguesia.
12A emigração tem sido uma constante desta região ao longo de muitos séculos (Serrão, 1974:100-1). Tem existido alguma polémica sobre a questão de se saber se foi a natureza da divisão sexual do trabalho que provocou a forte tendência emigratória dos homens minhotos ou vice-versa. Tem sido alegado que o crescimento da emigração masculina, a partir da década de 1890, reforçou o poder das mulheres na vida local. Em termos simplistas, foi isso que aconteceu: o marido está ausente da casa e a liderança da mulher torna-se mais preponderante. É neste sentido que Cailler-Boisvert designa o Soajo como une communauté féminine rurale. Mas, no longo prazo, é precisamente a tendência inversa que se verifica.
13Do ponto de vista económico, a importância das mulheres na sociedade camponesa está ligada ao papel central que é desempenhado pela agricultura e pela terra arável. Com a progressiva afirmação do significado económico da emigração, sobretudo nos anos 60, a agricultura foi perdendo o seu lugar fundamental. A penetração do sector capitalista nas áreas rurais produziu um efeito idêntico. A população camponesa tornou-se cada vez mais dependente dos rendimentos salariais. Porém, são os homens que normalmente emigram e recebem salários. São os homens que investem as suas economias e lançam pequenos negócios, embora, aqui, o domínio masculino seja menos sólido2.
14Na repartição tradicional das actividades agrícolas, os homens ocupavamse já do tratamento dos produtos destinados ao mercado: gado, vinho, fruta e pinheiros. Em termos globais, o maior envolvimento dos homens no sector capitalista da economia significa que, enquanto grupo, beneficiam mais com o progressivo declínio da importância do sector de subsistência. As casas baseiam cada vez mais a sua economia no dinheiro obtido, principalmente por homens, através da produção orientada para o mercado ou de actividades não agrícolas; deste modo, é reforçado o poder masculino no interior da casa. Ao mesmo tempo, a penetração da visão do mundo burguesa nas áreas rurais, através dos meios de comunicação e do sistema de escolarização, provocou o aparecimento de imagens de dependência e de passividade femininas. As mulheres camponesas que adoptam os maneirismos urbanos para aumentar, no curto prazo, o seu prestígio, estão a abdicar, no longo prazo, de uma antiga posição de poder e de independência.
15Foram muitos os autores que se referiram à «matripotestalidade» ou ao «matriarcado» do Minho (e.g. Willems, 1962:70; Descamps, 1933:191-2). Embora possamos discordar destas formulações, temos de admitir que a posição das mulheres do Alto Minho é diferente da de outras regiões do país. Esta posição projecta-se nas suas atitudes e comportamentos e, especialmente, em questões sexuais. As mulheres, desde muito novas, adquirem uma grande independência pessoal. As jovens adolescentes movimentam-se sem qualquer chaperon e as suas atitudes no namoro não são, de modo nenhum, passivas. A gravidez prématrimonial é também muito frequente.
16Depois do casamento, a mulher não permanece clausurada no seu lar. Participa nos trabalhos agrícolas e, muitas vezes, desloca-se sozinha à vila e às feiras. Devido à emigração masculina, as mulheres passam longos períodos sem a presença do marido. Os habitantes locais afirmam que o adultério é um lugar comum nesses tempos de ausência. Tais factos, porém, tendem a ser esquecidos se os vizinhos não chegam a obter informações seguras. Mas, ocasionalmente, o casal adúltero é imprudente e a mulher engravida.
17Nesse caso, a situação muda. A disseminação dos mexericos sobre um adultério é do maior interesse para os vizinhos. O comportamento adúltero de uma mulher faz diminuir o prestígio da sua casa, o que beneficia directamente os vizinhos, porque, relembramos, o prestígio é aferido em termos relativos e não em termos absolutos. Se os ditos que correm são mais do que uma vaga suspeita, a mãe do marido dirige-se à mulher adultera e debita-lhe um duro sermão sobre as virtudes da fidelidade conjugal. Mas se a evidência é suficiente para causar o escândalo público ou se a mulher engravida, a situação torna-se muito melindrosa para o marido. Foi-me dito que, no caso da mulher não reincidir no adultério, o marido tenderá a perdoá-la. Tive, aliás, conhecimento de dois casos em que os frutos de ligações adúlteras morreram extremamente jovens e em condições um tanto obscuras. Normalmente, quando regressa, o marido desanca a mulher com o maior espalhafato possível e leva-a consigo para o estrangeiro, encerrando, assim definitivamente todo o episódio. No entanto, se a mulher persiste no adultério, a situação torna-se mais grave. Nesse caso, o marido é estigmatizado como «cornudo» e o seu prestígio cai drasticamente. Os homens que ficam assim marcados raramente voltam, sendo forçados a abandonar, com ou sem as suas mulheres, a sua terra natal.
18A expulsão de uma mulher da sua própria casa parece ser impensável para os camponeses minhotos. A casa é o domínio da mulher. A sanção máxima que os maridos podem infligir é o abandono da casa. A mulher é então colocada numa posição difícil, porque não pode nem divorciar-se e voltar a casa dos pais, nem admitir abertamente o amante em sua casa, já que os vizinhos nunca aceitariam tal atitude.
III
19No Minho, quando o camponês se refere à sua mulher, utiliza frequentemente a expressão «a patroa». As variações na utilização deste termo segundo os sexos são particularmente interessantes. A forma masculina («patrão)» tende a ser usada sobretudo pelas pessoas de fora para referirem, num tom levemente irónico, o marido; a forma feminina é utilizada sobretudo pelos membros da casa, especialmente pelo marido para se referir à mulher quando fala diante de pessoas de fora. O tom é, mais uma vez, irónico.
20Embora se afirme peremptoriamente que o dono da casa deve possuir um maior poder que a dona da casa, reconhece-se também que, no interior da casa, o poder da mulher é importante, podendo ser muitas vezes superior ao do marido. Esta ambiguidade é expressa no provérbio, tão difundido a nível nacional, «em minha casa manda a minha mulher, nela mando eu». Esta inconsistência na definição dos papéis marca profundamente a experiência dos camponenses de Paço e de Couto. A utilização pelo marido do termo «patroa» para referir a mulher exprime precisamente esse conflito. Na inflexão irónica da expressão está implícito um sentimento de crítica e de mal-estar. Ao admitir claramente que a mulher é a «patroa», o marido está a negar dissimuladamente esse facto.
21Já o mesmo não se verifica quanto ao uso da forma masculina do termo. Nunca ouvi uma camponesa a chamar o marido de «patrão»; isso seria reconhecer com excessiva transparência uma posição de subordinação (se fosse dito seriamente) ou uma posição de superioridade (se fosse dito ironicamente). Esta última insinuação seria contraproducente. As mulheres são consideradas por natureza «lambonas» e incapazes de se auto-controlarem. A sugestão de uma igualdade perante os homens só viria comprovar a sua tremenda cupidez e a ausência de qualquer controlo sobre os seus afectos. A forma masculina da expressão é, assim, utilizada por pessoas de fora que, ao chamarem o homem de «patrão», estão porventura a insinuar que ele não é completamente o «patrão».
22Esta expressão não foi adoptada pela burguesia. Seria «impróprio» e «grosseiro» sugerir que um marido burguês não é totalmente dominante e, portanto, masculino e que a sua esposa não é plenamente feminina na sua submissão.
23Como Lisón Tolosana propõe no seu estudo sobre a Galiza rural, o poder real de cada homem no seu lar deriva do seu sucesso económico individual e da sua psicologia particular (1971b:258-9). Este autor considera também a possibilidade de serem utilizados diferentes padrões durante as conversas que são mantidas com pessoas de fora (presumindo-se, nessas ocasiões, a existência de uma dominação masculina que não seria traduzida na realidade dos factos). Porém, esta dualidade de padrões não parece ser a melhor explicação para a inconsistência que se verifica na repartição do poder entre os cônjuges. Para os camponeses do Minho, é inequívoco que as mulheres, enquanto grupo, são fracas e impuras. O poder real que elas detêm é, pois, um facto problemático, tanto no contexto da visão do mundo camponesa como no seu confronto com as atitudes da burguesia.
24Na minha opinião, trata-se de uma genuína contradição ao nível dos valores e das expectativas de comportamento. Tal observação não nos deve preocupar, porque não existem culturas monolíticas; todas as culturas encerram contradições. Como Mary Douglas observa, «possivelmente, todos os sistemas sociais se constroem sobre a contradição, encontrando-se, de certa forma, em guerra consigo próprios» (1966:166). Foram numerosos os autores que apontaram a existência de dispositivos culturais que permitem a cada cultura elaborar essas contradições (e.g., Turner, 1957; Dumont, 1970). Ao longo deste capítulo, mostraremos como é que a contradição entre os papéis sexuais masculinos e femininos se manifesta nas práticas rituais e quotidianas do Alto Minho.
25A relação entre os cônjuges, enquanto co-gestores da casa, e os muitos interesses que partilham, geram normalmente um forte sentimento de companheirismo entre ambos. Mas os maridos camponeses não prescindem do direito de punir fisicamente as suas mulheres. (Os habitantes locais afirmam que esta prática está a desaparecer lentamente devido à «educação».) Na sua opinião, não se deve «dar confiança» à mulher — expressão que implica um distanciamento, um estar à parte. Entre outros aspectos, não deve permitir-se que a mulher se antecipe aos movimentos e às escolhas do marido; não deve permitir-se que ela diga, ou mesmo pense, que «estou certa que o meu marido concordará» sem que ele emita primeiro a sua opinião.
26O marido que nunca satisfaz os pequenos caprichos da sua mulher é objecto de críticas dos familiares e vizinhos, mas também não se espera que ele ceda sempre aos desejos femininos: não deve «estragar» a mulher. Julga-se (e esta ideia é evocada muitas vezes pelas próprias mulheres) que, se os desejos das mulheres forem sempre satisfeitos, o mundo poderá deslizar para o caos, pois elas querem sempre mais do que têm. Esta é uma das razões que levam os residentes locais a mostrar relutância face à possibilidade das mulheres assumirem posições de poder político a nível nacional.
27De um modo semelhante, as relações sexuais entre o marido e a mulher são marcadas pelo conflito. O homem é fortemente pressionado a satisfazer fisicamente a sua mulher. As mulheres, dizem os camponeses locais, têm fortes apetites sexuais e, no caso de estarem insatisfeitas, acabarão por cometer adultério. A mulher deve também responder às necessidades sexuais do marido. Os dois sentem-se, assim, constrangidos a desempenhar adequadamente o seu papel nas relações sexuais. Um ginecologista com experiência local afirmoume ser extremamente difícil persuadir os casais a suspenderem as relações sexuais por motivos de saúde, mesmo só durante breves períodos de tempo. Na sua opinião, os dois parceiros medem o seu sucesso pessoal pela gratificação sexual do outro, instaurando-se, deste modo, uma forma de competição sexual.
28Uma forte ênfase é colocada na capacidade de controlo do marido sobre o seu orgasmo. Um sujeito pobre residente em Paço e cuja mulher dera à luz doze filhos num período de tempo relativamente curto, tornou-se o alvo da chacota local, porque era incapaz de «se controlar». O coitus interruptus é considerado como o meio natural e correcto para assegurar o controlo da natalidade3.
29Mas, como os meus informantes masculinos me explicavam, o controlo masculino encontra a sua razão de ser na necessidade do homem «se rir» quando está na posição de o poder fazer. Os homens queixam-se que as mulheres «se riem» deles quando eles são jovens e não conseguem ainda controlar o seu orgasmo. De igual modo, durante a velhice, sabem que reencontrarão dificuldades para cumprir sexualmente; as mulheres voltarão novamente a «rir-se» deles. Na idade madura, pois, o homem aprende a «controlar-se»; pode «montar e desmontar a mulher as vezes que lhe apetecer», pode «rir-se» dela: é ele que sexualmente tem poder sobre ela.
30O conflito sexual entre os homens e as mulheres e a natureza ameaçadora da sexualidade feminina manifestam-se também no domínio das crenças sobre as bruxas. No Alto Minho, acredita-se que são as mulheres que praticam a bruxaria, atacando só os homens. As bruxas aparecem apenas de noite, trazendo luzes azuladas nos traseiros nus. Habitualmente, seduzem as suas vítimas disfarçando-se de jovens vestidas de branco. Se um homem cair nas suas mãos, pode acontecer-lhe um grande mal, talvez mesmo a morte. Mas, se os seus enleios forem desprezados, as bruxas não causam grande dano. (Nesta região, as bruxas não são responsabilizadas pelos casos gerais de infortúnio.) São pouco comuns as acusações pessoais que denunciam uma pessoa específica como bruxa, porque aquele que «revela» uma bruxa expõe-se à própria morte; por isso, não consegui descobrir qualquer padrão em relação às mulheres acusadas. Em termos globais, há dois tipos de histórias sobre bruxas, sendo um mais contado por homens e o outro por mulheres.
31A história de bruxas seguinte foi-me contada por um homem. É uma história considerada muito hilariante.
A mulher de um certo homem começou a mostrar sinais de sono e cansaço. Incapaz de explicar a situação, o homem foi invadido pela suspeita, sobretudo porque reparou que o traseiro da mulher estava estranhamente frio todas as manhãs. Por isso, uma noite, resolveu fingir que dormia para deslindar o mistério. Depois de todos se terem deitado, e julgando que o marido dormia, a mulher chamou-o baixinho pelo seu nome. Como ele não respondeu, pronunciou um feitiço para o fazer dormir até ela voltar e deixou o quarto através da janela, algo que desconcertou bastante o homem. Ficou acordado durante toda a noite mas, quando a mulher regressou, fingiu que dormia. Esta entrou pela janela e foi direita a uma grande pedra colocada a um canto do quarto. Quando se sentou sobre ela, o homem ouviu um ruído: «shee». [Compreendeu imediatamente que a mulher era uma bruxa e que ela estava a apagar a luz azulada que todas as bruxas trazem no traseiro durante as suas deambulações nocturnas. O calor nas regiões genitais e anais é geralmente associado à excitação sexual.] Na noite seguinte, aconteceu a mesma cena. Então, depois de ela ter saído, o marido levantou-se e acendeu um grande fogo em cima da pedra. Manteve-o aceso durante toda a noite até que a pedra ficou incandescente. Pela manhã, quando pressentiu a mulher a voltar, limpou apressadamente as cinzas e foi para a cama. Quando ela pôs o traseiro na pedra, ouviu-se o seguinte ruído: «sheeeeeeeeeee!!!», seguido de um grande berro. Desde então, a mulher nunca mais tornou às suas passeatas nocturnas.
32Só há um tratamento seguro para curar uma bruxa: aquele que os maridos aplicam às mulheres namorisqueiras e adulteras, isto é, desancar a mulher até correr sangue. À falta disto, nada pode dissuadir uma bruxa das suas excursões.
33As histórias que me foram contadas por mulheres pertencem a um género bastante diferente. A história seguinte é um bom exemplo. Uma noite, um parente da mãe da própria narradora,
caminhava por um bosque, regressando à sua casa, situada na freguesia do outro lado do monte. A um dado passo, divisou três raparigas vestidas de branco. Chamaram por ele e perguntaram-lhe se ele queria «andar ou montar». [Esta é a pergunta padrão das bruxas; é uma cilada sexual que não deve desviar o caminhante da sua direcção.] O homem era um jovem robusto que, mesmo no dia anterior, afirmara que as bruxas não o assustavam e, por isso, não hesitou. Respondeu que as queria montar a todas. Nesse momento, as bruxas «roubaram-lhe os sentidos» e voaram com ele para longe. Na manhã seguinte, quando o sacristão de uma paróquia bastante distante foi tocar o sino para a missa de manhã, deparou com o jovem sentado no cimo do campanário, sem dar acordo de si. A família levou duas boas semanas para localizar o seu paradeiro. Quando voltou a casa, não estava capaz de falar. Só balbuciava, muito sumidamente: «As bruxas, as bruxas...» Foi definhando e, passado pouco tempo, morreu4
34As vítimas das bruxas são sempre abandonadas num estado de aturdimento. A punição que resulta de uma provocação dirigida às bruxas é geralmente a morte lenta. Mas também pode ser a perda temporária ou definitiva da potência sexual. Recentemente, um homem de Couto foi encontrado, pela manhã, adormecido numa represa e pretendeu que fora ali parar levado nos ares por obra das bruxas. Foi, assim, obrigado a consultar uma curandeira («bruxa», capítulo V, secção 16) para recuperar a sua potência.
35Os dois tipos de histórias podem ser considerados como comentários sobre a ameaça potencial da sexualidade feminina. Em ambos os casos, a culpa do comportamento sexualmente desviante é imputada às mulheres. Mas as histórias divergem na sua conclusão. Nas histórias contadas geralmente por homens, a bruxa recebe uma lição que a purga de todo o desejo de continuar a comportarse como bruxa; nas histórias contadas geralmente por mulheres, é o homem que recebe uma lição sobre a maneira como deve resistir à tentação.
36Ao contarem as histórias de bruxas, os homens e as mulheres encenam uma batalha entre os sexos que é expressa ainda com mais nitidez durante os grandes trabalhos comunais do tempo das colheitas, quando a normal divisão sexual do trabalho sofre uma suspensão temporária. Os gracejos e as histórias sobre bruxas contados nestas ocasiões não são inocentes, porque, a despeito da aparente boa índole do seu humor, eles ocultam uma hostilidade bem real entre os sexos (cf. Silverman, 1975:43).
37Quando um homem se encontra com bruxas e não quer ter nada com elas, deve gritar-lhes que são «putas», o que supostamente as enfurecerá. É interessante o uso dessa palavra neste contexto. Embora, em termos estritos, a palavra «puta» se refira a prostitutas, é também utilizada muitas vezes no discurso quotidiano como uma forma de insulto. Como adjectivo, por exemplo, é aplicada às freguesias e aos lugares onde a ilegitimidade (mas não necessariamente a prostituição, pois os habitantes locais não confundem as duas práticas) é muito frequente; segundo as pessoas de Paço, Couto é precisamente uma «freguesia putanheira». Assim, a palavra descreve mulheres que permitem que a sua sexualidade se torne ameaçadora para a sociedade; mas o seu uso quotidiano é ainda mais lato, designando a natureza anti-social específica das mulheres. Por exemplo, quando uma filha comete um erro por descuido, a mãe pode chamar-lhe «puta».
38O casamento e a ligação com a casa e a terra são os meios que podem redimir a sexualidade das mulheres. Mas, num sentido muito real, o perigo que a sexualidade feminina representa para a ordem moral nunca é totalmente erradicado: lá bem no fundo, crê-se que todas as mulheres são «putas».
39A independência potencial da sexualidade feminina constitui uma ameaça para a paternidade e, portanto, para a fonte básica da autoridade dos homens nesta sociedade, a sua posição como chefes da casa. Devo insistir que as opiniões aqui discutidas sobre a natureza das mulheres não derivam de uma visão exclusivamente masculina sobre o conflito entre o masculino e o feminino. A sexualidade não redimida das mulheres, além de ameaçar a posição dos homens, é também um perigo para a própria unidade social primária. Por isso, ela afecta tanto os homens como as mulheres, já que cada indivíduo — tanto masculino, como feminino — se identifica com as instituições centrais da sua sociedade.
Notes de bas de page
1 Nota do tradutor: Trata-se de uma versão baseada directamente nos cadernos de notas de trabalho de campo do autor.
2 Este padrão não se aplica plenamente em áreas, como o Minho litoral, onde ocorreu um desenvolvimento das indústrias locais e a agricultura se orientou mais para o mercado.
3 Nota do autor à edição portuguesa: Chamo a atenção do leitor para o facto de que estas considerações se aplicam ao período de trabalho de campo, 1978-1980. Temos hoje evidência de que, precisamente durante tste período, se estava a efectuar no noroeste português uma profunda alteração nas práticas contraceptivas.
4 Nota do tradutor: Trata-se, nos dois casos, de transcrições não literais de histórias que foram relatadas ao autor, que só posteriormente as anotou.
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