Capítulo 8. Conclusão
p. 377-385
Texte intégral
1Ao longo deste livro foi posta uma grande ênfase sobre as desigualdades económicas e sociais dentro de uma pequena aldeia portuguesa. Em vez de resumir ou repetir os argumentos principais já desenvolvidos, tentaremos sintetizar algumas das linhas essenciais do tema central; três pontos são aqui de relevância primordial.
2Voltemos primeiro à questão das estruturas sociais igualitárias. O meu objectivo primacial neste trabalho foi «desmontar» a imagem da comunidade rural harmoniosa; isto foi conseguido graças à deslocação de interesse sobre aspectos de igualdade para elementos de diferenciação e hierarquia social. Alan Macfarlane apontou, para o caso da Inglaterra, os pressupostos errados acerca da existência de menos mobilidade e de menos contacto social nas sociedades rurais do passado; ele afirma que a solução para este problema (tais pressupostos) «não reside na tentativa de encontrar mais comunidades isoladas arquetípicas» (1977a:635-6). Tentei abordar o mesmo problema no contexto ibérico, mas a partir de outro ângulo, demonstrando que mesmo no interior de uma tal comunidade isolada arquetípica abundam variadas desigualdades rígidas em termos económicos e sociais. Por outras palavras, utilizei, de modo deliberado, precisamente o mesmo objecto de estudo (uma pequena povoação serrana) que foi analisado anteriormente pelos etnógrafos do Norte da Península Ibérica, mas obtive uma imagem substancialmente diferente.
3Uma das mais elegantes ilustrações deste ponto pode ser encontrada numa passagem da obra Traveis of the Duke de Chatelet in Portugal (1809). As viagens do duque através de Portugal, em 1777-78, foram comentadas no Editor’s Supplement daquele volume do seguinte modo. No Capítulo XII, o duque enumera uma série de problemas agrícolas do Portugal do século xviii: herdades excessivamente vastas, caminhos mal conservados, cursos de rios não cuidados, número insuficiente de jornaleiros e trabalhadores rurais, serviços e imposições feudais, «opressões de todo o tipo», rebanhos em número cada vez menor, e vagabundos. O editor dizia então:
«... Estes problemas explicam a razão pela qual 2/3 da área de Portugal permanece ainda inculta, e por que é que a parte que está cultivada com vinhas, oliveiras, cereal, ervas medicinais, florestas, etc., não atinge o estado de perfeição que pareceria possível, e em que, de facto, se encontrava nos fins do século xiii» (Duke de Chatelet 1809:293).
4Trata-se, sem dúvida, de um exemplo extremo da maneira como o descontentamento com a deterioração das condições contemporâneas pode produzir uma idealização bastante exagerada dos tempos antigos. Tal como esta citação indica um certo fantasiar do «antigamente» como uma época harmoniosa ou mais perfeita, assim também a imagem da pequena povoação serrana criada pelos etnógrafos ibéricos conseguiu cimentar um modelo de «comunidade de iguais no passado»: quer no século xiii quer no xix, a vida nas montanhas tinha de ser harmoniosa e igualitária. Através das informações fornecidas pelos autores referidos no Capítulo 1 deste livro, fomos, na verdade, «embalados por uma ideia espúria de ‘comunidade’ que impusemos ao passado» (Macfarlane 1977a:647). Por isso, na ausência de definições precisas e úteis, os termos igualitário e comunitário talvez devessem ser eliminados do nosso vocabulário científico.
5Uma confusão semelhante rodeou o conceito de grupo doméstico ou casa; de modo semelhante à hipotética aldeia igualitária, a casa constituiu o alvo de numerosas tentativas de chegar a definições claras. Muito poucas destas definições se aplicam às actuais estruturas dos fogos em Fontelas, e os meus esforços para ligar estas categorias aos agregados familiares (não só hoje como no passado) acabaram normalmente num maior caos terminológico. Qualquer número de fogos, em qualquer data fornecida pelos Róis de Confessados, serviria para pôr em causa todo o sistema de diagramas de casas desenvolvido por Laslett (1972:31, 41-2), particularmente no que respeita à definição de «grupos conjugais» e ilegitimidade; uma aplicação rígida a esta aldeia de termos como Agregado Familiar Simples só geraria uma maior desordem analítica. De facto, a grande variedade de arranjos domésticos existente em Fontelas parece proporcionar mais exemplos do mítico agregado familiar alargado do que estruturas verdadeiramente nucleares. Ou seja, os fogos desta povoação revelam precisamente aquelas estruturas familiares que Laslett e os outros autores de Household and Family in Past Time (1972) tentaram relegar para uma posição teórica menos proeminente. Isto não quer dizer que o mito do agregado familiar alargado precise de ser reavivado, mas, simplesmente, que é necessário alertar para o perigo de uma aplicação demasiado universalista da hipótese da família nuclear a regiões da Europa rural onde essa categoria não se aplica. Tal como as fictícias aldeias igualitárias, as casas da Europa de outrora podem não ter sido tão nucleares como a nossa visão contemporânea leva a crer.
6O segundo ponto refere-se à religião, ou antes, à suposta relação entre ilegitimidade e Igreja. A religião é uma área pouco analisada neste estudo, principalmente devido à minha preocupação com as estruturas subjacentes no interior da organização social, sobretudo no que respeita às desigualdades económicas, padrões de casamento e costumes de herança. Necessariamente, teve de ser posta de lado a abordagem de uma vasta gama de aspectos ideológicos da vida social — em particular, pormenores sobre o afecto e as intimidades interpessoais no quotidiano, dos quais o comportamento religioso constitui apenas um elemento. Na opinião geral (incluindo a do padre), a população de Fontelas participa nas actividades religiosas da Igreja Católica meramente de maneira superficial. A assistência às missas de domingo segue um padrão bastante regular, mas, todos os anos por altura da Páscoa, o pároco tem de, literalmente, «repreender o seu rebanho» durante o sermão de modo a conseguir a presença de mais do que meia dúzia de vizinhos — especialmente os homens — para que se confessem e façam pelo menos uma comunhão anual. (Isto pode perfeitamente ser uma tendência recente, mas seriam necessários dados suplementares para o provar.) Os principais ritos de passagem são cumpridos pela maioria das casas, mas particularmente relevante é a atitude que, uma vez para lá das portas da igreja, estas cerimónias são unicamente familiares e não de carácter devoto: na realidade, é precisamente o aspecto dessas festas que o padre critica com mais veemência. Do seu ponto de vista, a maior parte dos moradores está demasiadamente preocupada com os bens materiais: a comida, o álcool, a roupa e outros aspectos de ostentação. Efectivamente, o padre refere-se às promessas materialistas feitas pelos camponeses aos santos como sendo não só egoístas mas profundamente «pagãs».
7Uma afirmação que me foi dado ouvir diversas vezes foi a seguinte: «Que há um Deus que nos domina, creio; mas o resto daquela padralhada — nada!». Para a maioria dos habitantes (à excepção do P.e Gregório e dos seus parentes próximos) os rituais da Igreja são aceites como parte integrante da vida, mas não são considerados como inteiramente dominantes. Existem somente dois aldeãos (um deles é prima do padre) considerados como fanáticos religiosos, e mesmo o pároco às vezes ri-se deles devido ao seu comportamento bem idiossincrático. Ao contrário dos moradores da comunidade montanhesa grega de Ambéli (Du Boulay 1974), o povo de Fontelas não tem o hábito de fazer constantemente o sinal-da-cruz antes, durante ou após as refeições: a única casa onde testemunhei tal prática foi na do padre. Sente-se uma tónica geral de anticlericalismo em Fontelas bem como nas povoações vizinhas, embora a situação actual possa ser bastante invulgar: muitos dos aldeãos, hoje adultos, conheceram o actual padre como criança antes de ele ter ido para o Seminário, e este facto pode ter influenciado a apreciação local do seu papel sagrado, conferindo-lhe uma nota de ressentimento secular. Como ele pertence a uma família de proprietários muito abastada, é de esperar a existência de alguma inveja indirecta e desconfiança por parte dos outros vizinhos do lugar. Surge no dito abaixo citado uma forte censura, habitual entre os comentários dos camponeses, às pessoas que «rezam de mais» ou exibem um excessivo zelo religioso:
A porta do rezador.
Não ponhas o trigo ao sol.
8As implicações deste dito são, obviamente, que «aqueles que fazem figura de piedosos são de facto os piores ladrões».
9A questão que se levanta neste momento, relacionada com a religião, é a seguinte: como é que as elevadas proporções de ilegitimidade nesta comunidade se podem conciliar com as tradições católicas do Norte do País? Admito que a falácia reside no próprio fraseado da pergunta. Pode não existir qualquer elo directo entre as altas proporções de ilegitimidade e uma Igreja «fraca»; na verdade, as duas não são necessariamente antagónicas. A propósito, citamos uma passagem maravilhosa, uma vez mais da autoria do Duke de Chatelet, sobre as suas viagens:
«Pode conceber-se facilmente que os monges levem uma vida da mais desenfreada devassidão; mas deve provocar algum espanto se formos informados que todos os conventos de freiras são uma espécie de serralho, onde a mais desavergonhada libertinagem desembaraçadamente encontra satisfação. O convento de Odivelas, durante o reinado de D. João V, continha 300 freiras, todas novas e belas. Cada uma tinha o seu amante professo; raramente vestiam o hábito da ordem. Tinham como ocupação a mais refinada galantaria, e contavam-se entre as cortesãs mais consumadas do reino. Daí surgiram os numerosos filhos ilegítimos do rei D. João V, que fazia deste convento um verdadeiro harém. O Marquês de Pombal, que de um modo geral desaprovava a multiplicidade de conventos, fez desta circunstância notória um pretexto para suprimir um grande número deles, incorporando-os noutras casas religiosas que não possuíam tão má fama. Contudo, os conventos de ambos os sexos em Portugal podem ser considerados os mais depravados da cristandade» (Duke de Chatelet 1809:91-2).
10Não obstante as aparências, o papel da Igreja pode ter muito pouco a ver com a sexualidade não conjugal. Ou, para colocar o problema de um modo mais apropriado no que respeita a Fontelas, o elo-chave reside na relação entre ilegitimidade e herança; enquanto a maior parte do fardo da bastardia recair sobre os estratos mais baixos da sociedade (as jornaleiras), a Igreja pode, simplesmente, fazer ouvidos de mercador. De qualquer forma, por mais que o clero brade neste tipo de comunidade, as necessidades práticas da casa rural prevalecem sobre os preceitos morais e ideais da Igreja. Em termos muito grosseiros, não se trata de aldeãos que não compreendem os ensinamentos e as regras eclesiásticas, mas antes do facto que, para a maioria deles, esses ensinamentos entram por um ouvido e saem pelo outro: são conscienciosa e sistematicamente ignorados. Vejamos o caso do sacramento do matrimónio — em termos práticos, e apesar da Igreja, apenas uma minoria pode casar e o resto deve contentar-se com uniões irregulares, celibato ou bastardia.
11O terceiro ponto refere-se à antítese da imagem da igualdade rural — uma escala de grupos sociais hierarquizados. Não obstante o surto migratório em Fontelas, os processos sociais descritos nos capítulos anteriores revelam a continuidade de uma estratificação ao longo do tempo, pelo menos desde meados do século xix. O despovoamento dos anos 60 não parece ter transformado totalmente, nem ter nivelado, esta hierarquia profundamente implantada: a emigração não «desceu» sobre a aldeia como um deus ex machina, aclamando a chegada do Progresso a estes últimos sobreviventes da Alta Idade Média. Com efeito, a emigração começou a abrir a povoação de certa forma a algumas influências externas, mas não se deve dar demasiada importância a este percurso. Por exemplo, acentuar excessivamente as mudanças hodiernas provocadas pelo processo migratório tenderia a dirigir a nossa atenção para uma suposta modernização que, neste caso, só agora começa a ter efeitos duradouros sobre a comunidade rural; perder-se-ia toda uma série de características — a continuidade histórica — do sistema social anterior. Esse sistema, apesar das modificações recentes, continua a mostrar marcas profundas de pobreza: não obstante as várias referências neste livro à farta alimentação durante as colheitas, os aldeãos frisam constantemente que, recuando algumas décadas, nem toda a gente tinha um porco para matar no Inverno e que os pastores iam ao monte o dia inteiro apenas com «um cibo de carne gorda e um côdea de pão de centeio». Outros, em busca de alguma pequena remuneração, entraram na rede nocturna do contrabando do café (o trelo), carregando pesados sacos em grupo através das montanhas e vales até ao outro lado da fronteira com Espanha.
12Se este povoado (ou qualquer dos lugares da zona) foi alguma vez uma comunidade fechada, é muito discutível, e na ausência de provas históricas concretas não faz nenhum sentido especular; se investigarmos suficientemente à procura de Ideal Types, descobri-los-emos provavelmente numa forma ou noutra. No entanto, poderemos afirmar com razoável certeza que, com base na riqueza da informação seleccionada a partir das diversas fontes examinadas, a estrutura social de Fontelas se tem caracterizado — pelo menos durante um século — por aspectos inconfundíveis de diferenciação social e desigualdade económica.
13A minha análise, especialmente no que se refere aos últimos capítulos, pode parecer ter dado um papel de excessiva relevância a um sistema abstracto de herança, em vez de se concentrar sobre um determinado grupo de pessoas activas: existe uma razão concreta para isto, relacionada com o conceito de hierarquia social. Nas primeiras páginas da obra Family and Inheritance: Rural Society in Western Europe 1200-1800 (1976), Jack Goody coloca uma grande ênfase nos efeitos que têm os diversos modos de transmissão da propriedade sobre os contornos de variadas estruturas sociais; Fontelas dá-nos um caso-teste para as afirmações mais vastas e comparativas de Goody acerca da Europa rural. As características aqui descritas — o casamento tardio, a ilegitimidade e a escolha de um herdeiro favorecido — apontam, no seu conjunto, para uma forma extrema de repressão do matrimónio com o fim de manter explorações agrícolas viáveis. O timing desta transferência de geração para geração (neste caso só à morte) gera uma série de padrões particularmente estranhos, sobretudo se persistirmos em tentar perspectivar esta comunidade através de um quadro analítico «mediterrânico». O âmago da questão reside, por conseguinte, na forma de transmissão da propriedade que, por si só, adquire vida própria. Ao dividir toda a povoação em duas esferas — a dos herdeiros principais e a dos irmãos dependentes — esse modo de transferência, por definição, sustenta uma escala social concreta que aparta os que têm dos que não têm. Esta cisão pode ser descortinada (como demonstrei) não apenas dentro da composição dos fogos mas também ao nível da aldeia, na estrutura estratificada dos proprietários, lavradores e jornaleiros. Além disso, a divisão também pode ser detectada através de uma dimensão diacrónica: grupos sociais completos (nomeadamente as mulheres com filhos bastardos) reproduzem-se ao longo das gerações precisamente nos mesmos nichos dentro da hierarquia.
14Mas como pode esse sistema de herança chegar a ter um papel tão poderoso? A resposta reside agora na ligação entre as relações sociais e as relações de propriedade. A estrutura social que descrevi implica, intrinsecamente, uma certa dinâmica interna através da qual os abastados permanecem no topo e os pobres são forçados a manter-se em baixo, como vem expresso num dito referido por uma mulher do grupo dos pequenos agricultores:
As uvas são comparadas,
À vida de muita gente,
Nasceram para ser pisadas,
Pelos pés de quem não sente.
15Esta dinâmica interna entre grupos sociais funciona também ao nível do próprio sistema de parentesco — pertinentemente, Goody faz a ligação-chave entre parentesco e propriedade: «O modo de dividir a propriedade é um modo de dividir as pessoas; cria (ou nalguns casos reflecte) uma constelação particular de laços e clivagens entre marido e mulher, pais e filhos, irmãos e irmãs, assim como entre parentes mais afastados» (1976b:3). É esta constelação específica de laços e clivagens que tentei desvendar ao conferir um relevo especial ao sistema de herança post-mortem.
16Mas o truque dos ricos tem sido disfarçar esta dinâmica de domínio, através da máscara de relações igualitárias. Tal como escreveu Bourdieu: «A dominação... deve ser escondida sob um véu de relações encantadas, cujo modelo oficial é dado pelas relações entre parentes» (1977:191). Esta dominação articula-se não somente entre pessoas de gerações alternadas mas também entre grupos sociais como um todo, e o eixo à volta do qual gira esta dominação é a posse da terra. Grande parte dos meus dados aponta para a existência de tais tensões estruturais entre indivíduos e grupos — tensões que normalmente vêm à superfície ou explodem em momentoschaves do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, quando se dão as importantes transferências de propriedade. Deparamos com um dos exemplos mais claros destas tensões estruturais no caso da oposição entre matrimónio e património, que apontei sob diversos ângulos. É neste sentido que a propriedade em si assume um papel quase personalizado em Fontelas, tal como Bourdieu (1976:117) frisa, ao citar a astuta frase de Marx relativamente à herança de bens fundiários: «O beneficiário do morgadio — o filho mais velho — pertence à terra. É ela que o herda».
17A ligação entre as relações sociais e as relações de propriedade é assim evidente no momento crucial de transferência dos bens — à morte. O casamento, a residência e o matrimónio (no sentido amplo do termo) desvanecem-se até à insignificância face à morte e ao domínio do património. Daí a razão por que a contradição entre, por um lado, o ideal da herança divisível e, por outro, a realidade da separação entre herdeiros favorecidos e excluídos, nunca é totalmente resolvida: a igualdade puramente legal entre coherdeiros constitui um disfarce sob o qual se entrechoca toda uma série de desigualdades. Estas desigualdades surgem por altura de um falecimento, quando por regra se realiza um importante reordenamento das relações pessoais e de propriedade. Como tal reorganização não se dá nesta sociedade por altura do casamento, ocorre uma espécie de dupla ruptura protelada à morte; todas as formas de património se encontram reservados até à hora crítica da partilha. É precisamente este elo, entre morte e transferência de propriedade, que enformou grande parte das principais características da estrutura social de Fontelas.
18Alguns anos atrás, Jack Goody fazia a seguinte afirmação acerca do parentesco e da propriedade:
«...embora os antropólogos tenham dado demasiada atenção a factores de parentesco, existe um certo número de áreas essenciais da vida social onde o modo de distribuição da propriedade surge como mais significativo. Não se trata de tentar substituir uma forma monolítica de explicação por outra... o meu interesse concentra-se na tentativa de especificar a maneira como eles se encontram associados, em particular com vista a determinar a influência, sobre as relações de parentesco, das diferenças nos sistemas de transmissão» (Goody 1969:70).
19Levando a afirmação de Goody um pouco mais longe, poderíamos, efectivamente, fazer convergir as relações de parentesco com as relações de propriedade. Foi isso exactamente que sugeri — eis a razão pela qual dediquei tanta atenção ao sistema fundiário e à herança post-mortem. As relações sociais e as relações de propriedade não convergem nesta sociedade unicamente por ocasião da morte; encontram-se continuamente interligadas. Uma das razões para isto baseia-se na precária economia serrana da comunidade: as explorações agrícolas têm de se preservar como unidades produtivas viáveis através da limitação da fertilidade conjugal e das múltiplas pretensões à herança. No meio deste equilíbrio delicado entre a terra e o trabalho, as necessidades da lavoura e da casa (património) têm prioridade sobre as necessidades das pessoas como agentes individuais (matrimónio), conferindo assim à estrutura interna do próprio grupo doméstico uma natureza altamente conflituosa. Mas a morte é o acontecimento chave à volta do qual revolve esta transferência fundamental, e na qual os laços de parentesco e os seus elementos materiais são reorganizados. Neste sentido, as relações de parentesco em Fontelas são, propriamente, relações de propriedade.
20Em conclusão, permito-me encerrar com algumas sugestões para uma futura investigação que possa surgir a partir da minha argumentação neste estudo. Em primeiro lugar, o tema do casamento nocturno (e especialmente a residência natolocal) convida a um trabalho comparativo mais vasto dentro da Europa rural. Em segundo lugar, a especificidade dos aspectos da ilegitimidade nesta região de Portugal merecem uma pesquisa mais detalhada; as proporções aqui referenciadas são das mais altas encontradas para toda a área da Península Ibérica, e particularmente clara é a ligação entre a bastardia e o sistema de herança preferencial. Muitos dos pormenores descritos para Fontelas reflectem os padrões mais gerais tratados por Goody na sua obra Production and Reproduction: A Comparative Study of the Domestic Domain (1976); algumas análises adicionais dos materiais sobre esta aldeia transmontana, no contexto dos trabalhos de Goody, poderão ser frutuosas.
21Em terceiro lugar, todo o tema da sexualidade rural surge como uma questão problemática. Como é que a conduta sexual funciona dentro dos contextos tão diferentes das relações entre, por um lado, os herdeiros favorecidos e, por outro, entre os co-herdeiros excluídos (pais e mães dos bastardos)? Estes últimos apresentam um comportamento quase esquizofrénico em relação às suas casas natais: apesar de poderem produzir dentro das suas casas, são forçados a reproduzir fora delas. Pode perfeitamente verificar-se que vigora um código de sexualidade — substancialmente diferente do amor e do casamento legal — em comunidades como esta; este código mostra todos os sinais de ser dissemelhante daquele que nos é familiar para a região mediterrânica (ou, de facto, para toda a Europa urbana). É possível que se trate de uma região isolada da Europa rural onde a Igreja nunca conseguiu dominar totalmente um substrato popular de moralidade e sexualidade, bem resistente a quaisquer imposições externas. Fontelas apresenta casos que ilustram a teoria de Flandrin (1972:1351) sobre os dois arquétipos da conduta sexual no Ocidente: la procréation por um lado e la passion amoureuse pelo outro — esta separação entre dois comportamentos parece fazer sentido nas duas divisões na comunidade entre, primeiro, a sexualidade respeitável e a ilícita e, segundo, a sexualidade «procriativa» dos herdeiros favorecidos e a «amorosa» dos excluídos. Os dois tipos de conduta nem sempre se encontram separados na prática dos aldeãos ou na análise da sociedade, mas sugiro que é dentro da dinâmica destes dois comportamentos que reside uma possível explicação para a ilegitimidade. Por debaixo desta dinâmica podemos descobrir uma outra, estrutural, gerada pelo sistema de herança.
22Em quarto lugar, a riqueza de informação contida nos Registos Paroquiais e nos Róis de Confessados poderá ajudar na correcção da nossa visão obscurecida das comunidades rurais do passado. As povoações de montanha — supostamente fechadas, bem delimitadas e harmoniosas — podem tornarse precisamente o oposto daquilo que parecem à nossa miopia actual. Um longo período de tempo e um campo mais vasto de aldeias (ou freguesias) talvez proporcionassem dados mais ricos e concludentes do que os oferecidos neste estudo; no entanto, o método adoptado aqui — no sentido de conjugar a Antropologia e a História — abre-nos variadas pistas mesmo relativamente a um minúsculo lugar. De um modo geral, é possível que as fontes históricas contenham grandes lacunas de informação sobre «os ‘pobres invisíveis’ [the ‘invisible poor’], aquela camada social altamente móvel e sem referências escritas na sociedade pré-industrial» (Macfarlane 1980:81). Mas, no caso dos arquivos paroquiais portugueses aqui examinados, os humildes encontram-se tão bem documentados como os remediados ou os abastados. Por conseguinte, este trabalho deverá ser visto como mais um passo para trazer à luz estes pobres, anteriormente ocultos.
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