Capítulo I. A proximidade e o conflito
p. 47-84
Texte intégral
1Na primeira década do século XX, Mendes Correia traçava da sociedade portuguesa, nas suas relações quotidianas com a violência, uma imagem que, trinta anos depois, não perdera de todo a sua actualidade. Escrevia ele: «Uma disputa mais violenta, uma inimizade, um ressentimento pessoal, uma questão de pundonor, um ímpeto de ciúme, o mais simples debate político degeneram com frequência em agressões. A embriaguez é muitas vezes um dos principais factores destes delitos. Nos arraiais, nas romarias, nas grandes feiras, as desordens são números quase infalíveis do programa.
2Convém notar, porém, que ao lado de crimes desta natureza praticados por delinquentes fortuitos num impulso passional, por um desejo natural de vingança ou sob a acção de uma embriaguez ocasional, há crimes análogos levados a efeito por desordeiros habituais, por criaturas bulhentas e irrequietas que são useiras e vezeiras nessas façanhas. O caceteiro é um tipo tradicional em quase toda a província e famoso pelas suas proezas em festarolas rurais e em lutas eleitorais renhidas.»1
3Gesto extremo e desgarrado, onde esta violência vem desaguar, é no homicídio que melhor se revela a lógica cultural que percorre a criminalidade portuguesa. Em 1935, um estudo do Instituto de Criminologia de Coimbra chegava até a apontá-lo como «o crime por excelência do nosso país, o crime favorito da impulsividade do povo português»2. Ora, mais do que o resultado de uma reacção incontrolada, o homicídio participa do movimento pelo qual a sociedade procura salvaguardar a sua coesão, apresentando-se, em numerosíssimos casos, como o eco de um mundo interpessoal e hierárquico para cuja conservação paradoxalmente contribui.
4As estatísticas de mortalidade por homicídio na Europa, entre 1929 e 1931 (taxa por 100 mil habitantes), indicam uma taxa, para Portugal, de 2,5, claramente superior à de Espanha (0,9), mas inferior à de Itália (2,6) e da Grécia (5,6), para nos limitarmos à Europa do Sul, onde a criminalidade violenta era, nessa altura, quatro vezes superior à da Europa do Norte. Portugal parece, assim, ocupar uma posição intermédia, pelo menos em relação a essa parte do continente europeu3. A distribuição dos condenados por homicídio nos distritos do Continente (taxa por 100 mil habitantes), em quatro períodos de tempo irregulares (cf. Quadros VII e VIII), mostra que, na década imediatamente posterior, ou seja, entre 1931 e 1942, a média (2,78) é nitidamente superior à dos dois períodos precedentes (2,70, entre 1912 e 1919, e 2,24, entre 1908 e 1911), voltando a ser ultrapassada entre 1950 e 1954 (2,87)4. Também recentemente, num trabalho estatístico sobre a mortalidade por homicídio entre 1931 e 1982 (taxa por 100 mil habitantes), mas incluindo as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, se confirma um surto de homicídios nos anos de 1933-36 e 38-39, que voltará a verificar-se em 19755. No entanto, para uma apreensão mais justa do problema, é sempre útil, repita-se, confrontar o número de condenados por homicídio não só com o número de condenados por ofensas corporais, mas também com o número de condenados por crimes contra as pessoas (difamações e injúrias, etc.), que são, como sabemos, incomparavelmente superiores. Assim, em 1936, contra 6340 condenados por crimes contra as pessoas, contam-se 186 por homicídio (consumado), enquanto estes números passam, respectivamente, para 7575 e 162, em 1942, e 10 892 e 132, em 19486. Mas, para além dos números, o mais importante é tentar perceber o porquê desta «realidade perdurável», segundo a expressão do Instituto de Criminologia de Coimbra, e os imperativos que socialmente a favorecem.
Breve tipologia do homicídio
5A existência de uma série de pequenas mas elucidativas monografias7 permite traçar uma breve tipologia do homicídio, de que destacaremos três características principais.
1. O homicídio é uma prática de homens, e de homens adultos
6À excepção do infanticídio, o homicídio apresenta-se entre nós como «uma forma de comportamento violento tipicamente masculina» (MRA, p. 14), tanto no que se refere às vítimas como aos autores, embora, no que diz respeito a estes últimos, a diferença entre os sexos tenha vindo progressivamente a diminuir desde o princípio do século. «O número de mulheres condenadas, que entre 1903 e 1920 correspondeu a 1,51 por um milhão da população feminina, é de 2,90 entre 1940 e o presente» (Ib.). Quanto ao envenenamento, que a tradição aponta como uma forma feminina de homicídio (a proporção de mulheres condenadas por esse facto atingiu quase o dobro dos homens entre 1920 e 1940, por exemplo), os dois sexos passaram a equiparar-se no número de condenados a partir desta data ou, pelo menos, nos 18 anos em que existem dados relativamente ao período de 1940-1966.
7Tal como acontece com os autores de homicídio, as vítimas são predominantemente homens adultos. A nível estatístico, «o típico homicida português parece ser assim um homem não particularmente jovem que mata outro homem sensivelmente dentro da mesma classe de idade» (Ib., p. 16). Nos casos de homicídio observados por Silva Maldonado, contavam-se apenas 16 mulheres e 3 crianças, de 2, 3 e 4 anos de idade, entre as respectivas vítimas. O autor constata, por outro lado, que a curva da criminalidade geral por homicídio, dada pelos grupos de idade, segundo a Estatística Judiciária de 1938 a 1942 e de 1948, corresponde, com «oscilações pouco sensíveis», à criminalidade global dos condenados por crimes contra as pessoas. «Sobe dos 16 aos 22 anos, culmina entre os 22 e os 40 anos, desce progressivamente até aos 60 anos, e decai na vertical depois dessa idade» (p. 24). Segundo uma distribuição por grupos etários, 42,7% dos condenados por homicídio tinham, no momento em que praticaram o crime, uma idade compreendida entre os 22 e os 30 anos, 26,2%, entre os 31 e os 40, e 13,9%, entre os 19 e os 21.
8Sobre o estado civil dos homicidas, no momento em que praticaram o crime, o estudo de Silva Maldonado regista 98 casados (52,4%), 83 solteiros (44,3%) 5 viúvos (2,6%) e 1 divorciado (0,5%), embora, neste ponto, a amostra não seja representativa dos condenados por homicídio relativamente ao período de referência, isto é, entre 1935 e 1949. Com efeito, dentro deste período, só em 1940 e 1948 é que os homens casados ultrapassam os solteiros no número de condenados por homicídio voluntário, tendo os segundos ultrapassado os primeiros nos restantes anos, assim como entre 1950 e 1955. No estudo de Simões Trincão (497 homicidas, dos quais 7 estrangeiros), contam-se 50,7% de solteiros, 44,26% de casados, 3,82% de viúvos e 1% de divorciados. Simões dos Reis, ao debruçar-se sobre a «influência moralizadora e inibitória» do casamento, explica a percentagem elevada de crimes contra as pessoas praticados por homens casados (cerca de 50% em relação à criminalidade geral, segundo ele), «pelo hábito da mulher do campo dirimir as suas questões com impropérios e injúrias que levam muitas vezes o homem, em sua defesa, a questões violentas e até ao próprio delito». Entretanto, o facto de ser casado é evocado pelos mesmos protagonistas para pôr termo a uma desavença8. Não é raro ouvir-se um homem dizer no auge de uma contenda: «se não tivesse mulher e filhos...».
2. O homicida é geralmente um homem sem passado criminal
9Dos 187 reclusos observados por Silva Maldonado, 149 eram «delinquentes primários» (79,7%), o que significa que não tinham conhecido até então qualquer condenação ou pronúncia, com excepção de 5, julgados e absolvidos por ofensas corporais voluntárias, e 2, condenados em multa por simples transgressões. Quanto aos restantes, 22 apresentavam no seu passado um «comportamento criminal polítropo» (11,7%) e 16, uma «criminalidade homótropa de violência contra as pessoas» (8,5%) (MASM, pp. 6-7). Com a maioria substancial de «delinquentes primários» e um número de recidivistas com um passado de crimes violentos contra as pessoas, trata-se de uma amostra que «reflecte, sem deformação sensível, a panorâmica que as estatísticas judiciárias mostram sobre os condenados por homicídio, segundo as condenações anteriores sofridas» (Ib., p. 18). Também no passado criminal dos 114 recidivistas (sobre um total de 497 homicidas) estudados por Simões Trincão, as ofensas corporais dominam de forma esmagadora (83,16%), seguidas do furto. Anos antes, escrevia ele a propósito de outro grupo de homicidas: «Na maioria dos indivíduos estudados não havia estigmas denotando a existência de factores criminológicos latentes, capazes de a dado momento, sob a influência de causas mínimas, eclodirem e originarem uma reacção anti-social violenta. Muitos destes homicidas foram sempre considerados como indivíduos normais, tendo cometido o crime sob a influência de um ímpeto de cólera, ou de uma suposta questão de honra» (EICC, p. 61).
3. O homicídio é praticado geralmente num contexto personalizado
10Na maioria dos casos, o homicídio é praticado num contexto relacional fortemente personalizado ou, como escreve Maria Rosa de Almeida apoiando-se em estudos estrangeiros, «num contexto de relações interpessoais duradouras e íntimas» (p. 17). Este aspecto ressalta, de forma evidente, do trabalho de Silva Maldonado9.
11Sobre os 187 casos, o autor distingue 168 homicídios por conflito (89,9%) e 19 homicídios por lucro (10,1%). Só em 15 casos não foi possível apurar as relações existentes entre vítimas e autores. Quanto aos 172 homicídios restantes, apenas em 10 (5 em cada uma destas duas categorias) não havia qualquer tipo de relação ou conhecimento entre os protagonistas. Assim, relativamente aos «homicídios por conflito», 70 tinham ocorrido numa situação de conflito entre as pessoas íntimas (41,6%) e 77, entre pessoas conhecidas de ambos os protagonistas (45,8%), o que revela um grau de proximidade relacional muito intenso entre vítimas e homicidas. Mais concretamente, «os conterrâneos e conhecidos, as pessoas de família, os vizinhos, os companheiros de trabalho, os amigos íntimos, as amantes e as namoradas, os familiares de umas e de outras, os rivais de namoro e outras pessoas com relações afectivas e profissionais, directas ou indirectas, com os autores estavam representados entre as pessoas das vítimas em 167 dos 172 homicídios referidos» (MASM, p. 27).
12Apesar de a estatística dos condenados por homicídio não apresentar qualquer classificação em função das situações ou motivos que os desencadearam (só a de 1936 apresenta, como vimos, um breve quadro segundo os móbiles do crime, relativo ao conjunto da criminalidade), Silva Maldonado não hesita em considerar o homicídio por conflito como o mais representativo no plano estatístico e, acrescentamos nós, no plano antropológico. O autor define quatro grupos primários no seio dos quais se gerou o «contacto íntimo e duradouro» entre autores e vítimas, em 167 dos 172 casos de homicídio: territorial ou geográfico, por ambos os protagonistas serem naturais ou residirem no mesmo local; familiar, por pertencerem à mesma família; de coabitação ou de vizinhança, por habitarem ou viverem próximos; funcional, por serem companheiros de trabalho ou terem entre si uma relação de tipo profissional (patrão-empregado). Noutros casos, o contacto estabeleceu-se no seio de um ou mais destes grupos, que se interpenetram, e «veio a reforçar-se por laços afectivos»: amigos íntimos, amantes, namoradas e respectivos familiares, rivais, etc. (Ib., p. 28).
13Conjugados entre si, os elementos relativos à naturalidade, residência e local do crime indicam que 131 indivíduos (71,1%) cometeram o homicídio no local de residência que, por sua vez, era o mesmo em que tinham nascido, e 35 (17,8%), no local de origem ou no de residência. A maioria dos homicidas não apresentava, portanto, «mudanças geográficas de localização, de habitação e de actividade durante a sua vida, o que indica, escreve Maldonado, uma acentuada falta de mobilidade». No plano profissional, por exemplo, 62,5% dos reclusos não tinham mudado de actividade até ao momento do crime, a qual era predominantemente de tipo agrícola ou artesanal10. Através desta personalização do crime de sangue, surge-nos em filigrana uma sociedade tecida de laços íntimos e estáveis que o homicídio revela e vem intensificar.
Geografia de sangue
14O homicídio é uma prática de homens adultos, sem passado criminal, ocorrido num contexto de forte proximidade relacional. A estes elementos tipológicos, há que acrescentar outro não menos determinante: o homicídio traça, dentro do país, uma geografia de sangue, cujos contornos mantêm, desde há muito, uma curiosa regularidade.
15A distribuição geográfica dos condenados entre 1908 e 1954 (quatro períodos irregulares), elaborada por Maria Rosa de Almeida (Quadro VII), aponta os distritos da Guarda, Bragança e Vila Real como aqueles em que a incidência máxima de condenados por homicídio oscilou de modo constante, ao longo destes quatro períodos. O Estudo do Instituto de Criminologia de Coimbra respeitante aos anos de 1927-1930, mas alargado aos dois períodos anteriores (1891-1895 e 1913-1919), confirma também o lugar preponderante que estes três distritos ocupam, juntamente como o de Viseu, no campo do homicídio. Mas tal convergência não deverá fazer-nos esquecer que, entre 1908 e 1954, as percentagens de condenados por homicídio no distrito de Beja (Quadro VIII) foram sempre superiores à média geral. Também entre 1950 e 1954, os distritos de Setúbal (criado em 1927) e de Leiria ultrapassam neste ponto todos os demais, à excepção do de Bragança. Por sua vez, os distritos de Aveiro, Coimbra, Faro, Portalegre e Porto «mantêm-se sempre ou quase sempre na classe mais baixa de condenados por homicídio» (MRA, p. 20).
16A permanência de certos focos de violência - em especial desse estranho círculo de sangue formado pelo Nordeste Transmontano e pelo Norte da Beira, para além das variações observáveis de uma época para outra ou de um distrito para outro, é um fenómeno que o trabalho exemplar de Alfredo Luís Lopes assinalava já nos finais do século xix (1891-1895), mas que a distribuição (administrativa) por distritos não permite forçosamente determinar. O Instituto de Criminologia de Coimbra cita, por exemplo, os concelhos de Vila Verde e Vieira do Minho no distrito de Braga, como sendo de «fértil produção de homicídios».
17Sem entrar para já na argumentação susceptível de explicar a permanência desta geografia de sangue, evoquemos brevemente a opinião daqueles que, inspirados pela antiga criminologia lombrosiana, vêem na gente rude da montanha uma tendência instintiva e natural para as reacções violentas11. Os exemplos de Setúbal (após 1927) e de Leiria (1908-1954), dois distritos do Litoral com percentagens de homicídios bem mais elevadas do que o de Viseu, ou o distrito de Beja, no Alentejo, bastariam para desmistificar o simplismo de tal opinião. Todavia, o colorido que o homicídio imprime nas regiões montanhosas do Nordeste Transmontano e do Norte beirão não deixa de nos surpreender. São, no extremo norte do país, as serras do Larouco, do Barroso e do Gerês; depois, a fabulosa serra do Marão, possuída pela memória de tantos salteadores; mais abaixo, as serras de Montemuro, do Caramulo e da Estrela... Como nos países de vendetta (Cabília, Córsega, Sardenha, etc.), todos eles, precisa Braudel, países de montanha, também nessas regiões serranas, em que o homicídio é frequente, a violência física parece alimentar-se de um sentido apurado da liberdade e de uma forma de viver em que as condições geográficas de isolamento têm forçosamente de interferir12. Em Trás-osMontes, por exemplo, a violência de sangue esteve constantemente associada a uma atitude ancestral de «rebeldia ao poder central» (EICC, p. 6), à tenacidade com que esta província recusou submeter-se a uma «obediência imposta de fora»13. É, pois, forçoso orientarmo-nos para uma antropologia da história e não para um hipotético instinto enraizado no cérebro do homem, se queremos compreender as razões da forma agonística de viver que transparece da análise do homicídio. Todavia, dada a dispersão e a disparidade das principais zonas de homicídio (repare-se nas diferenças que separam Beja e Leiria ou Guarda e Setúbal), só uma análise comparativa poderia desvendar os fios que eventualmente as ligam entre si e explicar a tradição de violência que lhes é comum.
18Que o homicídio seja entre nós uma prática fundamentalmente rural, parece um facto assente. No estudo de Silva Maldonado, 183 homicidas (97,8% do total) eram provenientes de zonas rurais e de pequenos agregados populacionais, especialmente situados nos distritos do Centro e do Norte do país, e apenas 4 (2,1%) tinham nascido ou vivido nas cidades de Lisboa, Porto ou Coimbra. Mas é certo que, nesta amostra, tais percentagens ficam em parte a dever-
19-se à proximidade geográfica da Cadeia Penitenciária de Coimbra, onde eram geralmente encarcerados os condenados a prisão maior originários do Norte e do Centro do país. Com base no Censo de 1960 e nos dados estatísticos sobre condenados relativos a 1962, 1964 e 1966, Maria Rosa de Almeida observa que as profissões dos condenados por homicídio são, sobretudo, “rurais” (incluindo, nesta categoria, as ligadas às pescas), mesmo em relação à população masculina da mesma faixa etária. Enfim, à luz das percentagens verificadas nos distritos correspondentes às duas maiores cidades do país (cf. Quadro VII) - ou seja, Lisboa, com taxas não muito fortes, quer em confronto com a média do país, quer em confronto com a parte não urbana do distrito, e o Porto, com taxas bastantes reduzidas -, este crime é uma prática mais rural do que urbana, à imagem da sociedade portuguesa.
QUADRO VIII. Número médio de condenados por homicídio nos distritos do Continente, por 100 000 habitantes, entre 1931 e1942
Vila Real | 8,11 | Braga | 2,57 |
Bragança | 5,35 | Castelo Branco | 2,52 |
Guarda | 4,99 | Évora | 2,33 |
Setúbal | 4,36 | Aveiro | 1,69 |
Beja | 3,95 | Coimbra | 1,65 |
Leiria | 3,15 | Portalegre | 1,56 |
Viseu | 2,98 | Faro | 1,51 |
Santarém | 2,77 | Porto | 1,31 |
Lisboa | 2,68 | Viana do Castelo | 1,27 |
Continente | 2,78 |
Uma tripla conflituosidade
20A partir das relações entre vítimas e autores do homicídio em 172 dos 187 casos observados, Silva Maldonado destaca três grupos de vítimas: um, constituído por pessoas da família dos autores (37 vítimas), a que devem acrescentar-se as pessoas ligadas, de uma forma ou de outra, ao agregado familiar, como amantes, amantes de familiares dos autores, amantes do cônjuge dos autores, namoradas e respectivos familiares, rivais de namoro, etc., perfazendo um total de 60 vítimas; outro, constituído por conterrâneos e conhecidos (57 vítimas); e um terceiro, por vizinhos (21 vítimas) (MASM, p. 13). Vemos, assim, perfilar-se uma tripla conflituosidade violenta, segundo a organização social portuguesa, que podemos classificar de intrafamiliar, em sentido lato, interfamiliar, a nível de uma freguesia, de uma aldeia ou de um bairro (cidade) e intercomunitária, entre aldeias ou freguesias. Estas duas últimas formas de conflituosidade são-nos ainda sugeridas pelas rixas generalizadas entre conterrâneos ou pessoas desconhecidas dos autores de homicídio, referidas no estudo de Silva Maldonado. Nelas se manifesta, como veremos, uma das mais poderosas expressões de vingança, enquanto afirmação de solidariedade, transmitidas até aos nossos dias. Mais do que o espaço em que se inscreve a conflituosidade violenta, a proximidade relacional, com a sua dupla face de rivalidade e de solidariedade, representa a própria matéria de que tal conflituosidade se alimenta. É o que a Estatística Judiciária de 1936, através dos dados sobre móbiles, lugares e instrumentos do crime (cf. Quadros III a V), nos indica.
21A desafronta ou vingança, a reacção contra a provocação ou injúria, o ciúme e a defesa de uma pessoa de família, as questões de terras ou de heranças, etc., que constituem alguns dos principais móbiles do crime, são exemplos de situações conflituosas, surgidas num contexto de relações altamente personalizadas e baseadas no «conhecimento total e prolongado da pessoa de outrem, no conjunto das suas posições sociais actuais e passadas, e na particularidade da sua personalidade», como escreve Henri Mendras a propósito do interconhecimento, modelo da sociabilidade camponesa14. É deste modelo, afinal, que participa a conflituosidade violenta de que temos vindo a falar, se atendermos a que os móbiles do crime, apurados na Estatística Judiciária de 1936, dizem respeito, na sua larga maioria, a crimes contra as pessoas (ofensas corporais e homicídio), à execepção da miséria ou da falta de trabalho, exclusivamente associadas ao furto.
22Os lugares do crime (o campo ou o caminho público, o mercado ou a taberna) e os instrumentos utilizados (a tranca de ferro, que serve de reforço à porta da casa, a enxada, o pau ou a navalha, companheiros inseparáveis do homem em muitas regiões) definem o quadro desta violência que brota de uma conflituosidade que quase se confunde com o quotidiano15.
23Por isso, nesta sociedade onde todos se conhecem mas onde todos se observam, onde ninguém recusa uma ajuda mas onde cada qual se apressa a divulgar a mais pequena falta do vizinho, a violência, em vez de ser neutralizada pelo olhar implacável da opinião, é por ele estimulada. Mais ainda, esta sociedade, que encoraja a violência física em nome da honra, condena, em certos casos, o roubo com a mesma veemência, em nome da vergonha16. A este propósito, Silva Maldonado pergunta-se a si mesmo se o modo como as comunidades mais restritas e com pouca mobilidade «reagem perante determinadas actuações, tolerando-as ou não as condenando tanto como a outras», não acaba por contribuir para a sua multiplicação, dando assim lugar a uma «criminalidade orientada». A reacção contraditória de tolerância perante a violência e de rejeição perante o roubo (na prática, as coisas são mais complexas, podendo levar quer a atitudes de tolerância em relação ao segundo, quer de rejeição em relação à primeira) é insistentemente referida na literatura criminologista e penal. Aquando da sua visita, em 1931, à Colónia Penal Agrícola de Sintra, o americano Artur E. Morgan exprimia a sua estranheza perante a «concepção particular da honra» do nosso camponês, que perde o «respeito» quando rouba os haveres do vizinho e não quando, porventura, o mata no decorrer de uma rixa17. Também o advogado Ary dos Santos, por ocasião de uma visita à Penitenciária de Lisboa, observava em 1938: «É interessante saber-se que, entre a própria população das cadeias (...), os reclusos condenados por homicídio ou ofensas corporais consideram-se de uma espécie muito mais respeitável e digna do que os autores de crimes contra a propriedade, a quem chamam filhos do crime. Esses, os de sangue, costumam dizer que são três as fêmeas que os atiram para a cadeia: a mulher, a terra e a partilha.»18 Repare-se na territorialidade simbólica implícita nestes termos, em torno da qual se polariza a tripla conflituosidade violenta (intrafamiliar, interfamiliar e intercomunitária), que o homicídio põe em evidência. A abolição do júri estaria, aliás, ligada a esta atitude de tolerância para com os criminosos de sangue. «O povo, escreve Mendes Correia, absolve mais facilmente os autores dos crimes contra as pessoas que não envolvam traição, má-fé ou um instinto particularmente cruel ou quesilento, do que os autores de crimes contra a propriedade.»19 Isto significa que, aos olhos da opinião pública, o homicídio não deixa de constituir um acto grave e socialmente reprovado, sobretudo quando a pessoa da vítima (parricídio, etc.), as circunstâncias do crime (crueldade, sadismo, etc.) ou o comportamento habitual do assassino (quesilento, cadastrado, etc.) o tornam particularmente odioso. Só quando se trata de um gesto ocasional (mesmo se maduramente reflectido), em que se jogam valores de honra, por exemplo, e praticado num contexto de conflito aberto ou latente - o que parece ser o caso da maioria dos homicídios entre nós, pelo menos até a uma época recente -, é que a opinião pode tolerá-lo e compreendê-lo. Confirma-o a reacção do advogado de defesa num crime ocorrido, por volta de 1934, perto de Mafra: «Não pode (...) um homem de bem, um criminoso ocasional, essencialmente bem comportado, de boa família e trabalhador que num momento impulsivo, despertado pela justa indignação de ver os seus sobrinhos anavalhados, descarrregou na vítima umas sacholadas, sofrer a violenta condenação que lhe foi imposta tal como aquela que se dá a qualquer bandido que, dotado de uma ferocidade ingénita, mata, rouba e incendeia, sem remorso e sem pavor.»20
24O que transparece da prática do homicídio é que, para o homem rural, a honra não reside apenas no conjunto de valores e interditos que ele deve ser capaz de defender, mas no comportamento violento que não deve hesitar em adoptar para poder defendê-los. Segundo Silva Maldonado, a hipótese da criminalidade orientada, no caso do homicídio, verifica-se quando as «comunidades rurais virem com bons olhos ou não condenarem abertamente um homem destemido, que não vira as costas a uma briga, que reage imediatamente à mínima provocação ou que resolve, por suas mãos, todas as questões de honra pessoal ou da família ou que recorre à autodefesa para preservar os seus interesses» (p. 23). É provável que seja, portanto, esta a origem dos «homicídios por conflito» referidos pelo autor e que podem considerar-se como protótipos do homicídio em Portugal. Apesar da ausência de estatísticas globais por causas, tudo indica que os homicídios resultantes de anomalias patológicas graves são raros, como o são, aliás, os homicídios associados à criminalidade organizada entre 1926 e 194621. A título indicativo, recorde-se que, entre os 11 homicidas (amostra de Silva Maldonado) que, ao tempo da condenação, mostravam precedentes criminais de violência contra as pessoas, só 2 foram declarados «deliquentes por tendência», por serem os únicos que, aos olhos do tribunal, revelavam «perversão» e malvadez que os fazia considerar gravemente perigosos» (MASM, p. 19).
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25O homicídio - desenlace cruel mas provisório de uma dramaturgia quotidiana - integra-se numa dinâmica cultural de violência e de risco, mais ou menos acentuada em função das regiões, que, em alguns casos, só a memória local permite reconhecer. Os gestos de desafio (corporais ou verbais), por vezes quase imperceptíveis, assim como a capacidade de lhes responder; o recurso à força física como manifestação de hombridade, sobretudo quando estão em causa questões respeitantes à sua pessoa ou à pessoa do seu grupo familiar ou aldeão; o porte generalizado de uma arma (ou de um objecto utilitário com idêntica função), «como símbolo da disposição para participar em comportamentos violentos ou na frequência de conflitos domésticos» (MRA, p. 24), etc., etc., são expressões de uma certa violência no viver, que provoca, na opinião pública, um misto de ironia e admiração. A história do Malhadinhas é, deste ponto de vista, um exemplo paradigmático22.
26Ficou famosa a cena em que, desafiado por «um varredor de feiras temível», não hesitou em «medir o pau» com ele, conseguindo ganhar a partida e arrancar-lhe, pela mesma ocasião, os botões do colete. Ora, sem o Chico Pedreiro que em miúdo lhe ensinara a jogar o pau, e a presença da Rita que o cortejava e lhe «incutia vontade de ser homem», o Malhadinhas estava persuadido que nunca teria conseguido «varrer aquela desfeita com brio»23. Podiam as bocas do mundo murmurar que a sua língua era «ruim e envenenada» e a sua faca, «afiada e leveira». Para ele, a língua servia para «endireitar o mundo que andasse torto», incitando um homem a comportar-se segundo o modelo de virilidade praticado em terras serranas. Não foi graças aos seus conselhos que o Duarte se decidiu finalmente a bater na mulher, passando «a ser rei na casa em que só havia mandona»? Quanto à faca, ele assegurava a quem quisesse ouvi-lo que «como a espada do capitão-mor de Pera e Peva (...) nunca saía da bainha sem causa nem entrava na bainha sem honra»24.
27Para além da boa dose de fanfarronice, a história do Malhadinhas é significativa da maneira como a violência, na sua dimensão brutal como o homicídio, ou na sua dimensão lúdico-ritual como o jogo do pau, se articula com os padrões estruturais que servem de alicerce à sociedade tradicional. No exemplo citado, trata-se do princípio de divisão sexual que, neste tipo de sociedade, induz um funcionamento hierárquico bastante rígido, de que as sevícias do homem sobre a mulher são uma banal mas grave caricatura. Também o alcoolismo, nas suas relações com os comportamentos violentos (homicídio, rixas, maus-
28-tratos, etc.), não pode ser encarado independentemente do papel que as tabernas, como centros de convívio e confrontação masculinos, desempenham no meio rural. A este propósito, é interessante observar que as situações de embriaguez, na amostra de Silva Maldonado, intervêm apenas em caso de homicídio por conflito, tendo interferido no desencadeamento de 17,7% de entre eles e não se observando, portanto, em nenhum dos homicídios por lucro. O homicídio não pode, portanto, dissociar-se da dinâmica cultural pela qual a sociedade, ao prevenir e regular a violência, em nome da sua integridade, acaba de certo modo por favorecê-la. Mas é na medida também em que a sociedade sabe figurar e enfrentar a violência que ela pode mais facilmente controlá-la.
29Perante o número importante de crimes contra as pessoas praticados por indivíduos dos 20 aos 30 anos, João Bacelar, que era ao tempo director da Penitenciária de Lisboa, atribuía o facto à facilidade com que os indivíduos mais novos se «decidem pela agressão violenta e pela afirmação brutal da força física», acrescentando: «A maior parte dos crimes contra as pessoas, entre nós, são resultado duma mal compreendida vaidade, que faz julgar, nessas idades, que a toda a descortesia deve corresponder uma agressão. Só a educação e os anos conseguem dominar esta ideia quixotesca, tão peculiar ao nosso temperamento, e a que temos de juntar o mau hábito do porte de arma proibida.»25 Mas onde radica este ideal de violência senão no funcionamento de uma sociedade, apelada a valorizá-la para melhor se proteger?
30Em tempos mais recuados, o homem do campo aprendia a bater-se desde a adolescência, conhecendo a experiência do risco e da força, para poder assumir, quando fosse adulto, o papel de guardião do património simbólico em que a sociedade se reflecte. Não é por acaso que os autores de homicídio são, em geral, homens adultos a quem tal tarefa compete. Mas esta aprendizagem da força fazia-se de preferência dentro de um quadro lúdico-ritual de que adiante se falará, mas que é oportuno referir desde já, tão fortes são os laços que prendem a violência sangrenta ao background cultural em que se inscreve a violência lúdico-ritual. Em Sobrado (Douro Litoral), era por ocasião de certos trabalhos agrícolas, como as segadas, malhadas ou desfolhadas - momentos privilegiados de reciprocidade colectiva -, que os adultos punham os adolescentes a «medir forças» e a combater26. No Barroso (Trás-os-Montes), eram os rapazes mais velhos que «pegavam» os mais novos, nos chamados «desafios», em que um dos adversários procurava «chegar um dedo molhado à cara do outro» ou dar-lhe um empurrão ou um pontapé, mas sem «trancar as pernas», morder, bater, etc.27. É possível que este clima de emulação, alimentado a partir das coisas mais fúteis, levasse por vezes a actos sangrentos, como no conto «O Fundibulário» do Barroso, região onde, segundo Bento da Cruz, «ser mais forte é ofender»28.
31Não há prática que exprima com tamanha vivacidade o estatuto paradoxal da violência na sociedade tradicional como o domínio do pau pelos antigos camponeses, para quem este instrumento era, ao mesmo tempo, arma de ataque e de defesa, apoio e companhia, forma de regulação e causa de morte. Quando se conhece o contexto cultural em que esta prática se expande, compreende-se que o pau apareça na Estatística Judiciária de 1936 (cf. Quadro IV) como um dos instrumentos de crime mais utilizados. Mas, neste ponto, o melhor é passar a palavra a Ernesto Veiga de Oliveira que, num dos seus mais belos textos, escreve a propósito do jogo-combate, predominante no Norte de Portugal29:
32«Nessa área, o jogo-combate relaciona-se com as estruturas tradicionais da vida e da sociedade campesina, e corresponde ao período clássico e ‘heróico’ desse tipo de vida, em que as diversas comunidades viviam fechadas nos seus valores locais próprios, os sentimentos possuíam uma violência que mal acatava entraves, e o policiamento dos costumes era pouco operante. As posições e rivalidades vicinais, produto de velhas querelas entre a gente de aldeias próximas, a partir de motivos mais ou menos graves, por vezes insignificantes - ‘mulheres, águas, cães’ -, e exacerbadas por uma sociocentrismo indiscriminado; os agravos e desavenças pessoais e familiares; os antagonismos políticos, espicaçados por um caciquismo fanático - cristalizavam em rancores que perduravam ao longo dos anos e se trasmitiam às novas gerações, e que reclamavam desforço ou vingança, a dirimir pelos próprios interessados (ou, por vezes, por ‘matadores ou caceteiros’ assoldados, que assaltavam ‘a matar’ por conta alheia) (...) O homem do campo, na sua generalidade, não possuía armas de fogo. E, nessa atmosfera de violência e perigo latente, o pau era (...) a sua arma, que quase todos aprendiam a manejar, melhor ou pior; e pode dizer-se que, por todo esse Norte, um homem não saía de casa sem levar o seu pau...30» Mais adiante, Veiga de Oliveira sublinha que, «muitas vezes, o domínio do pau era menos o resultado do que um obscuro estímulo desses sentimentos de violência, rivalidade e ódio, que se cultivavam a fim de existir uma razão para, na próxima vez, se voltar ao combate, numa plena expansção das tendências lúdicas e agressivas, pessoais ou institucionais, dessa gente»31.
33De modo idêntico, o uso da faca ou da navalha pelos camponeses ou pelos antigos fadistas de certos bairros de Lisboa possuía, além de uma função utilitária, um conteúdo simbólico ligado a uma forma peculiar de reivindicar e defender a sua honra. Ao referir-se à «primazia do pau e da navalha» sobre os demais instrumentos delituosos, Xavier da Silva, no seu célebre estudo estatístico e antropológico Os Reclusos de 1914, escreve: «A navalha, como instrumento de corte, é também um objecto indispensável à vida aldeã. O nosso trabalhador rural nem sempre pode dar-se ao luxo de possuir um talher. Substitui o garfo pela mão, a faca pela navalha. No meio citadino o crime popularizou-a, deu-lhe foros de heroísmo. É a arma predilecta do brigão, a que mais traiçoeiramente ele pode manejar, a de mais fácil sumiço aos olhos da polícia.»32
34Para terminar, podíamos perguntar-nos, como Maria Rosa de Almeida, se nos distritos com maior número de homicídios não será também mais elevado o número de condenados com uma «história criminal de violência»33. A verificar-se, esta hipótese daria mais realce à cultura de violência que marca a prática do homicídio em Portugal. Sabemos que os crimes contra as pessoas, e mais precisamente as ofensas corporais, predominam na história dos (poucos) homicidas com passado judiciário, tanto na amostra de Silva Maldonado, como na de Simões Trincão. Quanto ao estudo do Instituto de Criminologia de Coimbra para o período que vai de 1903 a 1930, note-se que, na maioria dos casos, o paralelismo entre as ofensas corporais e o homicídio é inegável do ponto de vista estatístico, apesar de conhecerem movimentos «independentes» e de a evolução em relação ao primeiro deles ser «muito mais regular». Além do facto de os móbiles e as circunstâncias em que ocorreram os dois tipos de crime serem «em grande parte comuns», verifica-se, por exemplo, que o distrito então «mais agravado pelo homicídio» (Vila Real) suporta também «a maior carga de ofensas corporais». De qualquer modo, os distritos com maior número de ofensas corporais (mas todos fornecem, diz o estudo, «um extraordinário contingente») são também os que apresentam um número mais elevado de homicídios (EICC, pp. 11-28). Considera-se, portanto, como altamente provável a hipótese indicada.
*
35Chegados ao termo desta análise tipológica do homicídio e descrito o contexto interpessoal em que geralmente é praticado, continuam por esclarecer as razões inadiáveis que, em certos casos, levam um homem a matar. Se não quisermos ficar-nos pelo determinismo biológico da antiga criminologia, ou substituir-lhe um determinismo cultural não menos contestável, há que avançar na interpretação das situações sociais mais frequentemente ligadas ao homicídio e da forma como se organizam as relações interpessoais dentro dos «territórios» - a casa, a terra, a comunidade -, em torno dos quais se polariza a conflituosidade sangrenta que a análise precedente nos revelou.
36Ilegítimo no plano dos princípios, matar constitui por vezes um imperativo a que nenhum homem pode esquivar-se, sem perder a sua reputação. Como diz o provérbio, «homem honrado, antes morto que injuriado»34, o que o mesmo é dizer, morto fisicamente, para não viver como morto junto dos outros.
37O homicídio revela-nos uma sociedade interdependente onde o conflito desempenha um papel importante nas relações sociais. Enquanto desfecho sangrento de uma situação conflituosa, o homicídio ocuparia um lugar paradoxal enquanto ameaça à coesão social e gesto que, em determinadas circunstâncias, visaria protegê-la.
Notes de bas de page
1 A. A. Mendes Correia, Os Criminosos Portugueses, p. 19.
2 J. P. da Costa Leite e A. A. Fernandes de Castro, Estudos do Instituto de Criminologia de Coimbra. I. Homicídio, Coimbra, Tipografia da Atlântida, 1935, pp. 11-12.
3 J.-C. Chesnais, Histoire de la Violence, Paris, Poche-Pluriel, 1982, pp. 56-57. Ver igualmente M. Rosa de Almeida, Alguns Dados Estatísticos sobre o Homicídio em Portugal, separata das Actas do Colóquio sobre o Centenário da Abolição da Pena de Morte em Portugal, Coimbra, 1967, pp. 12-14.
4 M. Rosa de Almeida, op. cit., pp. 18-19. A distribuição dos condenados por homicídio em quatro períodos irregulares deve-se, segundo esta autora, à descontinuidade dos dados disponíveis. A subida no número de condenados em 1928, e especialmente em 1929, explicar-se-ia pela aceleração dos processos conseguida com a supressão do júri. A baixa não continuada na curva dos homicídios, que se verifica em 1936, corresponderia à fase de adaptação ao novo sistema de notação estatística adoptado em 1935.
5 Cf. E. de Freitas, «Contributos para o estudo das mortes violentas em Portugal», Revista do Centro de Estudos Demográficos, n.° 23, 1983-84, pp. 133-141.
6 Cf. Estatística Judiciária de 1948, p. XIV.
7 Além dos Estudos do Instituto de Criminologia de Coimbra (EICC), para o período de 1927-1930 e relativo a todas as formas de homicídio, com excepção do envenenamento que pouco pesa no geral, e de Maria Rosa de Almeida (MRA) sobre todas as formas de homicídio voluntário entre 1903 e 1966, incluindo as qualificadas como o parricídio e o envenenamento, mas com excepção do infanticídio, trata-se dos trabalhos de M. A. da Silva Maldonado, Estudo sobre Alguns Aspectos Sociocriminológicos de um Grupo de Homicidas, separata do Boletim da Administração Penitenciária e dos Institutos de Criminologia, 1969 (MASM), sobre um grupo de 187 homicidas encarcerados na Cadeia Penitenciária de Coimbra entre 1935 e 1949, e de M. Simões Trincão, Os Homicidas, Coimbra, Livraria Académica, 1943 (MST), sobre 497 homicidas encarcerados na mesma cadeia. Consultaram-se ainda diversas minutas de recurso e um conjunto de cadernetas de presos depositadas no Instituto de Criminologia de Coimbra. Para não sobrecarregarmos o texto, as referências a estes diferentes trabalhos figurarão, sob a forma de abreviaturas, no interior do capítulo,.
8 M. Simões dos Reis, A Vadiagem e a Mendicidade em Portugal, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1940, pp. 230-231.
9 Resta saber como é que um contexto de proximidade análogo conduz, em situações socioculturais tão diferentes como a de Portugal dos anos 40 e a da Dinamarca dos anos 50, a resultados idênticos.
10 A ausência de mobilidade social nos homicidas contrasta com a «instabilidade ocupacional» dos autores de furto, segundo outro estudo realizado por Silva Maldonado na mesma cadeia. Por outro lado, enquanto a recidiva é fraca nos crimes contra as pessoas, e principalmente no homicídio, ela seria importante nos crimes contra a propriedade (cf. MASM, pp. 22 e 31, nota 10).
11 Sobre a orientação geográfica da antiga criminologia (Lombroso, Guerry, Quételet, etc.), tendente a estudar «a constância e a regularidade do facto criminoso», cf. M. Perrot artigo citado, p. 77 e EICC, pp. 4-5.
12 Cf. F. Braudel, La Méditerranée et le Monde Méditerranéen à l'Époque de Philippe II, 2.ª ed., tomo I, Paris, Armand Colin, 1966, pp. 34 e segs. (Trad. port., O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1983).
13 M. Torga, Portugal, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1957, p. 29.
14 H. Mendras, Sociétés Paysannes, Paris, Armand Colin, 1976, p. 75.
15 Os lugares mais frequentemente citados em relação aos casos de homicídio foram o povoado ou a rua de cidade; o campo, a propriedade ou a quinta; a estrada ou caminho público; a taberna ou a casa.
16 O termo «roubo» utiliza-se aqui no sentido comum e não jurídico. Veremos mais adiante as distorções a que, na prática, estes dois princípios, de sinal contrário, estão submetidos.
17 A. E. Morgan. «Uma prisão moderna em Portugal», Boletim do Instituto de Criminologia, vol. xvi, 1.° semestre de 1932, p. 43.
18 A. dos Santos, Como Nascem, como Vivem e como Morrem os Criminosos, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1938, p. 97. O sublinhado é nosso.
19 A. A. Mendes Correia, L’Étude du Criminel en Portugal, Porto, Imprensa Portuguesa, 1932, p. 10.
20 Mais uma vez o crime da Roussada (minuta de recurso), Mafra, 1934.
21 Como exemplo de ligação com outras formas de crime (sem que se trate obrigatoriamente de crime organizado), podíamos referir o roubo com homicídio, que só aparece discriminado na Estatística Judiciária a partir de 1942 e de modo intermintente. Ora, entre 1950-1954 e entre 1960-1966, os condenados por esse motivo não ultrapassavam 1,9% e 2,8% do total dos condenados por homicídio (MRA, p. 9, nota 1).
22 A. Ribeiro, O Malhadinhas, Lisboa, Livraria Bertrand, 1958.
23 Ib., pp. 33-42.
24 Ib., pp. 102-103.
25 Cit. in M. Simões dos Reis, op. cit., p. 98.
26 M. Pinto, «Relações de vizinhança entre comunidades camponesas. As tradicionais rivalidades entre Gandra e Sobrado», O Concelho de Paredes, Dezembro de 1981, p. 18.
27 A. Lourenço Fontes, op. cit., pp. 103-104.
28 B. da Cruz, «O Fundibulário», Contos de Gostofrio, Porto, Paisagem Editora, 1973, p. 113.
29 «O jogo do pau em Portugal», op. cit.. Veiga de Oliveira distingue duas áreas principais no que diz respeito ao jogo do pau: uma área nortenha, que compreende as províncias de Entre-Douro e Minho, Beira Alta e Beira Litoral, em que predomina o jogo-combate; e outra ao Sul, que compreende o Ribatejo e parte da Estremadura, incluindo Lisboa, em que predomina o jogo-desporto.
30 Seria interessante elucidar o estatuto destes «caceteiros assoldados» que evocam os vingadores institucionalizados de determinadas sociedades.
31 Ib., pp. 321-324. O sublinhado é nosso.
32 R. Xavier da Silva, Os Reclusos de 1914, Lisboa, Cadeia Nacional, 1916, pp. 41-42.
33 Cf. M. Rosa de Almeida, op. cit., pp. 23-25.
34 J. Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, p. 501.
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