Posfácio. Carta de regresso a Londres — 19781
p. 439-444
Texte intégral
1A vida do antropólogo é construída sobre contradição e paradoxo. Ele é herdeiro duma longa tradição de viagens para mercados, descobrimentos e conquistas, que, começando com os primeiros navegadores do Mediterrâneo, se seguiu nos séculos de dominação atlântica com a colonização e o extermínio dos primitivos habitantes da África, América do Norte e América Latina. Ele é igualmente, nos escritos e nas lutas de alguns, o descendente daqueles que tentaram ver em diferentes povos um caminho possível para a reestruturação da sociedade em que viviam. É o caso de Paul Gauguin, o artista impulsivo que, insistindo na necessidade de limpar o homem e a sociedade «civilizada» da sua decadência, voltou às origens da vida social, retornando a uma forma mais «pura» e elementar de ser nas ilhas do Pacífico.
2O antropólogo/a, embora muitas vezes um mero técnico dentro dum ramo de uma ciência utilitária, encerra em si a análise fria e desapaixonada das «sociedades primitivas» (pré-industrial, pré-capitalista, tribal ou rural) conjuntamente com a busca de uma maneira diferente de estar no mundo. É o método racional do empirismo escolar das grandes universidades do Ocidente contra a comunhão no quotidiano que o obriga a negar esse esquartejar frio do existir. Mas mesmo no dia-a-dia, o ser o fazedor da «ciência social» obriga-o tantas vezes a olhar tudo e todos como o filão de ouro, o dado etnográfico; as lanças e os cavalos dos de dantes são hoje a máquina fotográfica e as fitas magnetofónicas e poucas vezes se tem a coragem de modificar o discurso, no sentido em que Gauguin modificou as suas telas.
3A contradição do viajante reside no seu papel paradoxal. Embarcado com o fim de entender a essência da «sociedade primitiva» e, por implicação, a sua «sociedade moderna», a volta à terra natal toma-se numa segunda viagem, ainda mais problemática do que a primeira. O seu sistema de referência foi posto do avesso, e o seu regresso vai desenraizá-lo uma vez mais: expulso da «sua» tribo, tem que passar por um rito de reentrada. O retorno ao que fora nalgum tempo familiar, fá-lo um estranho numa terra estranha.
4Tais coisas ocorreram-me num período, não de dias ou semanas, mas de meses intermináveis, depois do meu regresso a Londres após uma longa estada numa pequena aldeia de Trás-os-Montes.
5Passei dois anos e meio vivendo numa comunidade rural, participando e observando, apontando e analisando, desorientando os aldeãos com as minhas perguntas persistentes. Nunca me esquecerei da tensão dos primeiros dias. Fixei-me na taberna/loja onde a carreira de Bragança tem a última paragem. As pessoas entravam rindo e falando, e ao ver-me, desconhecido, paravam abruptamente. Olhares constantes, sussurros, tentativas de descobrir quem era. Percebendo pouco, eu respondia em espanhol e galego; entenderam parte do que eu dizia com a ajuda do taberneiro, que tinha estado uns anos na vizinha Galiza. Porque veio cá? O que é que ele faz na verdade? Vem estudar-nos? A esta aldeia? A nossa fala? De Nova Iorque? — impossível! Em suma, foi o «choque das culturas» e chegámos a um estado de confusão, mesmo de exaustão.
6Divido em três fases a estada na povoação: a incorporação inicial, o período lento do meio e a parte do fim. Cada fase teve as suas correspondências psíquicas e emocionais.
7No princípio, tive de raspar as várias camadas do que era o meu «eu» (valores, preocupações, hábitos de retiro, identidade pessoal) para poder habituar-me àquele ritmo — ritmo que se me veio a colar de tal modo que, na volta a Londres, a mudança ao «eu» original que esperava imediata ainda se não deu. Depois do choque preliminar, encontrei-me após alguns meses de convivência numa relação positiva de afecto com muitas das pessoas do lugar; a ligação investigador-aldeão foi ultrapassada e uma relação de amizade pessoal tão forte, senão ainda mais forte do que as que tinha no meu país ou na Inglaterra, aconteceu. Fui «primo carnal» de certas pessoas e famílias, e representei ritualmente a aldeia em oposição competitiva a outras aldeias vizinhas, o sinal de identificação de que já era «filho adoptivo» de todos. Uma vez conhecido e aceite, participei da ideologia e práticas igualitárias deles nos trabalhos recíprocos e noutros vestígios do comunitarismo ainda vivos face às exigências ecológicas e económicas.
8Os dois grandes ciclos da vida da comunidade interpenetram-se: a vida do indivíduo transformado pelos ritos de passagem com o movimento sazonal da vida agrícola nos seus momentos-chaves — lavradas, sementeiras, segadas do feno e do centeio, malhas e vindimas. O mero facto de residir entre eles determinava a minha participação nestes ciclos. Dois tipos de relações pessoais assim se construíram: um nas celebrações dos baptismos, casamentos e enterros (expressão dos valores e laços íntimos de parentesco e amizade), e outro nas tornajeiras trocadas constantemente entre o grupo mais vasto que engloba todos os co-aldeões em certos períodos da vida agrícola, pastoril ou caseira. «Temos que nos ajudar uns aos outros», foi-me respondido, mas quando perguntei se as horas e as tarefas eram contadas, acrescentaram que «aqui não temos contas — o essencial é ajudar». Nestas tornajeiras, e também nas ajudas às pessoas doentes, velhas e incapacitadas, via-se um laço de co-destino, co-destino assente na existência de seres humanos dentro do mesmo meio natural. Muitas vezes as colheitas e trabalhos agrícolas convertiam-se em verdadeiras festas de música, bailes e chistes. A dependência de cada um em relação aos outros já corta um pouco o individualismo: grande parte do tempo é dedicado aos vizinhos. Sem este sistema, ninguém ali poderia sobreviver.
9A aldeia toda transformara-se em certos momentos numa transfiguração da casa familiar. Nas reuniões do «conselho» para chegar a acordos para o benefício comum — reparações de moinhos, fomos, mas e muros; nas assembleias democráticas dos vizinhos para (agora depois do 25 de Abril) as decisões sobre a sua administração dos baldios; nas festas e romarias; e naquelas expressões simbólicas de grupo como o Carnaval e a Festa do Galo.
10Inevitavelmente, a incorporação no meio social da comunidade trouxe a seguir uma identificação com os seus padrões mentais e emocionais. Cheguei perto do ponto de going native, de me converter num «indígena». Comecei como eles a queixar-me dos mesmos problemas — as mas esburacadas, a falta de luz, a necessidade de alguém na Câmara que «puxasse» por nós, os preços exorbitantes, a exploração que sofríamos, tanto no que comprávamos como nos animais que vendíamos. Comecei a falar com a pronúncia deles, a substituir os meus valores pelos deles. Ao ver que me habituara à sua maneira de viver, e que realmente gostava dos gostos deles (que sempre depreciaram face às imagens que tinham do american way of life), perguntaram-me porque não me casava por lá e «ficava para sempre»?
11A seguir à fase de incorporação veio o difícil período do meio. Com tanto movimento e participação, perdi a minha perspectiva e sentido de tempo. As actividades agrícolas da Primavera e do Verão, executadas ao ar livre, passaram no Outono e no Inverno para debaixo de telha. Os serões de Novembro e Dezembro e as festas familiares das sumptuosas matanças dos porcos, em Janeiro e Fevereiro perderam a sua novidade. O Inverno corria lentamente e o frio só se aliviava «à lareira». Depois, com a vinda do segundo Verão, as novidades do primeiro ano enfraqueceram; a agricultura e a vida material tomaram-se repetitivas. Depois de assistir a vinte e uma matanças durante o primeiro ano, no segundo fui apenas a duas. Tive momentos de isolamento. Então refugiava-me pensando na volta a Londres, ao flat isolado, longe de tanto barulho e tanto contacto íntimo e cansativo com as pessoas. Também eles, os aldeões, notaram a passagem do tempo: depois de um ano e meio na povoação, começaram a perguntar-me — «quando vai embora?».
12Na fase final, com o aproximar da partida, recomeçou uma certa vitalidade e energia. Não sei que parte deste sentimento foi a necessidade de completar o estudo ou uma força deliberada para evitar o choque de um corte abrupto das minhas relações com eles. Veio-me a consciência de que não podia ficar, e que não ia ser, após a partida, outro emigrante como aqueles que em Paris podiam voltar à aldeia e à família em qualquer Agosto ou Natal. O meu desejo de manter o contacto foi frustrado: eles afirmavam — «nunca mais cá volta» e «a nossa amizade está por um fio».
13Será que teriam razão os mais cínicos deles quando diziam: «volta ao seu país, esquece-se de nós, casa-se, compra um carro, uma grande casa, e ganha muito dinheiro»?
14A verdadeira crise, contudo, irrompe na chegada ao país materno. Em contraposição ao «choque de cultura» que senti ao chegar à aldeia, senti o «contrachoque de cultura». Londres, de certo modo uma réplica da Nova Iorque em que me criei, nunca me pareceu tão estranha. As distâncias tão distantes, as pessoas só contactáveis pelo telefone e quase nunca cara a cara, a mecanização de cada detalhe da vida diária, a cronometrização de horas e minutos (a tal «pontualidade britânica»), o silêncio perturbante das pessoas sentadas nas carruagens do metro como estátuas de pedra, a repressão de não se poder dizer uma palavra à pessoa do lado sob pena de violar a sua reserva... Mais, a névoa londrina que só aumenta a aparência moribunda do cinzento que domina casas e edifícios, as respostas curtas, bruscas, dos empregados das lojas, os supermercados atafulhados de objectos chamando ao consumismo e ao fetichismo, a negação do contacto visual e verbal, o tabu do contacto físico até entre amigos e amigas, o viver a uns metros de distância de três famílias vizinhas com quem se trocam umas palavras apenas uma vez por mês.
15Tudo isto não são aspectos só de Londres, mas de um tipo de sociedade urbana que se baseia na fragmentação, na desfiguração do ser humano em nome do «progresso»...
16Foi no meu enquadramento material que encontrei os maiores contrastes com a povoação: o quarto alcatifado, com aquecimento, bem pintado, comparado ao quarto da aldeia — frio, com paredes de cimento e soalho de madeira, a pequena janela descentrada, a luz só de vela e candeeiro. Como foi que os contrastes físicos podiam ter reflexos mentais tão opostos? Chegado a Londres, como puderam tanta calma e comodidade ligar-se com tão péssimas relações com as pessoas? Por outro lado, como podia atingir um sentido tão forte de identificação e amizade com os lavradores da aldeia em tão más condições? Passados uns tempos vi-me obrigado a pendurar na parede a foice com que segava junto a eles e o chapéu de palha com que andava ao sol. Só com dificuldade e superficialmente explicava a vida da comunidade aos conhecidos de cá, que eu já sentia longe com os três anos de ausência. Olhavam as fotos e achavam estranho a uma aberta no cemitério do lugar. Aqui os mortos, como os velhos, são isolados, rejeitados; lá na aldeia a morte é conhecida, mostrada, e publicamente experimentada. Dois mundos. Um muro. Eu.
17À primeira vista, ou melhor dito à minha vista, pareceu-me que este mundo estava construído para destruir qualquer contacto entre as pessoas; era a negação de qualquer relação humana. Será que estou a ver com olhos novos, e por isso com mais clareza, o conservadorismo profundo das classes britânicas e as suas hierarquias minuciosamente definidas? Que saudades das alcunhas cheias de humor e familiaridade da aldeia — «o Tardego», «o Criveiro», «o Tio Ferrinhos» — face às distinções rígidas das formas de tratamento de acordo com o estatuto social: o «Mister», «Doctor», «Professor», até o «Sir». Estava a ver, agora de fora e não de dentro, estas divisões que se infiltram até aos aspectos mais microscópicos das relações diárias entre os indivíduos, estes rostos fechados à comunicação com coisas, pessoas ou ideias que lhes sejam estranhas. Assaltou-me o desejo de fugir, de voltar a Portugal e à aldeia, de negar esta negação. Mal eu adivinhava na povoação como aquele conceito de paraíso de ter a própria casa se havia de tomar num isolamento que forçava o retomo à terriola nos pensamentos e nos sonhos.
18Este contrachoque traz dois choques: o de chegar outra vez a uma cultura diferente, e o outro, mais dramático, o da consciencialização de que o «eu» de há três anos atrás já não existia.
19O processo que tentei descrever (e viver) não é só uma saída e volta, uma viagem de uma pessoa e o regresso ao estado «normal» na sua classe, grupo ou contexto: é indicativo de realidades mais profundas. O antropólogo é hoje, em certo sentido, o último descobridor — o último porque o fim das sociedades primitivas já chegou. Ele tenta escapar à realidade alienante que é a sociedade industrial indo viver temporariamente na sua oposição. Em vez do «choque do futuro», ele vai experimentar a ficção científica dum «choque do passado», indo numa máquina do tempo de H. G. Wells até às sociedades sem história. Na sua volta, vê com mais nitidez as contradições e os conflitos do seu ambiente natal.
20Uma vez reentrado na «sua» cultura, tem a obrigação de a mudar, de a transformar. A visão do «outro mundo», daquela maneira de viver mais humana e menos decadente, tem de ser aplicada concretamente ao seu próprio mundo. Tem de ter uma visão crítica do mundo urbano, «civilizado» e desumanizante, mas além disso tem de participar na formação das contestações deste modo de vida — quer sejam movimentos, grupos, «aldeias» dentro das cidades, ou simples relações pessoais de tipo recíproco. A ecologia, a planificação de edifícios, os serviços de saúde local, e os grupos de libertação da mulher (e do homem — também ele vítima de moldes prisionais e difíceis de superar) — são expressões do espírito de independência e revolta, respostas ao imenso ataque destrutivo da conquista, agora interna.
21Será isto uma reconquista, o começo de um renascimento?...
Notes de bas de page
1 Texto publicado originariamente em Raiz e Utopia, n.o 7/8, Outono-Inverno de 1978, pp. 183 a 185.
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