Capítulo I. Por alfama, à procura do fado
p. 25-56
Texte intégral
Tuas vielas velhinhas
Tuas ruas tão estreitinhas
São glórias, têm fado
Tu és a Lisboa antiga
Onde há sempre uma cantiga
P’ra recordar o passado
(do fado Alfama Velhinha de Armando Santos, poeta e fadista da Alfama de hoje)
1Partimos para Alfama com algumas perguntas iniciais. Onde está o fado em Alfama? Como é ele? E antes disso: haverá de facto fado em Alfama?12 Para nossa surpresa, as primeiras respostas que obtivemos foram rotundamente negativas.
2Primeiro contacto: almoço com o Vitalha (na altura, para nós era ainda o Victor). Cerca de 30 anos. Vive em Alfama. Nasceu lá. Aparece bem vestido, fato completo, colete e gravata. E com aquele ar malicioso, desenrascado, espertalhão, que de boa vontade se associa ao personagem característico dos bairros populares de Lisboa. O ar «gingão» — dizia ele de si próprio, meses mais tarde, em animada conversa.
3O Vitalha está plenamente disposto a ajudar («embora tenha pouco tempo…»: é árbitro de futebol, tem os fins-de-semana sempre ocupados). Mostra a sua aprovação por termos escolhido o bairro de Alfama como centro de interesse para o nosso estudo. E surge de imediato o termo de comparação: o Bairro Alto. Esse já não seria bom porque… «Não tem nada!… A não ser aquilo que se sabe…» Ou seja, é «muito ordinário» para nós. O tema da forte identidade colectiva bairrista e da rivalidade com outros bairros lisboetas é uma constante que se nos foi deparando em Alfama. Ainda lhe faremos referência. Veja-se para já, a este respeito, o trabalho de João Catarino e Madalena Pereira sobre os Santos Populares em Alfama13 e as descrições das cenas de pancadaria das «púrrias» dos bairros alfacinhas em Alfama — Gente do Mar, de Eduardo de Noronha14.
4E quanto ao fado? «Bem, há as casas de fado. Como no Bairro Alto. E noutros sítios. Mas fado não profissional? Isso acabou!» Ainda se lembra de um pátio onde há muito tempo se organizavam fados. Nada mais. Lembra um caso: um programa da televisão, onde aparecia uma tasca de Alfama, com fadistas amadores. «É porque os puseram lá, de propósito.» Pois se ele passa todos os dias à porta dessa taberna e nunca lá viu fados! E falamos de muitas outras coisas, algumas das quais ainda virão à baila, na continuação. As primeiras impressões são das mais vivas, e esta conversa viria a ter muita importância no prosseguimento da pesquisa. No fim, verificou-se que tinha ficado muito vincado um traço de prevenção contra o «falso típico», como aquele caso do fado vadio para telespectador ver. Outro exemplo veio a propósito das Marchas. «Podia dizer que era o pessoal que fazia as roupas… mas não: a verdade é que se ia às modistas.» E quanto aos Santos Populares: quem organiza os «retiros» — onde se vendem sardinhas — são particulares ou colectividades: «para ganharem algum». Fica a pairar um forte travo à premência das motivações económicas, a calculismo mercantil, a expedientes. Diga-se que essa primeira impressão não foi de modo nenhum desmentida posteriormente. Embora tenhamos verificado que aparece inextricavelmente enredada com outras dimensões da realidade social do bairro. É que funcionam também motivações fortes de comunhão festiva, de afirmação de identidade cultural face ao exterior e até, passe o lugar-comum, uma atitude de hospitalidade (fenómeno que nos limitamos a anotar aqui, em bruto, e que mereceria por si só um trabalho de análise empírica e de elaboração conceptual). Até que ponto certas práticas colectivas são práticas económicas, afirmações de relações de dominação, formas de produção de consenso, práticas de sociabilidade, manifestações do imaginário radical?15 Adoptar uma posição do tipo da de Maurice Godelier e falar das funções (de produção, de reprodução) das diferentes relações e práticas sociais não nos parece esclarecer completamente a questão16. Aliás, quanto a nós, o próprio Godelier tem intuições mais profundas sobre os problemas da «realidade» do pensamento, dos fenómenos de sentido e sobre a natureza das práticas simbólicas enquanto «trabalho sobre as contradições determinadas pela estrutura do modo de produção e das outras relações sociais»17.
5Mas não é a altura de nos embrenharmos nestes tópicos. Estávamos a tentar resumir algumas das fortes impressões que o primeiro relato de um habitante de Alfama nos tinha deixado. Ou seja, uma vincada atitude de aproveitamento das oportunidades para delas extrair ganhos económicos a perpassar pela generalidade das actividades do bairro e — o que é mais importante aqui — a ideia de que afinal não há fado em Alfama!
6Esta ideia veio a reforçar-se nos dias e semanas seguintes. Por exemplo, nas conversas que então começámos a ter com o Sérgio, da Boa União. A Sociedade Boa União é a mais antiga de Alfama (festejou o seu centenário em 1970) e o Sérgio é um dos mais antigos sócios. Conhecemo-lo com 76 anos, quando visitámos pela primeira vez a Boa União, em 31 de Dezembro de 79. Entrou para a colectividade em 1925 e, desde então, tem sido um dos seus principais animadores, nas mais variadas actividades, mas recordando com especial entusiasmo o teatro. Actualmente é o responsável pela óptima biblioteca da colectividade. Tivemos oportunidade de passar muitas tardes e noites a ouvir o Sérgio. Que não se faz rogado, gosta de contar. E conta a sua vida. Fala de Lisboa e da Alfama do princípio do século para cá, conta as actividades da Boa União. Inesgotável!
7No dia seguinte passou-se um episódio de que o Sérgio foi importante protagonista. Todos os anos, no primeiro dia de Janeiro, a Sociedade Boa União realiza uma cerimónia onde se atribuem emblemas prateados e dourados, respectivamente aos sócios com vinte e cinco e cinquenta anos de filiação na colectividade. Tínhamos lá estado na véspera, a participar na festa da passagem do ano, e conseguimos fazer-nos convidados para assistir a essa cerimónia. Mesa posta com arroz à valenciana e doces, no salão de baixo (onde se passam as festas, teatros, bailes). Início às cinco da tarde. Presente cerca de uma centena de pessoas (homens na maior parte). O presidente da colectividade chamava pelos nomes e as medalhas iam sendo colocadas nas lapelas. Algumas das pessoas que vinham recebê-las não moravam já em Alfama, nem frequentavam a colectividade há vários anos, mas mostravam grande orgulho em serem assim homenageadas. Eis senão quando se desenrola sob os nossos olhos a seguinte cena. O presidente da colectividade tinha perguntado se mais alguém queria tomar a palavra. Um homem forte, já de certa idade, avança e faz um discurso ambíguo. Diz que a Boa União tem tido uns problemas, não tem andado direita, mas que ele não se quer alongar mais sobre isso. Agora parece-lhe que tudo está a voltar à boa convivência, como aquela cerimónia testemunha. A Boa União acima de tudo! É preciso defendê-la. Espera que os agraciados honrem o emblema como ele honra o dele (que mostra na lapela), afirmando ser o emblema que para ele está acima de todos.
8O ambiente tinha ficado tenso. Alguns dos presentes retiraram-se desdenhosamente para o arco da copa. «Mais alguém?» — pergunta o presidente. Aparece o Sérgio. Narra o nascimento da Boa União. 1870. Associação: porque é uma junção de pessoas. Boa: porque era de gente boa daquela altura. União: necessária para realizarem os seus propósitos. Ali podiam juntar-se, separando-se do mau ambiente de Alfama da época. Mas as sociedades são como as pessoas. Houve progresso, mas houve também doenças. Agora, recentemente, houve uma doença. Mas isso não é nada de mais. Pois se até no governo da república se desentendem! Estamos numa época de transição. Não é de admirar que haja desentendimentos. Cá estamos para os resolver. Mas o que é preciso é contar com a união de todos e que não haja associados a dizer, lá por fora, que a Boa União é disto ou daquilo. Não! É de todos! Emocionado, o Sérgio acrescenta que dói ver dessas atitudes, que precisam acabar. Termina lendo a lápide que, na parede, assinala a comemoração do centésimo aniversário. Palmas.
9Ou seja: desenrolava-se ali, à nossa frente, uma estratégia de relações pessoais e políticas, trabalhada e subtil, do tipo daquelas em que todos nós participamos no nosso próprio dia-a-dia. Que se compreende melhor noutras conversas que o Sérgio e outros elementos da Boa União nos fizeram sobre a conotação com o Partido Comunista Português que, depois do 25 de Abril de 1974, se tinha atribuído à Boa União — com um clima de divisão e de abandono da frequência da colectividade por parte de alguns sócios. Clima que se queria recompor.
10Vale a pena referir tudo isto, porque nos sentimos, na altura, como se de certa maneira ficasse posto em causa aquilo de que íamos à procura. Procurávamos o fado, mas o Sérgio dizia que não o havia por lá. Isso era no tempo da «meia-porta», ali mesmo na rua, em frente à colectividade. Segundo o Sérgio, as prostitutas sentavam-se à porta de casa, com a porta aberta, com um taipal de madeira, tipo balcão, que as escondia até à cintura. Um candeeiro iluminava-as. Quando um cliente aparecia retiravam o taipal, entravam e fechavam a porta. Elementos da pequena burguesia local do último quartel do século passado, comerciantes, funcionários, artesãos e outros, para fugirem a esse ambiente, relacionado com as actividades marítimas, criaram a Boa União, como espaço reservado. Iam para lá passar os serões e promoviam almoçaradas periódicas, com os mais variados pretextos — tradição que se manteve. Depois entraram elementos mais proletários — como ele próprio, Sérgio, filho de fragateiro e serralheiro de profissão —, elementos esses com alguma formação e vontade, que desenvolveram escolas de línguas (incluindo o esperanto), o teatro, a biblioteca, a ginástica e o desporto. Esta é a história do Sérgio. O fado não está lá.
11Quer dizer: vamos à procura do fado, de comportamentos e vivências «típicas», marcadas pelo exotismo, e deparamos com uma vida social atravessada pelas mesmas preocupações, conflitos, estratégias, formas culturais em que nós próprios nos inserimos. Que estávamos ali a fazer? Além do mais, tomava-se muito nítido o significado ambíguo desta nossa insistência em penetrar na vida das pessoas, quando estas podem não o desejar, muito simplesmente porque é o lado «privado» da sua vida ou o lado que, por uma razão ou outra, é preciso defender do «exterior».
12Estas considerações, entretanto, ajudavam a colocar sob outra luz aquelas informações que tínhamos obtido sobre a não existência actual do fado em Alfama. Outros exemplos tinham aparecido. Já falámos, a este propósito, do Vitalha, que é um dos carolas duma outra colectividade, o Sport Benfica Corvense. Do Corvense é também o Nelson que nos dizia, lá para meados de Janeiro de 1980, que «isso do fado amador, não há muito», e aquele que há «é um meio de homossexuais». Aos moradores de Alfama, se o fado interessa, é o fado profissional, dos discos e das casas de fado. Em tempos promoveram sessões fadistas no Corvense. Mas isso acabou porque gerava mau ambiente e protestos dos sócios. De qualquer modo, quando havia essas sessões, quem actuava eram artistas profissionais. Hoje em dia há pequenas salas que abrem com fado vadio. Normalmente só são frequentadas por homens porque o ambiente é mau. Fecham três ou quatro meses depois, devido aos prejuízos. De início paga-se o vinho e os petiscos, mas depois o frequentador habitual torna-se amigo da casa, já não paga, vêm os amigalhaços e vai tudo por água abaixo. Numa outra colectividade, onde estavam a decorrer sessões fadistas, o clima era tal que, uma vez que o Nelson lá foi, o porteiro perguntou-lhe se ele era artista ou homossexual, porque uns eram à direita, outros à esquerda. Perante a resposta de que não pertencia nem a uns nem a outros, foi aconselhado a ficar ao meio.
13E o mesmo acontecia noutras conversas. Tudo o que dissemos anteriormente levou-nos a dois tipos de considerações. Por um lado, uma certa evidência de que «já não há fado em Alfama» (pelo menos com maior intensidade do que em qualquer outro sítio). E o mesmo se passava quanto a um conjunto de aspectos de que íamos à procura para os relacionarmos com o fado. É que toda a gente se preocupava em nos explicar que «Alfama não é o que se diz». «Prostituição? Não há: é no Bairro Alto que existe.» «Brigas? Pancadaria? São boatos. Já houve, há muito tempo…» «Ladrões? Marginais? Não exageremos: é como em todo o lado.» «Dizem que somos sujas e malcriadas», explicava-nos uma varina. «Mas não é assim. É só uma ou outra. Vejam a minha casa. Não está limpa? E a maneira como falo? Não é verdade que não digo palavras feias? Até porque se as dissesse as minhas freguesinhas, as minhas ricas freguesinhas, não queriam nada comigo», diz-nos enquanto com as mãos levantadas esfrega rápida e automaticamente o dedo polegar no indicador, fazendo o símbolo do dinheiro que, das freguesas, lhe vem — aquele de que vive.
14Um segundo tipo de considerações, de certo modo em sentido contrário, ou procurando um caminho mais profundo de compreensão, sugeria-nos que não tomássemos à letra estas afirmações e que nos interrogássemos sobre se não seria uma imagem delas próprias que as gentes de Alfama nos estavam a propor. A presença bem marcada de contradições de classe, de conflitos de interesses e de estratégias de dominação a que já fizemos menção, uma dinâmica de inserção conflitual do bairro no conjunto da formação social envolvente, a sobreposição que ali se verifica, em complexo inter-relacionamento contraditório, duma dimensão «societária» e duma dimensão «comunitária» (para empregar uma cómoda mas discutível conceptualização de alguns autores da sociologia e da antropologia), levavam-nos a manter presente esta óptica. Vinha juntar-se-lhe um conjunto de dados de observação, de passagens de conversas, em que se iam adivinhando brechas naquela «inócua» e defensiva imagem inicial. Retomaremos adiante este percurso.
15De momento, impõe-se acrescentar que os dois tipos de considerações atrás descritos, entre os quais oscilámos nos primeiros meses de contacto com o bairro, foram desde logo confrontados com algumas das observações que Lévi-Strauss escolheu para dar início a Tristes Trópicos. Coincidiam curiosamente com o que estávamos a sentir. Lévi-Strauss repara que já não existem no mundo aquelas realidades completamente estranhas à contaminação da civilização europeia que se propunha ir observar. «É então que a ilusão começa, insidiosamente, a tecer as suas armadilhas. Gostava de ter vivido no tempo das verdadeiras viagens, quando um espectáculo ainda não estragado, contaminado e maldito, se nos oferecia em todo o seu esplendor; não ter franqueado essa cerca como eu próprio, mas sim como um Bemier, um Tavemier ou um Manucci… Uma vez encetado, o jogo das conjecturas não tem fim. Quando é que a índia devia ter sido vista, em que época é que o estudo dos selvagens brasileiros teria trazido a satisfação mais pura, teria permitido conhecê-los sob a sua forma menos alterada? Teria sido melhor chegar ao Rio no século xviii com Bougainville ou no século xvi com Léry e Thevet? Cada lustro que eu recue permite-me salvar um costume, ganhar uma festa, partilhar uma crença suplementar. Mas conheço os textos bem de mais para não saber que ao recuar um século renuncio simultaneamente a informações e curiosidades que servem para enriquecer a minha reflexão. E aqui está, perante mim, o círculo vicioso; quanto menos capazes eram as culturas humanas de comunicarem entre si e portanto de se corromperem pelo seu contacto mútuo, tanto menos eram capazes os seus emissários respectivos de perceber a riqueza e o significado dessa diversidade. Ao fim e ao cabo, estou prisioneiro duma alternativa: ora viajante antigo, confrontado com um espectáculo prodigioso ao qual tudo ou quase tudo passaria despercebido — ou pior, inspiraria troça e desprezo —; ora viajante moderno, correndo atrás dos vestígios duma realidade desaparecida.
16Fico a perder em qualquer destes dois quadros, e mais do que poderia parecer; porque não serei eu quem geme diante de sombras, impermeável ao verdadeiro espectáculo que toma forma neste momento, mas para a observação do qual o meu grau de humanidade não possui ainda a sensibilidade necessária? Dentro de alguns centos de anos, outro viajante, tão desesperado como eu, neste mesmo lugar, chorará o desaparecimento daquilo que eu teria podido ver e que não aprendi. Vítima como sou duma dupla enfermidade, tudo o que vejo me fere, e censuro-me sem cessar de não observar o suficiente.»18 Lévi-Strauss continua dizendo que, «paralisado durante muito tempo por este dilema», conseguiu, após «vinte anos de esquecimento», «enfrentar uma experiência antiga cujo sentido me tinha sido negado e cuja intimidade me tinha sido roubada por uma perseguição tão longa como a própria terra».
17Quanto a nós, conversaremos daqui a vinte anos. Mas, entretanto, a ideia que nos ficava era de que devíamos ir procurar o que existe de facto em Alfama, nos dias de hoje, relacionado ou relacionável de algum modo com o fado. Sem nos deixarmos cegar pela busca teimosa do que não pode ser visto porque, simplesmente, não existe. Impunha-se, nesta altura, fazer o ponto da situação sobre as hipóteses e enquadramentos de que tínhamos partido.
18Em primeiro lugar, Alfama é um dos bairros que serviram de núcleo à formação e crescimento da cidade de Lisboa. Esta é uma cidade antiga, comercial, portuária, com fortes traços de «cidade mediterrânica»19. Uma das ideias orientadoras, neste trabalho, era a de procurar compreender o fado enquanto manifestação cultural própria de dimensões características das relações sociais que se estabelecem num tal bairro, no contexto duma cidade desse tipo: comercial-marítima, da área mediterrânica, com analogias com cidades da Espanha, da Itália, da Grécia e outras.
19Em segundo lugar, tomava-se importante uma referência à composição social, aos comportamentos políticos e às referências culturais das camadas populares dessas cidades, do «povo miúdo» e da «turba urbana» referidos por Hobsbawm20. Penetrado embora pelas forças próprias que a implantação do capitalismo desenvolve, um bairro como Alfama apresenta ainda hoje traços vincados (a nível da composição social, da organização do espaço, das actividades, do quotidiano, das práticas culturais) dum carácter urbano de origem pré-capitalista, em percurso próprio de integração nas relações sociais e na estrutura urbana mais especificamente atribuíveis ao capitalismo industrial.
20Em terceiro lugar, pontos importantes para o estabelecimento de comparações com os temas e as formas de expressão fadista eram: outras manifestações culturais do bairro (festas, por exemplo) e, em geral, os aspectos mais importantes do conjunto da realidade social de Alfama; as formas históricas da cultura «culta» e das ideologias políticas; práticas culturais análogas (pelas suas características de expressão e pela sua articulação com as relações sociais existentes nos ambientes característicos da sua produção): tango, músicas e danças catalãs, canções napolitanas, rebetika gregas, entre outras.
21Não tínhamos, evidentemente, a pretensão de concretizar todo este programa nem de sermos capazes de seguir, através de todos os meandros possíveis, aquelas linhas de orientação. O que interessava era, relembrando estes tópicos, olhá-los à nova luz que as reflexões anteriormente expostas nos sugeriam. Lançávamo-nos pois à procura «do que existe». Um dos caminhos que se impunha era a penetração na própria realidade física de Alfama.
22E assim, num sábado, 29 de Dezembro de 1979, pomo-nos a caminho de Alfama. Está um daqueles espantosos dias de sol de Inverno que por vezes se conseguem apreciar em Lisboa. Do alto do miradouro de Santa Luzia o panorama desdobra-se em harmonia perfeita com a luminosidade da atmosfera. O casario estende-se, pela encosta abaixo, encavalitado, irregular, de paredes claras e telhados vermelhos. As vielas labirínticas não se conseguem nem adivinhar, tal a densidade de prédios. De traçados regulares de rectilíneas ruas citadinas — nem rasto. Ao fundo, o Tejo é um contraste azul carregado, separado por uma faixa de «outra banda» do azul transparente do céu. Único indício exterior de que não recuámos no tempo: a floresta de antenas de televisão, a encimar a encosta de telhados que se perde lá em baixo.
23Descemos um lanço de escadinhas e, subitamente, entramos num outro mundo. A vista de horizontes distantes desapareceu. O bairro fechou-se sobre nós. O olhar bate sistematicamente, de imediato, nas paredes que por todo o lado, apertando-nos, se levantam. Já não há céu, elemento de largueza, meio transparente de profundidade, criador de perspectivas. Apenas se podem ver — quando as há — estreitas faixas de superfícies azuis planas e rectangulares entre dois beirais. A vida citadina lá de fora deixou de se ver, de se ouvir, de se sentir. Alfama é um mundo à parte, fechado sobre si próprio, absorvente de quem penetra, desprevenida ou deliberadamente, num dos múltiplos poros que se abrem para a superfície exterior. A luminosidade aqui dentro é outra, não há contrastes entre sol e sombra, mas uma iluminação difusa, como que originária de dentro do próprio bairro. De um momento para o outro, sem aviso, dêmos um salto de anos-luz e, de um mundo em que se está, convexamente, à superfície, passámos, como por magia, a um outro mundo em que nos encontramos, concavamente, no interior.
24Vamos munidos de alguns pontos de referência. Um é o Largo do Chafariz de Dentro, ao fundo da encosta em que Alfama assenta. Rossio de Alfama, como lhe chama Norberto de Araújo21, centro da vida do bairro, onde desaguam inevitavelmente as ruas e as pessoas, local oposto a Santa Luzia e às Portas do Sol, outra alternativa para nos embrenharmos em Alfama. Ao Chafariz de Dentro fomos parar não poucas vezes, nas primeiras deambulações pelo bairro, quando, perdidos entre becos e vielas, éramos como que arrastados pela mesma inexorável lei da gravidade que faz as linhas de água encontrarem certeiramente, através dos acidentes geológicos, o caminho para o mar. Do Chafariz de Dentro (Tanque dos Cavalos, ouvimos chamá-lo frequentemente, associando-o aos cavalos das carroças que antigamente lá iam beber; Norberto de Araújo conta esta e outras interpretações para a alcunha) parte a única rua que merece esse nome: a Rua dos Remédios, traçada a direito e mais larga que todas as outras. Outros pontos de referência: as Igrejas de São Miguel e Santo Estêvão, cada uma de seu lado, a meio da encosta. Dos nomes destas igrejas baptizaram-se as duas freguesias de Alfama. Limites administrativos retomados sem dúvida dos perímetros das paróquias locais — cuja ancestralidade remonta provavelmente ao século xii (São Miguel) e xiii (Santo Estêvão), embora aqui as informações recolhidas por Maria José Paixão22 e Norberto de Araújo23 não coincidam totalmente.
25Limites de Alfama? É difícil estabelecê-los. Nas conversas com gente do bairro nem sempre obtínhamos respostas precisas e coincidentes. Para esse facto terão contribuído as alterações sucessivas de limites administrativos que tanto Norberto de Araújo24 como M. J. Paixão25 citam. A título de exemplo eis um excerto de Peregrinações em Lisboa, onde Norberto de Araújo, depois de historiar modificações anteriores, diz: «Em 1833 a Alfama formava um dos quatro distritos de Lisboa — veja-se a sua largueza por extensão convencional! — com 12 freguesias, afinal todas as paroquiais em redor do Bairro alfamista puro, incluindo o Castelo, mas ficando São João da Praça integrada no distrito do Rossio. Em 1852 ainda Alfama era um dos quatro distritos da cidade, já com São João da Praça em sua área natural, mas arrebanhando os Anjos e o Socorro! Em 1867 desapareceram todos os bairros de distinção nominal, e só então a palavra Alfama sucumbiu, oficialmente.»26
26Ao fim e ao cabo todos vão estando de acordo com que Alfama propriamente dita engloba as freguesias de São Miguel e Santo Estêvão e se limita, na parte superior, por Santa Luzia, Portas do Sol, São Tomé e São Vicente. Em baixo é o Campo das Cebolas, o Cais de Santarém, o Terreiro do Trigo, o Chafariz de Dentro, o Jardim do Tabaco. Para oriente a Rua do Museu de Artilharia, até Santa Clara. Para oeste, São João da Praça, as traseiras da Sé e do Limoeiro. Foi este núcleo de duas freguesias que tomámos para espaço do nosso estudo.
27Mas a indeterminação dos limites perde-se na história. Diz ainda Norberto de Araújo após comentar uma passagem de A. Herculano sobre Alfama moura: «É que Alfama não teve então, como não teve nos séculos xiv e xv, e como não tem hoje, limite estabelecido. Onde começava e onde acabava Alfama?»27 A evolução histórica da zona urbana de Alfama é um tema interessante. Mas vamos abreviar, evitando repetir o que está exposto em livros e publicações acessíveis. Faremos o mesmo quanto a uma série de aspectos de Alfama (e depois, do fado) remetendo para a respectiva bibliografia. Sobre a evolução histórica do bairro podem ver-se, por exemplo, M. J. Paixão e Norberto de Araújo, nos livros já citados. E também Júlio de Castilho28. E ainda as anotações de Eduardo de Noronha29, onde se fala das muralhas, moura e femandina, e dos vários arcos, vestígios de outras tantas portas da cidade. No aspecto arquitectónico a descrição de Norberto de Araújo (ainda não muito desactualizada), rua por rua, palácio por palácio, fazendo anotações históricas ao Chafariz do Rei, aos restos de muralhas, etc., é elucidativa. Ficam também descritas aí as belezas paisagísticas, que não temos talento (nem espaço) para retomar — e que aliás quase todos conhecem.
28Curiosa a este respeito é a observação de Eduardo de Noronha, no romance já referido, onde exclama às tantas: «Alfama, esta Alfama, que ora estou pintando com tão amortecidas cores, comparadas com as da realidade, se fizesse parte integrante de um centro estrangeiro tão procurado como Lisboa, mereceria a visita constante dos milhares de excursionistas, que quotidianamente desembarcam em preito de admiração à castelã do Tejo, ávidos de sensações que não encontram noutras cidades. Não o fazem, porquê? Por desconhecimento dos seus singulares atractivos.»30 Estaria Noronha a adivinhar que Alfama se tornaria um dos principais atractivos dos roteiros turísticos de Lisboa e que grande parte da vida do bairro seria entretanto reorientada para ser consumida turisticamente pelos estrangeiros que lá vão deixar algumas divisas e pelos nacionais que, diariamente nas casas de fado e, uma vez por ano, nas festas dos Santos Populares, passam por Alfama sem a verem?
29A paisagem de Alfama, vista de Santa Luzia, que atrás evocámos, é, melhor do que por ninguém, traduzida pelo poeta e cantor de fados de Alfama (não profissional, mas «melhor que os profissionais», no dizer de muita gente do bairro), Armando Santos, a quem ouvimos cantar, na música do Fado Vitória, a sua composição Santa Luzia, que a seguir transcrevemos:
É de Alfama, esse tesoiro
O mais lindo miradoiro
Onde a vista se enebria
Com a tua igreja branquinha
Tens todo o ar de rainha
Ó minha Santa Luzia
Santo Estêvão tens em frente
A teu lado São Vicente
O casario, é painel
Santa Engrácia majestosa
A teus pés, mas orgulhosa
A torre de São Miguel
Tudo é motivo e tem graça
Lá está São João da Praça
Que simples, e original
Mas de inconfundível traça
O berço da nossa raça
A velha Sé Catedral
Por isso Santa Luzia
É que tens a primazia
Dos miradoiros sem rival
Tu vês-te nesse vaidoso
O Tejo maravilhoso
O espelho de Portugal
30Afinal sempre há fado, vivo, que fala do próprio bairro, na Alfama de hoje? Parece que sim. Mas mantenhamos ainda, por ora, uma certa expectativa quanto a essa parte da história.
31No livro de M. J. Paixão encontramos dados demográficos sobre as duas freguesias de São Miguel e Santo Estêvão31. Com uma fortíssima densidade populacional (uma das maiores de Lisboa, apesar dos prédios não ultrapassarem normalmente os três andares — sendo muitos deles mais baixos), a população não aumentou muito no último século — o que se compreende pela manutenção do número de fogos. Aliás os dados censitários mais antigos disponíveis para a freguesia de Santo Estêvão (do ano de 1300) dão uma população de 3600 pessoas, não extraordinariamente distante das 5353 de 1970 e das 4581 de 198132. De acordo com as mesmas fontes, São Miguel em 1970 teria 4030 e em 1981, 3476 habitantes. Ora estes números obrigam a comentários. Por exemplo, na freguesia de Santo Estêvão havia nos finais de 1983 cerca de 4100 eleitores recenseados. Considerando que na estrutura etária da população da freguesia os maiores de 18 anos (eleitores) representam cerca de 80% da população, obteríamos por extrapolação uma população total de cerca de 5200. Acontece que estes números estão ainda longe de corresponder à realidade. Essa é a opinião, por exemplo, da Junta de Freguesia de Santo Estêvão. Em São Miguel o número de recenseados na mesma data era de aproximadamente 3350 pessoas. Por um cálculo análogo obteríamos uma população residente com cerca de 4200 efectivos. Estes valores e impressões necessitam, evidentemente, de ser confirmados por um trabalho intensivo de recolha de informações. Mas é inegável que há uma enorme disparidade em relação aos números oficiais. Porquê?
32A resposta a esta pergunta faz-nos penetrar no mundo complexo (de conhecimento generalizado por um lado, insuspeitado por outro) das actividades económicas, da estrutura socioprofissional e da origem geográfica dos habitantes de Alfama, bem como dos problemas habitacionais e das redes de poder e de influência que ali existem. Também nestes aspectos evitaremos tanto quanto possível repetir o que está dito noutros lados. No livro de M. J. Paixão que temos vindo a citar encontram-se referências mais ou menos detalhadas à composição socioprofissional. A maioria da população activa situava-se, em 1963 (data de realização pela Câmara Municipal de Lisboa do «Inquérito às Condições de Vida e Habitacionais da Cidade de Lisboa»), na categoria dos «operários não especializados e trabalhadores braçais» (l.° lugar), dos «empregados» (2.°) e dos «contramestres e operários especializados» (3.°). Além disso, 30% da população total era constituída por «domésticas». Os ramos de actividade com maior incidência eram aqueles que incluíam os «transportes», seguindo-se o «comércio» e, em terceiro lugar, as actividades ligadas ao artesanato e indústria transformadora. Relacionando estes dados com o facto da maioria da população de Alfama se deslocar normalmente a pé no movimento pendular casa-emprego, Maria José Paixão conclui o «facto do porto de Lisboa exercer grande atracção na população, dada a proximidade do bairro»33. Efectivamente ainda hoje a vida de Alfama está em grande medida marcada pela actividade portuária. O que anteriormente foi ainda mais vincado. O romance de Eduardo de Noronha, publicado em 1939, chama-se significativamente Alfama — Gente do Mar, e a par de descrições paisagístico-arquitectónicas, de evocações históricas e de um final em que, muito convenientemente para um romance quase policial, o culpado é o mordomo — a par de tudo isso, evoca personagens e um quotidiano em que a vida marítima e portuária é uma constante. Marinheiros, fragateiros, havê-los-ia ainda nas primeiras décadas do século. Mas depois, e ainda presentemente, o grande número passou a ser de estivadores (trabalhadores portuários, como se deve hoje em dia apelidá-los), conferentes, agentes de tráfego, funcionários de despachantes e de agências de navegação. Em tomo deste eixo central de actividade agrupam-se as tascas, restaurantes, leitarias e cafés, comércio variado, interpenetram-se actividades marginais, ligadas ao contrabando, roubo, prostituição e bandos de intimidação-protecção. Um pouco na confluência de tudo isto com o turismo, aparecem finalmente as casas de fado, aliás situadas também na confluência urbanística de Alfama, na zona do Chafariz de Dentro. A mais antiga, onde o Sérgio se lembra ainda de ter estado com António Botto (que viveu muito em Alfama, sempre a frequentou, tem uma lápide com um poema gravado junto ao Arco do Rosário e escreveu uma peça teatral intitulada Alfama, aliás representada na altura na Boa União) é a Parreirinha de Alfama. «Nessa altura a Parreirinha era só um barracão com bancos corridos», diz-nos o Sérgio.
33Em busca de um modo de vida mais remunerador, gerações sucessivas de gentes das Beiras migraram para Alfama, atraídas pelas actividades marítimas, sobretudo pela estiva. Vieram da Pampilhosa da Serra, da Lousã, de Góis. Mas vieram também as gentes de Ovar (donde as «ovarinas») e os de Alcochete. Estas algumas das grandes «colónias» de Alfama. Para além dos galegos, de quem nos dizem que um núcleo importante trabalha ainda hoje ligado à actividade portuária. Estes galegos bem como os beirões também adquiriram a maior parte das tascas, leitarias-mercearias e outro pequeno comércio. Anteriormente às recentes transformações do funcionamento da estiva e do respectivo sindicato (posteriores ao 25 de Abril de 74), acontecia muitos destes homens da Galiza trabalharem seis meses no porto de Lisboa e passarem outros seis meses na sua terra natal.
34O mesmo, ou parecido, acontecia com muitos dos migrantes das Beiras, que assim compatibilizavam o trabalho agrícola com uma actividade sazonal em que vinham acumular uns dinheiros. Outros ficavam permanentemente em Alfama, dedicados ao único fito de acumularem um pecúlio razoável, «do mesmo modo que aqueles que emigram para França ou para a Alemanha», dizem-nos numa das reuniões que tivemos com elementos da Junta de Freguesia de Santo Estêvão. O mecanismo era o seguinte. Vinha um indivíduo da Beira, arranjava uma casa, conseguia entrar para a estiva. De imediato mandava chamar parentes e amigos. Instalações já havia. Aboletavam-se todos em casa do primeiro. Já aí começava este a realizar dinheiro dos subaluguéis. Depois era preciso arranjar-lhes emprego. Não se entrava para a estiva de qualquer maneira. Os membros efectivos do sindicato eram em número limitado. Para além destes havia os «homens-da-rua» que, duas vezes por dia, de manhã e à tarde, se juntavam à porta da Casa do Conto. Junto ao cais, multiplicaram-se então os cafés, restaurantes, tascas e outras vendas de comes e bebes.
35Uns pela mão dos outros, os migrantes têm vindo a instalar-se em Alfama, com mira no trabalho portuário. As «casas da malta» proliferaram. Há trinta anos contavam-se pelas dezenas essas casas onde se amontoavam os estivadores para pernoitarem. Ainda hoje existem algumas. Ou então instalam-se aqueles, em números inconcebíveis, em casas de amigos, conterrâneos e parentes. E aí permanecem às vezes um par de anos, às vezes pela vida toda. Recenseados eleitoralmente pelas terras de origem, não detectados pelos censos da população, explicam em parte a disparidade dos números referentes à população residente. As consequências são múltiplas. Ao nível das preocupações duma Junta de Freguesia, por exemplo, citam-nos as carências de equipamentos escolares, de verbas para múltiplos fins, que resultam da tomada em consideração, pela Câmara Municipal de Lisboa ou por departamentos do Estado, apenas dos números oficiais.
36Nem todos estes migrantes têm o mesmo destino. Uns conseguem ser bem sucedidos, progridem na hierarquia da estiva e das redes de influência locais, arranjam capital suficiente para «se estabelecerem» com uma tasca ou uma leitaria e, quando vão daqui à terra natal, são os mordomos das festas; outros não passam da cepa torta. Uns mantêm-se fortemente enquistados sobre si mesmo na permanência em Alfama, sempre estrangeiros e deslocados. Por vezes agrupam-se em torno de colectividades regionais como a Casa da Pampilhosa da Serra, na Rua das Escolas Gerais. Mandam dinheiro para a aldeia onde compram terras e constroem casas, financiam a respectiva Comissão de Melhoramentos. Outros integram-se completamente na vida de Alfama e acabam por se desligar do meio de origem. Outros ainda desdobram-se pelos dois espaços, citadino e provinciano. «O meu pai veio para Alfama» — diz-nos um elemento duma Junta de Freguesia, bem integrado na vida colectiva do bairro — «proveniente da Lousã. Nunca deixou a casa e a terra que lá tinha. Cá cresci e arranjei trabalho. Quando o meu pai se sentiu velho, voltou para a Lousã. Eu fiquei, porque entretanto tinha aqui a minha vida. Mas não quebrei os laços com a terra. Já lá tenho a minha casa e, um dia quando me reformar, lá irei parar. O meu filho é daqui, mas já vai de vez em quando à terra. A ela se ligará também.»
37É esta uma explicação para a discrepância de população verificada. Mas que se passa com os «recenseados»? São eles então o núcleo permanente, os descendentes da multissecular população de Alfama, os veículos de reprodução dos traços culturais característicos da comunidade alfamista? Não são. Dos recenseados em Santo Estêvão e São Miguel não chegam a metade os nascidos em Alfama. A maior parte é originária de regiões rurais. De repente, põe-se-nos um problema extremamente interessante. Se se dá esta enorme renovação (e provavelmente continuada) da população de Alfama, se muitos daqueles que hoje lá vivem são de origem provinciana e camponesa, como explicar a manutenção da forte identidade colectiva bairrista, a permanência de tradições culturais manifestadas por exemplo nas festas do Carnaval e dos Santos Populares? E, sobretudo, como explicar o fado? Como explicar a especificidade urbana do fado em contraste com as expressões musicais aldeãs? Como explicar aquela íntima vivência, compreensão, identificação com o fado que o povo de Alfama apresenta ainda hoje? Sim, porque é preciso começar a levantar o véu e dizer que, como adiante se dará a conhecer mais em detalhe, rapidamente nos começámos a aperceber que Alfama respira fado por todos os poros. Deixemos por agora em suspenso aquelas perguntas, porque ainda não temos elementos para lhes responder, e continuemos a conhecer aquela que é, podemos ir dizendo-o, a Alfama do fado, onde:
Há cravos por todo o lado
E o nosso Fado, não está esquecido
É escutado com fervor
Com muito ardor, por nós tão querido
(do fado Alfama de Santo António, de Armando Santos)
38A organização da estiva era (e é, embora agora com modificações) uma complicada organização hierárquica, um meio de acesso restrito, uma rede de influências que se desdobram para além da actividade portuária propriamente dita, em várias direcções. Havia os encarregados, os efectivos, os suplentes e os homens-da-rua. Estes últimos desapareceram nas recentes transformações da actividade portuária e do sindicato. Também se alterou o regime de trabalho. Hoje os filiados do sindicato têm um ordenado garantido (embora os quantitativos que recebem dependam ainda das modalidades em que são chamados a trabalhar), funcionam por turnos prefixados, há uma numeração que indica a ordem de chamada, etc. Mas anteriormente, até há poucos anos, não era assim: os encarregados é que escolhiam com quem queriam trabalhar. Levavam os cartões dos amigos, parentes ou «recomendados» no bolso e só chamavam os que faltassem para completar a equipa. Por vezes iam chamar alguns «da rua», que se atiravam uns por cima dos outros, para serem solicitados. Ainda há vinte anos quem vinha da Pampilhosa, ou de outro local, podia ter de pagar, dizem-nos, trinta ou quarenta contos para entrar na estiva.
39Hoje em dia vive-se uma situação de transição, em que algumas interferências institucionais provenientes do Estado, da organização das empresas de transitários e agentes de navegação, dos sindicatos, ocasionaram as modificações referidas, que se debatem com as práticas tradicionais e as correspondentes cristalizações das relações de dominação/subordinação. Mas é entretanto bastante claro que o essencial da realidade a que temos vindo a fazer referência mantém-se actuante.
40Para se arranjar casa, para se entrar para a estiva, para se ser chamado ao trabalho um número de vezes conveniente, em condições vantajosas, para se conseguir ter acesso à variedade de locais e situações que permitam a sobrevivência diária e o mínimo de sucesso económico, para tudo isso é preciso estar integrado em redes complexas de influências. Estas mergulhavam (e mergulham ainda) as suas raízes no próprio cerne das actividades portuárias, em estreita e intrincada articulação com os grupos de parentes e conterrâneos, e encontrando prolongamentos nas mais variadas áreas, desde as relações de vizinhança, à acção das colectividades, até eventuais pertenças a actividades mais ou menos colaterais ou marginais, passando pelas mais diversas práticas culturais, que se podem encontrar, por exemplo, nas actividades desportivas, na frequência das tabernas e… no fado!
41Poderemos encontrar aqui um elemento de resposta à perplexidade que nos assaltou perante a constatação da descontinuidade das gerações que povoaram Alfama simultânea à manutenção de uma forte dimensão comunitária na vivência colectiva do bairro, perante fenómenos como a repetida manutenção da tradição fadista? Será que a integração dos migrantes-estivadores nas redes de relações económicas e de dominação da vida do cais e de Alfama obriga a uma rápida aquisição dos saberes culturais, dos valores, dos códigos de comportamento, das redes de significações, do imaginário que impregna a vida alfamista? Será o fado um dos veículos privilegiados desta socialização integradora? Constituirá uma das principais instâncias, uma das formas culturais, de produção de identidade colectiva, nas circunstâncias descritas? E, simultaneamente — mas em sentido inverso —, não será o conjunto de mecanismos que obrigam a esta forte adesão multifacetada ao feixe das práticas, das atitudes, dos valores e duma diversidade de elementos estruturantes da «visão do mundo» local, não será isso que conduz a uma forte permanência cultural tão estranhamente sobreposta a uma extrema renovação demográfica?
42Poderíamos lançar-nos, a este propósito, numa discussão teórica sobre «a cultura e as relações sociais», sobre as prioridades respectivas (e relativas) das relações e práticas materiais, por um lado, e do imaginário e das práticas simbólicas, por outro — problema que não poderá provavelmente pôr-se nestes termos simplistas. Deixemos apenas enunciadas, a título exemplificativo, algumas das proposições que permitem o desencadear da abordagem do tema. Pierre Besnard: «A cultura popular respeita a toda a vida quotidiana e a todas as relações do indivíduo com os outros e com o mundo e, neste sentido, traduz as condições de existência das classes populares e aparece tanto enquanto uma estrutura como enquanto uma superstrutura que emergiria das bases materiais.»34 Jean-Charles Lagrée: «Na medida em que a cultura aparece como estruturação da consciência de um grupo que se constrói e se reforça nas relações sociais, ela é caracterizada por uma unidade de práticas do quotidiano explicada pela identidade de situação na divisão do trabalho, na hierarquia do saber e na percepção do real. Desde logo elabora-se um sistema de representações que é ao mesmo tempo, quer dizer dialecticamente, próprio do indivíduo e do grupo. Os valores, as normas, os habitus que a prática social produz, são retomados e reinterpretados no sistema simbólico. É pois nas relações sociais que se elaboram os materiais da expressão. E pois o grupo social, considerado na sua dimensão histórica, que é o verdadeiro autor das formas simbólicas.»35 Maurice Godelier: «… a ideia que toda a relação social nasce e existe simultaneamente no pensamento e fora dele, que toda a relação social contém desde a origem uma parte ideal que não é o reflexo a posteriori daquela, mas uma condição de aparecimento que se toma uma componente necessária. Esta parte ideal existe não somente sob a forma de conteúdo de consciência, mas sob todos os aspectos das relações sociais que delas fazem relações de significação, e lhes manifestam o ou os sentidos.»36 Jean Duvignaud: «A imaginação não é um fantasma que plane por cima das coisas: ela está enraizada na vida…»37 Não é neste trabalho que poderemos proceder ao debate teórico desta problemática. Quanto às questões que trouxeram à baila as citações anteriores, deixemos por agora a pairar mais essa ponta do enigma fadista que levantámos e continuemos a percorrer com o olhar outros aspectos de Alfama.
43Vimos alguma coisa da sua população e actividades recentes. Para um pouco de história podem consultar-se os dois livros já citados, de Maria José Paixão38 e de Norberto de Araújo39. Ou ainda, por exemplo, a conferência realizada em 1935 por Luís Chaves, intitulada «Alfama de ontem e Alfama de hoje — Aspectos históricos e etnográficos»40. Alguns tópicos: Alfama já é do tempo, pelo menos, da ocupação romana e visigótica. Todos citam Herculano na frase seguinte: «A Alfama fora no tempo do domínio sarraceno o arrabalde da Lisboa gótica; fora o bairro casquilho, aristocrático, alindado, culto…»41 Com a ocupação cristã toma-se «popular, tumultuosa, marinheira»42. É ainda de Alexandre Herculano a indicação referida também por Luís Chaves e Maria José Paixão: «Quando, porém, no século xiii a população cristã, alargando-se para ocidente, veio a expulsar os judeus do seu bairro primitivo, situado na actual cidade baixa, e os encantoou para a parte sul da catedral, a Alfama foi perdendo gradualmente a sua importância, e converteu-se afinal num bairro de gente miúda, e, sobretudo, de pescadores.»43 Diz Luís Chaves: «Quem viu nunca toda a Alfama! — exclamaria Maria Parda quando Alfama se transformou em bairro de pescadores, o bairro dos ‘manéis do mar’, alcunha dos trabalhadores do mar, registado por Bluteau, ‘os manéis de Alfama’ de Fr. Nicolau de Oliveira.»44 E quem aí se instalava eram, segundo ainda Luís Chaves, «não só os pescadores mas toda a ‘gente de ganhar’, cuja actividade se ligasse ao rio». M. J. Paixão opina que «no século dos Descobrimentos, Alfama atraiu para si os navegadores e voltou a ser ocupada por essas pessoas de uma classe social elevada»45. Exemplo: a Casa dos Bicos, do filho de Afonso de Albuquerque. E acrescenta: «Até antes do terramoto de 1755 Alfama era pois um bairro destinado à habitação de pessoas de um certo nível social.»46 «Depois da catástrofe a população ficou reduzida a metade e, dessa metade, as pessoas com mais possibilidades económicas deslocaram-se para outras zonas de Lisboa, pelo facto de as melhores casas terem ficado completamente arruinadas, deixando Alfama quase desabitada. Pensamos pois que Alfama actual, com todas as suas características populares, teve a sua origem neste acidente. Com efeito, gente humilde veio habitar este bairro de Lisboa, depois de o ter pobremente reparado.»47
44Sem negar que esta interpretação de M. J. Paixão retrate um aspecto importante da evolução histórica de Alfama e das modificações da respectiva realidade social, há qualquer coisa que falta aqui e que o contacto com Alfama nos revela. Norberto de Araújo também o nota. Diz ele: «Por Alfama, no decorrer do seu desenvolvimento cristão, a par de igrejas se ergueram palácios. Se a fidalguia, que não cabia em S. Vicente, e veio erguer casas à beira litoral, entre a Sé e o Chafariz dos Cavalos (de Dentro), detestava o bairro dos ‘Manéis de Alfama’, não o sabemos nós; não é de crer, porém, que o suor plebeu incomodasse a gente de algo, como a não incomodaria a vizinhança dos hebreus na Judiaria pequena.»48 Até aqui nada de especial, a não ser a chamada de atenção para a coexistência da fidalguia e da plebe, o que introduz um elemento novo e discordante em relação a uma interpretação das sucessivas fases históricas da ocupação do bairro como uma alternância de fases de «ricos» com fases de «pobres».
45Antes de retomarmos este assunto, façamos um breve parêntese com vista a completar com mais alguns elementos o quadro das categorias sociais que se foram radicando em Alfama ao longo dos tempos. Parêntese esse que nos é sugerido pela referência de N. Araújo aos judeus. Ainda hoje existe em Alfama a Rua da Judiaria. Comenta Norberto de Araújo: «Em apontamento posso dizer-te que aquela existente neste sítio no século xv era chamada a judiaria de Alfama, ou a ‘Pequena’, por oposição à ‘Grande’ que existiu onde se ergueu a Conceição Velha, à Madalena, desaparecida pelo terramoto. Esta Judiaria, como todas, foi extinta em Dezembro de 1496, por D. Manuel, logo no ano seguinte àquele em que subiu ao trono: foi o presente de noivado à fanática D. Isabel, gentil viúva de seu primo o Príncipe D. Afonso, filho de D. João II, morto aos 17 anos. E os judeus foram-se do Reino — violência que só prejudicou o país — e as judiarias ficaram desertas.»49 Depois foi Alfama o lugar de permanência dos negros libertos da escravatura e um dos bairros reservados à prostituição. A estes dois factos se costuma associar o fado. Duas citações chegam para ilustração. Luís Moita, comentando uma tese de Gonçalo Sampaio sobre as relações entre o fado e os cantos de São João, diz: «O erudito professor não deixa, porém, de localizar em Alfama a lúgubre canção e de a envolver, neste bairro de Lisboa, em pleno século xviii no ambiente de vício, roubo e vadiagem em que passaram a viver os pretos libertos da escravatura pela lei de 1761. Já no Anatómico Jocoso, cuja primeira edição foi publicada em Madrid no ano de 1752, se faz referência ao papel que Alfama desempenhava, sim, mas no comércio dos ‘sons’, ou canções, com o Brasil. No capítulo do Exame das danças, citado pelo falecido escritor brasileiro Manuel de Sousa Pinto num elucidativo trabalho sobre o lundum e o fado, claramente é indicada Alfama como o cais de desembarque das canções e danças da nossa antiga colónia d’Além-Atlântico.»50 Na entrada referente ao fado da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira pode ler-se: «O caso é que em 1833, ao estabelecimento definitivo do regime liberal, existiam em Lisboa, disseminadas pela cidade, casas de fado onde moravam fadistas, ‘piquenas’ ou ‘moças’ que cantavam, tocavam e batiam o fado, as quais, por medida de moralidade pública — mas não sem reacção da sua parte —, foram mandadas acantonar em bairros privativos (Alfama, Mouraria, etc.).»51 Fechado este parêntese, retomemos a questão a que nos tínhamos lançado.
46Maria José Paixão expõe a tese de que após o terramoto de 1755 Alfama se constitui em bairro de gente pobre, abandonado pelos sobreviventes de mais posses, e que é esta a origem da «Alfama actual, com todas as suas características populares»52. Mas então e a quantidade de palácios, palacetes e mansões que por todo o lado polvilham Alfama? Norberto de Araújo referencia e descreve dezenas deles e historia-lhes os proprietários, nobres fidalgos e abastados burgueses, situados temporalmente nos últimos séculos, nomeadamente no século xix, e referindo ainda alguns casos de permanência dessas famílias no início do século xx. Aliás, em confirmação disto basta comparar um percurso por Alfama com o exame de uma carta do bairro. Se ao passarmos por Alfama não vemos um espaço livre, um terreno aberto, podemos no entanto observar, ao olharmos para a carta, um número não desprezível de locais não construídos de dimensões apreciáveis para o sítio. São os pátios, jardins e quintais dos palacetes, tomados invisíveis do exterior por muros e taipais, e apenas acessíveis aos respectivos proprietários — como poderão explicar, desgostosos e inconformados, os responsáveis autárquicos das freguesias locais, à procura de espaços onde instalar equipamentos colectivos destinados às crianças. Se pegarmos no romance já referido de Eduardo de Noronha encontramos as seguintes páginas elucidativas: «O bairro de Alfama, como tão eruditamente escreve o visconde Júlio de Castilho na sua monumental Ribeira de Lisboa, é ainda hoje um alfobre de típicos solares, conservando bastantes a intacta forma das suas primitivas linhas e utilizados quase todos em objectivos muito diversos do seu destino inicial. Cita ele, mais ou menos encostados à cerca moura e ainda à velha muralha construída no reinado de D. Fernando, no perímetro contido desde Alfama até ao que é hoje Largo de São Roque, o do filho do ínclito capitão Afonso de Albuquerque, a famosa Casa dos Bicos; a levante o palácio dos condes de Portalegre; em seguida o dos marqueses de Gouveia, ascendidos a duques de Aveiro, herdado no decorrer dos anos pela família Lavradio; o dos Atouguias Correias, senhores de Belas; o dos condes de Coculim, mais tarde marqueses de Fronteira; o dos condes de Vila-Flor, após a batalha da Asseiceira duques de Terceira, alienado ao extinto viscondado da Abrigada, Mendonça, depois propriedade dos herdeiros. Era esta a fieira de palácios estendidos pela orla um pouco coleante do Tejo. Depois, à guisa de alcândora de falcão, ostentavam-se pela encosta acima a brasonada moradia dos Teles de Melo, às Portas da Cruz; a vivenda aristocrática, às Portas de Santo André, dos condes da Figueira; a característica residência ‘a Rosa’, junto das portas de São Lourenço, dos marqueses de Ponte de Lima, actualmente na posse, por legado, da casa Castelo Melhor; a habitação da linhagem da estirpe dos marqueses de Alegrete, depois Penalvas, às portas de São Vicente da Mouraria.
47«Por aqui fico, pois os demais, nos seus tão modificados vestígios, levantam as frontarias em cenas já afastadas dos nossos intentos.
48«Estes e bastantes mais testemunhavam qual fora a missão da nobreza de Portugal, apoiada na arraia-miúda, e com o fito, nunca arredado de uma e outra, de engrandecer a Pátria.
49«Em torno destas mansões, quase alcáceres para a época, ninhos de águia comparados com os de pardais, mal entretecidos, agruparam-se, primeiro as cabanas, e depois os pardieiros da servidão dos fidalgos. Como o espaço não sobrava e não perdendo de vista a muralha, poderoso elemento da defesa que tantas vezes salvou a capital das investidas dos castelhanos, comprimiu-se a massa de alvenaria da forma que ainda hoje se vê.
50«A quase totalidade desses palácios, por causas várias, mudaram de proprietários. Alguns, adquiridos pelo Estado, albergam serviços públicos, aproveitam-nos como dependências, transformam-nos em sedes e anexos de estabelecimentos fabris.
51«Ao presente só o âmago da Alfama conserva a sua antiga feição. O camartelo municipal não só tem modernizado, mas até alargado o que é susceptível de tal suportar. Ainda agora há ali muito que estudar e admirar. Algumas artérias imprimem um ‘quid’ especial ao recinto e de certo modo aos seus moradores. Dentro de algumas décadas só a fotografia documentará o que foi aquela série de córregos, anditos, vielas, socalcos, calejas, becos e largos do tamanho da palma da mão.
52«O visconde Júlio de Castilho pretendia que à semelhança do que faz Bruxelas, cuidadosa em restaurar as suas velharias municipais, e ainda do que se pratica em Bruges, não se concedesse licença para adulterar o antigo risco dos edifícios, e o que resta de figurativo permanecesse como o mais instrutivo e eloquente dos museus. Baseado nestes antecedentes afadigava-se para que Alfama se mantivesse intacta à guisa de exposição retrospectiva.»53 Mas, o que ainda é mais significativo, o enredo do romance gira em volta de uma condessa senhora dum palacete na Rua dos Remédios, cujo filho, senhor conde e oficial da marinha, acaba, após quatrocentas e tantas páginas de perigosos e comoventes lances, — em que intervêm marinheiros e estivadores, gatunos e polícias, taberneiros e estudiosos do património artístico e cultural alfamista, acaba, dizíamos, por casar e ser muito feliz com a pobre mas honrada (e bonita) operária de fabricação de cigarros.
53Estamos pois em plena (ainda que decadente) simbiose entre grupos sociais dominantes e plebe. Simbiose cristalizada na malha urbana e no traço arquitectónico do bairro. Simbiose cristalizada, não menos perenemente, no imaginário das gentes de Alfama. E com força tal que arranja artes de, insinuando-se no espírito do bem-intencionado escritor disposto a retratar a vida característica do bairro, fazer dar à estampa algumas das formas míticas mais importantes desse imaginário. Já o dissemos: é sortilégio de Alfama produzir imagens de si própria que apresenta convincentemente a quem lhe é exterior e até, quantas vezes — e dependendo de quais dessas imagens se tratam, e em volta de que temas —, convincentemente também para os próprios habitantes de Alfama.
54Tivemos oportunidade de, nos anos de contacto com o bairro, ir «descascando» camadas sucessivas dessas produções imaginárias. Não pretendemos, de modo nenhum, ter chegado ao caroço. O que, aliás, é de qualquer modo impossível, pois que essas representações, mitos, redes de significações, mais ou menos estruturadas simbolicamente, são parte intrinsecamente constitutiva da realidade sociocultural de Alfama. O que não quer dizer que não procuremos mar r-nos lúcidos perante o forte poder encantatório que a linguagem cultural do bairro alfamista consegue exercer sobre o visitante.
55É talvez oportuno retomar aqui o livro de Maria José Paixão, nas suas conclusões. Não abordando os aspectos que focámos anteriormente, afirma que «Alfama não é uma comunidade heterogénea»54. E acrescenta: «O operariado é a classe dominante e impõe uma certa uniformização de comportamentos.»55 Já antes tinha declarado: «O espírito comunitário tão enraizado na população de Alfama é pois favorecido por este sentimento de solidariedade resultante da igualdade de situações que caracterizam a própria classe operária que, como vimos, é predominante nesta zona da capital.»56 Ora, parece-nos agora bastante claro que não é a homogeneidade a chave da compreensão de grande parte dos comportamentos, das vivências e das representações das gentes de Alfama. A semelhança de situações socioeconómicas de grande parte da população de Alfama tem de ser analisada em simultaneidade com aquelas facetas de simbiose entre grupos dominantes e povo miúdo. Simbiose pacífica? Simbiose conflitual? Antes de chegarmos a estes e outros aspectos teremos que passar ainda, mais à frente, por uma longa, mas esclarecedora, análise de E. J. Hobsbawm, em Rebeldes Primitivos, sobre as cidades mediterrânicas pré-industriais e em integração no capitalismo57. Lá voltaremos. Para já notemos que essa simbiose é sobretudo revelada através de uma arqueologia arquitectónico-urbanística dos edifícios e dos espaços e duma arqueologia antropológica das formas culturais que teimam em permanecer, repetindo-se para além do relativo esboroamento do contexto social em que se teriam implantado. Mas talvez que essas formas culturais tenham sido investidas por renovados fenómenos de organização das actividades, por novas relações económicas e de poder (de dominação/dependência). Relembremos aqui o que já aflorámos sobre as actividades marítimas, a organização do trabalho portuário e seus prolongamentos. Dificilmente serão compreensíveis essas realidades (e as formas que assumem as práticas do quotidiano, os valores e as repesentações a elas associadas), caracterizando-as, sem mais, como um «espírito comunitário» próprio duma «classe operária». A designação «classe operária» não se aplica aqui tão exaustivamente como isso e, mesmo quando é formalmente adequada, não conota duma forma eficaz com a realidade observada sem que a matizemos e a adjectivemos.
56A tudo isto se ligam ainda as últimas proposições de M. J. Paixão: «Alfama é também uma zona de residência dos imigrantes recentemente chegados a Lisboa, e este facto contribui para manter as características desta comunidade.»58 Mas não verificámos nós que alguns dos mais fortes mecanismos culturais de produção da vivência comunitária (como, por exemplo, o fado) são caracteristicamente citadinos e, de certa maneira, actuam como substitutos, profundamente incorporados, da gama de representações, valores, normas, códigos simbólicos e significações imaginárias de que os migrantes eram portadores? Prossigamos: «A existência de grande número de clubes recreativos, que Dumazedier classifica de típicos das pequenas vilas da província, demonstram bem o espírito de grupo e a tendência associativa desta população sem o qual estas organizações não poderiam existir. Parece-nos, pois, que podemos classificar Alfama como uma comunidade de características rurais enquadrada num aglomerado urbano, o que contribui sem dúvida para a sua tipicidade e individualidade.»59 Mas não serão antes as colectividades elementos de estruturação de unidades de vizinhança, ou de redes de amizades, ou de grupos de pressão, conflituais entre si e em relação a outros pontos de condensação das relações de força existentes na vida do bairro? Não se tratará então de explicar, ao contrário, o que é que, para além das colectividades e destes fenómenos a elas associadas, produz a identificação comunitária bairrista e estabelece práticas sintonizadas e representações consensuais? Não se tratará de saber como é que as colectividades funcionam concorrencialmente apesar dessa identidade bairrista e das formas de vivência mais fortemente a ela associadas (como o fado)? Além de que, mesmo admitindo que há um sentido privilegiado de transferência das colectividades das vilas para a cidade (hipótese que não nos parece suficientemente comprovada), uma coisa são «pequenas vilas de província», outra coisa são as dimensões próprias do mundo rural. Não negamos que as possa haver, de algum modo a precisar, em Alfama. Mas não têm provavelmente que ver com as colectividades. Em Les Imaginaires Jean Duvignaud diz que «é certo que existiu no século passado na Europa uma expressão imaginária própria dos camponeses tornados operários nos grandes centros urbanos: as ‘classes perigosas’ de que fala Louis Chevalier (Classes laborieuses, classes dangereuses) autogeriram-se antes de serem absorvidas pela vida industrial. O melodrama, a mímica, as imagens de Epinal, as marionetas, constituíram, em França por exemplo, essas formas originais.»60 Em Alfama, a absorção ainda não terá sido tão radical, dado o campo de actividades específicas aí praticadas. E as formas culturais de algo relacionado com a ruralidade terão que procurar-se eventualmente nos traços de romaria das festas dos Santos Populares, talvez nos Carnavais. E também em práticas do quotidiano como as que se relacionam com a utilização das casas, das ruas e dos espaços comuns. Embora haja aí que tentar distinguir entre o que possam ser «sobrevivências» e aquilo que são produções análogas de comportamentos devidas a semelhanças ecológicas, de distribuição no espaço e outras que se verificam entre o bairro e a aldeia.
57Não queremos com isto contestar o interesse do excelente estudo de M. J. Paixão, em que tanto nos apoiámos, mas apenas discordar dalgumas das suas teses e conclusões, à luz sobretudo dos ensinamentos que o confronto da realidade social de Alfama (em sentido lato) com o fado nos proporcionou. O fado, se por um lado pode ser estudado enquanto enquadrado em Alfama, revelou-se por outro lado um poderoso analisador das complexas redes de relações sociais, bem como das práticas e produtos culturais desse bairro.
Notes de bas de page
12 O leitor que quiser reportar-se desde já a um enquadramento um pouco mais completo do quadro de interrogações e hipóteses, de pressupostos e de opções quanto à realização da pesquisa e à forma de exposição adoptada, poderá ler nesta altura o posfácio, antes de reiniciar o presente capítulo.
13 João Catarino e Madalena Pereira, A Festa na Rua dos Corvos, ISCTE, manuscrito, 1979.
14 Eduardo de Noronha, Alfama — Gente do Mar, Porto, Livraria Civilização, 1939.
15 Significações imaginárias sociais, no sentido de Castoriadis, «como alteridade e como criação perpétua de alteridade», «como posição primeira, inaugural, irredutível do social histórico e do imaginário social tal como se faz presente e se configura na e pela instituição, como instituição do mundo e da própria sociedade», in Comelius Castoriadis, L’Instituition Imaginaire de la Société, Paris, Seuil, 1975, p. 492.
16 Veja-se por exemplo, Maurice Godelier, Horizons, trajects marxistes en anthropologie, Paris, Maspero, 1973, pp. 43-44.
17 Veja-se, por exemplo, Maurice Godelier, «Infrastructures, sociétés, histoire», Dialectiques, Paris, n.o 21, 1977.
18 Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, Lisboa, Edições 70, 1979 (ed. orig. 1955), pp. 37-38.
19 Vejam-se a este propósito os livros de Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Coimbra, Coimbra Editora, 1945, e Mediterrâneo — Ambiente e Tradição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1968, e de J. Davis, People of Mediterranean — An Essay in Comparative Social Anthropology, London, Routledge & Kegan Paul, 1977.
20 Eric J. Hobsbawm, Rebeldes Primitivos — Estudos sobre Formas Arcaicas de Movimentos Sociais nos Séculos xix e xx, Rio de Janeiro, Zahar, 1978 (ed. orig. 1959).
21 Norberto de Araújo, Peregrinações em Lisboa, Livro X, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1940.
22 Maria José Paixão, Alfama Contribuição para o estudo duma área natural de Lisboa, Lisboa, I. S. C. S. P. U„ 1972.
23 Norberto de Araújo, op. cit.
24 Idem, ibidem, p. 33.
25 Maria José Paixão, op. cit., p. 11.
26 Norberto de Araújo, op. cit., p. 33.
27 Idem, ibidem, p. 32.
28 Júlio de Castilho, A Ribeira de Lisboa, Lisboa, C. M. L., 1948 (3.a edição) e Lisboa Antiga (Bairros Orientais), Lisboa, C. M. L., 1935 (2.a edição).
29 Eduardo de Noronha, op. cit., pp. 129-130 e 288-291.
30 Idem, ibidem, p. 130.
31 Maria José Paixão, op. cit., pp. 16-23.
32 XI Recenseamento da População (Dados Preliminares), 1970, e apuramentos provisórios do XII Recenseamento da População, 1981,
33 Maria José Paixão, op. cit., p. 25.
34 Pierre Besnard, «La culture populaire, discours et théories», in G. Poujol e R. Labourie (org.), Les Cultures Populaires, Toulouse, Edouard Privat, 1979, p. 61.
35 Jean-Charles Lagrée, «Production culturelle et mouvements sociaux, bandes, beatniks, hippies», in G. Poujol e R. Labourie, op. cit., p. 197.
36 Maurice Godelier, «Infrastructures, sociétés, histoire», in Dialectiques, Paris, n.o 21, 1977, p. 49.
37 Jean Duvignaud, «Présentation», in Cause Commune, Les imaginaires, Paris, U. G. E., 1976, p. 7.
38 Maria José Paixão, op. cit., pp. 6-11.
39 Norberto de Araújo, op. cit., especialmente pp. 32-33.
40 Luís Chaves, «Alfama de ontem e Alfama de hoje — Aspectos históricos e etnográficos» (reproduzido de Anais das Bibliotecas, Museus e Arquivo Histórico Municipais, Lisboa, 1936), in Lisboa nas auras do povo e da história — ensaios de etnografia, vol. I, Lisboa, C. M. L., 1961.
41 Alexandre Herculano, O Monge de Cister (Tomo I), Lisboa, Bertrand, 22.a edição, s/d (ed. orig. 1848), p. 148.
42 Norberto de Araújo, op. cit., p. 32.
43 Alexandre Herculano, op. cit., pp. 148-149.
44 Luís Chaves, op. cit., p. 134.
45 Maria José Paixão, op. cit., p. 10.
46 Idem, ibidem, p. 10.
47 Idem, ibidem, pp. 10-11.
48 Norberto de Araújo, op. cit., p. 33.
49 Idem, ibidem, p. 48.
50 Luís Moita, O Fado — Canção de Vencidos, Lisboa, 1936, pp. 26-21.
51 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (Volume X), Lisboa, Editorial Enciclopédia, s/d, p. 823.
52 Maria José Paixão, op. cit., p. 11.
53 Eduardo de Noronha, op. cit. pp. 23-24.
54 Maria José Paixão, op. cit., p. 77.
55 Idem, ibidem, p. 77.
56 Idem, ibidem, p. 27.
57 Eric J. Hobsbawm, op. cit., pp. 112-128.
58 Maria José Paixão, op. cit., p. 77.
59 Idem, ibidem, p. 78.
60 Jean Duvignaud, «La pratique de 1’imaginaire», in Cause Commune, Les Imaginaires, Paris, U. G. E., 1976, p. 438.
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