2. A história
p. 33-43
Texte intégral
I
1As raízes históricas da divisão actual da terra em freguesias remontam à ocupação romana da Península Ibérica. Os primeiros romanos a atingir o Lima terão sido os soldados de Decimus Junus Brutus em 137 a.C., mas o controlo total desta região só seria finalmente alcançado durante a Pax Augusta (Reis, 1978). Os romanos refrearam a natureza guerreira da população celta e estimularam a sua fixação nos vales mais férteis e até aí inexplorados (Carvalho, 1956). A agricultura foi organizada no quadro do regime da villa. Um colono romano recebia uma área de terra onde organizava e geria a produção, geralmente com o auxílio de um capataz. Devido às características irregulares do terreno nesta região, a maioria da terra da villa foi dividida em parcelas discontínuas onde trabalhavam jornaleiros semilivres (Saraiva, 1978; Sampaio, 1979).
2As villae localizavam-se em pontos estratégicos na proximidade dos rios e das estradas. O cemitério romano descoberto nas imediações da igreja de Paço favorece esta interpretação, sobretudo, porque se situa próximo da antiga Casa do Paço, uma das casas mais nobres desta região (Costa, 1868, 1:208). A palavra «paço», segundo A. Sampaio, deriva de pallatium que, nesta região, referia a casa do senhor da villa (1979:68-9). Isto significaria que a estrada que segue a margem esquerda do rio passava à sua porta. Na época romana, este troço da estrada ligava duas estradas de grande importância civil e militar: a que se prolongava de Braga a Tuy e uma outra que ia de Braga a Monção. Esta segunda estrada cruza o rio no local onde, no século xv, emergiu a vila de Ponte da Barca. No mesmo período, foi construída uma ponte no local onde, até então, o rio era atravessado por uma barca. Foi esta ponte que deu o nome à vila e, mais tarde, ao concelho: Ponte da Barca.
3Em 411, a região foi invadida por hordas bárbaras suevas. Estas foram seguidas em 585 pelos visigodos que, em termos gerais, mantiveram o sistema romano de exploração da terra. Nos últimos séculos da ocupação romana, a maioria da população loçal convertera-se ao cristianismo. No século vi, quando os Suevos e, pouco tempo depois, os Visigodos se converteram ao cristianismo, repudiando o arianismo (respectivamente em 550-60 e 589), ergueu-se uma organização eclesiástica nova e revitalizada. J.H. Saraiva sumaria este processo nos seguintes termos:
As paróquias substituíram as vilas na sua função de células cívicas e a chefia moral das comunidades passou dos dominus ao pároco. Essa evolução está na origem da palavra freguesia, termo que, pouco a pouco, foi designando as novas unidades de povoamento e vizinhança. O trabalhador, que do ponto de vista da vila era um servo ou um colono, do ponto de vista da organização eclesiástica era um filho: filii ecclesiae, donde veio filigrês e depois freguês (Saraiva, 1978:22).
4A invasão muçulmana do século viii não teve grandes repercussões nesta área e o cristianismo não foi muito afectado. A cidade de Braga, que fora tomada em 716, foi reconquistada pelos cristãos em 868. Apesar dos «mouros» estarem, mesmo nos nossos dias, fortemente enraizados na mente popular e na mitologia, a influência da cultura islâmica foi aqui mínima. Isto pode permitir explicar algumas das discrepâncias etnográficas entre o norte e o sul de Portugal e, particularmente, a preservação da divisão sexual do trabalho característica do noroeste, que já havia desconcertado os invasores romanos.
5Na Idade Média, as parcelas de terra discontínuas associadas à villa romana tornaram-se empresas agrícolas totalmente independentes. Foi esta a origem de algumas antigas «quintas» que, tanto em Paço como em Couto, controlam as melhores terras e que, até muito recentemente, pertenciam a membros da aristocracia rural.
6As populações mais isoladas escaparam sempre com maior ou menor sucesso ao controlo dos proprietários nobres. Estas aldeias montanhosas preservaram sistemas de cooperação a que vários autores atribuem origens muito remotas5. De algum modo, este é também o caso dos lugares situados nos outeiros de Paço e de Couto, onde a terra pertenceu sempre aos residentes locais e onde diversos sistemas de cooperação sobreviveram até ao período da Segunda Guerra Mundial.
7Os reis medievais colocaram sob o controlo dos chefes militares grandes áreas de terra que foram designadas literalmente como «Terras». Paço e Couto faziam já parte da Terra da Nóbrega que, com algumas alterações, veio a constituir, no século xix, o concelho de Ponte da Barca. As primeiras referências a Paço e a Couto surgem numa lista de impostos, redigida antes de meados de 1097, que cada igreja deveria pagar ao arcebispo de Braga (Costa, 1959:61). A dedicação de Paço a S. Miguel é um sinal da ligação original da igreja a uma casa senhorial e, de facto, sabemos que o seu padroado (o direito de nomear o padre) estava ainda em mãos laicas no século xii (Costa, 1959:135; Oliveira, 1950:645). A igreja de Couto recebeu o seu patrono, S. Fins, numa data posterior, talvez quando ali foi fundado um mosteiro pelos cónegos agostinhos. Em 1180, D. Afonso Henriques confirmou a freguesia como um «couto» do mosteiro, o que significava que ela era administrada integralmente pelo mosteiro, sem qualquer intervenção régia. O mosteiro foi abolido em 1434 (Costa, 1959:197).
II
8Devido, sobretudo, aos constrangimentos geológicos do terreno acidentado e à forte densidade demográfica, a terra no Minho foi sempre muito dividida. Nos séculos xvii e xviii, a esmagadora maioria da terra era explorada em parcelas de dimensão inferior a 1/2 hectare (Oliveira, 1980). Assim, os grandes proprietários minhotos possuíam geralmente um grande número de minúsculas parcelas.
9O arrendamento da terra baseava-se principalmente na enfiteuse, um sistema do direito romano que divide a posse da terra em duas categorias de direitos: os do proprietário que recebe uma renda anual e os do arrendatário perpétuo que tem o poder de utilizar a terra como entender. O sistema de extracção da renda do ancien régime foi terminado pelo conjunto de leis aprovadas pelas cortes de 1821-1823 e pelas leis redigidas pelo ministro liberal Mouzinho da Silveira em 1832. Estas leis aboliram os dízimos e muitos outros impostos senhoriais e eclesiásticos; favoreceram a aquisição pelo arrendatário de plenos direitos sobre a propriedade; extinguiram o sistema dos cobradores de impostos; e, finalmente, em 1863, aboliram os morgadios. A intenção destas reformas foi a abertura da via para o desenvolvimento da agricultura capitalista, um propósito que nunca viria a ser plenamente concretizado.
10Desde o princípio do século xvii, desenvolveu-se nesta região um novo sistema agrícola baseado na utilização de novas espécies vegetais e cerealíferas. O milho, que no virar do século xvii se transformou numa colheita principal da região húmida do Minho, tem uma produtividade três a quatro vezes superior às do trigo e do centeio, os cereais que eram aí anteriormente cultivados. Rendimentos de cinquenta para um e mesmo rendimentos três vezes superiores são frequentes e o milho está melhor adaptado que o trigo ou o centeio às características climatéricas e geológicas do Minho. Podia ser, assim, cultivada rentavelmente uma maior quantidade de terra. É mesmo provável que o milho tenha contribuído, no século xviii, para o crescimento demográfico. Enfim, devido à sua constância, o milho terminou com as fomes periódicas que, no passado, eram tão frequentes (Braudel, 1967:108-113; A. Oliveira, 1974, 252-3).
11O milho precisa de irrigação. No Minho, os trabalhos hidráulicos de grande escala não são geralmente necessários, porque a irrigação é facilmente realizada através da reorientação dos ribeiros que descem as colinas ou da perfuração de minas. A água, porém, é escassa e a questão dos direitos ao seu acesso, numa região onde existem imensas pequenas fontes, torna-se extremamente complexa. Os direitos sobre a água têm sido, até aos nossos dias, uma das razões mais recorrentes para as disputas legais.
12Provocando uma considerável redução das terras de pântanos e das terras não cultivadas, a introdução do milho foi largamente responsável pelo declínio da criação de gado em regime de pastagem livre e transumância e pelo desenvolvimento da criação de gado em estábulos. Os sub-produtos do milho compensam a redução dos pastos, porque as espigas, as folhas e as «bandeiras» (sendo as últimas duas colhidas mesmo antes da colheita do grão), tal como o próprio grã). rão utilizadas para alimentar os animais. Além disso, um novo sistema de rotação das colheitas e o facto do milho não esgotar tanto o solo como o trigo ou o centeio, permitiram o cultivo dos campos todos os anos.
13Tipicamente, entre Outubro e Março ou Abril, os campos são utilizados para cultivar forragem para o gado ou outras «novidades»6, tal como a beterraba, o nabo, o tremoço e outras plantas leguminosas que enriquecem o solo e evitam o seu esgotamento. Os feijoeiros trepam pelas espigas do milho acima, dando origem a um dos alimentos mais importantes do agricultor. Foi, assim, alcançada uma maior produção cerealífera sem um decréscimo significativo da criação de gado.
14Ao mesmo tempo que se verificava a introdução do milho, ocorria uma outra transformação. As vinhas deixaram de ser cultivadas no solo, onde ocupavam espaço, e começaram a ser dependuradas em árvores nas extremas dos terrenos — a «vinha de enforcado». Deste modo, as vinhas não ocupavam espaço e, além disso, podiam ser utilizados os produtos das árvores (frequentemente castanheiros). Numa fase posterior, as vinhas começaram a ser cultivadas em ramadas localizadas nas extremas dos terrenos. Quando se trata de áreas planas, são cultivadas plantas leguminosas por baixo das ramadas; como alternativa, podem ser colocadas sobre os socalcos que dividem os campos, os quais, de outro modo, não seriam aproveitados. Como resposta à crescente necessidade de adubo, foi aumentada a produção de estrume. O mato resultante da limpeza das «bouças» passou a ser utilizado para fazer as camas do gado nos estábulos. No entanto, no início do século xx, os adubos artificiais começaram a ser aplicados no Minho (Halpern Pereira, 1971:103).
15Outras espécies importantes como os pinheiros, as oliveiras e as batatas tornaram-se facetas novas da paisagem durante os séculos xviii e xix (Taborda de Morais, 1940:97-138). Com a diminuição da criação de cabras, a área dedicada a pinhal aumentou significativamente e hoje cobre a maior parte das terras menos rentáveis do cimo dos montes, proporcionando, assim, aos camponeses fontes de rendimento a longo prazo. A complexa articulação entre a criação de gado em estábulos e a agricultura em pequenas parcelas dispersas e irrigadas constitui o que geralmente é designado como a «policultura» minhota, sistema que ainda predomina nas áreas rurais do Minho. O resultado é uma intensa utilização da terra onde o mais diminuto planalto ou socalco nas colinas pode ser aproveitado.
16Durante o século xix, verificou-se um esforço consciente por parte dos agricultores minhotos para diversificarem a produção. A concepção vulgarizada da agricultura camponesa oitocentista como uma agricultura de subsistência é incompatível com este esforço e também com o dinâmico comércio interregional e internacional de gado, vinho e fruta e, finalmente, com a existência de importantes vilas e cidades do noroeste que baseavam as suas economias na produção rural (cf. Halpern Pereira, 1971).
17O desenvolvimento da policultura no Minho pode ser entendido como uma resposta a duas pressões contraditórias exercidas sobre o agricultor: a existência de uma economia de mercado com um sistema de troca razoavelmente difundido, que permite ao agricultor a produção de um excedente; e uma relutância paralela em recorrer ao sistema de mercado para satisfazer as necessidades mais essenciais. A policultura representou uma forma de protecção contra a flutuação dos preços de mercado e contra a variabilidade climatérica. Ao diversificar a produção, o agricultor assegurava-se de que, no caso de um dos seus produtos dar maus resultados num dado ano, ele poderia ser recompensado com os lucros de outros produtos: como me dizia um homem de Paço, «quando Deus não dá milho, dá vinho».
18Enfim, embora a agricultura não fosse estritamente de subsistência, a diversidade dos produtos salvaguardou as casas camponesas de uma dependência total em relação às mercadorias compradas, pois a casa produzia a maioria das necessidades essenciais de subsistência. Como Andrew Pearce observou, «a resposta esquemática ao porquê da sobrevivência da orientação de subsistência das unidades produtivas familiares é muito simples: o camponês não distingue a existência de um sistema seguro de distribuição de bens e de facilidades para a vida familiar baseado na troca monetária, e esta percepção corresponde geralmente à situação real» (1971:72-3). Foram, assim, as suspeitas fundadas do camponês face ao sistema de mercado, que permitiram a sobrevivência, até aos nossos dias, de uma orientação de subsistência.
19A despeito da relativa prosperidade das áreas rurais durante os anos 1860, a emigração masculina prosseguiu ao longo de todo o século xix. A emigração não constituiu uma novidade nesta área, pois remonta, pelo menos, ao século xv. No século xviii, a pobreza rural desencadeou uma emigração masculina em larga escala para o Brasil. José Fernando da Silva, escrevendo sobre a navegabilidade do rio Lima no final do reinado de D. José I, inclui uma descrição da vila e do concelho de Ponte da Barca. Depois de se referir à fertilidade da região, lastima a pobreza das condições de vida nas áreas rurais e a grave exploração exercida sobre os pequenos agricultores. Como resultado desta situação, argumenta o autor, os homens jovens partem e só ficam os velhos.
20Quando, nos anos 1890, o comércio dos produtos agrícolas se desmoronou face à competição de outros produtores mais eficientes, o país achou-se numa situação de bancarrota económica. Esta recessão rural reflecte-se claramente nos dados da emigração. Até 1868-1869, a emigração permanecera quase estável, decrescendo mesmo ligeiramente, mas a partir dessa data começou a aumentar, atingindo máximos em 1888, 1895 e, de novo, em 1912, sendo então os dados nacionais quase quatro vezes superiores aos de 1888 (ver Diagrama N.o 1). Confrontado com a recessão económica, a escassez de terra e uma crescente penetração da burocracia estatal, o camponês foi forçado a emigrar. A emigração era considerada pelos seus protagonistas como o último recurso para tentar evitar o endividamento, a consequente expropriação da terra e a proletarização rural.
21Durante a Primeira Guerra Mundial, devido à dificuldade de viajar, o volume da emigração diminuiu drasticamente e só veio a recuperar depois de 1918. Durante os anos 30 e 40, foi irregular em consequência, uma vez mais, de circunstâncias externas. Na região, isto provocou uma crescente escassez de terra e um crescente empobrecimento rural. A vaga emigratória (principalmente para o Brasil) dos anos 30, deixou muitas mulheres sem os seus maridos. Na sua maioria, estes homens não enviaram quaisquer remessas de dinheiro e nem sequer regressaram. Este comportamento é uma anomalia e é interpretado localmente como um sinal do fracasso económico desses homens no Brasil. A década de 40 é ainda hoje relembrada como um período de fome. As mulheres mais pobres chegaram a ver-se forçadas a vender o corpo para arranjar pão nos meses de invernia. A proletarização rural intensificou-se e os rendimentos do trabalho agrícola assalariado mantiveram-se extremamente baixos. Como o emprego rural era sazonal, os jornaleiros sem terra enfrentaram uma situação de grande miséria.
22Depois do final da Segunda Guerra Mundial, a emigração voltou aos níveis anteriores a 1914. Mas agora a tendência emigratória dos camponeses dirigiu-se para a Europa e a América do Norte e já não para o Brasil. Subitamente, com a prosperidade das economias da Europa Ocidental, ocorreu um aumento sem precedentes do número de emigrantes. Em 1966, no seu auge, a emigração legal de todo o Portugal atingiu a extraordinária cifra de 120 239. Se considerarmos que as estimativas da percentagem de emigrantes clandestinos para França variaram entre 44% em 1960 e 61% em 1970, podemos compreender que os dados da emigração legal, a despeito da sua grande dimensão, ocultam a magnitude real do fenómeno (Serrão, 1974:63). Num país com uma população inferior a nove milhões de habitantes, o impacto desta tendência nas áreas rurais, que forneceram o grosso dos emigrantes, pode ser facilmente entendido. Entre 1961 e 1970, 13,4% da população registada pelo recenseamento de 1960 no distrito de Viana emigrou legalmente e no concelho de Ponte da Barca o número de emigrantes legais correspondeu a 15,3% da população total de 1960.
23A emigração do pós-guerra exibe algumas características que explicam a grande amplitude do êxodo e que o diferenciam nitidamente das tendências anteriores. A percentagem de emigrantes clandestinos foi muito elevada. Os camponeses pobres, que antes não podiam suportar as despesas de uma viagem para o Brasil, podiam agora emigrar: qualquer jornaleiro sem terra, suficientemente corajoso — porque as atribulações eram muitas — podia emalar a sua trouxa e demandar a França7. Os jovens recrutados pelo exército, que nos anos 60 iam combater em África, podiam escapar sem muitas dificuldades; as despesas exigidas pela viagem, apesar de serem grandes, estavam ao alcance de muitos camponeses e, no caso do emigrante fracassar nos seus propósitos de fazer fortuna no estrangeiro, o regresso era sempre fácil. Finalmente, apesar de serem raros os que enriqueciam, os salários pagos aos emigrantes eram comparativamente elevados segundo os padrões portugueses8.
24As remessas dos emigrantes produziram um impacto quase imediato na economia rural do noroeste. Os preços da terra subiram fortemente e os emigrantes começaram a comprar a terra. Um lavrador abastado de Paço resumiu-me as grandes transformações da posse da terra, ocorridas nas últimas duas décadas, nos seguintes termos: «Agora, as coisas são como no tempo de D. Afonso Henriques, da Reconquista aos mouros, os caseiros estão a comprar a terra.» O interesse dos proprietários em vender a terra explica-se, em geral, por duas razões. Primeiro, a exploração da terra pelos métodos tradicionais tinha deixado de ser rentável, quer em termos de competição face à agricultura tecnicamente mais avançada, quer em termos do aumento dos custos de trabalho. Segundo, particularmente nos anos 70, a intensa procura da terra provocou um aumento drástico dos seus preços. Os camponeses mais ricos queriam usufruir do direito à posse da terra e não hesitavam em sacrificar as suas economias. Os proprietários foram, pois, facilmente persuadidos a ceder o controlo de terras que, economicamente, não eram muito lucrativas, mas pelas quais lhes davam agora avultados preços.
25Simultaneamente, os camponeses começaram a adquirir casas e a restaurar as suas velhas habitações. Isto significou um importante influxo de riqueza para as áreas rurais, porque estimulou o desenvolvimento da indústria de construção, com emprego para um número considerável de jovens, que procuravam trabalho assalariado no sector não agrícola. Paralelamente, as remessas dos emigrantes subsidiaram um pequeno mas substancial desenvolvimento das técnicas agrícolas.
26Os efeitos sociológicos desta emigração foram também significativos. Primeiro, os padrões de vida rurais melhoraram bastante. A diferença entre os três estratos tradicionais do campesinato — os jornaleiros sem terra, os caseiros e os rendeiros, e os lavradores — esbateu-se progressivamente. Hoje, são muito poucos os jornaleiros a tempo completo, porque a sua maioria emigrou e amealhou algum dinheiro, que lhe permitiu comprar terra ou, então, assalariou-se na indústria de construção. Note-se que o crescente bem-estar económico do Alto Minho rural não foi acompanhado, em geral, por um desenvolvimento significativo das actividades industriais, com excepção da indústria de construção.
27Em 1974-1976, devido à recessão generalizada e como forma de minimizar o crescente problema do desemprego, a França, a Alemanha e o Canadá fecharam as suas fronteiras a novos emigrantes. Em Paço e em Couto, esta decisão não provocou, de imediato, uma crise local; alguns jovens emigraram para a Venezuela, outros empregaram-se na indústria de construção que continuou a ser suportada pelas remessas dos emigrantes. Desde 1980, porém, as remessas começaram a declinar rapidamente, pois muitos emigrantes dos anos 60, entretanto, regressaram ou fixaram-se definitivamente no estrangeiro. Por isso, escasseiam as novas oportunidades de emprego para os jovens.
28A emigração introduziu transformações radicais na sociedade camponesa. O crescente bem-estar económico foi acompanhado por um enfraquecimento do sector de subsistência: o camponês depende hoje muito mais de mercadorias compradas. Além disso, apesar da melhoria dos padrões de vida, o desenvolvimento técnico da agricultura não acompanhou o ritmo de crescimento das necessidades do consumidor e, como resultado, as famílias camponesas ficaram na dependência de fontes alternativas de rendimento. Actualmente, a região começa a entrar em crise: o trabalho agrícola permite dissimular um grave problema de desemprego, mas os padrões de vida da população rural tendem novamente a degradar-se9.
III
29No período do meu trabalho de campo, não estavam disponíveis os dados do Recenseamento português de 1970 (os dados definitivos nunca seriam publicados). Tentando ultrapassar esta grave lacuna, foram efectuados recenseamentos dos fogos das duas freguesias em 1979, em Paço, e em 1978-80, em Couto. Em 1982, foram publicados os dados provisórios oficiais do Recenseamento de 1981 que se revelaram significativamente comparáveis aos nossos dados não oficiais.
30Embora, pela sua maior dimensão, Paço apresente um número superior de fogos relativamente a Couto, os padrões de crescimento das duas freguesias são muito semelhantes (ver Diagrama N.o 2). Registou-se um lento crescimento que foi interrompido na década de 1890 e, de novo, na de 1930. Desde 1950, verificase um declínio contínuo que reflecte o êxodo emigratório.
Quadro I.
População «presente» | 1979-1980 | 198110 |
Distrito de Viana | 255 614 | |
Concelho de Ponte da Barca | 13 999 | |
Paço | 1 106 | 1 114 |
Couto | 618 | 646 |
Fogos «presentes» | 1979-1980 | 1981 |
Distrito de Viana | 70 840 | |
Concelho de Ponte da Barca | 3 949 | |
Paço | 281 | 291 |
Couto | 176 | 183 |
31Entre 1930 e 1950, as taxas de crescimento demográfico11 são positivas nas duas freguesias, acompanhando a tendência geral do distrito e do concelho (cf. Quadro II). Entre 1950 e 1960, a taxa de crescimento é negativa tanto nas freguesias como no concelho; o leve crescimento a nível distrital reflecte o desen volvimento da cidade de Viana. Entre 1960 e 1970, o decréscimo na população é sentido a todos os níveis. Em Paço, é mais fraco, reflectindo a ligação mais profunda à terra dos seus habitantes. Pelo contrário, Couto mostra sistematicamente um maior decréscimo populacional. Por fim, entre 1970 e 1981, o decréscimo é de novo mais suave. Até 1974, prossegue a tendência emigratória da década anterior; mas, após esse ano, e sobretudo depois de 1976, a emigração termina praticamente. O distrito de Viana apresenta, nesta década, uma taxa de crescimento positiva, que resulta do crescimento urbano e não do crescimento rural.
32Diagrama N.o 2. População de Paço e de Couto. Fonte: Recenseamentos gerais da população, 1890-1981. Instituto Nacional de Estatística, Lisboa.
Quadro II. Taxas de crescimento demográfico (por cento por ano, ver nota 11)
Anos | 1930-50 | 1950-60 | 1960-70 | 1970-81 |
Viana, distrito | + 0,67 | + 0,03 | -0,93 | + 0,17 |
Ponte da Barca, concelho | + 0,64 | -1,16 | -0,16 | -0,27 |
Paço, freguesia | + 0,84 | -0,96 | -0,41 | + 0,08 |
Couto, freguesia | + 0,68 | -1,01 | -1,27 | -0,62 |
33Em 1795, Paço possuía 160 fogos e 573 habitantes, enquanto Couto possuía 116 fogos e 348 habitantes (Cruz, 1970:AP.II); quase dois séculos depois, em 1979, esses números não haviam duplicado. As razões desta lenta taxa de crescimento decorrem da emigração e não das taxas de natalidade ou de mortalidade. Isto é evidente quando comparamos a evolução dos números da população com os números da emigração: os períodos de crise dos anos 1890 e dos anos 1930 e o êxodo dos anos 1960 reflectem-se todos no crescimento demográfico (ver Diagramas N.os 1 e 2).
Notes de bas de page
5 Argumentos a favor desta perspectiva: e.g. Saraiva, 1978:235-6; Dias, 1981:19. Para uma persuasiva argumentação contra a interpretação «comunitarista»: Costa, 1959:235-6.
6 Uma palavra empregada para descrever espécies que, no século xvii, eram realmente novas.
7 De facto, eles tinham de pagar muitas vezes também aos «passadores» que organizavam a sua viagem clandestina. As quantias eram, porém, comparativamente menores. Para uma descrição de uma destas viagens verdadeiramente épicas, ver Viegas Guerreiro (1981:283-299).
8 Em 1967, o salário horário médio de um trabalhador em Portugal representava entre 1/6 e 1/3 dos salários praticados nos cinco países europeus estudados por Xavier Pintado (1967:57-89).
9 Nota do autor: Terminado em 1984, este texto não toma em conta os resultados da integração na CEE na segunda metade dos anos 80.
10 Os dados do Recenseamento de 1981 referem-se apenas à população «presente», isto é, aos fogos e habitantes residentes à data do Recenseamento.
11 Estas taxas de crescimento demográfico foram calculadas com base na fórmula
série; Xn = população no último ano da série; e Xt = população no primeiro ano (Floud, 1979:93-7). Fontes: Recenseamentos portugueses, 1930-1981, população «presente».
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