Capítulo III. Territórios de violência
p. 85-117
Texte intégral
1Em torno da tripla conflituosidade geradora de homicídio (intrafamiliar, interfamiliar e intercomunitária), abrem-se três espaços de violência - a casa, a terra e a comunidade - que estabelecem entre si laços íntimos e profundos. Por um efeito de sinergia que evoca determinadas sociedades de tipo segmentário como a Cabília1, onde o que se passa ao nível de um segmento se repercute em cada um dos outros, esses espaços formam uma territorialidade indivisa na sua diversidade. Tal dinâmica está patente no modo como os habitantes de uma aldeia não hesitam em transformar as rivalidades internas em solidariedade colectiva, sempre que o mais pequeno conflito opõe um deles a outra aldeia ou a um dos seus membros. A «casa» e a «terra» incarnam, do nosso ponto de vista, os valores associados à mulher, à propriedade e à herança enquanto causas determinantes do homicídio em Portugal, e representam para os camponeses, em razão da sua interdependência, o mesmo pólo de identificação. Mas a ofensa a um desses valores não constituiria uma afronta à identidade daquele que a recebe se o território comunitário, a que habitualmente também se chama terra, não fosse espelho em que a imagem de cada um se reflecte na imagem dos outros. O alcance simbólico da honra não ultrapassa de facto os limites da aldeia, da freguesia ou do bairro em que se vive e nasceu e é por isso que, só abandonando a comunidade, é possível libertar-se da vergonha que resulta da ofensa grave a um dos imperativos comunitários ou da vingança não cumprida2.
2Seria abusivo pretender traçar, no âmbito de um simples capítulo, um quadro exaustivo das relações entre a violência e os territórios onde ela se manifesta, dada a heterogeneidade cultural, social e económica de um país que apresenta assinaláveis matizes no interior de uma mesma região. Limitar-nos-emos, pois, a descrever algumas situações que permitam esclarecer o sentido fundamental da violência sangrenta não em função da geografia do homicídio, como seria lógico, mas dos elementos sociológicos e antropológicos disponíveis.
3A casa-a terra - Estamos no Barroso, em dia de casamento. Quanto o noivo vai bater à porta da futura esposa, encontra a casa fechada e mergulhada no mais profundo silêncio, como se ali não morasse ninguém. De dentro, o pai da noiva pergunta: «Que procurais?» O noivo: «Procuro mulher, fazenda e honra.» Então a noiva responde em tom de alegria: «Entrai que tudo encontrareis.»3 Assim se materializa, numa mesma territorialidade, a união da honra e do que esta deve proteger: a mulher, a terra. Admirável celebração da honra como territorialidade que um provérbio da região proclama a seu modo: «A mulher é terra, o homem hóspede dela.»4 Será possível exprimir, de forma mais eloquente, a submissão do homem ao poder gerador da mulher cuja guarda lhe pertence? Desloquemo-nos agora à região vizinha de Terras do Bouro onde tem lugar uma cerimónia semelhante mas com uma pequena variação que, à luz dos códigos mediterrânicos da honra, altera, por assim dizer, o sentido da própria cerimónia. Ao noivo que diz procurar «mulher, honra, fazenda e dinheiro», o pai ou o parente mais chegado da noiva responde: «Ela cabras guarda, sebes saltou; mas, se em algumas se espetou, e a quereis como está, assim vo-la dou.»5 Sejam quais forem, historicamente, os contornos exactos desta cerimónia, é forçoso observar como a alusão à duvidosa virgindade da mulher não perturba uma celebração realizada sob o signo da honra, o que seria impensável numa sociedade mediterrânica...
4O casamento constitui, em qualquer ponto do país, o verdadeiro rito de passagem pelo qual cada um dos sexos é investido na sua qualidade de homem ou mulher, bem como na plenitude das respectivas funções sociais (procriação, sustento e equilíbrio familiares, etc.). Mas, na sociedade camponesa, a sua realização está em grande parte dependente do estatuto da própria terra, que vai facilitá-lo, impedi-lo ou adiá-lo, determinando a configuração familiar (nuclear ou extensa) e a estratificação social dentro da aldeia (proprietários, agricultores, jornaleiros, etc.) e assegurando uma adequação mais ou menos perfeita aos padrões morais que regem a comunidade (adultério, ilegitimidade, etc.). Neste ponto, as situações podem variar não apenas entre o Norte e o Sul do país, mas também dentro da mesma área geográfica.
5Além de ser o principal, senão único meio de subsistência, a terra é para o camponês a expressão da continuidade familiar e da identidade da «casa». Este termo, que tem na Antropologia Social significados muito diversos, é aqui utilizado em sentido essencialmente metafórico. Enquanto metáfora espacial, parece-nos particularmente apropriado para simbolizar os laços estreitos que prendem a família à terra na sociedade camponesa, constituindo um património miticamente indiviso, com a sua herança material e simbólica, que supera o grupo doméstico na configuração precisa que este apresenta em determinado momento da sua história. Não se trata, portanto, de alargar ao conjunto do país um modelo que sabemos válido em regiões como o Alto Minho ou o Nordeste Transmontano6, mas de evidenciar, por seu intermédio, um ideal comum, em maior ou menor escala, à sociedade camponesa - a consubstancialidade da família e da terra ou da família e do seu património material e espiritual, de que a terra é a expressão máxima. Este ideal assume em Rio de Onor, onde justamente a unidade simbólica da família se chama casa, uma das suas mais belas manifestações. «Para o rionorês, escreve Jorge Dias, a casa, sede da família ‘nuclear’, é uma espécie de entidade mítica que, de certo modo, se confunde com a família: é ela que torna possível a existência de várias gerações que são elos de uma extensa cadeia. A família nuclear actual é um elo só, sujeito à transitoriedade da vida individual. A casa, pelo contrário, simboliza a vida da família una, através das gerações (...) Por isso, a casa é indivisa.»7 Mas se quisermos tomar o exemplo antinómico do trabalhador rural alentejano, sem terra que sirva de suporte ao capital simbólico da sua honra, não é o ideal de indivisão que igualmente o anima quando as desigualdades sociais e económicas o obrigam a recorrer a compromissos morais para salvaguardar a unidade da família?
6Como a mulher, a terra é um desafio à honra do camponês e daí a constante preocupação em fecundá-la, engrandecê-la e protegê-la contra todas as formas de violação. Os numerosos conflitos em torno da terra que marcam a história do homicídio, por questões de extremas que delimitam a sua corporalidade, servidões que põem em jogo a sua apropriação ou partilhas que constituem uma ameaça à sua indivisão, atestam a importância vital que ela representa para o camponês. Aqui, o ter confunde-se com o ser, a exemplo dos antigos camponeses do Gévaudan, para quem «calcar ilicitamente a terra» era como se os pisassem a eles8. De forma idêntica ao que se passava nesta região francesa, em épocas remotas, é principalmente à volta da terra, das suas formas de posse e transmissão, que a violência se concentra na sociedade rural, eclodindo em crimes de sangue ou de outra natureza. Assim, é provável que muitos dos delitos catalogados como crimes contra a propriedade (incêndios, fogo posto, danos, arranque de árvores, etc.) fossem reacções de vingança a agressões e injustiças, tendo a terra como objecto.
7Destes conflitos, a água é sem dúvida a causa principal, quer se trate de água pública, destinada a servir todos os camponeses, quer de água pertencente apenas a alguns deles e desviada para proveito de outros. Mais do que em qualquer outro momento do ciclo agrícola, é no tempo das regas que o camponês se confronta com o próprio sentido do seu trabalho e, logicamente, com a honra da casa, já que é do trabalho da terra (e da água que a irriga) que a casa tira o sustento e o prestígio. «Tempo de crise para a comunidade», em que a sobrevivência e os laços sociais são particularmente ameaçados, compreende-se que seja nesta altura que as rivalidades entre famílias (ou aldeias vizinhas que se servem da mesma água), acumuladas ao longo do ano, irrompem mais facilmente9. No capítulo do seu belíssimo livro sobre a mulher portuguesa consagrado às Beiras, Maria Lamas observa que «é à mulher que cabe, quase exclusivamente, ‘abrir a presa, como se diz em alguns pontos da Beira, e regular as regas que lhe pertencem», referindo-se as «invejas, ódios, desonestidades e graves explo- rações» provocadas pela irrigação10. Evidentemente, é nas zonas em que o solo é mais pobre, as secas são mais frequentes e a água é mais rara que as disputas se multiplicam. Foi por esta razão que muitas aldeias decidiram nomear uma pessoa encarregada de fiscalizar a distribuição da água: o homem de rodra, em Rio de Onor; o almotacé, em certas aldeias da Beira; um velho professor, para os lados de Viana do Castelo...11. Em determinadas regiões, a indivisão da água está na origem de um costume chamado «águas tomo-tomas» ou «toma-tomas»; a exemplo dos baldios, a sua utilização, propriedade de um grupo de habitantes da mesma localidade ou de diferentes localidades, obedece a normas definidas em comum12.
8João de Pina Cabral, em artigos recentes sobre duas freguesias do Alto Minho (distrito de Viana do Castelo), a que convencionou chamar São Miguel e Couto de São Fins, veio pôr em relevo os laços de recíproca identificação que envolvem a casa e a terra13. Trata-se de uma abordagem susceptível de esclarecer, retrospectivamente, a problemática em jogo na conflituosidade sangrenta que temos vindo a analisar e próxima da perspectiva adoptada por Brian Juan O’Neill na citada monografia sobre Fontelas, chegando em muitos pontos a conclusões idênticas às deste autor. A análise comparativa das duas freguesias que permite compreender como os laços de identificação que envolvem a terra e a casa abarcam igualmente a comunidade aldeã, juntamente com o interesse pela questão das representações morais, tornam o trabalho de Pina Cabral particularmente sugestivo.
9«A criação de uma casa que não seja baseada no sacramento do casamento é considerada um ultraje» para ambas as freguesias. Sendo este o modelo que melhor se coaduna com os «padrões da visão camponesa do mundo», mais grave ainda do que não querer (ou não poder adoptá-lo) é trocá-lo por outro considerado moralmente inferior. Pina Cabral cita o caso de um homem casado que deixou a casa da esposa com quem se dava pessimamente e passou a dormir na casa de uma mulher solteira com quem há anos mantinha abertamente relações sexuais. «Logo que as suas intenções se tornaram evidentes, os vizinhos, que até ali tinham simpatizado pouco com a mulher, a quem culpavam pelo estado da situação, viraram-se violentamente contra o casal adúltero. Expulsaram-no à pedrada.» Para os camponeses destas freguesias, só o casamento religioso oferece sérias garantias de poder salvaguardar a estabilidade que define a verdadeira casa, ou seja, a sua unidade, característica tão importante que, mesmo se não for casado, um casal «deve viver na mesma casa». É certo que «as relações sexuais entre pessoas solteiras e mesmo o adultério durante a ausência do marido são assuntos relativamente pouco escandalosos». Mas a análise de Pina Cabral permite concluir que esta atitude de tolerância supõe que o acto de adultério não ponha gravemente em causa a permanência da casa criada pelo matrimónio e que, em caso de relações sexuais entre pessoas solteiras, pelo menos no que respeita à rapariga, o modelo da futura casa esteja, já, de certo modo, virtualmente presente.
10Quanto à sexualidade pré-marital, apesar de não ser «encorajada, também não é particularmente punida e a ocorrência de casos de gravidez pré-matrimonial é elevada». O autor cita Oliveira Martins que escrevia a propósito do Minho: «Muitas, muitas raparigas casam sem ser virgens e isso, apesar de sabido, não escandaliza.» Mais perto de nós, Maria Lamas diz-nos como as mulheres do Soajo insistem em fazer a diferença entre as «desgraçadas» que caíram na «má vida» (prostituição), e cujo apelido é já um insulto, e as raparigas «honestas» que um dia se encontram com um filho ilegítimo nos braços mas a quem «ninguém faltará ao respeito», apesar de, por vezes, serem «espancadas pelo pai ou pela mãe a quem o conceito de honra endurece o coração...»14. O mesmo não acontece em Vila Velha, onde as «raparigas abandonadas pelos namorados e das quais conste terem tido relações sexuais com eles ou ligações amorosas com outros homens» não poderão ter «acesso a um casamento digno», chegando a haver tentativas de suicídio por causa disso15. A sexualidade pré-matrimonial reveste, portanto, nestas duas freguesias do Alto Minho, um carácter menos dramático do que noutros pontos do país, embora a rapariga, em caso de relações regulares e públicas que não levem ao casamento, acaba por «baixar a sua cotação no mercado matrimonial», dêem elas origem ou não a gravidez. Quando isto acontece, a rapariga deverá «regularizar» a sua situação o mais rapidamente possível pelo casamento, o que é fácil se os pais pertencerem a uma casa forte e rica, com muitas terras, mas impossível quando a rapariga não tem terra. Neste caso, resta-lhe alimentar o ciclo de ilegitimidade que ela própria herdara. Quanto ao filho, se for rapaz, acaba geralmente por emigrar ou «tornar-se vagamente nómada», o que explica o número considerável de famílias matrilocais sem presença masculina. Se for rapariga, acabará quase sempre, a exemplo da mãe, por dar à luz um filho ilegítimo, que, se for rapariga, acabará igualmente por ter um filho ilegítimo, e assim sucessivamente. Segundo as percentagens de baptismos de ilegítimos, de 1860 a 1940, que no Couto oscilam entre 14,3% e 22,5% e, em Paço, entre 5,8% e 12,5%, é nesta primeira freguesia que se conta o número mais elevado de pessoas sem terra e de fogos com mães solteiras. Por isso, os habitantes de Paço ainda hoje têm o hábito de dizer: «Couto é uma freguesia muito putanheira.» Em ambas as freguesias, porém, a grande maioria dos ilegítimos são filhos de jornaleiras ou criadas, como acontece na aldeia transmontana estudada por Brian O’Neill. No entanto, segundo uma estatística relativa ao período de 1964 a 1966, Viana do Castelo é um dos distritos do país com uma das taxas de ilegitimidade mais baixas. Enquanto a média geral nesse período era de 8,3% em relação ao conjunto da natalidade, aquele distrito contava apenas 5,2%. Já no distrito de Bragança, onde se situa a aldeia de Fontelas, a taxa de ilegitimidade é ligeiramente superior à média geral (8,9%). Mas é certo que um período de dois anos é demasiado curto para autorizar comparações com os resultados de Pina Cabral e de Brian O’Neill baseados em amostras mais amplas, embora relativos, por sua vez, a áreas mais restritas. De qualquer modo, em 1964-1966, as diferenças entre as regiões Norte e Centro, onde as taxas de ilegitimidade são geralmente inferiores à média geral, e a região Sul, onde elas chegam a atingir 24,2% no distrito de Beja e 21% no distrito de Setúbal, são impressionantes, embora nesta última região «a elevada ilegitimidade (seja) equilibrada por uma percentagem de casamentos com legitimação de filhos superior à das restantes regiões»16.
11Se a posse da terra é um «factor indispensável para a existência de uma casa», a ilegitimidade designa a impossibilidade, por parte dos que não têm terra, de criar uma segundo os padrões que regem a sociedade camponesa de forma a proporcionar a cada um dos seus membros o direito a ser respeitado e considerado. A posição de «inferioridade moral» em que se encontra a mãe solteira, sem terra, sem casa e sem prestígio, é tanto mais aviltante quanto a economia simbólica em que se insere «associa e prende a mulher à terra», nomeadamente através do sistema de heranças17. Com efeito, apesar de este sistema ser teoricamente igualitário, são as filhas, e sobretudo aquela que sucede na direcção da casa paterna, as mais favorecidas no que respeita a partilhas. «Elas tendem a receber uma maior parte dos seus quinhões, em terra arável, em vez de propriedade móvel ou bouças e pinhais. Isto, de facto, é um privilégio, pois a terra arável tem maior valor simbólico: de toda a propriedade, ela é a que está mais directamente presa à identidade própria da casa.» Ora, nesta província onde a mulher goza, talvez mais do que em nenhuma outra, de uma «posição social de relativo poder e independência», segundo os termos do autor, ela encontra-se por outro lado, trate-se de mãe solteira ou de esposa fiel, em situação de «inferioridade moral», como no resto do país.
12O exemplo destas duas freguesias é uma ilustração palpável do princípio de indivisão que anima e sustém uma territorialidade simbólica de prestígio social porque a carência ao nível de um dos espaços (a terra) incide necessariamente sobre os demais (a casa, a comunidade). Se a questão da indivisão se joga principalmente em torno da transmissão do património, como em Fontelas, isso deve-se ao facto de ser na morte que o grupo familiar se encontra mais intimamente confrontado com a sua sobrevivência enquanto grupo. Sabe-se que, apesar da abolição do morgadio, a sociedade rural continuou arreigada à conservação e transmissão do património indiviso, inventando soluções estratégicas que variam em função das regiões, do modo de exploração da terra, do tipo de organização familiar, etc. Mesmo nas regiões onde a partilha dos bens é prática corrente, o desejo de aumentar as suas terras para não ter que dividi-las - a terra é o eixo fulcral da indivisão, não esqueçamos - transparece na fidelidade a uma memória ancestral. Como dizia um camponês de Reguengo do Fetal a quem propunham uma boa parcela de terra em troca de duas ruins: «Foi o meu pai que me deixou isso.»18
13A herança - dom que cria obrigações - não se refere apenas aos bens na sua materialidade, mas a todo um universo legado pelos antepassados e que há que perpetuar. A mais pequena injustiça neste domínio pode ser ressentida como a «expulsão do círculo familiar», como o facto de ser «abandonado, repelido e condenado pelos seus»19, o que explica o grau de violência que se cristaliza e desenvolve em torno das práticas relativas à herança, apesar de as soluções estratégicas para salvaguardar o património indiviso, como a emigração dos herdeiros não favorecidos, contribuírem largamente para prevenir e atenuar os conflitos sangrentos20. As disputas podem ser tanto mais dolorosamente ressentidas quanto elas ofendem as normas ideais que devem moldar as relações entre parentes.
14Sintoma de falência ao nível dos valores de que é tributária, como se a comunidade só pudesse preservar a sua unidade moral obrigando alguns dos seus membros a uma permanente infidelidade, a ilegitimidade estabelecida das duas freguesias do Alto Minho evoca-nos as formas de adultério a que certas mulheres pobres de Vila Velha são obrigadas a recorrer para assegurarem a estabilidade familiar e não serem submersas por uma vergonha ainda maior. Nesta freguesia alentejana, o adultério da mulher e a ruína do marido por negligência são, em determinados grupos sociais, as únicas «situações morais» que obrigam uma pessoa a abandonar a comunidade, não havendo outras com «o mesmo desfecho institucionalizado, facto que aponta para a posição fulcral que a família ocupa no sistema de valores morais da comunidade»21. Quando, devido às suas condições de vida, não podem deixar a comunidade, a mulher adúltera e o marido arruinado passam «a viver com a sua vergonha e a infligi-la à comunidade». Se, pelo contrário, o homem ou a mulher agem em prol da sua família, então a comunidade não só tolera, mas pode mesmo desculpar «certas formas de comportamento consideradas repreensíveis». É o caso do furto, do logro e da fraude para o homem casado e sem trabalho, ou de determinadas situações de adultério para a mulher pobre com uma pessoa rica ou influente, na medida em que o benefício material resultante de tais situações visa assegurar o equilíbrio e o sustento da família que, de outro modo, mais ameaçada ficaria. Estas formas de adultério chegaram a «institucionalizar-se» no âmbito do patrocinato, mas, para serem reconhecidas como tais e não como expressão de promiscuidade ocasional, terão de revestir-se de uma certa estabilidade, condição indispensável para a aceitação por parte da mulher das propostas que lhe são dirigidas e para a conivência por parte do marido. Não se julgue, porém, que a conduta destas mulheres as torna «imunes à vergonha», como acontece com a mulher idosa de que fala Cutileiro, que teve nove filhos bastardos de diversos homens e se entregou à prostituição durante mais de quarenta anos, situando-se «para além das fronteiras da vergonha»; «dado que nada há a esperar dela, é aceite sem reprovação por aquilo que é». Bem diferente é o caso das mulheres adúlteras de famílias pobres, cujas «ligações são exemplos claros das limitações morais impostas pela pobreza» para não terem de descer ainda mais baixo na escala moral, pondo em risco a existência da própria família de onde elas como os maridos tiram a honra e o prestígio social. Estranha situação em que uma das ofensas maiores à honra familiar (o adultério) vem proteger esta mesma honra...
15Se, em Vila Velha, os casos de homicídio por adultério são raros (um, nos últimos cinquenta anos, que um jornal local noticiava na altura, com o título bem significativo de «Um caso de adultério» e não «Um caso de homicídio»...), o exílio da mulher adúltera constitui, qual morte social, o «sucedâneo» da sua morte física: «as pessoas deixam de mencionar o seu nome na presença do marido, criando-se assim um certo vácuo moral». Este tipo de sanção constitui uma forma de depuração, destinada a purificar o grupo familiar da mancha que o adultério da mulher introduziu no seu seio e que, em algumas sociedades, se aplica igualmente à perda da virgindade da filha ou da irmã. Trata-se de uma reacção sacrificial complementar da reacção de vingança, pela qual a famíilia se dessolidariza do membro cujo comportamento feriu um dos seus tabus22. Foi de acordo com esta lógica, que Bernardo Santareno situou num contexto sacrificial a execução pelos cinco homens vivos da família do rapaz que cometera o «pecado» de não gostar de mulheres, ultrajando a honra familiar ao renunciar à condição de homem tal como a sociedade camponesa a considera23.
16O «estigma indelével» que recai sobre a mulher adúltera, em Vila Velha, torna impossível a sua reabilitação, o que não acontece com o marido enganado, apesar de também ser estigmatizado como «cabrão», e, menos ainda, com o homem que se revelou incapaz de sustentar a família devido à sua negligência. Segundo os cânones da honra, a pessoa aviltante é sempre a mulher adúltera, culpada de desonrar o marido e a família com a sua própria desonra, uma vez que as ligações extramatrimoniais do marido não têm as mesmas implicações. Entre nós, é corrente pensar-se que a mulher tem «vícios» e o homem «necessidades» e que, sendo ela a tentadora, o homem é forçosamente a vítima da tentação...24. O adultério da mulher representa uma ameaça frontal à hombridade do marido, pondo em causa não apenas a sua capacidade sexual, mas também a sua capacidade em protegê-la dos outros homens, obrigando-o, por vezes, a recorrer à violência física para poder voltar a aparecer diante deles de cabeça erguida. Há um provérbio que diz: «Os homens conhecem-se pelas palavras e os bois pelos galhos.»25 Ora, segundo Leite de Vasconcelos, o homem do campo emprega muitas vezes o vocábulo «palavra» para significar «palavra de honra», pois «a palavra de um homem honrado vale mais que uma escritura»26. Sem pretendermos restringir-nos ao quadro mediterrânico, podemos ver, portanto, nesta dupla oposição homens/bois e palavras/galhos, uma das declinações do dualismo honra/vergonha, pelo qual o homem honrado, sinónimo do verdadeiro homem, se situa em oposição ao homem cornudo, que é a sua negação27.
17Nas sociedades mediterrânicas, organizadas segundo uma divisão rígida entre o espaço doméstico reservado à mulher e o espaço «público» reservado ao homem, a desonra da mulher arranca-a, de certa maneira, ao recato do seu «espaço próprio» e «atira-a para o «espaço dos homens», expondo-a «ao olhar de todos»28. No Soajo (Alto Minho), o medo de «cair na língua do povo» reforça a fidelidade da mulher ao marido. Nesta aldeia em que a maioria dos homens foram obrigados a emigrar, se ela «quer parecer honesta aos olhos das outras mulheres (...) deve viver fechada em casa, uma vez os trabalhos do campo terminados»29. Por isso, é provável que o comportamento sexual da mulher se exprima mais livremente nas regiões onde, por razões culturais e não apenas conjunturais como a emigração - se é que tem sentido falar de conjuntura a propósito de um fenómeno destes no nosso país -, ela desempenha um papel mais aberto e marcante na economia simbólica camponesa, como nas freguesias estudadas por Pina Cabral30.
18O adultério, como qualquer outro desvio, traduz tanto a permanência dos valores que põe em causa, como a vulnerabilidade perante os novos costumes e valores ligados às transformações sociais. Simões Trincão cita o caso de um homicídio por adultério em que a vítima foi o próprio marido ultrajado que não se conformou com o novo estado de coisas, mas tão-pouco quis recorrer à violência para pôr termo a essa situação. O homicida, solteiro, de 26 anos, natural de Chavelhos-Almeida (Beira Alta), «tinha sido encarregado pela vítima, de quem era amigo, de lhe cuidar de umas propriedades, quando ele se retirou para o Brasil. Amantizou-se, durante a ausência do amigo, com a esposa deste. Ao regressar a Portugal, a vítima teve conhecimento do que se passara, verberando asperamente o procedimento da mulher e do amigo. A mulher pretendeu divorciar-se, com o que ele não concordou, preferindo continuar a viver com ela. Tempos depois, os dois amantes continuaram a manter relações sexuais e acabaram por combinar o assassinato do marido ultrajado»31.
19A estigmatização a que a sociedade rural submete regularmente, no âmbito de práticas rituais, os comportamentos que ferem os seus ideais de honra é significativa da forma como, ao mesmo tempo que continua a reprová-los, se conforma mais ou menos com eles. Se, na realidade quotidiana, é sobre a mulher adúltera que incide sobremaneira a violência da ignomínia e da exclusão, é para com os maridos «cucos» e «cornos» que a memória tradicional, através de provérbios, narrativas e cerimónias, se mostra particularmente implacável, expondo-os ao ridículo e ao opróbrio32. Chifres e chocalhos são os instrumentos típicos das assuadas, de que se falará no capítulo seguinte, praticadas por todo o país com designações muito variadas contra os autores de actos ou atitudes considerados ofensivos dos valores ou interesses comunitários. As assuadas mais correntes têm justamente como objecto casamentos ou condutas que representam uma ameaça ao ideal de fecundidade, desde os casamentos de viúvos às uniões ilegítimas, passando pelos maridos cucos e pelas mulheres adúlteras, e atingindo em alguns sítios o rapaz que, desejando casar com uma rapariga de outra terra, recusa pagar a taxa de casamento aos rapazes conterrâneos da noiva33. Há ainda que evocar o «pau do cornudo», roubado ou solicitado ao homem cuja mulher é acusada de infidelidade conjugal, sem lhe revelar a intenção, e que certos camponeses espetam nos campos para afugentar os pardais34, abarcando com o mesmo gesto as duas figuras sobre as quais assenta a perenidade do grupo: a mulher e a terra. Note-se que, apesar da veemência com que exprime a sua reprovação quanto ao comportamento repreensível, a comunidade não impede verdadeiramente a sua execução, nem faz dele um obstáculo intransponível a um casamento «digno». Contenta-se com um resgate simbólico que pode traduzir-se, como acontece em certas regiões, em relação a qualquer tipo de casamento, em dádivas materiais (géneros alimentícios, vinho, etc.) distribuídas pelos membros da comunidade ou por alguns deles (rapazes); mas, a maior parte das vezes, basta que as pessoas incriminadas não ofereçam resistência à execução da vindicta35. Firmino A. Martins recorda, a propósito do casamento numa povoação da região de Vinhais (Trás-os-Montes), que, se «os noivos não fazem convites nem dão amêndoas e vinho, o sino toca a sinais fúnebres, e se, além disso, a noiva teve comportamento irregular ou o rapaz abandonou a antiga namorada trocando-a por outra, aparece dependurado no cadeado do sino um‘congalho’de chifres de bode»36.
20Se a mulher adúltera não escapa, como acabámos de ver, às represálias rituais, o facto de a derisão ser constantemente associada ao símbolo do marido ultrajado (os chifres) aponta para a responsabilidade particular do homem na defesa e protecção da mulher, bem como do património moral e familiar de que ela é o agente reprodutor e transmissor. Vimos pela Estatística Judiciária que nem a violência verbal é apanágio exclusivo da mulher, nem a violência física, do homem. Leite de Vasconcelos conta até o caso das mulheres de Cabeço do Infante que, um dia, fecharam os maridos em casa e foram bater-se com os habitantes de Sarzedas com quem andavam de rixa37. Mas o exemplo do homicídio - prática de homens adultos - mostra que é ao homem que compete intervir quando estão em jogo valores e interesses de que depende a conservação do grupo familiar. Homem respeitado é homem destemido que não recua perante a honra ultrajada, pois, se não reagir, perde a sua palavra, o que o mesmo é dizer, o seu estatuto de homem. Em síntese, podíamos escrever como José Cutileiro, ao falar de Vila Velha: «Cabe ao homem assegurar a sobrevivência material e, se possível, a prosperidade da família; cabe à mulher garantir que permaneça intacta a sua integridade moral.»38 No entanto, a história da violência física ou ritual não deixa dúvidas quanto à responsabilidade do homem perante as ameaças a esta integridade na medida em que o comportamento «desonesto» da mulher, a menos que se justifique por razões de sobrevivência material que condicionam a própria estabilidade familiar como em Vila Velha, põe em perigo a integridade do património ao alargar o campo dos eventuais herdeiros. Assim, é o homem que a sociedade encoraja no exercício da força física, levando, em contrapartida, a mulher, a reagir através da palavra. O comentário de Maria Lamas sobre a mulher do Alto Douro ultrapassa, como ela própria reconhece, a situação desta província: «Os descomedimentos verbais, com termos grosseiros e até obscenos quando discute ou tira desforço de alguma escândula, são ainda uma forma de expansão - a única em que ela não conhece limites. Isto sucede com a duriense e com todas as outras mulheres do povo: quanto mais dura for a sua vida (...) tanto mais directos, violentos e inconvenientes serão os seus desabafos perante tudo o que as indigne, prejudique ou ofenda. Tudo se resume, porém, a gritos, palavrões e gestos desbragados. Perante si próprias e as condições do seu destino, elas nem sabem nem pensam sequer em reagir.» E, não sem uma certa severidade, Maria Lamas vê na «sujeição da mulher do povo às violências do homem, como se a pancada que recebe fosse uma lei natural», a prova da atitude resignada que se esconde sob o fluxo impetuoso da violência verbal39. Apoiando-nos na história do homicídio, podemos perguntar-nos se as sevícias do homem em relação à mulher ou o seu autoritarismo não são em grande parte responsáveis pelo aparecimento das mães abusivas de que nos fala essa história, e que, em caso de conflito e desentendimento, fazem dos filhos aliados contra os maridos, embora o contrário não seja menos plausível. Trata-se, se não de indeterminação, pelo menos de uma real incapacidade em assumir a autoridade parental dentro da família.
21Se há campo em que as estatísticas são de pouco préstimo, é bem o da violência familiar envolvida em clima de segredo, cujo universo é mais vasto do que aquele que os números dos tribunais nos desvendam, se juntarmos aos maus-tratos físicos e verbais, que escapam à justiça, os casos de incesto e de violência sexual. A «intensidade dos tabus» relativos ao sistema de valores por que se rege o grupo familiar, necessariamente reavivada por este tipo de violência, levaria aliás, na opinião de F. Tricaud, a uma certa retenção na execução da violência física quando esta intervém em nome da «justiça intrafamiliar»40. Por outro lado, não é raro ver os crimes mais graves como o parricídio e o matricídio associados ao mundo da loucura, sinal do terror que a criminalidade familiar infunde numa sociedade que a ressente como próxima e ameaçadora. Aquando de um matricídio célebre em Lisboa, em 1848, uma notícia volante pedia à rainha um «castigo mais cruel» do que a condenação à forca: «Que a ré seja reclusa por toda a vida, no hospital dos alienados, fechada nas grades entre as palhas (...) O remorso, Senhora, é o mais severo castigo dos réus.»41 E, em 1940, nas respostas a um questionário junto de uma centena de reclusos da Cadeia da Relação do Porto a quem se pedia que julgassem e condenassem uma determinada categoria de crimes, foi ao internamento no manicómio que dois deles «condenaram» um parricida42. Tal como acontece com os conflitos interfamiliares, as disputas entre membros da mesma família referem-se ao património em sentido lato e, mais precisamente, a tudo o que seja ressentido como factor de divisão ou dispersão (dívidas, partilhas, gastos excessivos, etc.). Por isso, escreve J. F. Riegelhaupt, a propósito de S. Miguel, pseudónimo de uma freguesia estremenha: «Os conflitos entre famílias ou entre indivíduos são evitados por uma rigorosa contabilidade entre as partes, pelo mínimo de relações de dívida e pela interligação de laços de parentesco.»43 O trabalho de Simões Trincão apresenta, a este respeito, exemplos significativos, em que as ameaças à conservação do património se sobrepõem, por vezes, às dissidências conjugais: «O F. R. e a mulher, respectivamente irmão e cunhada da vítima, sabendo que esta se ausentara com uma rapariga e com ela gastava o que tinha, resolveram mandar matá-la. Para esse fim, encarregaram dois genros e um terceiro rapaz, irmão da amante da vítima, que por sua vez se amantizara com uma filha dos mandatários do crime.»44
22Aparentemente com carácter menos institucionalizado, situações de compromisso análogas às da mulher adúltera das famílias pobres de Vila Velha verificam-se em diferentes regiões do país. Variáveis em função do contexto cultural, social ou económico, elas coexistem com uma idêntica atitude de reprovação ao nível dos princípios. Para sairmos da sociedade rural, citemos, pelo seu cariz mais radical, o exemplo das mulheres dos pescadores de Olhão que, «em épocas de crise, caem facilmente numa prostituição temporária ou na mendicidade», mas que, segundo Paul Descamps, «só em último caso aceitam ser criadas»45. Para além de todos os compromissos, o adultério continua a ser o desafio maior à honra familiar, e, de modo geral, a sociedade portuguesa mostra-se mais severa com a mulher adúltera do que com a mãe solteira, embora, também aqui, a sanção da opinião varie consoante a origem social da mulher, a posse da terra, a região, etc..
23Há regiões onde a fidelidade conjugal está, de certa maneira, prefigurada na necessidade imperiosa de realizar o casamento depois de o pedido ter sido feito, acontecendo até, como já se viu, que a rapariga possa ter, em seguida, muitas dificuldades em arranjar outro namorado. Se foi o rapaz que desistiu do casamento, fica sujeito à eventual vindicta familiar por parte dos irmãos da noiva (Ilha Terceira) ou ao desprezo das outras raparigas da aldeia, de tal forma que nenhuma delas o aceitará (Soajo)46. Segundo Leite de Vasconcelos, que se refere a um velho costume minhoto, «a rapariga que só conversa com um rapaz é muito criticada, porque já é conhecido que há afeição entre ela e o seu conversado: a que é mais cuidadosa da sua boa fama conversa com todos os que a procuram nas festas, até que o seu casamento esteja justo»47.
24Ao lado da ilegitimidade que, a não ser que interfira na trasmissão do património aos legítimos herdeiros, é um fenómeno relativamente bem integrado na sociedade camponesa, o infanticídio e o aborto surgem muitas vezes como uma forma de escapar à reprovação que se abate sobre a mulher que transgrediu os padrões da maternidade honrada48. Mas, neste campo, as causas nem sempre são fáceis de estabelecer. Qual a parte de pobreza e de miséria? Qual a parte de moralismo que proíbe toda a forma de sexualidade fora da procriação no âmbito do casamento? Qual a parte de honra que culpabiliza sistematicamente a mulher em nome da pureza e da vergonha? Como é de supor, o número de mulheres condenadas, quer por aborto quer por infanticídio, não tem comparação com o número de homens condenados pelos mesmos crimes, sem contar que, sobretudo em relação ao primeiro, as estatísticas judiciárias estão bem aquém da realidade. O aborto clandestino foi sempre largamente praticado em Portugal, tornando irrisórios os números conhecidos. Quanto ao infanticídio que, nos meios rurais, teria tendência para compensar uma dificuldade maior de acesso ao aborto49, os dados registados pela E. J. são relativamente modestos; mas Maria Rosa de Almeida cita a percentagem de 12% de crianças com menos de 15 anos de idade entre as vítimas de homicídio para o período de 1938 a 1951, não se sabendo quantas delas foram vítimas de actos violentos cometidos pelos pais50.
25Deste conjunto de situações assaz dispersas podem tirar-se, desde já, duas conclusões.
261. A posse de terra determina em larga medida a existência de uma «casa» e a constituição de uma família. Mas a conservação desta última, bem como o princípio fundamental de que depende - a maternidade - primam, de certa maneira, sobre o comportamento irregular da mulher, mesmo casada. Isto é particularmente evidente no que respeita à virgindade que, apesar da sua importância, parece subordinada à posição fulcral ocupada pela mulher componesa na criação e transmissão do património simbólico da casa (procriação, educação dos filhos, sistema de heranças, etc.) e à sua ligação íntima com a terra.
272. Todavia, a história do homicídio é, em si mesma, a prova dos limites da flexibilidade com que a sociedade camponesa vive os ideais de honra em que continua a reconhecer-se, flexibilidade essa de que o adultério, em Vila Velha, é o mais significativo exemplo. Aqui, os compromissos esporádicos são um dos aspectos do «compromisso quase permanente» a que, segundo José Cutileiro, estão condenados os trabalhadores rurais alentejanos se quiserem assegurar a estabilidade familiar e não serem relegados, como a prostituta, «para além das fronteiras da vergonha». Tal situação deve-se à estratificação social resultante do modo de exploração da terra próprio do Alentejo; em Vila Velha, 55% do rendimento colectável está nas mãos dos latifundiários, 23%, nas dos proprietários, e 22%, nas dos restantes chefes de família. Se uma das obrigações impostas pela honra a todo o homem casado é garantir, se não a prosperidade, pelo menos a segurança da família, o exemplo do adultério mostra-nos como muitas vezes esta obrigação só pode ser respeitada transgredindo outra não menos imperiosa, a integridade moral da mulher. Esta clivagem na maneira de praticar os princípios da honra traduz um esforço permanente, por parte da sociedade, para compensar um princípio por outro, como se fosse impossível ou difícil respeitá-los a todos por igual. O facto de não ser virgem é uma razão suplementar para ter de resgatar a sua «falta» pelo casamento. Pode a mulher casada praticar o adultério na ausência do marido ou em razão da sua extrema pobreza, mas nunca o seu gesto deverá pôr em causa a estabilidade da casa ou da família, etc., etc. Na atitude compensadora de um princípio por outro para salvaguardar o prestígio social, desponta o mito da indivisão a que vai agora confrontar-nos o exemplo da comunidade.
28A comunidade - Mais do que a cena onde se joga a conflituosidade familiar ou interfamiliar, a comunidade é objecto e expressão de conflituosidade, como a casa e a terra. Por comunidade, entendemos, como Jorge Dias, «um grupo local integrado por pessoas que compartilham um território bem definido, as quais estão ligadas por laços de intimidade e convívio pessoal e participam de uma herança cultural comum»51. Esta definição aplica-se à maior parte das nossas aldeias e a numerosos bairros citadinos em que se verificam as duas grandes características da «comunidade de vizinhança típica», que Max Weber identifica com a aldeia nos sistemas de economia agrária fechada: a «fraternidade», que se exprime sob o modo da «ajuda recíproca» mas desprovida de qualquer «sentimentalismo» - «o que tu me fazes, fá-lo-ei também a ti» -, e a «hostilidade» entre vizinhos, que é tanto mais «aguda e tenaz» quanto as relações que os ligam são «estreitas e intensas»52. Em sentido mais genérico, «comunidade» significa aqui a comunidade de pertença por nascimento e domicílio, seja ela aldeia, freguesia ou bairro citadino, que participe daquelas características53. Seria errado, e é o grave inconveniente de tal designação, ver nela a expressão de qualquer comunitarismo resultante de uma pretensa gestão igualitária dos bens e das relações sociais, que mesmo as aldeias mais «comunitárias» não praticam.
29O sentido apurado da hospitalidade para com um estranho de passagem acompanha-se de uma atitude de desconfiança e hostilidade para com as comunidades vizinhas e a sociedade englobante, em particular para com a cidade e a administração central. Esta atitude foi analisada por Laurence Willie, a propósito de uma aldeia provençal, segundo o modelo «Nós» e «Eles»: «Nós somos bons. Eles são maus (...) é preciso, portanto, desconfiar deles de qualquer maneira.»54 Trata-se de algo semelhante à dinâmica em jogo na prática da vingança, com a «solidariedade» a nível interno e a «discórdia» a nível externo, para utilizarmos os termos de Joaquim de Carvalho sobre a sociedade clânica dos castros55. Não é que não haja discórdias a nível interno, como se sabe. Que mais não fosse, a história do homicídio, com o seu fundo de invejas, boatos e intrigas quotidianos, bastaria para o demonstrar. Na sua monografia sobre Reguengo do Fetal, Moisés Espírito Santo mostra que duas visões da vida, dois tipos de interesse, etc., dividem constantemente, e consoante as circunstâncias, o imaginário social da freguesia, a «aldeia-mãe» (dominante) e as «aldeias-dominadas»56. Só que, perante o exterior («Eles»), a solidariedade entre os habitantes da aldeia ou da freguesia («Nós») prevalece sobre as divisões que os opõem a nível interno. Podemos então perguntar-nos se a rivalidade entre comunidades não é uma maneira de transferir para fora delas a discórdia que internamente as divide e ameaça, o meio de consolidar a sua identidade perante a outra com que tem de estabelecer trocas e contactos e cuja vizinhança é fonte de tensão57.
30Centrada em parte em torno da terra, com o objectivo de evitar a sua fragmentação e divisão, mas mais em relação à comunidade do que à própria família, a endogamia é uma das manifestações mais límpidas da identidade territorial que faz da casa e da comunidade um mesmo espaço de proximidade. A proibição de casar com um rapaz de fora, e, em sentido análogo, a exclusão dos estranhos da posse da terra, é um fenómeno bastante arreigado. São inúmeras as regiões em que o rapaz que pretende casar com uma rapariga de outra aldeia é obrigado a pagar um tributo ou patente (vinho, cigarros, bacalhau, etc.) aos rapazes dessa aldeia, sob pena de represálias que, por vezes, vão até ao derramamento de sangue. Hoje ainda, numa aldeia da Beira Alta situada em «Terras do Demo», o rapaz estranho (aqui, o sentido de pertença chega a considerar «estranhos» os rapazes não apenas de outra freguesia, mas de uma outra aldeia da freguesia) que não aceite pagar esse tributo chamado «cabrita» (vinho) é levado à força com uma corda à cintura pelos rapazes da aldeia e mergulhado na água do rio. Desde tempos recuados, o principal protagonista da manifestação, encarregado de transportar e lançar a corda, é um coxo, como se este defeito físico o tornasse mais apto para «realizar o dom de uma esposa a alguém de fora», por simbolizar uma dificuldade maior em deixar fisicamente a terra...58. Noutros sítios, em vez do rio, é numa poça que se deita o rapaz recalcitrante e, no Barroso, é aí também que se mete a rapariga que não é «honesta»59.
31Em torno da mulher e da comunidade, há assim que considerar todo um conjunto de práticas de conteúdo agonístico mais ou menos pronunciado que assumem o carácter de verdadeiras provas iniciáticas em que a honra colectiva é desafio à honra pessoal e vice-versa. Daí o papel privilegiado que os rapazes nelas são convidados a desempenhar. Em Noites de Lamego, Camilo dá-nos uma bela ilustração deste tipo de prática com a rixa em que o Vítor de Mondim e o João Lopo de Cerva, encorajados pelos rapazes das respectivas aldeias, se matam um ao outro por causa de uma rapariga que acabará por se suicidar... Tudo neste texto converge no sentido de realçar o carácter iniciático do confronto, desde o cenário (a romaria como lugar institucionalizado de permutas entre aldeias) à hora da rixa (meia-noite) e ao local da luta (a ponte que separa as províncias do Minho e de Trás-os-Montes)60.
32Com as rixas entre rapazes sob fundo de honra colectiva e todas as outras que pouco ou nada têm a ver com honra, temos as «pequenas guerras endémicas» de que fala Jorge Dias, ainda muito vivas nos anos 30 e 40, e que veiculam e alimentam a conflituosidade entre comunidades. Em Maio de 1929, o Delegado do Procurador da República do Fundão achava por bem assinalar ao Instituto de Criminologia de Coimbra: «A avultada criminalidade notada na freguesia de Atalaia do Campo provém do excessivo consumo de vinho e ainda da animosidade ancestral em que esta aludida freguesia e a de Póvoa vivem, o que os torna aguerridos, sendo desta quase todos os ofendidos agredidos pelos criminosos daquela.»61 Num clima de violência latente prestes a transbordar, com uma actividade policial pouco eficaz devido ao isolamento geográfico, o mais pequeno incidente transformava-se facilmente em afronta pedindo luta. Então, esquecidos das suas próprias querelas, os habitantes de uma aldeia eram todos por um e um por todos perante a aldeia rival.
33A solidariedade vingadora, que obriga o grupo a reagir a toda a agressão exterior dirigida contra um dos seus membros, atinge neste tipo de rixas um dos seus pontos culminantes. Mas era em feiras e romarias, como já assinalámos, que tais manifestações tinham o seu cenário habitual. Apesar de longínqua, vale a pena transcrever o relato que O Século fazia, em 26 de Outubro de 1910, de uma dessas rixas por ocasião da festa das Mercês (Sintra):
34«Sem embargo do contínuo caminhar do progresso, há ainda, entre os habitantes dalguns lugares desta comarca, antigas rivalidades que redundam por vezes em desordens terríveis, por vezes, em cruentas desforras. E, se procurarmos a origem dessas velhas rixas, que chegam a atravessar gerações e sempre mais e mais exacerbadas, vamos encontrar motivos fúteis, que por modo algum justificam os crimes que servem de epílogo às furiosas contendas, e não raro à morte de alguns dos contendores. Foi um desses casos que este ano se deu por ocasião da feira das Mercês, concorrida por milhares de pessoas dos arredores e que hoje terminou com a festividade em homenagem a Nossa Senhora das Mercês (...) Noticiou O Século que, por ocasião da feira (...) houve ali grande desordem da qual resultou ficar gravemente ferido Serafim E. (...) Ontem, domingo, continuava a feira e um grupo de rapazes, amigos do Serafim, quis tirar a desforra do grupo agressor, e nesse propósito provocou grande desordem da qual resultou ficar em mísero estado um rapaz de 28 anos (...).» E o jornal anuncia, para terminar: «Preparam-se os desordeiros para nova contenda. Boatos terroristas. À falta de polícia intervém uma força de cavalaria que os pôs em debandada.»
35Eram vulgares também, sobretudo no período do liberalismo nascente e ligados aos acontecimentos que marcaram a abolição do Antigo Regime, os barulhos produzidos ou impregnados de partidarismo e respectivas lutas de influência. Trás-os-Montes é uma das províncias onde a violência de sangue esteve desde há muito associada a uma atitude de revolta contra o poder central e a sua burocracia «espoliadora» (impostos, apropriação de baldios, etc.). O abade de Baçal cita alguns desses barulhos ocorridos no distrito de Bragança, em finais do século XIX, que mobilizavam povoações inteiras contra a sede do concelho e chegavam a transformar-se em verdadeiros tumultos com salas devastadas, árvores arrancadas, libertação de presos, etc.62. Assim, Braga Barreiros não hesita em incluir, num artigo consagrado às tradições populares do Barroso, «a trica política que, em Montalegre, é uma verdadeira fonte de ódios, vinganças e prepotências!»63. Em 10 de Outubro de 1945, A Voz anunciava, por exemplo, uma «grave desordem» entre duas populações transmontanas quando regressavam de votar nas eleições para as juntas de freguesia. Há que citar neste capítulo as lutas sangrentas que, no século xix, opunham as grandes famílias rurais e em que, por necessidade, os camponeses se viam implicados com vontade ou sem ela. Paul Descamps cita o caso de duas famílias rivais de Trás-os-Montes, uma de um grande proprietário, outra de um médico-proprietário, cujas clientelas dominavam as respectivas aldeias e partilhavam as restantes de forma desigual64. Estamos perante um exemplo das relações de poder e dos jogos de influência que marcam a história e o quotidiano das comunidades rurais. A agitação social, económica e política do século XIX e princípios do século XX traduziu-se, nomeadamente, pela recrudescência do banditismo com o aparecimento de salteadores famosos que marcaram a memória popular, de que adiante se falará. Sobre este fenómeno político-social, particularmente importante em certos concelhos da hoje chamada Beira Interior, escreve Lourenço Roque: «Tal banditismo, favorecido pelas convulsões inerentes à implantação do regime liberal em Portugal, assumia formas diversas que iam desde a prática da criminalidade comum, à retaliação pessoal, à criação de clientelas próprias e ao caciquismo político eleitoral e daí as suas múltiplas conivências e também uma parte das razões que explicam a sua longa sobrevivência, situada por fluxos e refluxos. Nem as populações amedrontadas e desprotegidas, nem as autoridades judiciais pressionadas, nem o poder, por vezes comprometido, poderiam, ou quereriam, extirpá-lo facilmente.»65
36É forçoso evocar também, desde já, a conflituosidade em torno dos baldios - expressão por excelência da identidade comunitária -, cuja apropriação continua a ser para os camponeses o exemplo da exploração dos pobres pelos «poderosos» (grandes proprietários, concelhos, etc.). As lutas contra esta forma de apropriação povoam a história camponesa e cruzam-se com a violência comum. Recorde-se que, em 1937, os baldios representavam ainda 6% da área total do Continente, encontrando-se à frente a província de Trás-os-Montes com cerca de 211 mil hectares correspondentes a 19% dos distritos de Bragança e Vila Real. Não têm conto os exemplos como o de Caniceira (Cantanhede-Beira Litoral) que, em 1931, se opunha energicamente à inclusão no regime florestal de um pinhal desfrutado em comum desde o século xviii e plantado e cuidado pela povoação66. Na Ilha Terceira, a defesa dos baldios está na origem de um agrupamento transitório que destrói sistematicamente as vedações dos terrenos incultos quando algum particular tenta apropriar-se deles; até 1804, os derrubamentos tinham lugar de dia, nomeadamente em dias de festa, como um verdadeiro rito. Só a partir daquela data é que os derrubadores, começando a ser preseguidos, passaram a praticá-los de noite, disfarçados, para não serem reconhecidos67. É provável até que, devido à memória de exploração que os abrange, as disputas relacionadas com a utilização dos baldios, como se vê pela história do homicídio em Trás-os-Montes (horas de rega, pastos, etc.), sejam para os camponeses mais desonrosas do que as que têm por móbil a propriedade privada.
37Enfim, às guerras de golpes vêm juntar-se as guerras de memórias. São as alcunhas e os apodos grotescos que as povoações atribuem umas às outras - «Lagarteiros, os de Belmonte», «Calmões, os de Covilhã», «Batatas, os de Casal» -, em nome de uma fama tenaz que por vezes se prende com a imunidade concedida antigamente aos criminosos refugiados em determinadas regiões a fim de contribuírem para o seu seu povoamento - «Ladrão do Minho», «Assassino de Trás-os-Montes»...68. Segundo Jorge Dias, os serranos crêem ser «descendentes de antigos condenados, mandados pelas autoridades para aquele degredo de montes e fragas, e que para ali ficaram entregues às inclemências do tempo...»69. A autonomia que a comunidade procura zelosamente preservar alimenta-se, por conseguinte, de uma violência externa incessantemente reactivada. Talvez só assim seja possível proteger-se da conflituosidade interna que a todo o momento ameaça a sua indivisão.
38O crime de honra é uma ferida de lugar que atinge a comunidade inteira A honra é indivisa, e indivisa a sua territorialidade. Essa ferida fica gravada, como uma saudade, em cruzes de pedra, assinalando que, ali, um homem foi assassinado.
Hierarquia e comunidade
39A clivagem inerente à maneira como a sociedade camponesa vive os ideais que lhe servem de norma obedece a determinados modelos hierárquicos que, em função dos costumes e das características socioeconómicas, entroncam num código (ou códigos) de honra cujo estatuto continua por definir. O respeito, a consideração, a estima que cada um espera dos outros, numa sociedade de interconhecimento em que tanto contam, dependem, em larga medida, da capacidade em respeitar esses códigos. Todavia, dentro das fronteiras comuns, cada um vai jogar o melhor que pode e quer em relação ao modelo ideal. Obrigado a partilhar a vergonha para não ser submergido por ela, o trabalhador alentejano, na impossibilidade de prover ao sustento da família, prefere roubar a pedir esmola - actividade mais vergonhosa, a seus olhos, do que a primeira. Paralelamente, a mulher de Olhão prefere prostituir-se ocasionalmente do que ir servir, quando noutros sítios este trabalho é encarado como uma ocasião de ascensão social por muitas raparigas. Depois, «para além das fronteiras da vergonha», estão todos os que não podem descer mais baixo na degradação, por serem já, de certo modo, a degradação70. Aceites como são, vivem na zona onde os limites da vergonha se apagam para se confundirem com ela (são a vergonha) pois, quando há vergonha, ainda há honra. Na sociedade camponesa, esta situação-limite é geralmente encarnada pela prostituta, como nas duas freguesias do Alto Minho, ou pelo cigano, como em Vila Velha, que os trabalhadores rurais identificam com o ladrão «por natureza», refugiando-se detrás deste tipo de estigmatização para neutralizar a vergonha que ressentem quando são obrigados a roubar. Acusada de se comportar como uma prostituta, a mãe solteira está, no entanto, longe de poder ser identificada com ela, porque, apesar de não ter casa nem terra, tem para oferecer o capital supremo que é a maternidade. Quanto ao jornaleiro, se é certo que o facto de não ter terra o coloca numa situação semelhante à do cigano ou à do vendedor ambulante, para nos cingirmos a um dos exemplos apontados atrás, pode valer-se do trabalho da terra, o único que a sociedade camponesa verdadeiramente reconhece.
40O código de honra intervém no campo das hierarquias estabelecidas, corroborando o funcionamento hierárquico da sociedade, como se verifica pelo estudo da criminalidade. Através dos seus territórios - a casa, a terra, a comunidade -, que são outros tantos espaços de pertença, a sociedade portuguesa apresenta-se como uma sociedade «holista», segundo a expressão utilizada por Louis Dumont a propósito das sociedades tradicionais. «Trata-se, antes de mais, de ordem, de hierarquia; cada homem singular deve contribuir, do lugar que ocupa, para a ordem global, e a justiça consiste em regular as funções da vida social relativamente ao conjunto.»71 Ao contrário da sociedade moderna, caracterizada pelo individualismo e pelo igualitarismo, as relações interpessoais prevalecem sobre a vontade individual neste tipo de sociedade. Semitradicional e semimoderna, a sociedade portuguesa não desconhece o «indivíduo», embora este apareça mais como uma ameaça ou um ponto de fuga da sociedade do que como uma experiência de liberdade e igualdade, como é o caso da sociedade moderna. Note-se que o salazarismo, ao recuperar politicamente, através do corporativismo, o que é um modo cultural de estar em sociedade, acabou por reforçar a representação negativa do individualismo. Orientada para os valores da pessoa considerada no conjunto das suas pertenças, a lógica da honra é particularista e opõe-se à lógica universal, animada pelo princípio de que todos os homens são iguais em direitos e deveres72.
41É um código de valores que, no âmbito da casa ou da família, define os estatutos sociais do homem e da mulher, indicando o que moralmente compete a um e a outro, quem é «rapaz» ou se tornou «homem», etc. Só ele pode esclarecer o paradoxo que faz da mulher um ser «inferior» ao homem no plano da hierarquia simbólica, enquanto, socialmente, a sua posição pode ser tão relevante como a dele. Mas, por mais importante que seja a posição social da mulher, é na autoridade do homem que assenta a unidade da casa e da família; a ele que compete proteger o território da honra.
42Novo paradoxo: «Na ordem social tradicional, hierárquica e holista, as distâncias sociais coexistem com um sentimento muito profundo de pertença a uma mesma totalidade.»73 Os exemplos das freguesias minhotas e alentejanas mostram-nos como as diferenças hierárquicas e socioeconómicas se sobrepõem e reforçam na dependência de um mesmo ideal. A este respeito, seria interessante saber, dada a incidência da terra no prestígio social, como é que cada uma das profissões apontadas pelo Instituto de Criminologia de Coimbra no seu estudo sobre o homicídio (agricultores, pequenos proprietários, jornaleiros e pastores) se situa precisamente em relação à violência de sangue, já que a ligação com a terra é diferente num pastor, num jornaleiro ou num agricultor. O exemplo do Alentejo, com uma estratificação social muito pronunciada, mostra que uma assimetria acentuada no plano social e económico afecta a troca simbólica no plano da honra. Não quer dizer, como observa Cutileiro, que haja «uma moral dos ricos e uma moral dos pobres», ou «uma moral feita pelos ricos para os pobres», mas que os primeiros têm «mais possibilidades de viver de acordo com ela do que os segundos»74. Neste caso, a partir de que grau de desigualdade é ainda possível falar de respeito e consideração? Tudo indica, de facto, que há um ponto de equilíbrio abaixo do qual não pode haver troca de bens nem de golpes. Escreve F. Tricaud: «A vingança procura restabelecer a igualdade comprometida pela ofensa, e a própria troca de bens, e não de golpes, não significa outra coisa. Os valores relativos dos objectos trocados são expressão de relações de força entre os autores da permuta, desde que a relação traduza, evidentemente, um equilíbrio no confronto e, portanto, uma certa igualdade.»75 É como se não pudesse haver troca de golpes sem troca de bens e vice-versa, como se a luta de homem a homem, com as mesmas armas, como manda a honra, implicasse que o jogo não estivesse viciado logo de entrada pelo facto de uns terem «tudo» e outros «nada». Por isso, na impossibilidade de afrontar directamente aquele que o explora, o furto aparece como um dos meios a que o trabalhador alentejano é obrigado a recorrer para se poder vingar, como veremos mais adiante76.
Homicídio, suicídio, emigração
43Quer pelos imperativos que defende, quer pelo contexto personalizado em que intervém, o homicídio responde a uma exigência de integração social. A coacção moral que a sociedade camponesa exerce de forma difusa, mas persistente, sobre cada um dos seus membros no sentido de prevenir as ofensas aos padrões comunitários, intensifica-se no caso dos autores de homicídio com a ausência de mobilidade geográfica e social. Dada a pressão do meio, compreende-se que só matando ou emigrando um homem pode, em determinadas circunstâncias, permanecer fiel a si próprio sem renegar os princípios que lhe foram inculcados pela tradição. Oliveira Martins di-lo, de certa maneira, a propósito de um duelo sangrento que agitou o Parlamento no século passado: «Na hora em que José Júlio entrou na câmara e os colegas lhe voltaram as costas, a sua sentença fatal ficou lavrada. Ou havia de matar, suicidar-se, emigrar, que valia o mesmo, ou bater-se.»77
44Os exemplos da aldeia transmontana de Fontelas e das aldeias minhotas de São Miguel e Couto de São Fins mostram-nos como a defesa do ideal de indivisão, através do qual a sociedade camponesa continua a assegurar a transmissão do património intacto, segrega um permanente nomadismo, ao obrigar alguns dos seus membros (bastardos, deserdados, etc.) a procurarem na emigração o prestígio que a falta de terra lhes não proporcionara dentro da comunidade78. Mas, atendendo a que os distritos (norte do Tejo) com maiores percentagens de homicídio são igualmente distritos de forte emigração, podemos perguntar-nos se, pelo menos até aos anos 60, em que o fenómeno migratório se estende caoticamente a todas as regiões e aos mais variados meios profissionais, não foi em parte graças à conflituosidade interna regulada pela violência de sangue e equilibrada pelo êxodo da populaçao simbólica e demograficamente excedentária, que a sociedade camponesa conseguiu salvaguardar a sua coesão. Na medida em que a integridade do património representa uma das causas principais de homicídio, é provável que as percentagens de crimes sangrentos fossem mais elevadas ainda se estratégias como a emigração não permitissem prevenir e diferir os conflitos ligados à defesa dessa integridade. É uma hipótese que seria interessante confrontar à luz de uma análise empírica das relações entre a emigração e a violência, alargada ao suicídio, cuja importância numérica é incomparavelmente superior à do homícidio. Pelas suas características sociais e geográficas, o suicídio aponta, tanto ou mais do que o homicídio, para a hipótese da emigração como factor da regulação da violência.
45Portugal não é certamente o «povo de suicidas» de que falava Unamuno, mas o suicídio representa entre nós um fenómeno estatístico e sociologicamente mais grave do que o homicídio. Segundo J.-C. Chesnais, se, em relação aos países da Europa não-meridional, Portugal tem uma das frequências mais baixas de suicídios, em relação aos restantes países da Europa do Sul (Grécia, Itália e Espanha, com excepção da Jugoslávia) é ele que, desde a década de trinta, conhece uma propensão suicidária mais acentuada. Portugal é um dos países europeus com uma «suicidade rara» (taxa inferior a 10 por 100 mil habitantes)79, mas, a nível interno, as diferenças entre o suidício e o homicídio, são particularmente relevantes. Por exemplo, para 702 suicídios consumados em 1931, contam-se 137 homicídios consumados; para 926 suicídios consumados em 1941, 146 homicídios consumados; e, para 794 suicídios consumados em 1948, 132 homicídios consumados...80.
46A correlação estatística respeitante, por um lado, ao homicídio e ao suicídio e, por outro, à emigração oferece pistas estimulantes para uma reflexão antropológica, apesar de a irregularidade das respectivas curvas e a heterogeneidade dos parâmetros não autorizarem conclusões demasiado formais. Não deixa de ser significativo observar que a baixa sensível das saídas para o estrangeiro no início da década de 30, e que vai perdurar até finais da Segunda Guerra Mundial, devido em parte ao facto de o Brasil, «tradicional escoadouro da nossa gente», ter fechado os seus portos à emigração europeia na sequência da crise mundial de 1929-3081, coincide aproximadamente com um surto de suicídios entre 1931 e 1941 e um surto de mortalidade por homicídio em 1933-36 e 1938-3982. Por uma curiosa ironia da História, este período corresponde sensivelmente àquilo a que Franco Nogueira chamou os «tempos áureos» (1928-1936) do salazarismo, ou seja, à institucionalização da ordem política do Estado Novo... Convém observar que a presença concomitante das duas formas opostas de violência (homicídio e suicídio) na década de 1930-40 é um fenómeno que vai perdurar pelo menos até 1975, embora, geograficamente, isso não se verifique com a mesma regularidade. «Grosso modo, teremos, escreve Eduardo Freitas, uma variação concomitante do mesmo sinal entre suicídio e homicídio ao longo dos anos sem correspondente variação sincrónica no plano das regiões»83.
47Enquanto, relativamente ao homicídio, a distribuição regional se revela muito irregular e variável de uma época para a outra - apesar da persistência, ao longo dos anos, do círculo de sangue formado pelo Nordeste Transmontano e pelo Norte Beirão ou por zonas com percentagens sistematicamente baixas de condenados por crimes violentos -, no caso do suicídio, a distribuição é incomparavelmente mais definida, com duas regiões «diferencialmente flageladas»: o Norte do país, onde o suicídio é relativamente raro, e o Sul, com incidência de cerca de quatro a seis vezes mais do que no Norte, onde é relativamente frequente. Este «dualismo do desespero», segundo a expressão de Eduardo Freitas, é confirmado pelos resultados apurados a nível distrital para as décadas de 1930-39, 1940-49 e 1960-69. Os distritos do Norte apresentam taxas (por 100 mil habitantes) abaixo de 10,0, assim como as actualmente chamadas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Nestas Regiões e no Noroeste alargado (distritos de Viana do Castelo, Braga, Vila Real, Porto e Aveiro), as taxas são sempre inferiores a 5,0. Por sua vez, os distritos do Sul apresentam taxas superiores a 10,0, e dois deles, Beja e Faro, taxas mesmo superiores a 20,084. Mas, a nível concelhio, a «mais vasta mancha homogénea» do país com taxas de suicídio mais baixas (menos de 4,9) é representada pela região grosso modo coincidente com o Noroeste, com prolongamentos para este, em Trás-os-Montes, e, para sul, na Beira Alta. No pólo oposto, situam-se as duas áreas com taxas de incidência concelhias sempre superiores a 20,0: uma muito extensa, grosso modo coincidente com o Alentejo e a maior parte do Algarve, e outra a norte de Lisboa, com prolongamento até Santarém/Constância. Quanto aos concelhos de Lisboa e Porto, correspondentes aos dois mais importantes agregados urbanos, «onde, por força da vulgarmente admitida sobre-suicidade das capitais, se poderia supor detectar-se uma inclinação forte para o suicídio», as taxas são relativamente modestas, por exemplo, na década de 1940: 11,7 em Lisboa (distrito, 16,6) e 3,9 no Porto (distrito, 3,6)85.
48A distribuição regional das taxas de mortalidade por homicídio e das taxas de mortalidade por suicídio, nas décadas de 1930-39 e de 1940-49, permite determinar quatro grupos principais caracterizados, a nível da sua configuração, por uma relativa estabilidade ao longo dos anos86. No grupo dos distritos com muito homicídio e muito suicídio87, incluem-se Beja, Évora e Leiria; no grupo dos distritos com muito homicídio e pouco suicídio, Braga, Bragança, Castelo Branco, Guarda, Vila Real e Viseu; no grupo dos distritos com pouco homicídio e muito suicídio, Faro, Portalegre e Setúbal; e no grupo dos distritos com pouco homicídio e pouco suicídio, Aveiro, Porto e as ilhas dos Açores e da Madeira. Quanto aos restantes (Coimbra, Lisboa, Santarém e Viana do Castelo), a irregularidade das respectivas taxas de um década para a outra torna problemática a sua inscrição em qualquer dos grupos referidos. Note-se, porém, que as taxas de mortalidade por suicídio nos distritos de Coimbra e Viana do Castelo são sempre inferiores às taxas gerais do país, o que é também o caso, no que respeita à mortalidade por homicídio, dos distritos de Santarém e Viana do Castelo em 1930-39 e dos distritos de Coimbra e Lisboa em 1940-49. Por seu lado, as taxas de mortalidade por suicídio nos distritos de Lisboa e Santarém foram sempre superiores às taxas gerais do país. Em suma, os distritos a norte do Tejo caracterizam-se, de um modo geral, quer por uma violência centrípeta e centrífuga relativamente baixas, quer por uma violência centrífuga muito elevada e uma violência centrípeta muito forte, podendo coexistir com uma violência centrífuga igualmente importante. É claro que tal divisão só pode ter incontestável significado se as manchas correspondentes a cada uma das formas de violência (homicídio e suicídio) foram acentuadamente homogéneas a nível das suas características profundas dentro das zonas geográficas consideradas, o que não é forçosamente o caso. No entanto, dada a dinâmica global do homicídio e do suicídio no nosso país, é provável que assim seja.
49A partir da análise estatística, Eduardo Freitas traça o quadro das características principais do suicídio em Portugal. Com uma constância que traduz uma real indiferença aos «efeitos das conjunturas sociais», e a um ritmo que desde 1902 não deixou de se intensificar, as taxas de suicídio são duas a quatro vezes mais elevadas nos homens do que nas mulheres. Todavia, «a vulnerabilidade crescente» perante o suicídio, sobretudo uma vez ultrapassados os 40-49 anos, é tão importante no homem como na mulher. Isto confirmaria a hipótese do suicídio como sintoma de uma integração desfeita ou não realizada. «O avanço da idade ao processar-se em contextos sociais progressivamente rarefeitos de inserções sociais integradoras (redução do núcleo familiar ao casal por afastamento dos filhos, viuvez, etc.) caminha a par de uma crescente permeabilidade às pulsões de morte.»88 Se os estados civis de viúvo e divorciado, assim como as mulheres casadas sem filhos (taxas de suicídio de 7,8 contra 4,1 nas mulheres casadas com filhos) apresentam uma propensão maior para o risco de suicídio, o grupo dos homens viúvos idosos parece, no entanto, o mais intensamente exposto a esse tipo de risco89. Nas obras de Manuel da Fonseca, o suicídio dos homens idosos enche de sombras as planícies do Alentejo - província onde o grupo dos trabalhadores rurais é o que mais suicídios conhece. O suicídio aparece, portanto, como a consequência da irredutível solidão a que fica entregue uma pessoa brutalmente arrancada aos laços que definiam os seus espaços de pertença, numa sociedade onde a identidade individual está extremamente dependente de uma possibilidade de integração bem afirmada. Com base na dinâmica cultural do homicídio, poderia dizer-se que, no fundo, é o mesmo imperativo de integração que leva um homem a matar, quando esse imperativo se encontra ameaçado, ou a matar-se, quando a ruptura deixa o indivíduo a sós com a sua fragilidade interna. Tal facto confirmaria, de um ponto de vista geográfico e pelo menos no que se refere às regiões do Norte onde a criminalidade de sangue é tradicionalmente elevada, a tese durkheimiana da relação inversa entre o homicídio e o suicídio, segundo a qual a existência do primeiro, enquanto expressão de um «altruísmo excessivo», ou seja, praticado em nome de valores colectivos como no caso da vingança, é incompatível com a presença do segundo, enquanto expressão de uma «excessiva individuação», resultante da rarefacção dos laços comunitários90. Nesta ordem de ideias, é como se as regiões do Norte, pelas suas características sociais e demográficas, centradas em grande parte em torno da terra e dos investimentos afectivos e imaginários que ela permite, desenvolvessem uma sociabilidade mais apta a prevenir o suicídio quando uma situação de ruptura acentua a vulnerabilidade individual91.
50Por outro lado, no Alentejo, o espaço doméstico é o único que o trabalhador rural, sem terra onde se projectar, pode reivindicar como seu, compreendendo-se que, neste contexto, uma ruptura familiar se torne facilmente drama sem remédio. O quadro do suicídio (e mais ainda do homicídio) é, no entanto, suficientemente contrastado (basta recordar o exemplo do distrito de Faro, com incidência de suicídios idêntica à do de Beja e características socio-económicas bem diversas), para evitarmos qualquer tentativa de explicação globalizante. A necessidade, já ressentida a propósito do homicídio, de uma identificação mais precisa da natureza da violência no distrito de Beja impõe-se de novo a propósito do suicídio...
51Se o suicídio traduz, no sentido de Durkheim, o fracasso da individuação, por excesso ou por defeito, em que medida a emigração, considerada como modo de individuação positiva, constitui uma forma de prevenção do suicídio? A esta sedutora questão, a análise da correlação estatística dos dois fenómenos não permite responder claramente nem num sentido, nem noutro. Pensamos, no entanto, que vale a pena formulá-la, que mais não seja enquanto hipótese de uma nova investigação.
52Tomando como ponto de referência o período entre 1930 e 1960 - data em que a emigração aumenta consideravelmente -, poderemos constatar que a maioria esmagadora dos distritos a Norte do Tejo, assim como os distritos dos Açores e da Madeira, que têm no geral taxas muito baixas de suicídio, apresentam ao mesmo tempo taxas elevadas ou muito elevadas de emigração. Paralelamente, os distritos do Sul, nomeadamente do Alentejo, caracterizam-se, grosso modo, por uma percentagem elevadíssima de suicídios e uma emigração relativamente baixa ou quase nula, com excepção do distrito de Faro, que alia uma tradição de suicídio tão intensa como a de Beja a uma tradição de emigração estranha ao Alentejo.
53Vejamos como se apresenta, no período de 1866 a 1960, a incidência emigratória nos diferentes distritos do Continente. Joel Serrão distingue, a este respeito, quatro zonas principais: a zona norte, com o distrito do Porto como centro polarizador (mais de 15% do total), cuja atracção se alastrou sobretudo para Aveiro e Viseu (de 10,1% a 15%) e inclui, em torno deste núcleo alargado, uma cintura uniforme constituída por Braga, Vila Real, Bragança, Guarda, Coimbra (de 5,1% a 10%) e, de certa maneira, Viana do Castelo (de 1,1% a 5%); a zona central, que inclui Lisboa, Leiria, Santarém e Castelo Branco, com índices emigratórios relativamente baixos, em comparação com os do Norte (de 1,1% a 5%), mas em constante aumento; o Alentejo, com a mais baixa percentagem para o movimento global (de 0% a 1%); e o Algarve, com uma percentagem de 1,1% a 5%, igual à de Viana e à da zona central, mas muito provavelmente inferior à realidade, pois esta província expulsaria, «de acordo com uma tradição bem antiga, ainda mais naturais do que aqueles que ficaram registados»92.
54A correlação dos dois fenómenos (emigração e suicídio) leva-nos a reagrupar os distritos do país em dois grupos bem distintos: os distritos com muita emigração e relativamente pouco suicídio, em que incluiremos Porto, Aveiro, Viseu, Guarda, Vila Real, Bragança, Braga e a que poderemos acrescentar os Açores e a Madeira, e os distritos com muito suicídio e pouquíssima emigração, em que se incluem Beja, Évora e Portalegre. Com excepção do distrito de Faro e, de certa maneira, do de Santarém, que situaremos numa categoria intermédia, os restantes apresentam um perfil demasiado instável para poderem ser reagrupados numa categoria bem determinada.
55Assim, a emigração é particularmente importante nas regiões onde as condições de sociabilidade tenderiam a favorecer uma dinâmica de integração que, em alguns casos, facilita o homícidio, mas parece proteger também, de forma mais eficaz, contra os riscos de suicídio. Para além do aspecto, acaso restrito, das saídas por razões ligadas à indivisão do património, a emigração acaba, aliás, por ser quase sempre um factor de reintegração na comunidade de origem pela maneira como os emigrantes reinvestem nela as poupanças adquiridas no estrangeiro através da construção de casas ou da compra de terras. Enquanto o suicídio, como sintoma de falência integradora, traduz a impossibilidade de se assumir positivamente na sua individuação, a emigração representa, numa sociedade estruturada em torno dos seus territórios de pertença, um compromisso eficaz entre um desejo de mobilidade e de autonomia individual e a fidelidade à comunidade de origem. É uma forma de partir, ficando, ou de ficar, partindo, já que o emigrante se caracteriza tanto pelo facto de ter partido, como pelo facto de dever voltar... E. Claverie faz, a propósito dos camponeses do Haut-Gévaudan que no século XIX emigravam para a cidade, uma observação que podemos aplicar à sociedade rural portuguesa: «Aquilo que os emigrantes deixam atrás de si com satisfação são tanto as miseráveis condições económicas de existência como a vida aldeã de interconhecimento e as tiranias familiares.»93 Se o homicídio constitui a resposta a uma exigência de integração e a espacialização individualizante numa sociedade de interconhecimento, a emigração apresenta--se como uma ocasião de abertura e individualização sem ruptura irrremediável com a comunidade de origem94.
56É claro que toda a análise que pretenda debruçar-se sobre o fenómeno migratório não deve voltar-se só para a sociedade de origem, mas também para os efeitos de integração ou de anomia resultantes da adaptação a uma nova sociedade: só deste modo a hipótese da emigração como laço identificador assume o seu pleno significado95.
57Numa sociedade tecida por laços de intensa proximidade, a violência vingadora impede que tal proximidade se dissolva num magma indiferenciado. Ao instaurar a possibilidade do afrontamento, a violência vingadora abre uma área de afirmação pessoal e consolida a organização hierárquica da sociedade. Graças às regras que a circunscrevem, a violência protege a sociedade contra a sua própria desagregação: separa para melhor aproximar.
Notes de bas de page
1 Ver, a este propósito, P. Bourdieu, op. cit., pp. 33 e sgs., e R. Jamous, op. cit., pp. 29 e sgs.
2 Cf. J. A. Pitt-Rivers, Los Hombres de la Sierra, Barcelona, Grijalbo, 1971, p. 257; C. Lisón Tolosana, Antropología Cultural de Galicia, Madrid, Akal, 1983, pp. 55 e sgs; M. Espírito Santo, op. cit., pp. 108-109.
3 M. Lamas, As Mulheres do Meu País, Lisboa, Actualis, 1948, p. 46. Esta cerimónia é igualmente referida, com ligeiras variações, por Leite de Vasconcelos, em Tradições Populares de Portugal, Porto, Livraria Portuense de Claval & C.a Editores, 1882, p. 223; F. Braga Barreiros, «Tradições populares de Barroso», Revista Lusitana, vol. XIX, n.° 1-4, 1916, pp. 84-85, etc.
4 A. Lourenço Fontes, op. cit., p. 5.
5 L. Chaves, O Amor Português, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1922, p. 86, e «A Grei Portuguesa», Revista Lusitana, vol. XXVIII, n.° 1-4, 1930, pp. 76-77.
6 J. de Pina Cabral, «Comentários críticos sobre a casa e a família no Alto Minho rural», Análise Social, vol. XX (81-82), 1984-2.°-3.°, p. 264, e B. Juan O’Neill, op. cit., p. 40.
7 J. Dias, Rio de Onor, p. 548. Sobre a forma como a terra condiciona o tipo de família rural (extensa ou nuclear), ver, deste autor, «Algumas considerações acerca da estrutura social do povo português (1954), in Estudos Etnológicos, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1961, pp. 122-143; C. Callier-Boisvert, «Remarques sur le système de parenté au Portugal», L’Homme, tomo VIII, n.° 2, Abril-Junho de 1968, pp. 95-96; e R. Rowland, «Sistemas familiares e padrões demográficos em Portugal: questões para uma investigação comparada», Ler História, n.° 3, 1984, pp. 13-32.
8 E. Claverie e P. Lamaison, L’Impossible Mariage, Paris, Hachette, 1982, p. 197, e C. Lisón Tolosana, op. cit., p. 21. R. Jamous, criticando uma vez mais Bourdieu, observa que a natureza da honra «não é dissimular a lei do interesse, mas afirmar o primado da terra como valor social sobre a terra como bem económico equivalente a outros bens (op. cit., pp. 140-142).
9 M. Pinto, «Da água de rega à água ritual (apontamentos sobre o caso da freguesia de Sobrado-Valongo)», Studium Generale. Estudos Contemporâneos, n.° 5, 1983, pp 136 e sgs.
10 M. Lamas, op. cit., p. 176. A propósito do simbolismo da água e, nomeadamente, das relações entre ela e a mulher - unidas por idêntica função fecundante -, recorde-se que, em Moimenta (Vinhais), o açude de onde provêm as águas públicas, ditas «águas do povo», tem o nome de madre. Cf. Firmino A. Martins, Folclore do Concelho de Vinhais, 2.° volume, Lisboa, Imprensa Nacional, 1938, p. 444.
11 J. Dias, Rio de Onor, p. 175; A. Ribeiro, Aldeia. Terra, Gente e Bichos, Lisboa, Livraria Bertrand, 1946, p. 208; e P. Descamps, op. cit., p. 75.
12 A. Sampaio, Estudos Históricos e Económicos, I. As Vilas do Norte de Portugal (1923), Lisboa, Editorial Vega, 1979, pp. 31-32, e F. J. Veloso, art. cit., p. 255.
13 Além do artigo referido, trata-se de «As mulheres, a maternidade e a posse da terra no Alto Minho», Análise Social, vol. XX (80), 1984-1.°, pp. 97-112. As informações foram indistintamente recolhidas nestes dois artigos e, para não sobrecarregar o texto, eliminaram-se, salvo indicação em contrário, as referências às páginas citadas.
14 M. Lamas, op. cit., pp. 40 e 18.
15 J. Cutileiro, op. cit., p. 126.
16 Cf. M. de Lurdes Lima dos Santos, «Contribuição para uma análise sociográfica da família em Portugal», Análise Social, vol. VIII, n.° 29, 1970, pp. 41-95.
17 Trata-se de um caso característico, o que não quer dizer exclusivo, das duas freguesias minhotas que, por exemplo, não se verifica em Fontelas onde a mãe solteira goza de um estatuto idêntico.
18 M. Espírito Santo, op. cit., p. 47.
19 F. Tricaud, op. cit., p. 61.
20 Sobre estas diferentes estratégias e a forma como contribuem para prevenir e deslocar as tensões, a monografia de Brian J. O’Neill é um contributo decisivo.
21 J. Cutileiro, op. cit., pp. 188 e sgs. Até indicação em contrário, as citações deste livro referem-se aproximadamente à parte compreendida entre as páginas 188 e 194.
22 Sobre o desterro como uma das formas principais de justiça intrafamiliar, ver F. Tricaud, op. cit., pp. 4-8 e 59-61. O desterro é igualmente uma das penas previstas pelo nosso Código Penal (art..° 404) em caso de homicídio por adultério praticado por um dos cônjuges ultrajados, embora as circunstâncias atenuantes não sejam exactamente as mesmas para o marido ou para a esposa homicida. Agradecemos à Dra. Teresa Beleza o facto de no-lo ter assinalado.
23 Cf. Bernardo Santareno, O Pecado de João Agonia, Porto, Divulgação, 1961.
24 M. Espírito Santo, A Religião Popular Portuguesa, Lisboa, A Regra do Jogo, 1984, p. 171; J. de Pina Cabral, «As mulheres...», op. cit., p. 108, e J. Cutileiro, op. cit., pp. 128-129.
25 F. Braga Barreiros, art. cit., p. 105.
26 J. Leite de Vaconcelos, Etnografia Portuguesa, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 501.
27 A. Blok, «Carneiros e cabrões - Uma oposição chave para o Código Mediterrânico de Honra», Studium Generale. Estudos Contemporâneos, 1981, n.º 2-3, pp. 11-18. Segundo este código, trata-se de bode, por oposição a carneiro, e não de boi, mas não nos parece que isto altere fundamentalmente o significado da tradição. Ainda a propósito das relações da honra com a pessoa física, os provérbios que associam a barba à honra são frequentes na nosso etnografia. Cf. J. Maria Adrião, «Retalhos de um adagiário», Revista Lusitana, vol. XIX, n.° 1-4, 1916, pp. 59-62, e J. Leite de Vasconcelos, A Barba em Portugal. Estudo de Etnografia Comparativa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1925, pp. 95-103.
28 J. Gil, op. cit., p. 126.
29 C. Callier, «Soajo, une communauté rurale de l’Alto Minho», Bulletin des Études Portugaises, XXVII, 1966, pp. 262, 268-269 e 277.
30 Sobre a mulher minhota, escrevia, há muito tempo, Alberto Pimentel num tom de optimismo que Paul Descamps não parece partilhar: «A vida do minhoto não está sujeita aos frequentes conflitos que, noutras terras mais cultas, têm por base a honra da mulher (...) Ordinariamente, as raparigas casam já ‘namoradas’ por outro; o noivo não o ignora, nem vê nessa falha de virgindade nenhuma ofensa aos seus brios de marido, nem à sua dignidade de homem (...) O adultério também raras vezes inferna a vida do minhoto no lar conjugal.» Cf. Alberto Pimentel, As Alegres Canções do Norte, 2.a ed., Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1907, pp. 14 e sgs.
31 M. Simões Trincão, op. cit., pp. 38-39. É importante recordar, tendo em conta o período de 1964 a 1966, que o adultério da mulher, precedido das sevícias e injúrias graves, se encontra em terceiro lugar nas causas de divórcio ou separação no nosso país. Cf. M. de Lurdes Lima dos Santos, art. cit., p. 83.
32 Cf. A. César Pires de Lima, «Maridos cucos (subsídios para um estudo sobre o estado de adultério nas tradições populares)», Portucale (nova série), vol. I, 1946, pp. 27-34, e «O adultério na literatura popular», Estudos Etnográficos, Filológicos e Históricos, vol. IV, Porto, Junta de Província do Douro Litoral, 1949, pp. 67-74. O autor observa que, nos contos populares em que aparecem maridos atraiçoados, os padres figuram por vezes como sedutores - pormenor que, em Aquilino, constitui um verdadeiro leitmotiv.
33 E. Veiga de Oliveira, «Formas fundamentais da vindicta popular em Portugal», op. cit., pp. 340-345, e A. Pinto Almeida, «Pandeiradas», in Pedro Vitorino – In Memoriam, Porto, Junta de Província do Douro Litoral, 1945, pp. 175-178.
34 A. César Pires de Lima, «Maridos cucos», p. 30, e M. Espírito Santo, A Religião Popular, p. 74. Sobre a festa ou dia do cuco, ver J. Leite de Vasconcelos, Tradições Populares de Portugal, Porto, Liv. Portuense de Chavel, 1882, pp. 147-148; A. Cortes-Rodrigues, «Açores», in Arte Popular em Portugal, Ilhas Adjacentes e Ultramar, vol I, Lisboa, Editorial Verbo, 1968, pp. 120-122, e E. Veiga de Oliveira, op. cit., p. 356 (Fafe).
35 Cf. N. Belmont, «Fonction de la dérison et symbolisme du bruit dans le charivari», in J. Le Goff e J. Cl. Schmitt, Le Charivari, Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, Haia, Nova Iorque, 1981, pp. 15-21. Estas práticas apresentam um inegável parentesco com o charivari em França.
36 Padre Firmino A. Martins, Alguns Apontamentos Etnográficos e Folclóricos sobre o Casamento na Região Vinhaense, Bragança, Escola Tipográfica, s.d., p. 13, e F. Braga Barreiros, art. cit., p. 87, sobre o casamento da rapariga não-virgem ou viúva em Cortiços (Barroso).
37 J. Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, vol. IV, pp. 550-551.
38 J. Cutileiro, prefácio a J. G. Peristiany, op. cit., p. X.
39 M. Lamas, op. cit., pp. 167 e 65.
40 F. Tricaud, op. cit. pp. 5 e 60-61. Uma análise comparativa entre a violência familiar e o incesto talvez permitisse desvendar laços muito sugestivos. Ver, por exemplo, P. Scherrer, «L’inceste dans la famille», Nouvelle Revue d’Ethnopsychiatrie, n.° 3, 1985, pp. 21-34
41 Feira da Ladra n.° 5, 1930. Foi este crime que inspirou o texto de Camilo, recentemente reeditado, «Maria! Não me mates que sou tua mãe!».
42 Cf. L. de Pina, «Elementos para a psicologia criminal. O conceito de justiça nos delinquentes», Actas do Congresso do Mundo Português, vol. XVIII, Lisboa, 1940, pp. 593-604. Para além do seu lado pitoresco, este estudo confirma a atitude paradoxal da sociedade camponesa perante a violência de sangue. Enquanto a maioria dos reclusos consideram o homicídio, e nomeadamente o parricídio e o infanticídio, como um dos crimes mais graves, 55% de entre eles não hesitam em «absolver» o autor de um crime «passional»; três vão mesmo ao ponto de lhe atribuir um prémio...
43 J. Furstenberg Riegelhaupt, art. cit., p. 512.
44 M. Simões Trincão, op. cit., p. 51.
45 P. Descamps, op. cit., p. 247.
46 L. da Silva Ribeiro, art. cit., p. 273, e C. Callier, art. cit., p. 271. Ver também, neste último artigo, a atitude da povoação para com as «amigadas», mais severas quando estas são casadas do que quando são solteiras.
47 J. Leite de Vasconcelos, Tradições Populares, p. 212.
48 Também o Código Penal condena a uma pena mais ligeira o infanticídio cometido pela mãe ou pelos avós maternos com o fim de «ocultar a desonra».
49 L. de Carvalho e Oliveira, op. cit., pp. 97-99.
50 M. Rosa de Almeida, op. cit., p. 16.
51 J. Dias, «Problemas de métodos em estudos de comunidade» (1957), op.cit., pp. 39 e sgs. Sobre a aldeia como comunidade e a aldeia comunitária, «organizada segundo uma disciplina tradicional rigorosa», ver, do mesmo autor, o artigo «Comunitarismo», Dicionário de História de Portugal (direcção de Joel Serrão), Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1971.
52 M. Weber «À l’origine, le voisinage», in P. Rimbaud, Sociologie Rurale, Paris/Haia, Mouton, 1976, pp. 143-146.
53 Pelo seu sentido genérico, o termo «comunidade» parece mais adequado do que o de freguesia, impropriamente generalizado ao conjunto do país, enquanto unidade social de base, na versão original do nosso trabalho. Agradecemos ao Dr. Joaquim Pais de Brito as suas observações a este respeito.
54 Cit. in H. Mendras, op. cit., pp. 166-167. Ver também J. A. Pitt-Rivers, Los Hombres de la Sierra, pp. 19-44.
55 J. de Carvalho, op. cit., p. 18.
56 M. Espírito Santo. «Comunidade...», pp. 62-63 e 67, e A Religião Popular, pp. 116-117, sobre a maneira como os conflitos entre aldeias dominadas e aldeias dominantes se perpetuam através das histórias de santos teimosos.
57 M. Pinto, «Relações de vizinhança...», op. cit., pp. 14-20.
58 M. Lages, «O casamento exolocal numa aldeia da Beira Alta», Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 1983-3.°, 4.°, 5.°, pp. 645-665.
59 Padre Firmino A. Martins, op. cit., e F. Braga Barreiros, art. cit., p. 87.
60 C. Castelo Branco, Noites de Lamego (1863), 2.ª ed., Lisboa, Livraria António Maria Pereira, 1873, pp. 165-180.
61 Cit. in J. P. da Costa Leite e A. A. Fernandes de Castro, op. cit., p. 10. A propósito das rivalidades ancestrais entre estas duas freguesias, ver o relato de uma rixa particularmente sangrenta n’O Século de 27/10/1910.
62 Padre Franscisco Manuel Alves, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, tomo I, Porto, Tip. Emp. Guedes, 1910, pp. 219-231.
63 F. Braga Barreiros, «Tradições populares de Barroso (concelho de Montalegre)», Revista Lusitana, vol. XVIII, n.° 3-4, 1915, pp. 224-225.
64 P. Descamps, op.cit., pp. 40-41 e 53. O autor cita diferentes conluios entre grandes proprietários e administrações concelhias, nomeadamente a propósito dos baldios. Sobre o caciquismo em Portugal, J. Manuel Sobral e P. Ginestal Tavares de Almeida, «Caciquismo e poder político. Reflexões em torno das eleições de 1901», Análise Social, vol. XVIII (72-73-74), 1982-3.°, 4.°, 5.°, pp. 649-671.
65 J. Lourenço Roque, art. cit., p. 145 (nota). Sobre a recrudescência do banditismo ligada à destruição dos mecanismos que asseguram tradicionalmente a regulação da vendetta, cf. J. Gil, op. cit., pp. 62 e 130.
66 O. Ribeiro, «Notas de Leite de Vasconcelos acerca da vida comunitária em Portugal», In Memoriam António Jorge Dias, tomo II, Lisboa, Instituto de Alta Cultura/Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1974, p. 388, e o artigo «Baldios» do Dicionário de História de Portugal.
67 L. da Silva Ribeiro, art. cit., pp. 292-295, e Baldios, Derrubamentos e Derrubadores. Apelação crime, Angra do Heroísmo, Tip. Moderna, 1912. Sobre os conflitos em torno dos baldios, ver B. Juan O’Neill, op. cit., pp. 76-77.
68 J. Lopes Dias, Etnografia da Beira, vol. III (1929), 2.a ed., Lisboa, 1955, pp. 209-221, e A. A. Mendes Correia. L’Etude du Criminel, p. 7.
69 J. Dias, Vilarinho da Furna, p. 295.
70 Na sua monografia sobre Reguengo do Fetal, M. Espírito Santo cita certas «pessoas ou grupos de indivíduos desprovidos de sentimentos de honra e vergonha, a quem tudo é permitido e pelos quais, em contrapartida, não deve haver nenhum respeito: são as prostitutas, os ciganos, os ‘selvagens’, os loucos, os antigos presos, etc. Outros são considerados como possuindo esses sentimentos muito atenuados: os comerciantes, os ricos, os emigrantes» (Ibidem, p. 109). É pena que o autor não tenha podido determinar, de maneira precisa, o que reúne e separa, em relação à honra e à vergonha, figuras tão heterogéneas.
71 L. Dumont, Homo Hierarchicus, Paris, Gallimard, 1979, p. 23.
72 J. K. Campbell, «A honra e o diabo», in J. G. Peristiany, op. cit., p. 121, e P. Bourdieu, op. cit., p. 42.
73 J. P. Dupuy, «Randonnées Camavalesques», Temps Libre, n.° 1, p. 28.
74 J. Cutileiro, prefácio a J. G. Peristiany, op. cit., p. XIII.
75 F. Tricaud, op. cit., p. 5.
76 No entanto, a percentagem habitualmente elevada de homicídios no distrito de Beja continua por esclarecer. Será que, aqui, a falta de terra leva a um investimento maior dos valores ligados à mulher, com as consequentes incidências no plano da criminalidade sangrenta? Mas, então, que dizer do distrito de Évora? A presença de uma forte comunidade cigana naquele distrito, com os seus valores de honra, terá alguma influência nessa percentagem?
77 O. Martins, «O duelo» (1887), Dispersos, tomo II, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1924, p. 137.
78 Cf. B. Juan O’Neill, op. cit., p. 374, e P. Goldey, «Migração e relações de produção: a terra e o trabalho numa aldeia do Minho: 1876-1976», Análise Social, vol. XIX (77-78-79), 1983-3.°, 4.°, 5.°, pp. 999-1000. Este aspecto tem sido pouco estudado pelos nossos especialistas da emigração.
79 J.-C. Chesnais, op. cit., pp. 222-226.
80 Cf. Estatística Judiciária de 1948, Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, Quadro III, p. XIV, 1949,
81 J. Serrão, A Emigração Portuguesa,. 3.a ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1977, pp. 31 e 39, e J. Evangelista, Um Século de População Portuguesa (1864-1960), Centro de Estudos Demográficos, Lisboa, 1971, p. 114.
82 E. Freitas, O Suicídio em Portugal no Século xx: Elementos Empíricos para uma Pesquisa, Lisboa, Centro de Estudos Demográficos/Instituto Nacional de Estatística, 1981, pol., p. 136, que é, até hoje, o único estudo com carácter sistemático sobre o suicídio em Portugal. O enforcamento foi, durante muito tempo, o modo de execução do suicídio mais frequente entre nós.
83 Ib., p. 149, e M. Rosa de Almeida, op. cit., p. 22.
84 E. Freitas, op. cit., pp. 27 e segs.
85 Ib., p. 36.
86 Cf. Quadro 3 (taxas de homicídio por 100.000 habitantes segundo os distritos) e Quadro II (taxas de suicídio por 100.000 habitantes segundo os distritos), in E. Freitas, art. cit., p. 142, e op. cit., p. 31. O autor não publica as taxas de suicídio correspondentes à década de 1950-59. Relativamente ao homicídio, a primeira década considerada é 1930-39, não 1931-39, como acontece em relação ao suicídio. Recorde-se que o estudo de Eduardo Freitas diz respeito à mortalidade por homícidio, ou seja, às vítimas, o que explica, sem dúvida, as pequenas discordâncias a nível quantitativo que podem ser constatadas relativamente aos números citados nos capítulos precedentes, que dizem respeito a condenados por homicídio. Na medida em que o artigo de Eduardo Freitas, que temos vindo a citar, abrange o período até 1982, é importante assinalar que só a partir de 1964 passa a ser conhecido entre nós o número de mortes causadas por crime de viação.
87 Consideraram-se, para efeitos deste trabalho, como distritos de muito homicídio ou de muito suicídio, aqueles cujas taxas são, pelo menos, iguais ou superiores às taxas gerais de Portugal. Estas foram, respectivamente, de 2,5 e 1,8 para as décadas de 1931-39 e de 1940-49, no que respeita ao homicídio, e de 10,9 e 9,8, no que respeita ao suicídio; logicamente, consideraram-se como distritos de pouco homicídio ou de pouco suicídio aqueles cujas taxas foram inferiores às taxas gerais de Portugal. Em geral, as oscilações entre distritos com muito ou pouco suicídio são acentuadamente mais fortes do que no caso do homicídio.
88 E. Freitas, op. cit., pp. 15-23.
89 Segundo Eduardo Freitas, o suicídio em função do estado civil só é possível de avaliar a partir de 1955.
90 Cf. E. Durkheim, Le Suicide, Paris, PUF, 1973, pp. 406-408.
91 Não pode descurar-se, como recorda E. Freitas, o papel da Igreja, particularmente activo no Norte de Portugal, na fraca percentagem de suicídios verificados nesta zona.
92 Trata-se de emigração legal. Cf. J. Serrão, op. cit., pp. 137-139, e J. Carvalho Arroteia, A Emigração Portuguesa - Suas Origens e Distribuição, Lisboa, ICALP, col. Biblioteca Breve, 1983, pp. 74 e segs. Este autor mostra-nos, através de uma análise da incidência emigratória por concelhos, a importância desta variável na distribuição geográfica da emigração. Note-se que, no quadro elaborado por Joel Serrão, não figura o distrito de Setúbal, criado em 1927.
93 E. Claverie, «L’honneur: une société de défis au xixe siècle», Annales, n.° 4, 1979, p. 758. Sobre o crime como ruptura de imobilidade, ver o romance de M. Duras, La Vie Tranquille (1944; 1972), Folio, 1984, pp. 151-152.
94 Se a loucura enquanto «excesso de subjectividade» aparece ligada com frequência na sociedade rural à falta de mobilidade social («os campos têm apenas para oferecer papéis pouco numerosos e rígidos porque cristalizados pela tradição»), não deixaria de ser interessante compará-la com o suicídio e a emigração. Cf. R. Bastide, Sociologie des Maladies Mentales, Paris, Flammarion, 1965, pp. 145-147.
95 Numa análise deste tipo, há que atender igualmente às correntes migratórias internas, em particular às que vão do campo para a cidade. Delas se falará sumariamente no capítulo sobre a vadiagem.
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