Apêndice I. O inquérito às explorações agrícolas
p. 387-392
Texte intégral
1Não existe qualquer cadastro, quer em Mosteiro quer na vila, ou mesmo nos arquivos do Instituto Geográfico e Cadastral de Lisboa, referente à propriedade fundiária em Fontelas. A estimativa feita por Cutileiro sobre a distribuição da terra em Vila Velha (1977:53-6) baseou-se em parte nos mapas cadastrais do Instituto existentes para o Sul (comunicação pessoal), zona para a qual existem cadastros, que, para o Norte, não se encontravam disponíveis.
2Porém, na Repartição de Finanças da vila estão arquivados livros que são, no seu conjunto, designados não como cadastros mas como matrizes. Estes registos consistem em listas de todas as propriedades dentro dos limites de cada uma das 95 aldeias que compõem o concelho. Aí estão registadas todas as parcelas pertencentes aos «termos» de cada povoação, juntamente com os nomes dos donos e um cálculo da área em jeiras, ou fracções de jeira, exigidas para a lavrar. Uma jeira completa é equivalente, nesta região, a cerca de 0,3 hectares; em termos de área, isto corresponde aproximadamente a 3,3 ares ou a 3300 metros quadrados. Slicher Van Bath descreve semelhantes medidas em diversas partes do Ocidente europeu medieval: num dia, um homem com uma junta de animais lavrava 0,35 hectares em Henley e 0,36 na Suíça (1963:183,299). Loizos verificou uma forma análoga de medidas para o donum de Chipre: perto de 2/3 de 1 acre (0,27 hectares) podem ser lavrados num dia na aldeia de Kalo (1975b:62). Como foi referido no Capítulo 2 (Nota 32), este tipo de medida é hoje raramente utilizado em Fontelas.
3Não existe nenhum mapa de qualquer povoação ou de uma área mais restrita nas matrizes, que são tão antigas que muitas das leiras nelas listadas são hoje cultivadas pelos filhos ou netos dos donos aí registados. Deve-se esta situação, em parte, ao sistema de heranças da região que, por costume, garante aos irmãos partes iguais de leiras, ou campos inteiros de valor igual. A grande maioria das partilhas são realizadas oralmente e não «por escritura», excepto ocasionalmente em casos de testamentos que transferem parcelas específicas para certos legatários; assim, as partilhas apenas são registadas formalmente nos casos levados a tribunal na vila. As matrizes de propriedade são pois muito antiquadas (a estimativa mais precisa que obtive quanto à data da sua compilação foi «há 100 anos»), e o trabalho de reconstituir apenas a exploração agrícola de um aldeão pareceu-me quase impossível.
4Um segundo conjunto de verbetes alfabéticos encontra-se igualmente arquivado na Repartição de Finanças, mas estes foram actualizados diversas vezes desde a altura em que as matrizes originais foram elaboradas. Cada verbete contém a lista das propriedades de cada dono juntamente com o seu rendimento colectável em escudos, mas não refere áreas. Cada dono tem, desta forma, um rendimento colectável de acordo com o cálculo do valor total das suas parcelas (lista semelhante foi compilada na paróquia de Mosteiro em 1892: ver Apêndice II). Embora um pouco mais recentes, algumas destas listas também sofrem de inexactidões quanto às partilhas, e são estritamente confidenciais. De qualquer modo, seria um trabalho igualmente difícil o cruzamento dos cálculos antigos das áreas das parcelas em jeiras com as listas mais recentes referentes aos rendimentos colectáveis dessas mesmas parcelas. Seria necessário localizar, nas velhas matrizes, todas as que se encontrassem no nome de F. mencionadas nos novos verbetes; isto só poderia ser feito procurando todas as terras pertencentes a F. nos vários termos do território da povoação. Além disso, estas listas desactualizam-se constantemente, uma vez que os camponeses fazem melhoramentos não registados nas suas propriedades (a plantação de árvores, o uso de fertilizantes): a contribuição anual de cada indivíduo é uma percentagem do valor total da sua terra, mas o montante desse imposto pode ser muito inferior ao valor real do rendimento colectável da terra em consequência de tais melhoramentos não matriculados.
5Contudo, começou a fazer-se um levantamento cadastral inteiramente novo das terras do concelho em meados de 1978, sendo a freguesia de Mosteiro uma das primeiras. Fazendo parte de um programa nacional, cada avaliação foi executada por um grupo de três louvados que residiam em cada aldeia durante o tempo necessário para o respectivo levantamento; o valor de cada parcela (l.a, 2.a ou 3.a classe) foi anotado juntamente com o nome do seu dono, e efectuou-se uma medição precisa com o uso de uma corda de 10 metros. Sempre que possível, o grupo foi ajudado no seu trabalho por um ou dois moradores recomendados pelo seu conhecimento das terras da povoação — assim se assegurando uma anotação correcta dos nomes dos donos (sobretudo emigrantes ou outras pessoas não residentes) nos casos em que aqueles não podiam acompanhar os avaliadores no levantamento de todas as suas propriedades. O novo cadastro actualizará, portanto, os valores de todas as terras da freguesia para o ano de 1978, mas foi-me dito pelos louvados que o projecto na sua totalidade levaria aproximadamente três anos a ser completado.
6Confrontado com esta difícil situação em termos de dados cadastrais, utilizei o seguinte método para determinar a área das explorações agrícolas: as dimensões totais das propriedades foram calculadas com base no número de alqueires de semeadura de cada parcela. O alqueire é uma medida de capacidade para secos, equivalente nestas aldeias a 17 litros; encontra-se, pois, um pouco abaixo de metade da medida inglesa bushel, ou aproximadamente 2 pecks (4 pecks = 1 bushel = 36,4 litros). É de notar que a capacidade de um alqueire de centeio nesta região é um pouco maior que a de um alqueire de trigo numa freguesia da província do Alentejo, onde é equivalente a 1/3 do bushel inglês (Cutileiro 1971:16). Um hectare de terra de sequeiro em Fontelas tem uma capacidade de cerca de 12 alqueires de semeadura (204 litros ou 5,6 bushels): assim, por exemplo, uma exploração que contenha um certo número de parcelas semeadas com um total de 36 alqueires de centeio, seria equivalente em área a 3 hectares.
7Este cálculo foi baseado inicialmente em várias fontes locais, particularmente os Serviços Florestais e o Grémio da Lavoura da vila, cujos funcionários ou pertencem a esta zona ou estão familiarizados com as práticas agrícolas de Fontelas e povoações vizinhas. Confirmei estes cálculos com a ajuda de vários moradores do lugar, medindo a capacidade de semeadura de diversas parcelas com uma fita métrica de 20 metros de comprimento: um alqueire de centeio ocupava aproximadamente 820 metros quadrados, correspondendo a pouco mais de 12 alqueires por hectare (820 x 12 = 9840 metros quadrados). Há, obviamente, algumas variações no que respeita às quantidades de centeio semeado: primeiro, as diferenças na qualidade dos terrenos podem exigir uma semeadura mais forte ou mais fraca e, em segundo lugar, por vontade dos donos, poderão ser semeadas quantidades maiores ou menores. Estas pequenas variações, porém, não constituem fontes de erro excessivas e raramente variam de uma pessoa para outra, ou de uma leira para outra, em mais de meia dúzia de litros de cereal, ou, no máximo, 1 alqueire. Embora a produtividade de qualquer campo de cereal possa variar cada vez que é semeado (de dois em dois anos) a sua capacidade de semeadura mantém-se sempre constante. Muito poucos aldeãos usam a palavra «hectare» e ainda menos (alguns dos proprietários e lavradores abastados) são capazes de dizer a que área corresponde (10 000 metros quadrados). Todas as medidas de terras feitas pelos próprios habitantes utilizam o método aqui adoptado da capacidade de semeadura em alqueires.
8O cálculo da capacidade de semeadura das leiras foi bastante fácil, uma vez que são semeadas de dois em dois anos; no entanto, as medidas para lameiros, vinhas e cortinhas apresentaram-se mais difíceis. Calculei as áreas destes tipos de terra a partir de estimativas fornecidas pelos donos, segundo a quantidade de alqueires de cereal que poderia ser semeada nestas parcelas se fossem lavradas e semeadas com centeio. A área total da propriedade em capacidade de semeadura foi então dividida por 12, obtendo-se assim uma área total em hectares. Estou convencido de que as estimativas, parcela por parcela, fornecidas pela maioria dos moradores, são correctas com um erro possível de 0,5 alqueire (0,04 hectares) visto que a maior parte deles tem trabalhado, ao longo dos anos, não só nos seus próprios campos mas em muitos dos pertencentes a parentes e outros vizinhos. Dado que estas medidas são simples estimativas, não se pretendendo compará-las com cálculos cadastrais mais precisos, desprezei uma pequena margem de erro, arredondando o total de hectares de cada exploração até às centésimas. Lembremos que uma grande quantidade de terra de cereal é deixada de pousio todos os anos em consequência do sistema de afolhamento bienal: contudo, quer estando em pousio um ano ou incultas durante vários anos, todas as parcelas possuídas pelos actuais residentes da povoação foram incluídas nas estimativas.
9Utilizando este método, foi-me possível obter cálculos pormenorizados para todas as 55 propriedades da aldeia (o filho de Bento, Bernardo — Casa 31 — cultiva a terra do pai, e o condutor da camioneta — Casa 17 — não possui quaisquer parcelas em Fontelas: retirei, pois, estes dois do total das 57 existentes na comunidade). Na minha opinião, o total relativo a uma das casas (a do lavrador abastado Gabriel) encontra-se certamente muito abaixo do seu valor real, e a tarefa de calcular as dimensões precisas das quatro explorações de proprietários maiores foi particularmente difícil. Nestes casos, as próprias estimativas de cada família foram completadas com informações fornecidas por certo número de aldeãos que conhecem as terras dessas quatro famílias, conseguindo-se uma média aproximada. Todas as restantes casas discriminaram em pormenor os valores das suas terras de cereal (semeadas ou em pousio), leiras irrigadas, lameiros, cortinhas, vinhas, soutos e terra temporariamente inculta ou ocupada por arbustos. Em muitos casos (29 fogos), este cálculo inclui uma listagem, parcela por parcela, da dimensão de cada terra específica que compõe a exploração; outros 26 fogos fizeram estimativas das quantidades totais de cada tipo de terra que cultivavam e das parcelas que possuíam, arrendavam ou arroteavam nos baldios. Na ausência de um cadastro que descreva o terreno da povoação, este foi o único método seguro existente para calcular as dimensões das parcelas e explorações agrícolas, a menos que todas tivessem sido medidas metro a metro.
10Dado que o trabalho de campo já se prolongava por mais de dois anos quando realizei o inquérito, que demorou 5 meses a acabar, estou relativamente confiante no rigor e honestidade da maioria das estimativas (as desconfianças de eu ser espião da Fazenda só se mantiveram nos primeiros meses do trabalho de campo). Que fique bem claro que não recomendo, de modo algum, um inquérito desta profundidade, e do tipo aqui descrito, a quem se encontre no princípio (ou até no meio) de um trabalho de campo antropológico. Quando comecei o inquérito, já me encontrava incorporado e completamente aceite pela comunidade e tinha trabalhado algumas vezes ao lado da maioria dos moradores nas suas leiras ou nas dos outros; por esta altura, as minhas fontes de informação já estavam totalmente acostumadas às múltiplas perguntas e anotações, e a maior parte delas fazia já uma boa ideia da minha pesquisa sobre a aldeia. De facto, logo que comecei a fazer os cálculos das propriedades de um certo número de casas, algumas outras perguntavam «quando é que faz a nossa»?
11Uma amostra de todas as parcelas constituindo uma exploração encontra-se no Quadro 19: aí é listada a propriedade da pequena agricultora Felícia, e inclui a terra por ela possuída bem como aquela que arrenda de outros. Estão também incluídos no quadro os lameiros emprestados para a pastagem de um rebanho de ovelhas possuído a meias e cuidado por Eduardo (marido de Felícia), mas estes prados não se incluem nos totais.
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