6. A composição do fogo
p. 74-91
Texte intégral
I
1A maioria dos fogos camponeses e urbanos têm o seu centro num casal unido pelos laços do matrimónio. Como, na sociedade camponesa, as actividades produtivas se desenrolam no seio da casa e sendo a casa concebida como uma unidade de produção e de gestão da propriedade, os poderes executivos do casal-chefe camponês estão mais claramente delineados do que no contexto burguês. Deste modo, mesmo nos casos em que dois casais coabitam na mesma casa, há sempre um consenso entre os vizinhos e os membros da casa a respeito de quem «governa a casa», de «quem são os donos da casa». Além disso, numa casa nunca vive mais do que um «casal jovem». Dois irmãos casados não podem viver na mesma casa, porque o conflito entre eles poderia ser demasiado grave.
2Tenho vindo sempre a referir-me ao «casal-chefe» e não ao «chefe da casa». É que, com a excepção das viúvas e dos indivíduos solteiros, a chefia nunca é confiada a uma única pessoa, sendo assumida conjuntamente pelo casal. Utilizam-se duas expressões para designar este casal: «os donos da casa» e «o patrão e a patroa». O significado da palavra «donos» está mais próximo aqui do significado de «senhor» do que do de «proprietário». As implicações da noção de propriedade privada em «proprietário» estão ausentes desta expressão, que coloca ênfase sobretudo nos direitos executivos do casal (muito à semelhança do latino dominus) e não tanto na propriedade privada. A expressão «o chefe da casa» é usada principalmente nos círculos urbanos, onde tende a reflectir a primazia masculina característica do lar burguês.
3No decurso da segunda metade deste século, a generalização das facilidades de emprego remunerado a nível local não modificou automaticamente a posição do casal-chefe, apesar de ter levado a uma maior clivagem na unidade de produção que caracteriza a casa. A situação em relação à casa dos seus membros que se empregaram no sector capitalista local não é radicalmente diferente da situação dos emigrantes. E a emigração é, afinal, uma velha característica da sociedade minhota. A prioridade conceptual continua a ser atribuída à casa como base da subsistência. Por seu lado, as actividades que lhe são exteriores são consideradas como apoios e opções disponíveis. Deste modo, o estudo do comportamento económico camponês exige que o foco da pesquisa se dirija sobretudo para as estratégias das casas e não tanto para as estratégias dos indivíduos. A alteração que se verificou na posição do casal-chefe deve-se fundamentalmente à nova posição relativa que foi assumida pelos rendimentos que os jovens agora obtêm no exterior da casa, o que afecta mais a unidade de propriedade da casa que a sua unidade de produção.
4É importante notar que a concepção de propriedade a que me refiro não é, de modo nenhum, idêntica à noção de propriedade privada que foi consagrada no sistema jurídico português. Os membros de um concelho, de uma freguesia ou de um lugar consideram que os direitos exclusivos sobre as decisões relativas à gestão da terra do concelho, da freguesia ou do lugar são da sua pertença, mesmo quando não são eles individualmente que detêm a propriedade legal dessas terras. Esses direitos exclusivos são uma, espécie de propriedade. De igual modo, os membros de uma casa consideram que certos terrenos, edifícios, animais, etc., lhes pertencem em conjunto, mesmo se nem todos os membros da casa possuem iguais direitos legais sobre a propriedade. Isto verifica-se, pelo menos, em dois sentidos opostos: primeiro, os criados residentes, os parentes ou os amigos são considerados membros da casa embora não detenham quaisquer direitos legais individuais sobre a herança; segundo, as propriedades trazidas por cada um dos cônjuges nunca são completamente incorporadas. Este último aspecto é particularmente relevante nos casos de viuvez e de novo casamento, se houver filhos do primeiro casamento. Apesar das especificações do Código Civil serem respeitadas em termos formais, é evidente a vontade de permitir que o cônjuge sobrevivente permaneça na parte da propriedade que ele ou ela trouxe para a casa aquando do casamento ou, subsequentemente, através de uma herança.
5Com o declínio da importância relativa da agricultura no orçamento geral da casa durante os anos 60 e 70, os jovens começaram a sentir como uma injustiça a exigência que os pais faziam sobre os seus ganhos pré-maritais, que estes últimos consideravam como propriedade comum da casa. Apesar de ser aceite que os rendimentos extra-agrícolas dos filhos não devem ser tomados em conta na divisão da casa para efeitos de herança, esta prática era sentida pelos jovens como um obstáculo às suas poupanças.
6Na base do problema, está a própria noção de «salário». Esta noção faz pouco sentido se o ponto de referência for o protótipo de subsistência: o trabalho dos membros da casa pertence à casa e é no seu contexto que se desenvolve a produção. Os «produtos» do trabalho pertencem, assim, à casa e devem ser usados em seu benefício, incluindo-se aqui também o sustento dos seus membros.
7Mas um salário não é um «produto» e é aqui que nasce a dificuldade. Os pais «antiquados» interpretam o salário como uma forma de «produto» que, como tal, pertence à casa, que o pode usar ou não para benefício de um dos seus membros. Os jovens propõem uma visão diferente: o seu trabalho privado levou a um pagamento e o que dele resta, deduzidos os custos do seu sustento pessoal, devem caber ao próprio assalariado.
8Aos olhos da velha geração, qualquer propriedade que acompanha um filho ou uma filha que abandona a casa dos pais devido ao seu casamento é um benefício que vai reverter a favor de outra casa em detrimento da casa de origem. Mas os indivíduos mais jovens estão a ser influenciados pelos costumes burgueses e individualistas: para eles, não é justo que os seus ganhos pessoais (ou o juro que eles rendem até à divisão da casa dos pais) favoreçam a casa dos pais e não a eles próprios. Os pais mais velhos raciocinam em termos de justiça ao nível da casa, enquanto os jovens raciocinam em termos de justiça ao nível do indivíduo.
9Na prática, hoje, parece que a maioria das filhas tende a confiar os seus ganhos (ou, pelo menos, uma grande parte) aos pais, ao passo que a maioria dos filhos o evita fazer, preferindo muitas vezes confiar as suas economias a amigos da família, a parentes ou mesmo ao padre. São frequentes as recriminações que os filhos dirigem aos pais por causa da forma como eles administram o dinheiro que lhes entregam, porque consideram que não obtêm quaisquer benefícios dessa administração. Em contrapartida, nunca ouvi protestos semelhantes da parte de filhas: a sua ligação à casa dos pais é geralmente mais forte e o seu casamento é muitas vezes uxorilocal2, o que lhes permite beneficiar directamente do investimento do seu dinheiro feito com o propósito de consolidar o sucesso da casa como um todo.
II
10Na sua crítica à concepção que Lévi-Strauss tem do casamento, Octavio Paz sugere que este é, em última análise, caracterizado por ser «uma mediação entre a renúncia e a promiscuidade (...) criando, assim, um ambiente legal e fechado onde o jogo erótico se pode desenvolver» (1970:127). Esta afirmação fornece uma pista para compreender a concepção dos camponeses do Alto Minho sobre o casamento. O casamento e a casa assumem um carácter sagrado, porque são precisamente mediações entre o mal do sexo e a reprodução necessária do grupo. A divindade e a perfeita santidade estão fora do alcance do ser humano comum. Mas, no seio da casa, através do sacramento do matrimónio, é possível consumar o ideal de pureza na reprodução. É nesta perspectiva que o ritual da preparação do pão acima descrito assume o seu significado cosmogónico.
11Os verdadeiros casamentos devem ser celebrados por uma união cristã. As uniões civis são tipicamente caracterizadas como «casamentos de vacas», porque, na visão do camponês, são simples autorizações para a coabitação. Para o camponês, a casa deve ser uma entidade unificada dotada de uma existência temporal duradoura. O divórcio e o recasamento, consentidos pelas uniões civis, negam essa unicidade ao permitirem a repetida quebra da própria relação que é mais central à casa. Em Paço e em Couto, ao contrário do que parece suceder no nordeste de Portugal (O’Neill, 1982), as relações horizontais da casa, isto é, as relações entre os membros do casal-chefe, não são, de modo nenhum, subsidiárias ou mesmo menos significativas que as relações verticais, isto é, as relações entre os pais e os filhos.
12Uma afirmação clara da noção de que o casamento é uma relação que deve perdurar eternamente é a prática de enterrar os casais na mesma sepultura (geralmente, a da família da mulher). Certo dia, uma mulher contou-me com uma satisfação sincera que, no enterro recente do pai, se descobrira que o seu caixão poderia ainda ser acomodado sobre o da mãe que falecera há vários anos; o caixão foi assim aí colocado delicadamente, para que pudessem ficar «juntinhos».
13Uma outra razão que explica a aversão contra as uniões civis é o facto de estas impossibilitaram a criação de uma relação sagrada entre os cônjuges. Na visão do mundo local, a simples restrição da actividade sexual de uma pessoa a um companheiro regular não torna o sexo menos poluente. Os processos simbólicos contidos nos rituais cristãos são essenciais para que seja eficaz a mediação que o casamento opera entre o mal do sexo e a desejável reprodução da casa. Por isso, uma união civil, apesar de poder presumir um relacionamento sexual exclusivo e permanente entre dois companheiros e, simultaneamente, a criação de um fogo, não constitui um instrumento que permita a reprodução plenamente aceitável da ordem social.
14Os casamentos são acontecimentos onde se manifesta claramente a diferenciação social. Em contraste com a maior parte das outras cerimónias, particularmente os funerais, nos casamentos os indivíduos podem desafiar abertamente a suposição de que todos os camponeses são «iguais» e a prática correspondente de minimizar a diferenciação económica e social no interior da comunidade camponesa. Esta atitude verificava-se já antes dos anos 50 (e. g. Valle, 1965).
15As formas públicas dos casamentos têm sido transformadas em parte pela sua ligação com a chegada dos emigrantes. Muitos rapazes emigram ainda solteiros e, por isso, um grande número de casamentos realiza-se em Agosto, durante a sua estadia na região. Ao celebrarem as suas bodas com tanto aparato, os emigrantes satisfazem a dupla necessidade de demonstrar o seu poder económico, tanto no momento em que regressam da emigração como no princípio da sua vida conjugal. É neste contexto que os jovens recorrem à aquisição de bens de consumo como símbolos de status. Os bens de consumo são associados à burguesia que, aos olhos da população rural, se caracteriza pela riqueza e pelo poder económico, ou seja, precisamente as características que se pretende alardear nestas ocasiões.
16As despesas do casamento são em geral suportadas pelos pais da noiva, decorrendo a cerimónia na sua casa ou, pelo menos, na freguesia de residência da noiva. Um homem, para casar «decentemente» a sua filha, precisa, pois, de dispender uma parte considerável das suas economias.
17Os meus informantes ligavam sempre o casamento das suas filhas a histórias espantosas de abundância. Pormenorizavam a comida soberba, tão copiosa que (e esta frase é constantemente repetida) «até os cães comeram bolos e doces». O excesso de comida era sempre tal, que «aquilo dava para a gente comer por um ano inteiro».
18Quando se realiza um casamento, todos os automóveis são tirados das garagens e dos alpendres e as pessoas trajam vestidos e casacos novos num deleite de exuberância e competição. A honra de levar os noivos de automóvel é muito disputada entre os amigos do noivo, não tanto pela preferência pessoal que isso possa implicar, mas sim porque a escolha feita pelo jovem casal, por entre vizinhos, parentes e amigos, irá inevitavelmente recair no proprietário do automóvel melhor e mais atraente.
19Os casamentos ocasionam um excesso de despesas para todas as pessoas que nele participam, uma tendência que se verifica sobretudo nos lugares mais próximos do rio (as «meias de baixo», onde tem sido mais intensa a comunicação cultural e económica com os centros urbanos). Depois do casamento, os convidados comparam discretamente as prendas, tentando descobrir quem usou de maior generosidade na sua oferta. Em Paço, considera-se normalmente que, até hoje, ainda ninguém ultrapassou o proprietário local mais rico (um homem de origem camponesa). O casamento da sua filha mais velha, ocorrido há mais de vinte anos, é evocado como um acontecimento de uma grandeza inexcedível. É importante sublinhar que, tanto entre os convidados como entre os anfitriões, não há uma preocupação de triunfar indiscriminadamente sobre toda a gente. Os membros de uma casa têm unicamente a preocupação de serem melhores do que as pessoas que eles próprios classificam como pertencendo aproximadamente à sua própria categoria.
20Esta competitividade selectiva explica igualmente as atitudes ambíguas das pessoas que não emigram para com os emigrantes de torna-viagem. Por um lado, criticam-nos pelo seu comportamento exuberante e arrogante. Mas, por outro lado, estranham se os emigrantes não se entregam a dissipações. É necessário que um emigrante de torna-viagem dê a conhecer a posição que vai agora ocupar na competição social e, portanto, com quem irá competir.
21Se uma casa conhecida pela sua riqueza, evita fazer despesas num casamento de uma filha, sofrerá um abalo irremediável na sua reputação. Do mesmo modo, as pessoas que vivem acima dos seus próprios meios e que são incapazes de causar uma boa impressão no casamento de uma filha, são denegridas. Os vizinhos exageram sempre estes fracassos.
22A estimativa que uma pessoa em particular faz sobre o sucesso ou o insucesso de um casamento específico, não depende, porém, unicamente de factores externos. Depende também do tipo de relação que existe entre o convidado e o casal. Os convidados do noivo mostram-se, em geral, mais circunspectos acerca do sucesso. Há uma competição subterrânea entre as duas partes e, embora os amigos e parentes do noivo se sintam no dever de dizer que o casamento foi um êxito, será pouco provável que venham a admitir que foi melhor do que os casamentos das irmãs do noivo.
23Hoje, tal como no passado, muitos dos casamentos resultam de um acordo entre pais e filhos. Geralmente, são precedidos por uma fase de namoro, que é uma relação socialmente reconhecida entre dois jovens. O par, muitas vezes, trava conhecimento numa festa, numa feira ou no adro da igreja ao domingo. Se um rapaz e uma rapariga têm algum interesse um pelo outro, podem conversar ou dançar sem dar nas vistas durante um certo tempo. Pouco depois, no entanto, o rapaz começa a visitar a rapariga à porta da sua casa e, se não houver uma especial resistência da parte dos pais da jovem, esta prática passará a ser regular aos domingos e dias de festa. Diz-se então que os jovens são «conversados». De facto, a «conversa» é, publicamente, a actividade principal ligada ao namoro. Contudo, este ideal de continência sexual pré-conjugal não é levado demasiado a sério. As mulheres solteiras podem movimentar-se livremente pelos campos e fazem-no muitas vezes sem qualquer companhia. Os encontros privados entre namorados são combinados com facilidade. Deste modo, a opinião generalizada é que as noivas raramente são virgens.
III
24É muito difícil obter dos habitantes das freguesias de Paço e de Couto afirmações normativas sobre a composição dos fogos. Proferem-se, decerto, juízos de valor e afirmações sobre as suas condições ideais, mas os informantes acrescentam sempre prontamente que eles não correspondem necessariamente às situações de facto. O minhoto concebe a composição do seu fogo como o resultado de uma série de decisões estratégicas e não tanto como um ajustamento a princípios normativos pré-determinados. Somos, assim, levados a tentar descobrir um modelo estatístico, que permita descrever as estratégias dominantes e os factores que explicam as suas variações.
25A relação entre a terra e a casa, cujo significado cognitivo foi já sublinhado, pode manifestar-se também de outra forma. As estratégias de composição dos fogos parecem estar intimamente ligadas à diferenciação económica que se verifica no interior da sociedade camponesa e, em particular, à posse da terra. Infelizmente, a ausência de um cadastro, a extrema subdivisão da terra e a grande diversidade dos tipos de terra não permitem ao investigador estabelecer uma relação entre a posse da terra e a composição dos fogos. No entanto, mesmo se existisse um padrão comparativo uniforme para aferir os valores da terra — o que é, na verdade, uma impossibilidade prática —, esta relação continuaria a ser difícil de delinear, porque a propriedade legal da terra não é um indicador adequado. O que afecta a composição do fogo não é a propriedade legal da terra per se, mas sim o direito de gerir a produção numa determinada parcela de terra e a certeza de beneficiar de uma parte suficiente dos produtos da terra como compensação média do trabalho, ou seja, um controlo permanente sobre uma empresa agrícola viável. Esta distinção é especialmente significativa se considerarmos que muitas vezes a terra trabalhada por uma casa pertence a parentes emigrados ou é mantida sob condições de arrendamento que asseguram a subsistência do caseiro e da sua família, mesmo depois de um mau ano agrícola.
26Há duas comparações que nos podem auxiliar a ultrapassar estas dificuldades. Em primeiro lugar, as composições dos fogos em Paço e em Couto podem ser cotejadas. A relação entre a terra e a composição dos fogos é, assim, elucidada, pois sabemos ser o número de pessoas que possuem a terra que trabalham superior em Paço, e estarem os seus habitantes mais profundamente ligados a um modo de vida camponês. Em segundo lugar, a composição dos fogos pode ser relacionada com os escalões económicos elaborados com base no recenseamento dos fogos (ver capitulo 1, secção V).
2770,71% dos fogos do conjunto das duas freguesias são compostos por uma família nuclear (FN), isto é, um casal ou um(a) viúvo(a) com ou sem filhos; 21,50% são compostos por famílias alargadas (FA), isto é, uma família nuclear e um ou mais membros (de entre estes, 1,46% compreendem um membro não aparentado, muitas vezes um «criado»); finalmente, 7,72 são fogos chefiados por indivíduos solteiros (SOLT)3.
28Estas percentagens têm pouco significado se não estudarmos o ciclo de desenvolvimento da família, a diferenciação económica no interior da freguesia e as diferenças entre as duas freguesias consideradas. Infelizmente, trabalhamos com números muito reduzidos — 295 fogos em Paço e 184 fogos em Couto e, por vezes, com números menos expressivos, porque não dispomos de certos dados relativos a alguns fogos. Isto significa que não é possível interrelacionar mais do que duas variáveis, pois, de outro modo, as amostras perderiam a sua representatividade. Este problema é insolúvel, porque o recenseamento pormenorizado que foi realizado no contexto desta análise não seria viável na totalidade de um concelho; por outro lado, devem ser evitadas análises intermédias que levariam à supressão da variação existente entre freguesias, cuja importância pode ser verificada na comparação entre Paço e Couto.
IV
29Os fogos chefiados por indivíduos solteiros (SOLT) devem ser examinados separadamente dos outros fogos, porque não podem ser qualificados propriamente como «casas», e porque correspondem a uma situação de transgressão dos padrões geralmente aceites. No conjunto de Paço e de Couto, 28,41% de todos os fogos do sub-escalão económico inferior (P2) são chefiados por indivíduos solteiros. Esta percentagem decresce progressivamente à medida que ascendemos na escala de estratificação: 4,54% no sub-escalão P, e 3,03% no sub-escalão M2. NOS escalões superiores foram detectados apenas dois casos: o fogo do padre (M,) e o fogo da idosa e única descendente de uma antiga casa aristocrática (R,). Estes dois casos devem ser considerados à parte.
30A associação entre a pobreza e os fogos chefiados por indivíduos solteiros não é refutada pelo facto de Paço possuir actualmente uma percentagem de fogos deste tipo que é idêntica à de Couto (respectivamente, 7,80% e 7,60%). Trata-se de um resultado irónico da vaga emigratória dos anos 60 e princípio dos anos 70. Couto apresenta, e sempre apresentou, um número superior de indivíduos sem terra que, na ausência da segurança que é proporcionada pela terra e pela casa agrícola, não se sentem tão atraídos pelo regresso à freguesia de origem. É por esta razão que a população diminuiu mais rapidamente em Couto do que em Paço (ver capítulo 1, secção 2.III).
31A privação da terra, os fogos, chefiados por indivíduos solteiros e a ilegitimidade são fenómenos interligados. Algumas freguesias do concelho têm a reputação de serem «putanheiras» — Couto é uma delas. Trata-se invariavelmente de freguesias mais pobres, onde uma larga parte da terra pertence a proprietários absentistas e onde a taxa de ilegitimidade é mais elevada. O termo «putanheira» subentende uma explicação moral para a ilegitimidade: na visão do mundo camponesa, e apesar de não gerar qualquer forma de ostracismo aberto ou de diminuição dos direitos civis, a ilegitimidade é considerada como anti-social. A privação da terra está associada à ilegitimidade, não só ao nível intra-freguesia, mas também ao nível da composição individual dos fogos: ainda hoje, 68,97% de todos os fogos que incluem filhos ilegítimos pertencem ao sub-escalão económico mais baixo (P2) e 17,24% ao sub-escalão situado imediatamente acima.
32O campesinato sem terra destas freguesias aproxima-se muito do modelo da «sub-sociedade propensa à bastardia» proposto por Laslett:
uma série de mulheres que produzem bastardos, que vivem na mesma localidade, cujas actividades persistiram ao longo de várias gerações e que tenderam a relacionar-se entre si pelo parentesco ou pelo casamento. Muitas destas mulheres possuíam não só um mas vários nascimentos ilegítimos (1980:217).
33Além disso, é interessante observar que, nos últimos cem anos, os períodos que correspondem aos picos da ilegitimidade (as décadas de 1890 e 1930, ver Diagrama N.o 4), confirmam a conclusão de Laslett que defende que a ilegitimidade cresceu «ao mesmo tempo que crescia a proletarização, quando provavelmente se colocavam obstáculos ao casamento proletário» (1980:226).
34Os caseiros, que trabalham a terra de outras pessoas, transmitem o direito a trabalhar essa terra e a viver na habitação que lhe está ligada à filha casada que permanece junto deles (é raro ser escolhido um filho). A terra própria é insignificante, pelo que se criam dificuldades ao casamento local das outras filhas. O mesmo sucede com os lavradores que não possuem terra suficiente para ser distribuída entre todos os filhos. As filhas vão para as cidades servir como criadas ou ficam em casa como solteironas. Nos últimos vinte anos, a emigração feminina e a emergência de fontes alternativas de rendimento, levaram a uma alteração nestes padrões. Contudo, ainda há actualmente casos de homens e mulheres adultos que ficaram solteiros, trabalhando sob a chefia de um irmão casado ou de uma irmã casada (cf. Bourdieu, 1962).
35No entanto, a posição das mulheres destituídas de vínculos à terra é ainda menos invejável que a posição das filhas dos caseiros. Até aos anos 60, era pouco provável que encontrassem marido e, simultaneamente, não possuíam a segurança de uma casa agrícola, porque as suas próprias mães eram também muitas vezes solteiras. Não tinham habitação própria e eram frequentemente forçadas a viver em alojamentos temporários e de ocasião, tais como celeiros, estábulos e casebres arrendados. Como eram pagas ao dia («a jornal») e o seu emprego era, portanto, sazonal, precisavam muitas vezes de recorrer à prática de relações sexuais com lavradores ricos a fim de obter comida e a satisfação de outras necessidades mínimas durante os meses de Inverno4. Por isso, os pais dos seus filhos eram frequentemente os patrões ou outros camponeses ricos das proximidades.
36Mas estas relações podiam ser, por vezes, lucrativas. Camilo Castelo Branco oferece-nos uma ilustração:
Os solteiros aceitam, sem biocos de honra, as mulheres infamadas que lhes estimulam o cio ou o interesse. O brasileiro, argentário que fechou a loja nas extintas congortas, desonra e dota raparigas com uma quantia sabida; de modo que os candidatos à dotada disputam a pau de choupo o gozo legítimo da moça habilitada para noiva (1885:70-1).
37O que indignava Camilo era que estas raparigas não tinham encontrado marido antes de serem dotadas pelo «brasileiro», não porque tivessem perdido a virgindade, porque fossem «infamadas», mas sim porque não possuíam terra. Uma vez dotadas, muitos seriam os candidatos à sua mão. Para o camponês que, ao contrário da prática burguesa, não traça uma fonteira rigorosa entre o domínio da família e o domínio da economia, é perfeitamente aceitável que a lógica económica se introduza numa questão sexual e familiar: para o burguês, tal confusão é anátema.
38Citando Oliveira Martins, Camilo escreve que, entre os camponeses minhotos, «muitas, muitas raparigas casam sem ser virgens e isso, apesar de sabido, não escandaliza» (Castelo Branco, 1885:70-1). Tal como nessa época, ainda hoje a gravidez pré-conjugal é frequente. Se os pais da rapariga são razoavelmente ricos, não é difícil, em geral, persuadir o amante a casar-se com ela. Quando este recusa, a solução é normalmente o aborto. Apesar de tudo, no entanto, se a ligação é do conhecimento público, a cotação da jovem no mercado matrimonial tende a declinar e ela pode ser obrigada a moderar as suas expectativas. Para lhe arranjar noivo, os pais serão provavelmente obrigados a adiantar-lhe uma parte considerável da herança como dote.
39Há, porém, um aspecto em que os habitantes de Paço e de Couto são intransigentes: um casal que não esteja unido pelos laços do matrimónio não deve formar casa. Não há objecções quanto às relações sexuais entre solteiros, mas a criação de uma casa que não assente no sacramento do matrimónio é considerada como uma ofensa a todo o «lugar».
40Isto explica o facto de existirem apenas dois fogos constituídos por casais sem o laço do matrimónio, no conjunto dos fogos que são chefiados por indivíduos não casados, nas duas freguesias. É significativo também que estes dois casos ocorram em Couto, uma freguesia onde é menor o número dos que conseguem atingir o tipo de composição do fogo que idealmente se ajusta à concepção da casa expressa pelo protótipo de subsistência. Estes casais são criticados, mas os vizinhos não possuem a força moral necessária para impedir a sua existência.
41Em Paço, no entanto, os vizinhos de muitos lugares dispõem dessa força. Citarei apenas um exemplo. Em meados dos anos 70, um homem casado que mantinha, desde há alguns anos, uma ligação aberta com uma mulher solteira, decidiu abandonar a casa da sua quezilenta esposa e mudou-se para a casa da amante. Logo que as suas intenções foram conhecidas, os vizinhos do lugar, que até aí tinham mesmo mostrado alguma simpatia por ele, reagiram violentamente contra o casal adúltero, escorraçando-o para sempre do lugar.
42Mesmo hoje, as mulheres destituídas de terra e que engravidam, continuam a ter dificuldades em convencer os seus amantes a casarem-se com elas. Aliás, só raramente recebem auxílio para sustentar a criança. As que não conseguem casar, criam os filhos no lar materno. Os filhos varões, em geral, emigram, só raramente regressando à freguesia; as filhas, prosseguem o estilo de vida das mães. Assim, encontramos hoje casos de mulheres cujas avós já eram mães solteiras.
43A ilegitimidade foi muito vulgar até aos anos 50, mas actualmente tende a desaparecer. Porém, ainda hoje, 8,3% de todos os fogos de Couto e 3,73% dos fogos de Paço são chefiados por mães solteiras. De 1860 a 1940 (o período em que as taxas de ilegitimidade começaram a diminuir), as percentagens dos baptismos de filhos ilegítimos por década oscilou entre 14,3% e 22,5% em Couto e entre 5,8% e 12,5% em Paço (ver Diagrama N.o 4).
44A partir dos anos 60, os camponeses sem terra descobriram várias fontes alternativas de rendimento que lhes permitiram o casamento. Paralelamente, os emigrantes regressados vêm adquirindo a terra dos propritários absentistas, o que significou que alguns indivíduos que antes não possuíam qualquer terra passaram a ser proprietários. Este facto levou praticamente ao desaparecimento da ilegitimidade. Nos anos 50, a percentagem de baptismos de crianças ilegítimas no conjunto das duas freguesias foi de 1,56%.
45As mães solteiras, cuja sexualidade não foi redimida pelo casamento, não são receadas ou ostracizadas por causa da sua «maternidade ilegítima»; são, no entanto, desprezadas e consideradas algo impuras. É costume dizer-se que os seus filhos «são criados como cabritos», o que faz sobressair a sua analogia com a natureza animal.
46Individualmente, as mães solteiras são consideradas inferiores; mas, enquanto grupo, todos os camponeses sem terra são inferiores, porque não podem constituir «casas». A existência de uma casa exige uma relação estável entre um grupo de pessoas, um edifício e uma terra. Os camponeses sem terra são encarados como pessoas errantes e chamados depreciativamente de «cabaneiros». Esta palavra refere-se literalmente a uma pessoa que habita uma cabana, isto é, uma casa temporária; mas, figuradamente, o termo possui um significado mais profundo. Um lavrador rico, que interroguei a este propósito, disse-me que «um cabaneiro é uma pessoa mesquinha, que não sabe fazer nada, uma pessoa morta que pertence à companhia-do-não-te-rales, é um beco sem saída». Os camponeses sem terra, não têm uma ligação intensa com a terra; são, por isso, excluídos conceptualmente da sociedade camponesa no seu sentido mais restrito.
47Portanto, há mais desprezo do que piedade em relação às mães solteiras, que são censuradas aparentemente pelo que é considerado como um comportamento sexual dissoluto. Esta atitude é encorajada pelo facto de serem quase sempre mulheres sem terra e de haver um sentimento generalizado de que quem não tem terra, não tem mérito.
V
48O estudo dos dados referentes à composição dos fogos, incluindo os que não puderam constituir uma «casa», permite verificar a existência de uma correlação positiva entre a composição dos fogos e a riqueza. O número dos fogos compostos por famílias alargadas é superior tanto em Paço por comparação a Couto, como nos escalões superiores por comparação aos escalões inferiores.
49No conjunto dos fogos compostos por famílias alargadas, encontramos 7 que incluem membros não aparentados com o casal-chefe. 5 fogos incluem criados e 2 fogos incluem um amigo ou um vizinho. A ocorrência destes fogos, ao invés dos que são chefiados por indivíduos solteiros (SOLT), está associada aos escalões económicos superiores. Representam 1,2% de todos os fogos do sub-escalão M2, 3,70% de M, e 33,33% de R1/2.
50Couto não apresenta casas com criados. A razão deste facto é principalmente de natureza classificatória. Os meus informantes desta freguesia, ao contrário dos de Paço, classificaram o trabalhador rural, empregado de forma permanente pela casa, como um «jornaleiro permanente» e não como um «criado». Estas pessoas são, portanto, concebidas como extrínsecas à casa. Pelo contrário, em Paço, os criados recebem um status semelhante ao que os aprendizes possuíam na casa de um artesão medieval.
51Uma atitude parecida é manifestada em relação aos amigos ou aos vizinhos que residem na casa. Os exemplos que encontrámos em Paço referem-se a mulheres idosas que foram admitidas na casa com a condição de lhe legarem por morte os seus bens. Em Couto, como seria de esperar, não descobrimos casos homólogos.
52A comparação entre o número de casas compostas por famílias nucleares (FN) e o número de casas compostas por famílias alargadas, no conjunto das duas freguesias, mostra a existência de uma percentagem superior do último tipo de casas em Paço (ver Quadro VI).
53Esta conclusão é idêntica à que é fornecida pela comparação entre a composição dos fogos e os escalões económicos. A fim de tornar as amostras mais representativas, iremos proceder à comparação entre os escalões superiores e os escalões inferiores. (Mas, mesmo assim, a amostra relativa aos escalões superiores de Couto não se revela suficientemente representativa, ver Quadro VII).
54Podemos verificar que a frequência das casas compostas por famílias alargadas (FA) é superior tanto nos escalões superiores, quando Paço e Couto são consideradas conjuntamente, como em Paço, por comparação a Couto. Mas há um aspecto em que estas percentagens continuam a ser equívocas. Como Meyer Fortes frisara em 1949 (1970:7-8), a compreensão do significado da composição dos fogos exige necessariamente o estudo do ciclo de desenvolvimento familiar. Nestas freguesias, é a filha casada mais nova que normalmente sucede aos pais na chefia da casa. A casa atravessa, portanto, longos períodos com uma composição baseada na família nuclear, o que não exclui um tipo de estratégia de composição da casa que privilegia a família alargada. O estudo da idade do chefe da casa permite, assim, delinear uma imagem mais nítida da manifestação dessa estratégia no decurso do ciclo de desenvolvimento5.
55Os dados apresentados nos Diagramas N.os 5a e 5b indicam que, pelo menos, 50% de todas as casas de Paço e 33,33% das casas de Couto percorrem um ou mais períodos do ciclo de desenvolvimento com uma composição baseada na família alargada.
56Há uma incidência maior desta situação em três momentos do ciclo: os períodos em que o membro mais jovem do casal-chefe possui entre 25 e 35 anos, entre 50 e 54 anos e entre 70 e 74 anos. No primeiro destes momentos, que é o mais longo e aquele onde é maior a percentagem das casas compostas por famílias alargadas, as casas compreendem um casal jovem e os seus filhos, acompanhados de irmãos ou irmãs do casal-chefe e/ou outros indivíduos da geração ascendente (pai ou mãe, geralmente viúvos, e tio ou tia, geralmente solteiros). À medida que estes últimos vão morrendo por velhice, a frequência das casas do tipo de família alargada tende a decrescer.
57O grupo etário de 50 a 54 anos mostra um novo crescimento deste tipo de casa. Mas a composição é diferente: há agora um casal jovem que vive na dependência do casal-chefe que é constituído pelos pais de um dos jovens. A elevada percentagem verificada neste grupo etário está relacionada com o casamento da primeira filha, enquanto a que é observada no grupo etário de 70 a 74 anos está ligada ao casamento da filha que provavelmente virá a herdar a chefia da casa. Enfim, a elevada percentagem que ocorre no grupo etário de 70 a 74 anos resulta também dos casos em que uma viúva vive com os netos ou com estes e uma filha casada que não assume formalmente a chefia, porque o marido é um trabalhador emigrante.
58A interpretação destes dados, principalmente os que se referem aos grupos etários acima dos 50 anos, leva-nos a considerar o problema da emigração. Muitos dos jovens casais que, noutras circunstâncias, viveriam com os seus velhos pais, estão radicados em países estrangeiros. A sua ausência significa que eles não são tomados em conta nestas percentagens. Mas a sua ligação com a casa rural, da qual se consideram ainda membros, não enfraquece.
VI
59A divisão dos fogos de Paço e de Couto em três tipos (SOLT, FA, FN) não pretende sugerir que existem três tipos de estratégias de composição dos fogos. A correlação entre a riqueza, sobretudo quando ela se traduz na propriedade da terra, e a composição dos fogos é tão marcada que nos leva a propor que a existência dos fogos chefiados por indivíduos solteiros (SOLT) corresponde a uma estratégia negativa: os indivíduos que não possuem terra não podem formar uma «casa». Só os indivíduos que possuem terra podem estabelecer uma casa, satisfazendo, assim, o ideal consagrado no protótipo de subsistência, que é partilhado igualmente por todas as pessoas.
60Podemos explicar de modo semelhante a frequência relativa dos fogos compostos por famílias alargadas e dos fogos compostos por famílias nucleares. É a propriedade diferencial da terra que, em última análise, fundamenta a adopção de atitudes estratégicas diferentes. Porém, o contraste entre as duas freguesias deve também ser considerado. Paço é uma freguesia que apresenta um número mais elevado de indivíduos que são proprietários da terra que trabalham; é uma freguesia onde os valores da visão do mundo camponesa estão mais enraizados e são respeitados de forma mais estrita. Assim, mesmo no interior dos mesmos escalões económicos, a percentagem das casas compostas por famílias alargadas é superior em Paço.
61No Alto Minho, a atitude estratégica associada à maior frequência de fogos compostos por famílias alargadas é uma expressão da identificação dos camponeses com a terra e a casa agrícola. A natureza estratégica da composição das casas foi, de resto, o motivo que me levou a omitir esta relação na minha exposição do protótipo de subsistência. A associação entre a casa e a estratégia de composição da família alargada resulta da encenação dos valores que são expressos no protótipo: ela não detém a força de um ideal partilhado por uma cultura. É uma tendência estratégica derivada de uma série de decisões que, a um nível consciente, são consideradas independentes e desconexas. Corresponde à forte preocupação motivada pela sobrevivência da casa como um todo e da sua terra como uma unidade. A residência em comum do maior número de pessoas possível sob a chefia de um casal permite aumentar a área de terra explorada e, ao mesmo tempo, reafirma o peso moral da casa como unidade social dotada de uma identidade própria.
62A lógica desta estratégia deve ser apreendida também a um nível individual: um membro de uma casa abastada — que retira desta pertença o apoio e a subsistência necessários para fazer face ao malogro de fontes alternativas de rendimento (por velhice ou por desemprego no sector capitalista) — não irá facilmente abandonar a casa ou contribuir para o enfraquecimento do seu poder e do seu prestígio. Enquanto a casa possuir terra, persistirá o interesse dos seus membros em permanecerem juntos.
63Porém, esta tendência não é levada à sua última conclusão lógica, que seria a situação de vários irmãos germanos casados viverem juntos acompanhados das suas famílias nucleares. Nas duas freguesias, não há nenhum caso de coabitação de dois casais da mesma geração, o que, aliás, seria considerado simplesmente inaceitável. Uma casa é caracterizada pela sua unidade: a possibilidade de um conflito sobre a chefia ou, mais grave ainda, uma dualidade na chefia, é aberrante para o minhoto tal como o seria a ruptura da unidade reprodutiva da casa que daí resultaria. De modo significativo, o pleno direito dos irmãos germanos solteiros do casal-chefe a serem membros da casa não é transmitido aos seus filhos ilegítimos; não descobri, em Paço e em Couto, qualquer caso destes.
64Trata-se, portanto, de uma mesma lógica estratégica que pode ter uma expressão positiva ou negativa. Por um lado, há o pólo que corresponde a uma situação que favorece a emergência de casas compostas por famílias alargadas. É uma estratégia positiva, onde os membros de uma casa tentam prolongar a existência da casa como entidade social e preservar a unidade de determinadas parcelas de terra que lhe estão ligadas. Em termos de parentesco, é uma estratégia centrípeta que leva à manutenção de laços próximos entre os descendentes da casa, o que se reflecte no casamento entre primos (através do qual a casa pode reaver campos que tinham sido perdidos por herança)6. Além disto, como a casa não é definida em termos de parentesco, ela pode integrar criados ou mesmo amigos. Esta estratégia permite uma presença social máxima tanto da casa como de cada um dos seus membros. Como os critérios de pertença à freguesia ou ao lugar se definem essencialmente em termos da participação numa casa, trata-se de uma estratégia de maximização da cidadania na sociedade camponesa.
65Por outro lado, há uma estratégia negativa, que é prosseguida pelos jornaleiros e pelos caseiros mais pobres e que origina uma elevada percentagem de fogos chefiados por indivíduos solteiros (SOLT) e uma fraca incidência de fogos compostos por famílias alargadas. Em virtude de não possuírem terra, estes camponeses enfrentam problemas de subsistência e só raramente casam (o casamento faz pouco sentido para o camponês minhoto se não estiver associado a uma casa). É frequente a ilegitimidade e são vulgares as famílias matrifocais com uma escassa presença masculina, porque os maridos e os filhos emigrantes não sentem qualquer estímulo para regressar. O casamento é também menos estável. Os indivíduos que conseguem adquirir terra, podendo estabelecer uma casa, tendem a minimizar os seus laços de parentesco. Trata-se de uma posição estratégica centrífuga e negativa que só é prosseguida pelas pessoas que não possuem outra alternativa.
66Entre estes dois pólos, há todo um continuum de variações. Quanto maior for a riqueza, tanto maior será a tendência para que a casa integre uma família alargada. Entre as pessoas que possuem apenas um pouco de terra, o interesse individual em pertencer à casa não é suficientemente forte para contrariar a natural tendência centrífuga. Há, assim, um maior número de casas compostas por famílias nucleares entre estes grupos intermédios.
67Enfim, em Couto, uma freguesia onde o número de casas que atinge o tipo de presença social resultante de uma composição baseada na família alargada é menor e que possui um maior número de pessoas dependentes de rendimentos não agrícolas ou de terra cuja posse é incerta, o ideal do protótipo de subsistência tende a enfraquecer e há uma menor insistência dos habitantes locais, enquanto grupo, sobre a conformidade aos princípios que modelam a visão do mundo camponesa. Podemos, assim, perceber porque é que os habitantes de Paço aderem mais firmemente à visão do mundo camponesa e são menos vulneráveis à penetração de um novo tipo de estratégia de composição do fogo, ou seja, a que deriva de uma visão do mundo burguesa e de condições de vida urbana e não agrícola.
Notes de bas de page
2 Sobre o uso deste termo ver Carrasco (1963:133-4) e Casselberry e Valavanes (1976:215-226). A «uxorilocalidade» significa a residência de um casal dos pais da mulher». A «uxorivicinalidade» é a residência de um casal nas imediações da casa dos pais da mulher, por oposição às imediações da casa dos pais do marido.
3 Não recorri a uma tipologia das unidades domésticas semelhante, por exemplo, à que foi elaborada pelo grupo de Cambridge (cf. Laslett, 1972:31), porque seria demasiado complexa no contexto da presente análise. Salvo qualquer especificação em contrário, todos os números se referem a 1979-1980.
4 Contrariando a opinião de Laslett (1980:56), esta foi a explicação que os meus informantes forneceram sobre a maioria dos casos de ilegitimidade directamente estudados (cf. Furtado Coelho, 1961:2).
5 Os meus cálculos foram efectuados com base no membro mais jovem do casal-chefe. Esta é uma das modalidades possíveis para estudar o ciclo de desenvolvimento da casa. Seleccionei-a porque permite uma melhor informação sobre a idade da fecundidade e da herança final (os dois cônjuges precisam de herdar antes de terem garantido a sua total independência económica). Fornece também uma indicação mais adequada sobre a duração do tempo de chefia porque, se a viuvez ocorre demasiado cedo na vida do cônjuge sobrevivente, ele ou ela assumirá o poder de chefia durante um período mais longo do que é normal para um viúvo ou viúva. Enfim, considerando a forte tendência para a prática da uxorilocalidade, parece mais importante a idade da mulher, que hoje é geralmente o cônjuge mais jovem.
6 Infelizmente, não foi possível recolher informações sobre a relação exacta entre os cônjuges no quadro de uma amostra suficientemente representativa de indivíduos.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000