3. Aspectos da economia
p. 43-55
Texte intégral
I
1Na opinião dos economistas agrários, se não fosse o facto do sector agrícola ter funcionado como produtor e reprodutor da força de trabalho, a articulação entre os sectores agrícola e industrial da economia portuguesa poderia parecer negativa. Durante os períodos de recessão, o sector agrícola português tem reabsorvido alguns dos trabalhadores excedentários, não só do sector industrial português, mas também, através do processo emigratório, dos países de acolhimento dos trabalhadores portugueses — este facto é confirmado pelas variações da emigração referidas anteriormente. As remessas de dinheiro enviadas pelos emigrantes permitiram, por um lado, uma aceleração da industrialização, através da aquisição de equipamentos no estrangeiro, e, por outro lado, a satisfação da crescente procura de produtos alimentares por parte da população urbana, através da aquisição de bens alimentares aos países estrangeiros. Assim, os fracos níveis de produtividade da agricultura portuguesa e a sua articulação com o sector capitalista da economia portuguesa só poderão ser compreendidos se tomarmos em consideração a posição periférica de Portugal na economia mundial (cf. Barros e Ribeiro Mendes, 1982:3-4).
II
2O investimento das remessas de dinheiro dos emigrantes e o desenvolvimento do sector capitalista da economia nos anos 60 e princípios da década de 70, permitiram uma penetração mais forte das actividades capitalistas nas áreas rurais. No entanto, a extrema subdivisão da terra e a incapacidade governamental de racionalizar a comercialização dos produtos agrícolas e de fornecer apoio técnico e investimentos para o desenvolvimento rural, a uma escala significativa, prejudicaram a criação de uma agricultura plenamente mecanizada e capitalizada. Seja como for, registou-se algum desenvolvimento e, actualmente, é manifesta a existência de uma certa mecanização, ainda que em pequena escala (cf. Cabral, 1983). O principal efeito desta mecanização foi a redução das necessidades de força de trabalho por parte daqueles camponeses que possuem mais terra do que a que lhes é possível cultivar e que vinham sentindo dificuldades em suportar os custos do trabalho manual, porque não podiam competir com o sector capitalista em termos de salários.
3Seguindo uma estratégia tipicamente camponesa, os emigrantes investiram uma larga parte das suas poupanças na aquisição de terra (cf. Mendras, 1967:107). Os preços da terra aumentaram fortemente, mas a produção não sofreu acréscimos significativos. A agricultura permaneceu, na maioria dos casos, uma actividade economicamente pouco remuneradora. Assim, é todos os anos maior a quantidade de terra deixada em pousio devido à falta de interesse dos seus possuidores. Se, por um lado, a agricultura camponesa foi reforçada com o investimento das remessas dos emigrantes que permitiram a sua sobrevivência, por outro lado, perdeu a sua posição como fonte primária de rendimento do camponês. (Isto é correcto, sobretudo, se tomarmos em conta as estratégias familiares a longo prazo.) Em termos económicos, pois, uma vida camponesa pura e simples não é hoje viável. Porém, em termos sociais, continua a ser a única forma de garantir aos habitantes rurais um tipo de pertença e segurança sociais de que eles não podem prescindir.
4A despeito destas transformações, o termo «camponês» continua a ser apropriado para descrever os residentes de Paço e de Couto como um todo, porque, na sua maioria, eles são ainda produtores agrícolas que extraem da terra que controlam uma larga parte dos seus meios de subsistência. Mesmo os residentes que são assalariados permanentes, possuem frequentemente alguma terra. Seja a terra possuída ou arrendada, considera-se indispensável um mínimo de agricultura para uma vida familiar adequada, e a casa, no seu todo, é encarada como uma empresa produtiva integrada. Quando um homem trabalha no exterior por um salário, o resto da casa cultiva a terra. Esta coordenação é concebida como uma extensão económica da «casa» e não como um agregado de actividades económicas separadas, como seria o caso na sociedade urbana. O conceito de um «emprego», — uma actividade assalariada independente da vida familiar — é estranho a estas pessoas. Assim se explica que, apesar de grande parte dos rendimentos da casa ser actualmente originária de fontes não agrícolas, o habitante rural continua a conceber-se como um camponês.
5O Quadro III indica as actividades económicas dominantes de todos os residentes de Paço e de Couto que, em 1979-1980, tinham mais de 18 anos de idade. Podemos constatar que 75,5% da população adulta de Paço e 68,38% da popu lação adulta de Couto se dedicam a actividades agrícolas. Na sua maior parte, são trabalhadores agrícolas por conta própria (lavradores) que se ajustam à imagem tradicional do camponês; os restantes são assalariados agrícolas. O número destes últimos tem sofrido uma diminuição drástica nas décadas recentes. Hoje, representam apenas 8,72% da população adulta de Paço e 7,71% da população adulta de Couto.
Quadro III. Tipos de actividades económicas da população adulta*
Homens | Mulheres | Total | |
Paço | |||
Trabalhadores por conta própria: | 135 | 295 | 430 |
Não agrícolas | 27 | 9 | 36 |
Trabalhadores por conta de outrem (colarinhos azuis): | |||
Agrícolas | 12 | 44 | 56 |
Não agrícolas | 53 | — | 53 |
Assalariados (colarinhos brancos) | 6 | 2 | 8 |
Pensionistas | 24 | 24 | 48 |
Outros** | 8 | 3 | 11 |
Couto | |||
Trabalhadores por conta própria: | |||
Agrícolas | 61 | 175 | 236 |
Não agrícolas | 29 | 5 | 34 |
Trabalhadores por conta de outrem (colarinhos azuis): | |||
Agrícolas | 12 | 18 | 30 |
Não agrícolas | 26 | 3 | 29 |
Assalariados (colarinhos brancos) | 10 | 1 | 11 |
Pensionistas | 14 | 17 | 31 |
Outros** | 13 | 5 | 18 |
6Entre os lavradores (trabalhadores agrícolas por conta própria), é elevada a percentagem das mulheres (68,8% em Paço e 74,15% em Couto). Algumas são mulheres de emigrantes e permaneceram no país para cuidar das actividades agrícolas das suas casas. Mas o predomínio das lavradeiras sobressai mesmo se tomarmos em consideração o número de homens que são chefes de casa e emigraram (46 em Paço e 25 em Couto). Isto reflecte a prática de combinar o trabalho assalariado dos homens com as actividades agrícolas da casa. Finalmente, a predominância das mulheres sobre os homens (as mulheres constituem 58,72% da população adulta total de Paço e 57,58% da de Couto) espelha mais uma vez a tendência que leva os homens a abandonar a sua freguesia e as mulheres a permanecer.
7Uma outra importante categoria é a dos trabalhadores não agrícolas por conta própria. É o caso dos negociantes de gado, dos lojistas e dos proprietários de pequenas indústrias, por exemplo, a construção, as serrações, as moagens, os lagares e as destilarias. Segundo os padrões locais, todos estes homens são bastante ricos, tendo muitos deles obtido no estrangeiro o capital necessário para lançar os seus negócios. Com a excepção de uma empresa de britagem, pertencente a um homem de Paço, trata-se sempre de pequenas empresas. Esta categoria inclui também três costureiras, um sapateiro, dois alfaiates, um barbeiro e um cesteiro que praticam os seus ofícios em casa, sem investimentos significativos de capital, e ainda dois taxistas. Podemos acrescentar também os empregados do Estado e os empregados de escritório: três professores primários, dois polícias, um guarda florestal, um guarda-rios e diversos empregados de escritório que trabalham na vila mas residem nas suas freguesias de origem. Finalmente, há vários artesãos tais como carpinteiros, pedreiros e serralheiros. Na sua totalidade, a percentagem de indivíduos adultos ligados permanentemente a estas tarefas não agrícolas não ultrapassa 15,1% em Paço e 19,02% em Couto.
8Ironicamente, porém, a actividade económica de longe mais importante depois da agricultura — e, em termos do rendimento doméstico global, sem dúvida a mais significativa — é a emigração. Não dispomos de dados oficiais relativos à emigração legal ao nível de freguesia (quanto à emigração legal aos níveis de concelho e de distrito, ver o Diagrama N.o 1). Mas para compreender a dimensão do fenómeno, iremos considerar uma amostra de todos os indivíduos com idades entre 15 e 30 anos (em 1979 em Paço e em 1979-1980 em Couto), cujos fogos de origem residem ainda em Paço e em Couto (a «amostra dos jovens»). Embora esta amostra seja obviamente incompleta, pode fornecer uma ideia sobre a taxa de emigração no período que vai de 1963 a 1978. Desde 1976, muitos países de acolhimento tentaram suspender a emigração e mesmo, no caso da França, foram oferecidas indemnizações aos emigrantes para eles regressarem a Portugal. Em 1979-1980, o único local que ainda continuava a receber um número substancial de emigrantes era a Venezuela. Isto significa que a «amostra dos jovens» aqui seleccionada inclui mais jovens do que incluiria se não cobrisse o período de 1977-1978.
9A proporção dos emigrantes jovens em relação à «amostra dos jovens» é de 37,5% para Paço e de 33,33% para Couto. De todos os migrantes jovens, 32,62% em Paço e 33,33% em Couto eram mulheres, percentagens que são inferiores à que foi encontrada por Serrão para todo o país no período de 1951-1960, isto é, 38,1% (1974:123). A preferência pela emigração masculina era, assim, ainda nítida mesmo durante o êxodo dos anos 60 e início dos anos 70. Finalmente, esta amostra inclui tanto os emigrantes em países estrangeiros como os jovens que partiram para trabalhar nas grandes cidades portuguesas. A percentagem dos primeiros em relação ao número total de migrantes jovens é, no entanto, de aproximadamente 80% nas duas freguesias.
10Muitos emigrantes foram para a França. A Alemanha, a Venezuela, o Canadá, Andorra, a Austrália e o Brasil são os outros principais países de acolhimento, por ordem decrescente de importância. Com base nos dados disponíveis, é impossível estabelecer com rigor o número de emigrantes que regressaram às suas freguesias de origem. A ajuizar pela percentagem de homens do grupo etário dos 50 aos 60 anos que são emigrantes regressados, a taxa de retorno parece ter sido, nas duas últimas décadas, razoavelmente elevada em comparação com correntes emigratórias anteriores. A taxa de retorno varia também significativamente de acordo com o período de migração e com os países de acolhimento escolhidos.
III
11As parcelas de terra extremamente diminutas são talvez o aspecto mais característico da agricultura minhota. Devido ao terreno muito acidentado e aos vales fundos, a maior parte da agricultura tende a ser praticada em pequenos socalcos talhados nas vertentes das colinas. Já no século xvii, segundo Aurélio de Oliveira, a maioria da terra cultivada pelos rendeiros da Abadia de Tibães estava dividida em parcelas inferiores a meio hectare 1974:12). (Seja como for, M. Halpern Pereira considera que, até 1870, «a divisão da propriedade não é encarada como um obstáculo sério ao desenvolvimento regional» (1971:183, nota 92) e o Minho era citado como um exemplo a ser imitado por outras regiões do país. Mais tarde, porém, o problema redobrou de gravidade, apesar de em 1949, no distrito de Viana, a dimensão média de uma exploração agrícola continuar a ser meio hectare. Mas este problema tem de ser contextualizado, porque, como Cunhal defende na sua famosa Questão Agrária, os números médios não são muito significativos. Embora cada parcela seja muito pequena, um lavrador cultiva geralmente várias parcelas e um proprietário possui muitas. A dimensão das parcelas deve ser, portanto, comparada com a dimensão global das explorações agrícolas. O Quadro IV mostra como se distribuíam as explorações agrícolas no distrito de Viana de acordo com a sua dimensão em 197912.
12Assim, mais de 90% de todas as explorações agrícolas possuem uma área inferior a 4 hectares. Os problemas criados por esta divisão da terra tornam-se óbvios quando verificamos que 26,39% das explorações agrícolas de Viana, em 1968, eram constituídas por mais de 10 parcelas separadas. Além de a maior parte das pessoas cultivar muito pouca terra, é o próprio terreno que se mostra muito dividido. Em 1968, em Ponte da Barca, um concelho interior e, portanto, mais montanhoso, 29,84% das exploraçõs eram formadas por mais de 10 parcelas dispersas (Instituto Nacional de Estatística, 1968). Na verdade, a divisão dos terrenos nestas regiões mais elevadas do distrito é tal que, em Paço e em Couto, a área dos campos varia entre 0,1 hectare e 0,5 hectares. Além disso, nas zonas mais altas destas freguesias, onde as vertentes são ainda mais íngremes, cada um destes campos está habitualmente dividido em três ou quatro socalcos. Nas freguesias montanhosas situadas na parte oriental do concelho, um campo que mede 0,03 hectares é chamado «um campo de carro», porque necessita de um carro de bois carregado de estrume para ser adubado e é, assim, considerado uma propriedade valiosa.
Quadro IV. Dimensão das explorações agrícolas no distrito de Viana, 1979
Menos de 1 ha (< 2,47 acres) | 57,77% |
De 1 ha a 4 ha (9,88 acres) | 32,99% |
De 4 ha a 20 ha (49,42 acres) | 6,89% |
De 20 ha a 50 ha (123,55 acres) | 0,26% |
mais de 50 ha | 0,08% |
13Esta extrema subdivisão do terreno é, decerto, anti-económica, não só por causa da terra ocupada por caminhos e sebes e pelo dispêndio de tempo necessário para as deslocações às diferentes parcelas da mesma exploração, mas também porque impede a utilização de maquinaria complexa e a consequente adopção de métodos agrícolas modernos. Esta subdivisão do terreno é, no entanto, até um certo ponto, coerente com o sistema de policultura anteriormente descrito. Cada casa possui um conjunto de parcelas dispersas pela freguesia, geralmente a uma distância que se pode percorrer a pé, embora por vezes se situem para além dos limites da freguesia. Se os campos se localizam demasiado longe, são geralmente arrendados a agricultores que vivam perto. Os diferentes tipos de terra têm diferentes utilizações: hortas; campos de milho rodeados por ramadas para as vinhas (terra irrigada); campos de centeio (terra de sequeiro); terra onde se apanha mato para as camas do gado; bosques; e porções de terra com castanheiros, nogueiras, oliveiras ou árvores de fruto (estas são muitas vezes plantadas nas margens dos terrenos). Se uma casa não possui um destes tipos de terra — especialmente os mais essenciais, como os campos de milho com ramadas e as hortas —, tenta arrendar o que necessita a um emigrante ou a uma pessoa que tem terras abandonadas.
14Alguns fogos sem terra, ou quase sem terra, estabelecem contratos de parceria com proprietários mais ricos. Embora a maioria dos rendeiros pagasse metade da produção anual, era ainda habitual, até aos anos 70, encontrar contratos que estipulavam o pagamento de 2/3 da produção anual da terra. Os grandes proprietários têm muitos caseiros a trabalhar nas suas terras e os seus negócios agrícolas são administrados por um camponês, em geral relativamente rico, o «feitor». Dado que a terra está hoje a ser gradualmente adquirida aos proprietários absentistas por emigrantes regressados, os caseiros que trabalham exclusivamente terra arrendada tendem a desaparecer. Presentemente, há em Paço apenas 8 caseiros e em Couto 33.
15Os principais produtos são actualmente o milho, o centeio, o feijão, as batatas, o vinho, o azeite e a forragem para o gado; a maioria das casas produz sempre alguma quantidade destes produtos. De igual modo, as casas ricas, ou medianamente ricas, possuem, pelo menos, uma vaca, e muitas vezes uma parelha, sendo utilizadas para produzir leite, para a reprodução ou como animais de tracção. Finalmente, muitas casas criam porcos, que são mortos em Novembro ou Dezembro, constituindo uma importante fonte de proteínas durante os meses de Inverno. No passado, eram menos as casas que conseguiam criar porcos.
16O ano agrícola é pontuado por uma sucessão de festividades religiosas que representam a estação e as suas ocupações. Na Páscoa, é tempo de lavrar a terra, de espalhar o estrume, de semear o milho e também de plantar as batatas. A época do S. João (24 de Junho) é o segundo período mais activo do ano: debulha-se o centeio, arrancam-se as batatas e as vinhas são sulfatadas pela primeira vez. O meio do Verão não é um período agrícola muito movimentado, com excepção da sulfatagem regular das vinhas. É neste período que se celebram a maioria das festas e que muitos emigrantes regressam a férias.
17O S. Miguel (27 de Setembro) é o tempo da colheita de milho e das vindimas; semeia-se a erva para a forragem do gado, removem-se as espigas de milho das suas camisas. É este o período de maior azáfama. O S. Martinho, no final de Novembro e princípios de Dezembro, é a época da matança dos porcos, apanham-se as castanhas e as nozes, semeia-se o centeio e começa a beber-se o vinho novo. Enfim, depois do Natal, é apanhado o mato para as camas do gado e as vinhas são podadas.
IV
18Os produtos, que não são necessários para a auto-subsistência da casa, podem ser vendidos imediatamente ou armazenados durante um período limitado, a fim de serem vendidos mais tarde, quando os preços recuperam da quebra causada pela abundância do tempo da colheita. As casas maiores e mais ricas possuem grandes espigueiros, que são uma fonte de orgulho e prestígio. O armazenamento é, porém, um problema, porque muitos produtos não se conservam facilmente em boas condições até ao fim do ano agrícola seguinte. É este o caso das duas culturas principais, o milho e o vinho feito em casa — o vinho verde, caracterizado pelo seu fraco teor alcoólico.
19Há diferentes processos de comercializar os vários produtos. No caso das castanhas e das nozes, surgem intermediários das cidades em camiões e oferecem uma pequena percentagem a um lojista local que os auxilia no seu périplo pelas casas. Mas a maior parte dos negócios são tratados nas feiras. Embora nem sempre os produtos sejam realmente levados para a feira, é aí que se celebram os contratos e se estabelecem os preços, sendo a obtenção desta valiosa informação uma das principais razões para a presença regular do agricultor na feira; é aqui também que a casa compra a maioria das mercadorias de que necessita. Enfim, a feira é uma oportunidade para encontrar pessoas de outras partes do concelho e para contactar médicos, advogados e funcionários; como afirma Lisón, «a feira é uma janela para o mundo» (1971:53).
20As feiras foram instituídas pelos monarcas medievais como mercados livres; muitas foram concedidas como parte dos forais dos concelhos, mas frequentemente o rei promulgava um decreto especial para a sua instituição. Nestes decretos, eram outorgados privilégios e liberdades especiais que isentavam os participantes dos constrangimentos causados pelos regulamentos e barreiras feudais; era a denominada «paz da feira».
21A feira de Ponte de Lima foi instituída na data remota de 1125, enquanto a feira de Viana remonta apenas a 1342. As feiras terão entrado em declínio a partir de meados do século xvi, perdendo a sua importância e dimensão medievais. Parece parcialmente válida a explicação de V. Rau, segundo a qual as casas comerciais permanentes se apoderaram de uma larga parte dos negócios das feiras (in Serrão, 1965: s.v. feira). Deve relembrar-se, porém, que estas lojas realizam a maioria dos seus negócios nos dias de feira e que a feira persiste como uma importante instituição local, onde quase todas as casas fazem deslocar, pelo menos, um dos membros do «casal-chefe» e mesmo frequentemente os seus dois membros.
22Ponte da Barca, no século xviii, possuía uma feira mensal no primeiro e segundo dias de cada mês. No início do século xix, estas datas foram alteradas para 2 e 22 de cada mês. Actualmente, é efectuada duas vezes por mês às quartasfeiras, alternando com a feira do concelho vizinho de Arcos de Valdevez. Esta alternância é um exemplo interessante da coordenação existente entre os concelhos de todo o distrito de Viana. Tal coordenação interessa mais aos feirantes que andam de feira em feira a vender os seus artigos (fatos, sapatos, ouro e prata, louças, remédios e pseudo-remédios, cassetes, cintos, etc.) do que propriamente ao camponês, que se move num espaço muito mais restrito. A deslocação às feiras depende do tipo de negócio que se deseja efectuar e, assim, as pessoas vão a uma feira mais importante, se está em causa um negócio importante ou no caso de pretenderem um leque de mercadorias mais amplo. Nos casos de Ponte da Barca e dos Arcos, essa feira é a de Ponte de Lima (realizada em segundas-feiras alternadas). É interessante notar que há uma hierarquia de importância entre feiras e que há classes distintas de feiras, as semanais (ou quinzenais), as mensais e as anuais.
23Dentro da classe semanal, a feira mais importante do distrito é a da capital, Viana, e é realizada às sextas-feiras. Mas a feira de Braga, a capital do distrito vizinho, que se efectua todas as terças-feiras, é ainda mais importante. Nestes dias da semana não se realizam outras feiras da classe semanal no distrito de Viana: não lhes seria possível competir com as feiras de Viana e de Braga. A feira de Barcelos, às quintas-feiras, e a feira de Ponte de Lima, às segundasfeiras, são menos importantes do que as duas anteriores e dirigem-se a populações de regiões diferenciadas.
24A maioria das outras capitais de concelho celebra as suas feiras semanais ou quinzenais sem a preocupação de eventuais coincidências; não se dirigem aos mesmos clientes. Há, no entanto, algumas excepções, como a de Vila Praia de Âncora, uma vila que não é capital de concelho, e que realiza a sua feira aos domingos, isto é, no mesmo dia da feira da capital do concelho (Caminha). Esta coincidência pode explicar-se pela situação pouco vulgar de uma vila não ser capital de concelho.
25Há uma feira mensal no distrito para cada dois dias do mês. Os centros mais importantes, como Valença e Monção, coordenam as suas feiras mensais e semanais. Mas nenhuma destas feiras mensais coincide. As grandes feiras anuais estão ligadas às festas de um santo patrono. Realizam-se, sobretudo, ao nível do concelho e não coincidem com outras feiras do distrito.
V
26A posse da terra continua a ser um indicador muito importante da riqueza e do prestígio na sociedade local. Mas, na ausência de um cadastro da terra, foi impossível levar a cabo um estudo pormenorizado sobre a posse da terra. Este problema é agravado com a subdivisão da terra e com a existência de tipos de terra muito diversos, cujas valorizações são muito diferentes. Além disso, as fontes alternativas de rendimento, pela grande importância que adquiriram, não podem ser ignoradas numa avaliação da diferenciação económica. Quando efectuei o recenseamento dos fogos de Paço e de Couto, pedi a um informante em cada lugar para apreciar cada casa do lugar em relação ao que se considerava ser a situação média da freguesia. Em geral, os informantes conseguiam dominar rapidamente e com facilidade esta técnica de descrição. Um problema que se colocou, e mais de uma vez, foi o de distinguir entre poder económico e padrões de vida, dois aspectos que nem sempre eram correlacionados. Nos casos em que a questão surgiu, pedi aos meus informantes para considerarem o poder económico e não tanto os padrões de vida. Obtive também informações sobre o volume da produção agrícola necessário para superar os níveis de subsistência, sobre as ocupações não agrícolas, sobre as pensões e subsídios do governo e, em muitos casos, sobre as poupanças invulgarmente elevadas resultantes da emigração.
27Estas informações, fornecidas por um informante em cada lugar foram mais tarde confrontadas e acrescentadas pelos comentários de outros informantes e pelas minhas observações pessoais. Em termos globais, a estimativa da riqueza relativa que foi assim obtida proporciona-nos um quadro impressionista mas razoavelmente crível da diferenciação e da desigualdade económicas em Paço e Couto.
28Dividi os fogos em três grupos básicos que, por seu lado, foram subdivididos em dois, originando assim seis sub-grupos: o Muito Rico e o Rico, o Médio Superior e o Médio Inferior, o Pobre e o Muito Pobre (Quadro V). O sub-grupo dos Muito Pobres é composto por indivíduos que não possuem qualquer terra e que frequentemente vivem abaixo do nível de subsistência, isto é, mal conseguem sobreviver. Na sua maioria, estas pessoas trabalham como jornaleiros, caseiros de pequenas quintas ou como assalariados por conta de outrém. O pagamento do trabalho agrícola diário é ainda muito reduzido: em Paço e em Couto, no Verão de 1979, correspondia a 150$00 diários13. O pagamento do trabalho não agrícola é, no entanto, superior. Na velhice, estas pessoas vivem muitas vezes na penúria. Actualmente, o governo fornece, através da Casa do Povo, uma pensão de velhice que equivalia, em 1979, a 1100$00 mensais. Isto permitiu-lhes melhorar substancialmente a sua situação. A categoria dos Muito Pobres representa 15,35% dos fogos de Paço e 25% dos de Couto. Finalmente, nas duas freguesias, 23,25% dos fogos desta categoria são chefiados por mães solteiras.
29O sub-grupo Pobre é formado pelos fogos que só com dificuldade conseguem praticar uma agricultura de subsistência. Possuem geralmente alguma terra e chegam mesmo, por vezes, a obter algum dinheiro com a venda dos seus produtos. O seu rendimento monetário, porém, deriva sobretudo do gado que criam para os negociantes. Os indivíduos mais jovens deste sub-grupo são usualmente trabalhadores por conta de outrém e muitos são emigrantes. A maioria destes fogos complementa as suas actividades agrícolas com o arrendamento de alguma terra e com o trabalho a jornal nos períodos de maior azáfama. Este sub-grupo representa 26,42% dos fogos de Paço e 31,97% dos de Couto.
30O sub-grupo Médio Inferior é composto pelos fogos que vivem razoavelmente acima do nível de subsistência. A maioria possui terra própria e, nos casos em que arrendam terra, esta é raramente indispensável para a sua subsistência. Em circunstâncias normais, não trabalham como jornaleiros e muitos estão envolvidos em pequenos negócios e em actividades não agrícolas. Nas «meias de baixo» destas freguesias, há alguns estudantes liceais que pertencem a este sub-grupo, o que indica a existência de dinheiro disponível para ser investido na educação dos filhos. Este sub-grupo representa 27,85% dos fogos de Paço e 26,16% dos fogos de Couto.
31Os fogos do sub-grupo Médio Superior desfrutam de uma considerável tranquilidade económica; em geral, a força de trabalho de que dispõem é insuficiente para explorarem a terra que possuem, pelo que são forçados a contratarem jornaleiros e a arrendarem alguns campos a outros indivíduos. Os donos dos negócios mais importantes (lagares de azeite e de vinho, serrações, lojas maiores e oficinas) formam parte deste sub-grupo. Uma larga parte da produção agrícola destes fogos é orientada especificamente para o mercado, porque as suas necessidades de subsistência ficam geralmente aquém da sua produção total. Eles representam 27,14% dos fogos de Paço e 14,53% dos fogos de Couto.
32O sub-grupo Rico é composto por sete fogos de Paço e dois fogos de Couto, que são proprietários de uma vasta extensão de terra e dos negócios locais mais lucrativos. As suas habitações são modernas, possuem geralmente automóveis e arrendam uma proporção considerável da sua terra. Representam 2,50% dos fogos de Paço e 1,16% dos fogos de Couto.
33Os Muito Ricos são constituídos por dois fogos de Paço e por dois fogos de Couto (respectivamente 0,71% e 1,16%). São indivíduos excepcionalmente ricos e a maior parte da sua terra situa-se fora dos limites das suas freguesias de residência. Três destes fogos devem a sua invulgar riqueza ao sucesso do investimento de poupanças realizadas no estrangeiro. Os membros destes fogos emigraram antes da Segunda Guerra e regressaram às suas freguesias natais quando um grande número de indivíduos emigrava no final dos anos 50 e princípio dos anos 60.
VI
34Em muitos aspectos, há uma estreita interligação entre Paço e Couto no contexto do todo que é formado pelo concelho de Ponte da Barca. Na Idade Média, o mosteiro de Couto era proprietário de terra em Paço e ainda hoje as duas freguesias estão economicamente ligadas: os residentes de Paço efectuam a maioria das suas compras em Couto, e as necessidades dos residentes de uma freguesia justificam a actividade das pequenas indústrias da outra. Do ponto de vista social, há também uma particular proximidade entre as duas freguesias: por exemplo, têm partilhado o mesmo padre nas últimas décadas.
35No entanto, a comparação da percentagem dos fogos de cada sub-grupo sugere que Couto é uma freguesia marcada por extremos de riqueza, enquanto Paço é uma freguesia onde predomina o grupo médio e onde, em consequência, o sentimento de unidade da freguesia e a preservação de atitudes tipicamente camponesas são mais evidentes (ver Diagrama N.o 3). Alem disso, os dados apresentados previamente indicam que as diferenças entre as duas freguesias são consistentes, apesar de nunca assumirem dimensões significativas. Por exemplo, a população adulta de Paço ligada à agricultura é de 75,7%, enquanto em Couto ela se queda pelos 68,38%. Em Paço, 15,1% de todos os adultos estão ligados a actividades não agrícolas, enquanto em Couto a percentagem é de 19,02%. Finalmente, os dados da emigração fornecidos pela «amostra jovem» são ilusórios, porque não consideram a diminuição da população: há mais emigrantes jovens em Paço (37,5% da amostra jovem) do que em Couto (33,33%), porque, entre os últimos, se registou uma maior tendência para a emigração familiar e uma percentagem inferior de migrantes regressados. Tendo estas famílias rompido os seus laços com a freguesia, não é possível incluir os seus membros jovens na amostra. Este argumento é confirmado pelo facto de, a partir de 1950, a população de Couto ter diminuído mais rapidamente que a de Paço (ver Diagrama N.o 2 e Quadro II).
36A chave principal para a compreensão das diferenças existentes entre as duas freguesias está na posse da terra. Couto é uma freguesia de gente pobre, onde a terra tem sido controlada por proprietários relativamente ricos e, na sua maioria, absentistas, enquanto Paço é uma freguesia onde, apesar da melhor terra pertencer a proprietários absentistas, muitas das casas camponesas conseguem possuir alguma terra própria. Este argumento, que é claramente aceite pelos residentes das duas freguesias, é reconfirmado pelo facto de existirem em Paço apenas 8 fogos envolvidos em contratos de parceria a tempo inteiro contra os 33 que existem em Couto. Antes dos anos 50, Couto apresentava também uma percentagem superior de nascimentos ilegítimos, o que, nesta região, conforme veremos, está ligado ao facto de não se possuir terra. Aliás, esta explicação também é avançada pelos residentes locais para a diferença amplamente reconhecida entre as duas freguesias. Couto era, portanto, uma freguesia com um menor número de indivíduos detentores de terra própria e onde a pobreza rural era mais nítida, o que se reflecte na sua taxa mais elevada de ilegitimidade e na existência de maior número de hipotecas (demonstrando menor acesso a fontes informais de crédito).
37Com o advento da emigração do pós-guerra, o êxodo intensificou-se, a população decresceu e aumentou o número de pessoas que recorrem a actividades não agrícolas como meio de ganhar a vida. O resultado final foi uma maior penetração dos valores urbanos em Couto. É significativa a explicação que as pessoas fornecem para o facto das lojas de Couto (uma freguesia de menor dimensão) serem maiores, melhor abastecidas e mais prósperas que as de Paço; na verdade, a maior parte dos residentes desta última freguesia preferem realizar as suas compras em Couto ou na feira, pretendendo assim escapar à vigilância que é exercida pelos seus vizinhos. Os residentes de Couto não se debatem com estes pruridos. Este secretismo é importante para os residentes de Paço porque as casas que não produzem o suficiente para a sua subsistência são afectadas no seu prestígio. Além disso, uma casa que cede ao consumo de «luxos desnecessários» é considerada imprevidente e os seus membros merecem menos confiança dos vizinhos.
Notes de bas de page
12 Em 1949, em Viana, 23,36% das explorações agrícolas tinham uma área inferior a 1/2 hectare; 60,85% estavam entre 1/2 hectare e 3 hectares; 2,37% entre 3 hectares e 5 hectares; 0,51% eram superiores a 5 hectares. Estas percentagens foram calculadas com base nos números citados por Cunhal (n.d.:236).
13 Nestas duas freguesias, os homens e as mulheres têm recebido tradicionalmente salários idênticos pelo trabalho agrícola não especializado. Não é este o caso de outras freguesias. Os homens recebem frequentemente melhores salários, porque são eles que executam uma larga parte do trabalho mais especializado.
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