Capítulo 7. O eixo da herança
p. 339-376
Texte intégral
1Em Fontelas, todas as principais transferências de propriedade ocorrem à morte: este rito de passagem é sistematicamente posto em destaque e ocupa uma posição central dentro do processo de herança ao longo das gerações. A morte é de extrema importância aqui, não apenas porque dá origem a mudanças abruptas nas relações emocionais e de residência entre os vivos, mas também porque é só nesta conjuntura que se efectua a transmissão da autoridade e dos direitos à propriedade.
2Como todos os bens de importância (terra, casas, alfaias e outros móveis) são redistribuídos após o falecimento de uma pessoa, é de prever que o momento específico (o timing) desta transferência tenha repercussões em toda a estrutura social (Goody 1976 b). Na verdade, assim acontece. Neste capítulo, juntarei os elementos principais do livro, já desenvolvidos nos Capítulos 5 e 6. Em primeiro lugar, será feita uma breve descrição do próprio acontecimento da morte e do velório e funeral que se lhe seguem e, em segundo lugar, da efectiva divisão do património por ocasião da partilha. Por último, serão tiradas algumas conclusões acerca das consequências, a longo prazo, do sistema de herança post-mortem para a hierarquia social da aldeia.
a) Os rituais da morte
3A análise de dois falecimentos fornecer-nos-á alguns pormenores comparativos. Na altura de cada um deles, os respectivos grupos domésticos encontravam-se em situações muito diferentes no que respeita à herança: foi bastante pronunciado o contraste entre os eventos rituais que acompanharam cada morte. Ao passo que o que se desenvolveu imediatamente após a primeira foi perfeitamente normal, o que se seguiu à segunda constituiu um caso dramático de conflito de partilhas que penetrou na própria estrutura do ritual mortuário. A comparação também nos dará um exemplo excelente da tese defendida por Bourdieu de que se podem desenvolver estratégias e construir «inumeráveis invenções» mesmo dentro da «sequência rigorosamente estereotipada de um rito» (1977:15). É de suma importância para o argumento deste estudo que captemos o significado destas estratégias no que toca à morte e à herança.
4Pouco depois da minha chegada a Fontelas, um dos aldeãos idosos teve uma infecção cancerosa na boca. Benigno, um antigo lavrador de 82 anos que vive hoje sozinho, aparentemente «queimou o lábio com um cigarro» e, teimosamente, ignorou o avanço da infecção que então se deu. Em Outubro de 1976, a sua saúde piorara bastante, e as duas tentativas da nora para o levar ao hospital foram em vão; como expediente, Benigno continuava a passear-se pela povoação com um pano à volta do pescoço e da boca. Pouco antes da sua morte, principiaram as visitas de outros vizinhos à sua casa (Casa 12 no Mapa 3), enquanto a sua nora Juliana (Casa 6) tratava dele, pois estava entrevado. A 16 de Novembro, faleceu num hospital do Porto, o que trouxe um grande alívio ao povo por ver que o seu inútil sofrimento terminara1.
5Tocam-se os sinos da igreja em sucessão de três carrilhões após um falecimento; assim, em poucos minutos grande parte da comunidade fica a saber da morte e começam a fazer-se visitas à casa do defunto. Durante estas, cada um dá os pêsames aos parentes próximos do falecido: aqueles que não são da família apertam a mão aos parentes chegados, dizendo dou-lhe os meus sentimentos. Estas visitas são curtas, uma vez que os membros do fogo devem preparar o caixão e colocá-lo na sala maior para o velório nessa noite ou na noite seguinte. Como Benigno falecera de manhã e ambos os seus filhos são emigrantes em França e na Alemanha respectivamente, o enterro foi marcado para dois dias mais tarde. As visitas começaram a 16 de Novembro, continuaram a 17 e culminaram no velório dessa mesma noite.
6Depois da morte, um parente próximo (neste caso a nora de Benigno, Juliana) lava o corpo do falecido e veste-o com a sua melhor roupa. Os parentes e os amigos íntimos, tanto de Benigno como de Juliana, ajudaramna. A uma foi adquirida na aldeia vizinha, que se encontra a sul de Fontelas. O taberneiro que vende os caixões faz a entrega sempre em casa do morto, colocando-o na sala principal; a sua taberna situa-se na estrada principal para a vila e fornece as umas para cerca de 10 das povoações mais isoladas à volta de Fontelas. O morto é então posto dentro da uma e envolto com um véu branco transparente, contendo bordadas as palavras «Descansa em Paz». As mãos do defunto são cruzadas sobre o peito e o véu cobre-o da cabeça aos pés; o corpo é então deixado à vista no centro da sala. Colocam-se quatro conjuntos de castiçais, cada um com três velas, nos quatro cantos do caixão; flores, um crucifixo e três grinaldas junto da urna; e por baixo põe-se um tapete. Ao pé do caixão fica uma tigela de água benta, que os visitantes espargem em pequenas gotas sobre o cadáver no momento em que chegam. Na maioria dos casos, o falecido fica na sua própria casa, mas o corpo de Benigno foi trasladado para a da sua nora para aí ser velado. Em nenhuma destas ocasiões se fecha o caixão, estando o corpo sempre à vista.
7Na noite seguinte realizou-se o velório — a que se chama localmente mortório2. Este começa, por via de regra, ao anoitecer, por volta das 8 ou 9 horas; se bem que a maioria dos vizinhos saia pelas 2 da madrugada, alguns parentes chegados ficam até à manhã seguinte. O mortório é, na verdade, um acontecimento que envolve a totalidade da aldeia, e todas as famílias são obrigadas a mandar pelo menos uma pessoa à casa do falecido. Por volta da meia-noite, durante o mortório de Benigno, encontravam-se presentes aproximadamente 60 pessoas. Em contrapartida, os funerais incorporam sempre muitas pessoas de povoações vizinhas e distantes. Existem três subdivisões do espaço em qualquer mortório; a primeira delas está delimitada pelo local do próprio caixão. À chegada, cada visitante deita água benta por cima do defunto e dá os pêsames aos parentes. Então, o visitante fica por um curto espaço de tempo (raramente mais do que 10 a 15 minutos) junto à urna: durante este tempo pode rezar ou simplesmente olhar em silêncio o cadáver. A família do defunto coloca dois bancos de madeira em ambos os lados do caixão, e o grupo que os ocupa raramente excede 6 ou 7 pessoas. Alguém, que pode não ser necessariamente um parente do morto, mantém-se junto da urna à medida que os sucessivos visitantes chegam ou saem da área que a rodeia.
8Após isto, o visitante desloca-se para a segunda área, que é normalmente outra sala, mas que também abrange os corredores intermédios. As conversas aqui têm um nível sonoro marcadamente diferente e podem até atingir proporções elevadas. A maior parte do tempo dos visitantes é aqui passada uns com os outros. O tema dos diálogos nesta área não se limita apenas a comentários sobre o defunto; umas frases rotineiras são trocadas inicialmente — como seja: «todos temos que morrer» e «nascemos para isto». Mas, logo a seguir a estas palavras iniciais, também se fala do morto e da maneira como faleceu: as conversas mudam rapidamente de tema, sendo discutidos outros assuntos. Estes podem incluir tudo quanto se possa imaginar: o tempo, as actividades do dia, os parentes que vivem fora, as notícias, a política nacional ou o estado das vacas ou dos porcos. Não se faz qualquer esforço para se comunicar em voz baixa, e até por vezes se ouvem risadas e exclamações; mandam-se recados entre dois moradores para um terceiro, tal como em qualquer outro momento, e a bisbilhotice habitual continua sobre os assuntos do dia-a-dia. Não é o que estes visitantes dizem mas a sua presença que conta.
9A determinados intervalos, uma visitante (que mais uma vez poderá não ser parente do falecido) inicia uma série de orações pelo defunto; nessa altura, a conversa pára, e todos acompanham as rezas, que são recitadas mais ou menos de hora a hora. Alguns habitantes referiram-me que era costume antigo contratar um grupo de mulheres — choradeiras ou carpideiras — para estarem presentes no mortório, mas que há muito que se não faz. Distribuem-se assentos, cadeiras e bancos para os aldeãos mais velhos, enquanto numa mesa da sala de visitas principal se oferece vinho, pão e bolachas. Fiquei muito impressionado pela naturalidade e franqueza das conversas nos primeiros mortórios a que assisti; se não fossem os trajes pretos e o corpo na outra sala, estes diálogos muito pouco se distinguiriam daqueles que se trocam noutros momentos da vida quotidiana3.
10A terceira área rodeia a lareira. Aqui reúnem-se os visitantes (parentes, amigos e outros vizinhos) que desejam acompanhar a família do falecido de uma forma mais íntima. Alguns visitantes podem, obviamente, ir da sala do caixão até à lareira e depois juntarem-se às pessoas que estão no corredor; mas aqueles que ficam neste recinto mantêm-se geralmente muito calados, procurando confortar os parentes do defunto de um modo mais profundo. Também aqui poderá haver conversas, mas estas tendem a revestir-se de um tom mais discreto. O número de pessoas que se junta nesta zona está condicionado pelo espaço disponível nos bancos perto da lareira — cerca de 10 nas casas mais pequenas, e até 20 ou mais nas abastadas. Não existe qualquer separação entre sexos, quer aqui quer nas outras duas áreas — homens, mulheres e crianças congregam-se em todos estes espaços. É aqui, à lareira, que os aldeãos permanecem ao longo da noite e na manhã seguinte, depois de o grupo maior de visitantes ter saído, por volta das 2 da madrugada.
11Ao longo do velório, os membros da família do defunto estão muito atentos a quem veio e quais as casas da povoação que estão representadas. Vigora uma forte reciprocidade de visitas de mortório, em que os habitantes que não são parentes trocam visitas. Existem, por vezes, fogos que não mandam representantes a um mortório, talvez em consequência de relações tensas com o falecido, ou devido a estarem de relações cortadas com qualquer membro da casa do mesmo. Por exemplo, um vizinho recusou-se a assistir quer ao velório de Benigno quer ao seu funeral, porque pensava que este «era mau» e costumava bater nos miúdos; os dois falavam-se, mas não eram de modo algum íntimos, e o primeiro achava que Benigno «se tinha morto» por ser teimoso. Embora não existisse má vontade por parte da nora de Benigno para com aquele aldeão, reparou-se na sua ausência no mortório. De uma maneira geral, portanto, há uma obrigação de assistir ao velório e funeral de um outro morador, a menos que os laços anteriores de convivência fossem de extrema inimizade.
12O funeral e o enterro de um falecido são dos poucos acontecimentos que envolvem a totalidade do povoado. No dia que se segue ao mortório, os sinos tocam de manhã cedo para anunciar o cortejo que levará o caixão à igreja; isto normalmente dá-se a meio da tarde, por volta das 2 ou 3 horas. Tanto os habitantes de Fontelas como os de outras povoações congregamse fora da casa do defunto. Procede-se a uma curta cerimónia religiosa dentro da casa, enquanto três homens vestidos com opas vermelhas esperam lá fora, para ir à frente do préstito fúnebre. Estes três homens pertencem à única associação religiosa existente no lugar: a confraria. As exéquias constituem as únicas ocasiões em que os membros da confraria de facto fazem alguma coisa. Um deles segura um estandarte com um grande crucifixo do qual pende um pano bordado; à sua esquerda e à sua direita seguem os outros dois homens, cada um transportando hastes com lanternas no topo. O caixão é então fechado temporariamente, sendo levado para a igreja atrás dos três homens.
13Nenhuma estrutura específica orienta o cortejo, quer da casa do defunto para a igreja quer desta para o cemitério. Enquanto os três representantes da confraria conduzem o préstito, os outros vizinhos vão à frente, ao lado ou atrás do caixão e das pessoas que pegam nele; o padre, levando incenso e dizendo orações à medida que caminha, segue sempre logo depois da urna. Os parentes próximos do falecido normalmente vão ao lado ou atrás do padre; depois vêm os restantes participantes, sem que exista qualquer separação segundo a idade ou o sexo. Se bem que seja normal quatro homens transportarem o caixão para a igreja e depois para o cemitério, por vezes um quinto ou um sexto poderão ajudar voluntariamente em qualquer dos lados da uma. Estes quatro homens são geralmente solicitados para esta tarefa pelos parentes chegados do defunto, mas não se trata de uma regra rígida os familiares, ou mesmo os amigos íntimos e vizinhos, podem oferecer-se para esse trabalho.
14Na igreja, a urna é aberta de novo para que o falecido possa ser visto durante a missa, que é chamada de corpo presente. O caixão é colocado da mesma maneira que se encontrava na casa do defunto, mas aqui a cabeça do morto fica em direcção ao altar e os pés para a porta de entrada. No caso de Benigno, a cerimónia foi missa cantada, para a qual foram convidados cinco padres. Quando as formalidades se aproximavam do fim, trouxe-se um banco para junto da cabeça do falecido de modo a que nele fossem depostos contributos para pagar alguns responsos cantados pelos párocos em favor do defunto no fim da cerimónia; a maioria das pessoas que assistiu deu uma pequena quantia em dinheiro que ia de 2$50 a 20$00, raramente mais.
15Após a solenidade, o caixão é de novo fechado e então transportado para o cemitério. O caminho seguido pelo cortejo é sempre o mesmo (Mapa 3); vira à esquerda logo à saída das portas da igreja e continua ao longo do caminho junto da Casa 16. Vira então mais uma vez à esquerda, passando mesmo à direita da Casa 15, descendo um carreiro pedregoso que leva ao bairro do Fundo da Aldeia. Aqui vira à direita, e segue um caminho mais largo que faz uma curva para a esquerda, passa uma casa desabitada (em frente da Casa 11) e finalmente chega ao cemitério. Aí, os homens assentam a urna numa grande pedra rectangular, onde é mais uma vez aberta; neste local, o padre (ou padres) recita os ritos funerários antes que o caixão seja fechado e descido com duas cordas para a campa. No cemitério, também não existem divisões de sexo: qualquer homem ou mulher pode entrar durante as exéquias e o lugar que ocupa é totalmente ad hoc.
16Depois de se baixar a uma, o grupo começa a dispersar-se. Neste momento, os parentes chegados encontram-se geralmente muito angustiados, e alguns têm de ser mantidos de pé pelos outros vizinhos. De imediato, os parentes próximos e os amigos do falecido saem em conjunto, ao passo que os outros aldeãos voltam para casa ou vão tratar dos seus assuntos. Fora do cemitério é posta uma mesa com vinho, pão e uma pequena merenda de sanduíches, para aqueles que assistiram ao funeral mas que têm que percorrer grandes distâncias até às suas povoações. Aqui termina todo este processo: não há qualquer banquete (embora me fossem referidos repastos funerários no passado). Não existem sepulturies ou parcelas de terreno reservadas para determinadas casas ou famílias, que sejam cuidadas exclusivamente por elas (Douglass 1969). Outrora, os cadáveres eram enterrados dentro da própria igreja, e posteriormente no adro; só em 1956, segundo me foi dito pelo pároco, é que os enterros se começaram a fazer no cemitério, situado na extremidade sudoeste da aldeia. Alguns lugares da zona ainda não têm cemitério próprio, e os corpos ainda são enterrados no adro, junto das paredes da igreja. De facto, as próprias umas em madeira são muitos recentes; embora me fosse impossível determinar a data precisa, até há pouco os corpos eram simplesmente envoltos num grande lençol, sendo então levados para a igreja e mais tarde baixados na campa por meio de uma tábua com três lados, chamada «esquife».
17As regras de luto formal em Fontelas não são rígidas e, actualrnente, os moradores consideram que esses curtos períodos de nojo estão a ser ainda mais reduzidos. Para um marido ou mulher, deve ser no mínimo de 2 anos, embora as viúvas possam continuar a usar roupa preta por muitos anos após a morte do marido. Para um pai, mãe, irmão ou filho/a é de 1 ano, sendo de 6 meses o tempo prescrito para tios e avós, e de 3 meses para parentes mais afastados (primos, sobrinhos, cunhados, afilhados, etc.), embora me tenha sido dito por vários habitantes que estes últimos períodos (de menos de 1 ano) continuam a diminuir. Em muitos casos, hoje, o luto para parentes destes graus afastados nem chega aos poucos meses prescritos. Enquanto as mulheres usam o preto continuamente durante estes períodos, os homens costumam colocar um fumo na manga do casaco ou da camisola; no entanto, o uso do preto é menos rigidamente seguido do que a tendência geral para evitar festas familiares ou a participação em outras celebrações locais. Depois de uma morte, são ditas por regra três missas por alma do defunto: a missa do sétimo dia, a missa do primeiro mês e a missa do primeiro ano. Após esta última, o ciclo de ofícios religiosos termina, o que não significa que não possam vir a ser ditas mais tarde outras missas pelo falecido, com qualquer frequência. A única outra obrigação devida ao defunto pelos seus parentes próximos está relacionada com o Dia de Defuntos, a 2 de Novembro de cada ano. Neste dia, celebra-se uma missa especial por todos os falecidos de Fontelas: as mulheres de cada casa colocam então velas, flores e pétalas que formam desenhos sobre as campas dos seus familiares. Esta cerimónia, na aldeia vizinha de Mosteiro, é verdadeiramente espectacular — aí põe-se um cuidado particular na decoração do cemitério no Dia dos Fiéis Defuntos. Após a «missa do primeiro ano», esta é a única data em que são exigidas obrigações religiosas formais para com os mortos.
18Existem três aspectos do ritual funerário que revelam uma desigualdade patente entre os falecimentos dos ricos e os dos pobres, e essas diferenças merecem uma breve nota. O primeiro refere-se à dimensão e duração do mortório — se este incluir muitos visitantes, indica que o defunto possuía uma posição social muito elevada e respeitada. O segundo tem a ver com a dimensão do próprio funeral, não só definido em termos de participantes mas também de despesas (estar presente um padre é normal, é raro haver cinco). No caso de Benigno, os aldeãos explicaram a presença de cinco párocos como consequência do pecúlio junto pelo marido (emigrante) de Juliana: a família tinha-se tornado mais próspera ao longo dos últimos anos e conseguira comprar quantidades substanciais de terra. A própria Juliana discriminou o total das despesas: 2200 escudos foram pagos aos cinco padres (dos quais 780 constituíam de facto uma dívida de oito avenças anuais não pagas ao padre). Além disso, foram gastos 5880 escudos na urna, nuns sapatos para Benigno, pão e marmelada para os visitantes após o funeral, e mais 6000 escudos para a ambulância e o táxi que o trouxeram do hospital do Porto para Fontelas. O total das despesas (menos a dívida de oito anos ao pároco) foi pois de 13 300 escudos; esta quantia pode considerar-se apreciável pela bitola local. Na verdade, alguns habitantes consideraram este funeral presunçoso: «ela pode pagar para uma missa cantada com cinco padres, porque recebe muito dinheiro do marido na Alemanha». Outros também fizeram notar que Benigno não tinha quaisquer qualidades (por exemplo, em termos de reputação ou influência política, etc.) que merecessem uma cerimónia mortuária tão grande e prestigiosa. Um dos moradores disse mesmo que a família de Juliana «queria mostrar-se mais do que era»; o próprio Benigno, se bem que tivesse sido lavrador remediado com terras próprias, não possuía o nível social ou aprumo típicos do grupo de proprietários.
19O terceiro aspecto de hierarquia relacionado com a morte é a presença de dois jazigos particulares no cemitério. Estas sepulturas pertencem a duas casas de lavradores abastados, respectivamente as de Miguel (Casa 30) e Delfim (Casa 40); todos os outros cadáveres são enterrados na terra em outras áreas. Muitos aldeãos criticam esta reserva de espaço público por parte destas famílias abastadas. Contudo, para além destas três formas de diferenciação, os rituais fúnebres de Fontelas são bastante uniformes.
20O impacte da morte sobre a vida constitui um tema que é referido repetidas vezes em canções e versos da literatura oral da comunidade. As cantigas a seguir transcritas, e que anotei em 1976, dão alguma ideia da força com que a morte afecta a vida, e dos sentimentos que perduram após a perca de alguém.
Que queres ir ò cemitério.
Se tu lá não tens ninguém?
Deixe-me, Senhor Coveiro,
Deixe-me, Senhor Coveiro.
Tenho a minha querida mãe,
Deixe-me, Senhor Coveiro,
Deixe-me, Senhor Coveiro,
Tenho a minha querida mãe.
Ò chegar ao cemitério,
A campa da mãe se abriu,
Eram as lágrimas tantas,
Eram as lágrimas tantas.
Quando a querida mãe subiu,
Eram as lágrimas tantas.
Eram as lágrimas tantas.
Quando a querida mãe subiu.
Olha tu, já não tens pai,
Tua mãe também morreu,
Diz-me com quem vives tu.
Diz-me com quem vives tu.
Eu vivo com um irmão meu.
Diz-me lá como lhe fazes,
Para lhe dar de comer,
Mandengando* pelas portas.
Mandengando pelas portas,
Quando não há que fazer,
Queria ir ao cemitério,
E eu sozinha tenho medo.
Queria ir beijar a campa,
Queria ir beijar a campa,
Onde tenho o meu segredo.
Queria ir beijar acampa,
Queria ir beijar a campa,
Onde eu tenho o meu segredo.
* Isto é, mendigando.
21Particularmente digno de nota é o facto de que cada uma das cantigas se refere à relação pais/filho: a primeira trata de uma filha e da sua mãe falecida, e a segunda de uma filha e dos seus pais defuntos. Em ambos os casos, a perda de um pai é retratada de maneira traumática: na segunda canção, a filha tenta recuperar os seus pais passando pela barreira que existe entre a vida e a morte (a campa ou o cemitério).
22Embora a segunda cantiga mencione uma filha que vive «com um irmão meu», ambas apontam para um laço vertical marcadamente forte entre pai e filho; nenhuma delas se refere a laços entre cônjuges ou amantes. Porque é que estas canções expressam tão consistentemente este elo de descendência entre pais e filhos (e a sua quebra à morte)?4
23Observemos o segundo velório, uma vez que este nos revelará a estrutura das relações de propriedade e de herança que estão subjacentes à preocupação com a morte e a descendência. Enquanto me encontrava em Fontelas em Março de 1981, morreu a mãe de um dos lavradores mais abastados da aldeia. Em 1978, Benedita, então com 68 anos, embora bastante acabada, continuava a viver com o seu filho Julião (Casa 19), a mulher deste e os seus sete filhos, ajudando nas tarefas domésticas e, em particular, tomando conta dos netos mais novos. Os acontecimentos que se seguiram à morte dela foram invulgares; o próprio velório foi o mais pequeno que testemunhei, e constituiu de facto um embaraço para a família de Julião. Se bem que no caso do mortório de Benigno se encontrassem presentes aproximadamente 60 indivíduos e no caso dos dois maiores velórios a que assisti estivessem por volta de 100, neste apenas estavam 25 pessoas no momento de maior afluência durante a noite (das 9 à 1 da manhã). Um pequeno grupo constituído por cerca de 15 mulheres e algumas crianças sentavam-se à volta da lareira com a nora de Benedita, enquanto o próprio Julião se misturava com uns 10 a 12 homens noutra parte da ampla cozinha. Os visitantes passaram então da pequena sala onde o corpo jazia para a cozinha ao lado. (Embora Julião seja um lavrador abastado que cultiva a grande propriedade de sua mãe — 27 hectares —, a casa desta é bastante pequena.) A ausência de membros da maioria dos fogos da povoação neste velório era notória; a atmosfera era acentuadamente desconfortável, visto que todos reparavam no pequeno número de pessoas presente.
24O próprio funeral (a que não pude assistir) foi também extremamente pequeno, e os aldeãos frisaram-no. O evento mais estranho deu-se após a cerimónia na igreja: na altura em que a urna deveria ser fechada e levada para o cemitério, nenhum dos indivíduos presentes se ofereceu para a levantar. O padre viu-se obrigado a pedir a três homens (incluindo o próprio Julião) para erguerem a uma e a transportarem para o cemitério. Além disso, a meia-irmã uterina de Julião — Anastácia, da Casa 40 (filha ilegítima de Benedita de outro pai) — não só não compareceu na casa de sua mãe durante o mortório, como nem sequer assistiu à missa na igreja nem foi ao cemitério durante o funeral. Uma disputa de herança afastava, desde há muito, Anastácia tanto do seu meio-irmão Julião como de sua mãe Benedita; esta quezília agravou-se de tal modo após o falecimento do marido de Anastácia, em 1980, que Benedita só com relutância assistiu a esse funeral. Em vez de se vestir de preto, ela, deliberadamente, pôs um xaile branco.
25Os factos que se seguem explicam em grande medida os aspectos bastante inusitados da estrutura do funeral de Benedita. Enquanto esta se encontrava no hospital, alguns dias antes de morrer, Julião fez um testamento que ela assinou; os habitantes perceberam que, através desta manobra, ela tinha deixado todas as suas propriedades exclusivamente a Julião, apesar do facto de aquela só poder legar ao seu filho (ou a qualquer outra pessoa) o máximo de 1/3 do seu património. Para além da sua meia-irmã mais velha, Anastácia, Julião tem outros cinco irmãos germanos, dois dos quais são deficientes mentais. Uma das suas irmãs germanas vive na casa adjacente (Casa 20), ao passo que os restantes quatro vivem numa aldeia vizinha, apenas um destes quatro irmãos assistiu ao funeral de Benedita, mas nenhum foi ao mortório na noite anterior. A irmã que esteve presente mostrou, de modo inequívoco, que não falava com o irmão Julião. Os comentários eram unânimes em criticar Julião por se ter «aproveitado da velhice da mãe», ao ter feito um testamento a seu próprio favor; este documento foi considerado uma artimanha sua para adquirir bens um autêntico roubo dos quinhões que, de direito, pertenciam aos outros cinco irmãos. Apesar de Julião ter tratado da mãe na velhice, o seu testamento, embora só de 1/3 do seu património, quebrava a tradição local da partilha igualitária, pelo facto de o instituir como herdeiro beneficiado.
26O caso encontra-se agora em tribunal na vila, onde os outros cinco herdeiros vão impugnar o testamento. Um inventário legal do património total de Benedita reclamará qualquer parte dos 2/3 dos haveres dela que constituam a legítima pertencente aos outros cinco filhos. Só quando o caso pendente for encerrado é que se saberá se o testamento transmitiu, na verdade, mais de um terço do património de Benedita a Julião; este pode muito bem ter tido êxito ao incluir o grosso da propriedade da mãe no testamento. Mas o ponto chave é que mesmo um testamento de um terço dos seus bens foi considerado pelos aldeãos uma usurpação injusta das partes que legalmente pertenciam aos outros consortes; as pessoas frisaram várias vezes que os irmãos deficientes de Julião, não obstante a sua incapacidade, tinham todo o direito aos seus quinhões de um sexto da herança da mãe. (Note-se que à morte do marido de Benedita não se efectuou uma partilha entre esta e os seus filhos — a divisão do património dele foi adiada até à morte daquela.) Por último, os moradores vêem neste caso mais um exemplo do padrão clássico, sempre referido com extrema amargura: a utilização por parte de um indivíduo da senilidade ou doença de um dos pais para seu interesse pessoal. Os dois culpados foram o herdeiro ambicioso Julião bem como o funcionário desonesto que «arranjou» os documentos na vila — eis a razão pela qual o mortório e o funeral de Benedita foram tão pouco concorridos, e por que ninguém se ofereceu para levantar a urna.
27O funeral de Benedita demonstra alguns dos profundos conflitos que podem surgir após uma morte. Este é o momento crucial em que convergem as relações sociais e as relações de propriedade, e quando aumenta o potencial para lutas abertas; é lugar-comum as disputas de herança resultarem em rupturas completas entre indivíduos e famílias inteiras.
b) A partilha
28Vimos alguns dos processos que têm lugar depois de um falecimento em Fontelas; observemos agora as formas específicas de divisão do património que ocorrem no momento da partilha. Existem quatro maneiras principais de efectuar uma partilha nesta comunidade: é pois elucidativo observar cada uma destas por sua vez.
291. De boca. Esta é de longe a forma mais frequente de divisão de um património. Após a morte de um indivíduo (presumindo para já que há filhos) metade do património é distribuída em partes iguais entre os descendentes directos: esta metade dos bens do falecido é dividida pelos filhos, sendo a outra metade herdada pelo cônjuge sobrevivente (esclarecerei este aspecto mais adiante). A cada herdeiro pertence, por lei, um quinhão do património total — este inclui campos, alfaias, móveis, gado e uma parte da casa natal. Existe uma igualdade absoluta entre os herdeiros masculinos e femininos, tanto nos costumes locais da aldeia como no Código Civil; não encontrei qualquer preferência (em termos de direito consuetudinário) dentro do sistema de heranças quer por filhos quer por filhas. No que respeita à terra, existem três tipos principais de distribuição:
As leiras podem ser divididas em subparcelas mais pequenas, colocando-se marcos de pedra nos limites;
Cada herdeiro pode obter um conjunto de parcelas inteiras equivalente no seu valor aos conjuntos obtidos pelos outros herdeiros (esta prática é designada «inteirar» ou «osmar»);
Os herdeiros que ficam na povoação podem pedir emprestadas, arrendar ou comprar as parcelas dos seus co-herdeiros residentes fora.
30A excepção dos casos de leiras muito grandes, as escolhas mais frequentes são do tipo b) e c), visto que estas conduzem a uma distribuição mais eficaz das terras de lavoura entre os irmãos que permanecem em Fontelas. Obviamente, uma aderência total à partilha do tipo a), através de subdivisões contínuas de parcelas cada vez mais diminutas, levaria, eventualmente, em termos económicos, a um suicídio colectivo. Desta maneira, recorre-se às divisões do tipo b) e c) para obviar a isto.
31Esta forma de partilha é chamada pelos aldeãos «de boca», simplesmente porque é assim que ela é feita: não há nada escrito e cada herdeiro recebe o seu quinhão. Esta é a razão por que a Repartição de Finanças da vila tem tal dificuldade em se manter ao corrente da posse de propriedades em todas as 95 povoações sob a sua jurisdição — as parcelas ficam frequentemente registadas no nome de um dos pais ou avós. Isto pode, temporariamente, evitar tanto um imposto de sucessão (embora diminuto) como a contribuição predial, mas, a longo prazo, poderá levantar problemas no caso de venda ou conflitos sobre direitos de posse; tais contendas forçarão um herdeiro a obter um título legal do campo(s) em questão. Alternativamente, noutros casos, todas as terras de um grupo de herdeiros podem ser listadas no momento da herança em nome de cada um. Não obstante, a partilha é ainda designada «de boca» porque se evita desse modo o recurso formal a avaliadores ou advogados. Daí a razão por que o termo amigável é utilizado para referir esta forma de divisão: todos os herdeiros repartem o património amigavelmente; cada um regista as suas parcelas (ou novas porções de parcelas) e todos ficam de bem.
32Após os 8 falecimentos acontecidos durante o meu trabalho de campo, efectuaram-se 6 partilhas orais. Dos 2 restantes casos, a propriedade de uma mulher foi deixada indivisa pelos seus três filhos (dos quais dois são emigrantes) enquanto o pai deles viver; no segundo caso, um viúvo (Plácido Veiga) morreu em 1978, deixando somente os seus bens adquiridos (móveis) para serem repartidos entre os seis filhos. Plácido tinha casado em Fontelas, e após a morte da sua mulher em 1973, os seis filhos do casal dividiram imediatamente (de boca) toda a propriedade de sua mãe. A divisão oral é a forma ideal de uma partilha na aldeia e, na realidade, a mais comum.
332. Sortes. Esta forma de partilha foi-me descrita por um certo número de habitantes, embora não me fosse dado observá-la. É semelhante.à divisão oral, com a diferença de que um intermediário, ou testemunha, é chamado de fora da casa para assegurar uma partilha equitativa. A palavra «sorte» refere-se, antes do mais, às pequenas tiras de papel nas quais se descreve a localização das diversas parcelas: esta forma de distribuição é designada por tirar sortes — os papéis são colocados num chapéu e daí tirados aleatoriamente pelos herdeiros. Em segundo lugar, as parcelas ou subparcelas são, elas próprias, chamadas sortes a partir deste momento: qualquer leira da povoação pode assim ser chamada, por exemplo, «a minha sorte» ou «a sorte do meu irmão». Mas o significado original e preciso do termo refere-se às tiras de papel que são metidas no chapéu para posteriormente serem tiradas pelos consortes.
34O sistema de partilhas por sortes implica um certo cuidado por parte dos herdeiros, uma vez que de contrário seria desnecessário chamar uma testemunha de fora, podendo os herdeiros efectivar a partilha oralmente; o sistema também implica que a «sorte» está igualmente distribuída na extracção. A testemunha é, normalmente, um morador de elevado nível social, com bons conhecimentos das terras da povoação, embora em certos casos a pessoa escolhida para tirar os papéis seja uma criança. Juntamente com os herdeiros, a testemunha faz uma lista de todos os campos do falecido. (Não verifiquei se os móveis também são incluídos nas tiras de papel; estes podem ser distribuídos oralmente.) É nesta altura, pouco antes da elaboração da lista, que o valor das parcelas deverá ser decidido e que é mais provável o aparecimento de conflitos. Por exemplo, uma exploração agrícola que consista em 20 leiras e que seja dividida entre 4 herdeiros pode, teoricamente, ser parcelada em 4 partes de 5 leiras cada. Mas também se podem fazer subdivisões ou, como alternativa, podem incluir-se 3 leiras pouco produtivas numa tira e apenas um lameiro muito fértil noutra. Assim, cada herdeiro extrai um papel que contém uma série de campos cujo valor total seja aproximadamente igual.
35O essencial da partilha por sortes é que não deixa de ser uma variante da distribuição de boca; se bem que não tão franca como esta, as divisões por «sorteio» nunca vão a tribunal. É por isso que uma partilha por sortes é relativamente rara: ou os herdeiros concordam entre si e optam por uma partição inteiramente oral, ou estão em tal desacordo que um (ou mais) deles exige que se recorra a organismos judiciais. A partilha por sortes é pois uma forma de compromisso entre um acordo amigável dos co-herdeiros e uma desavença suficientemente grave que conduza a uma acção por vias legais.
363. Escritura. Esta terceira forma de partilha compreende a elaboração de um testamento ou uma doação. Ambas estas formas de transmissão são chamadas partilhas «por escritura», e são consideradas pelos aldeãos como processos muito diferentes das divisões puramente orais ou por sortes: um testamento ou doação introduz um documento escrito no processo de transferência de propriedade. De acordo com a lei (Código Civil de 1966) uma pessoa pode dispor livremente de apenas 1/3 do seu património através de testamento (percentagem que passa a 1/2 se existir um único filho). Essa porção é chamada «o terço» em Fontelas — em termos jurídicos, isto constitui a quota disponível do testador. Os restantes 2/3 formam a legítima dos seus herdeiros, e não podem ser incluídos num testamento.
37Se os herdeiros pensam que a sua legítima foi usurpada, por má-fé ou erro na altura da elaboração do testamento, poderão levar o caso a tribunal e recuperar os quinhões do seu património incorrectamente incluídos nesse documento. É exactamente o que acontece hoje com o testamento de Benedita, acima abordado: os outros cinco consortes desconfiam que todos os bens da mãe, e não apenas a sua quota disponível de 1/3, foram ilegalmente incorporados no testamento por Julião e pelo notário. Mesmo nos casos de testamentos legalmente correctos, persiste um forte sentimento na comunidade de que qualquer testamento subverte a lei da partilha igualitária entre todos os irmãos; como foi dito no Capítulo 5, isto constitui uma contradição fundamental nesta sociedade, sobre a qual me debruçarei mais adiante.
38Num testamento, o testador pode legar uma parte ou a totalidade da sua quota disponível a qualquer indivíduo — este pode ser um ou mais dos seus herdeiros legítimos, o cônjuge ou uma pessoa sem qualquer laço de parentesco com ele/ela. Uma doação implica outros factores e situações; trata-se de uma transferência de propriedade pre-mortem e, como tal, aquilo que mais se parece com um dote em Fontelas. É, na realidade, uma espécie de pseudotestamento, ou avanço na herança, porque a porção de propriedade de que se dispõe através da doação já mexe na quota disponível do testador — deste modo, a doação deixa menos bens para distribuir num testamento posterior. É contudo o único meio existente nesta sociedade (para além das compras e vendas de terra) de transferir a propriedade inter vivos e evitar a regra estrita da herança post-mortem.
39Os moradores mostraram-se muito relutantes em discutir doações que lhes diziam respeito, embora especulassem constantemente acerca do conteúdo de outras. Ouvem-se amiúde na povoação frases como: «deixoulhe aquela leira» ou «a tia fez-lhe doação da casa»: tais mexericos circulam normalmente em tom baixo ou murmurado. Grande parte destas conversas não passa de fantasias e devaneios sobre os bens de outros vizinhos, e não corresponde a um conhecimento concreto dos factos legais, o que está bem patente nas frequentes perguntas feitas aos camponeses pelos advogados e juízes em querelas no tribunal. Ao interrogar as testemunhas, estas costumam responder com as frases nebulosas «dizem que sim» ou também «se é verdade que ele herdou, não sei — mas eu ouvi dizer». Na verdade, os próprios herdeiros nem sempre estão conscientes dos pormenores jurídicos no que respeita aos seus próprios direitos à herança. No entanto, todo este fantasiar acerca dos outros é em si próprio significativo: a terra e a devolução da propriedade constituem uma obsessão dos habitantes de Fontelas5. Dá-se particular atenção aos testamentos e doações porque estes emprestam uma aura de desconfiança e de «interesse escondido» à partilha. Quem obteve o quê, e por que meios? Será que uma determinada pessoa merece realmente ter herdado através de testamento? Ou será que manipulou ou falsificou os documentos do dono unicamente para proveito pessoal? Os pais não constituem o único objecto das intenções cobiçosas dum herdeiro: um tio ou uma tia solteiros são sempre alvos potenciais. Planos sub-reptícios e intrigas diversas poderão aparecer sob o exterior honesto de filhos extremosos, tal como vem expresso na frase:
O cordeirinho manso,
Mama a sua mãe e alheia.
40A inclusão de um testamento por altura de uma partilha acontece às vezes em Fontelas, se bem que seja minha impressão que é uma excepção nos casos em que existem descendentes directos, e mais comum quando se trata de indivíduos solteiros e já idosos. Em nenhum dos 8 casos de pessoas que faleceram durante o trabalho de campo se fez testamento. Após esse trabalho, em 1981, uma mulher (Benedita) deixou testamento, e outra mulher solteira (D. Elvira), falecida no mesmo ano, também deixou testamento. De um modo geral, os moradores encaram este tipo de documento com imensa suspeita, consequência não apenas de uma aversão generalizada ao favoritismo institucionalizado, mas também ao medo enraizado de maquinações legais de herdeiros «gulosos» e notários subornados. É mais provável que surjam conflitos nos casos de testamentos do que nos de partilhas orais ou por sortes, embora não possamos dizer que nestes últimos não exista a possibilidade de disputas; é óbvio que um testamento nem sempre implica forçosamente uma querela, e os herdeiros dos restantes 2/3 do património podem dividir essa parte entre eles, oral e amigavelmente. Não obstante, um testamento suspeito, por ser escrito e legalmente obrigatório, é mais passível de despoletar quaisquer desacordos latentes e ressentimentos, levando todo o caso ao tribunal da vila6.
414. Justiça. Em casos extremos, os problemas de herança poderão forçar uma partilha jurídica em tribunal; os habitantes chamam a este processo simplesmente herança «por lei» ou «por justiça». Assisti a várias audiências sobre partilhas em contenda no tribunal de comarca, compreendendo indivíduos de Fontelas e de outras povoações do concelho. Quando tal acontece, é frequente que os herdeiros, bem como as suas testemunhas, cortem por completo todas as relações sociais. A partilha em si pode exigir a avaliação das parcelas em questão in situ por peritos, pelos advogados das partes e pelo próprio juiz. Como os custos legais são elevados, o recurso a advogados e ao tribunal é uma opção cara e, na opinião dos aldeãos, têm que estar em jogo bens suficientemente valiosos para compensar as diversas despesas que lhe estão inerentes. Existe mesmo um pouco de desconfiança face aos advogados, que os camponeses consideram em geral como mentirosos — «falam bem» e manipulam a lei para os seus próprios interesses e os dos seus clientes. Todavia, quando se chega a um beco sem saída, uma divisão por lei é o último recurso; embora dispendiosa, a partilha judicial (que muitas vezes dura anos) normalmente consegue resolver a disputa original.
42Surge uma segunda forma de herança através do tribunal nos casos de filhos menores cujos pais morrem antes de eles terem atingido a maioridade. Nestas situações, efectua-se uma partilha mandatória — o chamado inventário de menores. Este pode levantar complicações, como nos mostra o caso seguinte. Um jovem de uma casa de pequenos agricultores (cujas posses mal ultrapassam os 4 hectares) suspeitava há longo tempo que um dos proprietários da povoação tinha «apanhado» a seu pai um determinado número de leiras e castanheiros. Os seus avós tinham ambos falecido antes de ele ter 10 anos; desconfiava que o pai daquele proprietário (agora já defunto) falsificara o inventário de menores com a ajuda de funcionários do tribunal, de modo a adquirir grande parte da terra que deveria legalmente ter passado para o pai do rapaz. O proprietário alargou ainda mais a sua já vasta exploração agrícola, ao passo que o pequeno agricultor ficou ainda mais pobre. Na verdade, desde há várias décadas que o pai do jovem não fala com nenhum dos membros da família do proprietário.
43Achando que a situação era insustentável, o rapaz (com 18 anos em 1977) decidiu confrontar abertamente os proprietários. Agarrou num machado, dirigiu-se à leira que ele sabia pertencer por lei a seu pai, e começou a cortar um dos castanheiros aí situados. Tal como supôs, os proprietários nada disseram e não apresentaram queixa formal por danos à propriedade particular; com efeito, tentaram abafar todo o assunto, mas esta era precisamente a reacção que o rapaz pretendia. O silêncio dos proprietários foi prova concludente de que a árvore e a parcela (e, implicitamente, outros campos também) tinham de facto sido roubados a seu pai muitos anos antes: se os proprietários tivessem obtido um título legal de posse da leira, certamente que teriam levado o moço a tribunal. O caso provocou um escândalo em Fontelas, em 1978, e quando deixei a povoação os moradores falavam da querela que já se encontrava em tribunal, e na qual o pequeno agricultor recuperaria legalmente as suas propriedades. O exemplo ilustra não apenas a exploração dos pobres pelos ricos, mas também a oposição entre as partilhas orais e amigáveis, que se limitam ao contexto da comunidade local, e aquelas que envolvem documentos jurídicos e (aos olhos dos aldeãos) as maquinações dos «corruptos» empregados da vila.
44Apresentados estes quatro tipos de partilha vigentes em Fontelas, deparamos com duas características essenciais do sistema de herança local: (1) a sua ênfase na descendência e (2) a frágil posição do cônjuge sobrevivente. Estes elementos são o denominador comum das quatro formas de divisão e estão subjacentes não apenas à transferência de propriedade mas também ao sistema bilateral de cômputo do parentesco7. Observemos, embora rapidamente, ambas estas características.
45Os dois padrões estão patentes no sistema sucessório que determina a ordem dos herdeiros. Anteriormente às alterações substanciais introduzidas no Código Civil em 19778, o património de um indivíduo que morresse intestado era herdado pelas seguintes pessoas (Código Civil 1966: artigo 2133):
Descendentes;
Ascendentes;
Irmãos e seus descendentes;
Cônjuge;
Outros – colaterais até ao sexto grau;
Estado.
46Notemos que o cônjuge sobrevivente aparece apenas em quarto lugar na ordem das várias classes de sucessíveis. Ao casarem-se, na ausência de escrituras antenupciais, pode ser escolhido pelos nubentes um dos três regimes de propriedade conjugal: em primeiro lugar, o de «comunhão de bens», em segundo o de «separação de bens» e, finalmente, o de «comunhão de adquiridos». O regime de separação de bens é escolhido principalmente nos casos de segundas núpcias, de modo a preservar independentes os direitos de herança para os filhos de um primeiro casamento. Na mesma linha, o regime de comunhão de adquiridos tem sido raramente escolhido, pelo menos nas décadas recentes. É importante notar que este arranjo somente se aplica a bens adquiridos pelo casal após o matrimónio; a propriedade de cada um dos cônjuges anterior ao enlace mantém-se legalmente separada, embora formalmente sob a administração do cabeça-de-casal masculino. Em contrapartida, o que se escolhe em Fontelas com mais frequência é o regime de comunhão geral de bens.
47Eis a razão por que, teoricamente, duas partilhas distintas podem ser efectuadas pelos filhos do casal, cada uma após o falecimento de um dos pais. Depois da morte do primeiro cônjuge, metade do património é herdado imediatamente pelos descendentes, enquanto o cônjuge sobrevivente herda a outra metade; esta é dividida depois, a seguir à morte deste cônjuge. Por exemplo, no caso de Benigno, fizeram-se, de facto, duas partilhas; após a morte da mulher dele, em 1969, metade do património foi herdado pelos dois filhos do casal, ao passo que a outra metade se manteve na posse de Benigno. (Embora divididos, é óbvio que os bens adquiridos podem efectivamente continuar não partilhados dentro da casa natal.) Na sequência do falecimento de Benigno, em 1976, os bens deste (incluindo a ampla exploração agrícola de 15 hectares) foram divididos pelos seus dois filhos; como ambos eram emigrantes no estrangeiro, mas só um deles continua a explorar uma propriedade em Fontelas (administrada por Juliana), o património deste último inclui um certo número de parcelas que lhe foram emprestadas pelo irmão. Não se deu, neste caso, nenhum tipo de conflito aberto sobre a herança, nem sequer houve qualquer concorrência excessiva para a posse de terra entre os dois herdeiros.
48Este sistema implica que o cônjuge sobrevivente é deixado numa posição particularmente débil, sendo uma metade do património transferida descendentemente (downwards) e não lateralmente (sideways) (Goody 1970 b). Como é evidente, os filhos (e outros herdeiros) podem protelar a partilha do património que pertence ao primeiro dos pais até à morte do segundo. Contudo, se um casal não tiver filhos, depois do falecimento de um dos dois, a sua propriedade não é herdada pelo cônjuge sobrevivente (embora o máximo de 1/3 possa ser deixado em testamento ou transferido por doação). Pelo contrário, os haveres da pessoa regressam para a sua própria linha de família, seguindo o princípio de paterna paternis/materna maternis (a propriedade do pai reverte à parentela do pai/a propriedade da mãe reverte à parentela da mãe — Le Roy Ladurie 1976:56). Assim, apenas metade dos bens adquiridos após o casamento (podendo estes incluir terras) é herdada pelo cônjuge sobrevivente: o grosso do património do primeiro cônjuge retorna à sua família original. Tal como foi descrito para as regiões do Oeste da França, os costumes de herança em Fontelas
«Concedem apenas uma ligeira importância ao acto conjugal, que eles parecem olhar como uma união efémera de dois indivíduos perecíveis, cada um proveniente de uma linhagem diferente, cujo valor reside na sua permanência. Os costumes ocidentais, portanto, dão prioridade total à estrita circulação das heranças ao longo da rede genealógica» (Le Rov Ladurie 1976:56).
49Resumindo, o sistema de herança em Fontelas coloca uma ênfase extrema sobre a transmissão de propriedade após a morte e não por altura do casamento, sobre as relações de consanguinidade e descendência e não sobre as de afinidade. Um cônjuge sobrevivente permanece desta forma numa situação delicada. Assim, idealmente, o património deverá ser transmitido descendentemente em vez de lateralmente e, na ausência de uma linha de amília (um casal sem filhos), Os bens de cada cônjuge deverão voltar às suas famílias natais; estes são, normalmente, os irmãos da pessoa em questão e os respectivos descendentes (sobrinhos e sobrinhas) ou, na ausência destes, primos mais ou menos distantes até ao sexto grau. É só na ausência de todos estes sucessíveis que o cônjuge ou o Estado herdam. Caso não haja testamento, é deste modo que «desce» a propriedade.
50Outra situação que salienta a posição frágil do cônjuge sobrevivente da-se quando, após a morte do primeiro consorte, a partição da totalidade do património é efectuada entre os descendentes e o cônjuge que sobrevive. Nestes casos, legalmente, apenas metade dos bens do casal deverá ser dividida, mas o cônjuge sobrevivente deixa que os filhos façam, antecipadamente a partilha da sua própria metade; esta prática é designada por «dar a partilha». As divisões feitas deste modo beneficiam os herdeiros que controlam maiores quinhões (evitam fazer duas partilhas), mas deixam o viúvo ou viuva numa situação potencialmente precária. Embora a minha impressão seja que esta forma de partição é rara, constitui uma variante da divisão «de boca» em casos de pessoas enviuvadas mantendo boas relações com os seus descendentes.
51Não nos deve surpreender, pois, que as relações de afinidade sejam por regra menosprezadas neste sistema: a residência natolocal dá um exemplo particularmente claro disto. Outro exemplo é a pouca ênfase posta sobre os vínculos horizontais de parentesco espiritual. O laço de compadrio estabelecido num baptismo entre os pais duma criança e os dois padrinhos não tem qualquer significado em Fontelas. As únicas ocasiões em que as relações entre compadres e comadres funcionam activamente é durante as trocas de trabalho, sobretudo nas colheitas; os compadres não constituem senão mais uma extensão de ajudantes potenciais, e podem deste modo ser substituídos por amigos, vizinhos ou primos afastados9. De muito maior importância nesta comunidade são os laços verticais estabelecidos entre a criança baptizada e os padrinhos: o padrinho e a madrinha ocupam posições mais significativas. No caso do falecimento de ambos os pais da criança, e na ausência de qualquer parente próximo, os padrinhos deverão idealmente assumir a responsabilidade dos cuidados para com ela. Dantes, quando um jovem encontrava o seu padrinho na rua, era obrigado a juntar as mãos num gesto de oração e recitar a seguinte frase: «Ó Senhor Padrinho, deia-me a sua bênção». O padrinho responderia fazendo o sinal-da-cruz, acompanhado das seguintes palavras: «Que Deus lhe abençoe». Embora hoje totalmente abolido, este costume antigo foi-me referido por diversos aldeãos.
52De um modo geral, portanto, é o laço vertical intergerações entre padrinhos e afilhados que assume um papel relevante, e não o laço horizontal intragerações entre os compadres. Os fortes vínculos de descendência pais/filhos que temos estado a examinar são «simulados» pelo laço vertical entre padrinho e afilhado.
53Tornam-se mais claras agora as posições dos herdeiros favorecidos e secundários no que se refere ao património natal. Se bem que a propriedade em Fontelas seja legalmente divisível, na realidade toma uma forma de unigenitura indirecta. Como verificámos no Capítulo 5, nos grupos possuidores de muitas terras o herdeiro favorecido normalmente fica na casa natal e pode em alguns casos unir uma grande parte do património, evitando partilhas. Mas é importante notar que não existem regras rígidas de unigenitura nesta sociedade — a escolha de um filho/a favorecido/a constitui um processo informal e, na verdade, há fogos em que nenhum dos herdeiros é privilegiado em comparação com os outros irmãos. Cabe repetir aqui que não se verifica nenhuma forma de compensação monetária, ou dote, em relação aos co-herdeiros como indemnização por deixarem a casa e renunciarem aos direitos ao seu quinhão do património natal; a menos que sejam deserdados (e nunca ouvi falar de tais casos recentemente), todos os consortes conservam direitos a uma parte dos 2/3 da legítima do património dos pais. Não são pois, de modo algum, herdeiros residuais porque não recebem legalmente um resíduo do património, mas sim quinhões verdadeiramente iguais; também não são, no sentido estrito, herdeiros secundários, excepto em termos sociais. Em teoria, um irmão de um habitante da aldeia que tenha residido durante várias décadas no Brasil poderá regressar depois da morte de um dos pais e reivindicar o seu quinhão de direito (este pode então ser emprestado, arrendado ou vendido). Desta maneira, os vínculos com a casa natal nunca são completamente quebrados.
54Daí a razão pela qual o sistema é indirecto. Nem todos os herdeiros ficam normalmente em Fontelas, ocupando-se da agricultura: alguns emigram, outros casam fora e ainda outros mantêm-se solteiros. Mas, indirectamente, um deles consegue juntar grande parte do património com a mira de evitar não só divisões excessivas da terra como também a dispersão dos «braços para trabalhar». A cada co-herdeiro cabe, teoricamente, uma sorte da casa natal e de todos os outros edifícios de lavoura, mas tal divisão entre seis irmãos, por exemplo, seria obviamente impraticável. Na realidade, só houve duas partilhas de casas em Fontelas nos últimos anos: as Casas 28 e 29 constituíam antigamente uma única residência, assim como as Casas 18 e 19. Na maioria dos casos, um filho mantém-se no papel central dentro da linha de família e é ele que é informalmente escolhido para, no futuro, dirigir o grupo doméstico e a propriedade10. Este poderá ser quer um filho quer uma filha ou, como já vimos, mesmo um criado adoptado.
55Existem vários processos pelos quais se selecciona este herdeiro favorecido: poderá ser o primeiro irmão a casar (muito novo) e a ter netos, ou os pais podem escolher o filho mais trabalhador e honesto e simplesmente educá-lo para um papel de especial responsabilidade e de dedicação à lavoura. Um dos pais, ou ambos, pode mesmo legar parte do património a este filho privilegiado, embora isto possa criar fricções ou conflitos abertos entre os outros co-herdeiros. De qualquer forma, as necessidades práticas da casa obrigam à eliminação das pretensões competitivas destes últimos, se bem que os casamentos deles aumentem, evidentemente, a força destas. Mas a tentativa de atrasar ou evitar esses matrimónios, efectuada quer pelos pais quer mais tarde pelo herdeiro favorecido, tende a minimizar as suas pretensões, e tem geralmente como consequência relegá-los para posições secundárias de solteiros dentro do fogo.
56A principal estratégia do herdeiro favorecido consiste, pois, em adiar a partilha ou, se esta é inevitável, comprar os quinhões dos outros co-herdeiros de modo a consolidar o património total. Como o casamento aqui é por regra bastante tardio, na altura da partilha muitos dos irmãos têm já mais de 30 anos e há muito que se estabeleceram em outros locais; as posições sociais de cada um destes consortes no momento da partilha são decisivas. Quem é que se mantém em Fontelas? Quem é que deixou a povoação? Quem fará pressão para uma partilha e quem exigirá uma parte do património para uso imediato? Embora todos os co-herdeiros sejam legalmente iguais, socialmente as suas posições como pretendentes ao património na altura da partilha podem diferir significativamente: se focássemos unicamente a igualdade legal ideal entre os herdeiros, perder-se-ia então todo o complexo da desigualdade prática entre os favorecidos e os desprivilegiados. Como referiu uma aldeã tão a propósito, o resultado final da partilha não é sempre igualitário:
Uns ficam com as vinhas,
E outros com as pipas.
57Os paralelos existentes com sociedades caracterizadas por sistemas formais de unigenitura e de primogenitura não deverão ser levados demasiado longe, não obstante as suas semelhanças com esta povoação em termos de estrutura social. As regiões da Europa onde se verificam formas de herança com um único herdeiro são frequentemente caracterizadas pelo casamento tardio, o celibato, a emigração institucionalizada e uma ênfase sobre a transmissão de um património intacto ao longo das gerações. Uma diferença essencial entre o sistema sucessório em Fontelas e tais sistemas rígidos de unigenitura é a total ausência nesta comunidade de uma transferência-chave de propriedade por altura do casamento do herdeiro escolhido; esta transferência inter vivos foi referida para o Oeste da Irlanda (Arensberg and Kimball 1940), para o País Basco em Espanha (Douglass 1969), para a Galiza (Lisón-Tolosana 1971/Iturra 1980), e os Alpes italianos (Wolf e Cole 1974). Em todos estes casos, selecciona-se um herdeiro principal e o grosso do património é-lhe transmitido indiviso por ocasião do seu matrimónio (há nestes exemplos uma preferência por herdeiros masculinos). Assim, Douglass afirma que «a transmissão dos direitos de propriedade e de autoridade não está ligada, em Murélaga, a um só rito de passagem» (1969:215); pelo contrário, uma morte em Murélaga sela um processo que já tinha começado com o casamento do herdeiro beneficiado. Os irmãos excluídos têm de contentar-se com um pagamento em dinheiro ou ficar solteiros.
58Mas em Fontelas verificámos que não existe qualquer transferência de propriedade por altura do casamento, e não há nenhum meio institucionalizado através do qual os pais ou o herdeiro favorecido possam forçar os outros irmãos a abandonar a aldeia ou a renunciar às suas partes. O máximo que um pai pode fazer, legalmente, é beneficiar um dos herdeiros com um terço do património e exercer uma pressão social mais forte para que ele continue a dirigir o grupo doméstico. Não existem nomes próprios de casas (house-names) nesta comunidade, à excepção da abastada Casa do Conselho, mas mesmo aqui não se verifica um vínculo formal entre essa casa e as suas leiras não divididas. Embora de um modo geral se tentem evitar partilhas sucessivas, alguma parte de muitas explorações terá de ser repartida eventualmente; assim, a terra, bem como as casas, passam de indivíduo para indivíduo, e não constituem qualquer tipo de propriedade colectiva e indivisa, como nos é dado conhecer nas regiões de unigenitura formal.
59Deste modo, em Fontelas, uma limitação das pretensões dos consortes é conseguida através de um controlo informal de herdeiros; se os co-herdeiros não podem ser formalmente excluídos, podem pelo menos ser persuadidos a enveredar por caminhos diferentes do tomado pelo irmão favorecido. Ainda que as suas perspectivas de casamento sejam limitadas e controladas apertadamente no caso de ficarem na povoação, já não o é a sua actividade sexual. A pouca ênfase geralmente dada por esta sociedade ao matrimónio é responsável em parte por aquele facto, e a tradição de uniões não conjugais e a aceitação da ilegitimidade constituem outras possíveis opções para estes coherdeiros. Nunca totalmente excluídos do património natal em termos jurídicos, e não sendo emigrantes, estes simplesmente «ficam por aí» dentro da aldeia; conservam os direitos legais a uma quota-parte do património, mas a utilização efectiva desses direitos é função das suas circunstâncias específicas no momento da partilha.
60Ao contrário do que acontece nas regiões onde se pratica a unigenitura, aqui a herança está de facto ligada a um único rito de passagem — a morte. De significado fundamental é a ligação que existe entre a morte (o momento crítico da transferência da propriedade) e a segurança na velhice dos pais. Tal como Goody notou, «o elo entre estratificação e economia reside no sistema de herança, que organiza a transmissão da propriedade de uma geração para outra — por morte, na altura do casamento, ou em outro momento do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico» (1976a:65). A transmissão por morte implica não somente um atraso na aquisição de bens pelos mais novos, mas também o prolongamento da retenção dos direitos de propriedade pelos mais velhos. O facto de uma transmissão formal de um património intacto não se dar por ocasião do casamento em Fontelas, faz com que a geração dos pais não perca de forma alguma o controlo sobre a exploração agrícola; eles não passam à reforma da lavoura, a menos que se encontrem totalmente senis. A estrutura do sistema sucessório exige que um ou mais dos filhos (ou outro parente) os tratem com especial carinho à medida que envelhecem: os herdeiros favorecidos, em particular, também serão responsáveis pelas despesas do funeral dos seus pais, tratarão e cuidarão das campas destes no Dia de Defuntos e, pelo menos, encomendarão uma série de três missas por sua alma. É pois esta geração mais idosa que «puxa os cordelinhos» não só da terra como do trabalho.
61A escolha de um herdeiro favorecido garante aqueles cuidados. Mas, na ausência dele, um ou mais co-herdeiros devem assumir este papel de assistência e apoio. Na realidade, foi-me referido por um morador idoso este dito muito apropriado:
Quem é teu herdeiro?
Quem te limpa o traseiro.
62Nos sistemas de unigenitura formal, esta segurança na velhice é garantida através da selecção de um único herdeiro beneficiado. Em Fontelas, todavia, em princípio todos os filhos (como co-herdeiros juridicamente iguais) deverão tratar dos seus pais nos seus últimos anos, mas este ideal nem sempre é alcançado na prática. Os habitantes avaliam constantemente as atenções dos outros para com os pais velhos; paira sempre uma suspeita de que o herdeiro futuro está apenas a investir numa dádiva recíproca de propriedade através de um testamento. De uma maneira geral, porém, o sistema de herança mantém um elemento de previdência social imanente: os pais idosos não se afastam de modo algum da posse ou do controlo da exploração.
63Aquilo que se consegue na unigenitura pelo casamento do herdeiro escolhido só é alcançado nesta sociedade pela morte. Aqui, os pais idosos continuam a administrar a sua propriedade literalmente até mesmo ao dia da morte — é neste sentido que os habitantes referem o dito:
O que dá o seu antes que morra,
Merece com uma porra.
64São malvistos os velhos aldeãos que cedem aos filhos os direitos à propriedade antes da morte — vários casos me foram contados de um viúvo ou viúva que, após terem permitido uma partilha dos bens em vida, foram «postos na rua» e maltratados. Mas estes casos são raros. No entanto, um certo preço tem de ser pago por esta segurança na velhice. O preço é uma protelação excessiva para a geração dos mais novos: a sua aquisição dos direitos de facto aos seus quinhões do património natal é extraordinariamente retardada. O casamento tardio, o celibato e a bastardia constituem alguns dos resultados deste atraso.
c) As implicações da herança
65Como é que a herança enforma as desigualdades sociais desta aldeia no seu conjunto? Quais os modos em que a unigenitura indirecta e a divisão post-mortem afectam os contornos desta sociedade ao longo das gerações? Dois últimos pontos dar-nos-ão algumas respostas: (a) a persistência de elevadas proporções de ilegitimidade e (b) a manutenção de uma hierarquia económica no decorrer do tempo.
66Como constatámos, são os aspectos seguintes que caracterizaram a estrutura social de Fontelas, pelo menos desde os finais do século XIX:
Casamento tardio;
Altas proporções de solteiros;
Grandes grupos domésticos (frequentemente não nucleares);
Ênfase na descendência e não na afinidade;
Residência natolocal;
Proporções elevadas de ilegitimidade.
67Também vimos que, subjacentes a estes aspectos, se encontra a prática da herança retardada após a morte e (entre os grupos detentores de terras) uma tentativa para manter os patrimónios intactos através de formas oblíquas de unigenitura. Observemos agora a última das seis características acima discriminadas: o Quadro 18 apresenta as proporções de ilegitimidade para Fontelas de 1970 até 1978, e foi obtido a partir dos assentos de baptismo do Registo Paroquial. No Apêndice V, compilei uma amostra destes assentos: aí são listados todos os baptismos que se realizaram na povoação ao longo de três décadas (1880-, 1910-e 1950-) bem como as ocupações da mãe e do pai de cada criança nascida. Um exame deste apêndice clarificará como se conseguiram os valores do Quadro 18.
QUADRO 18: Proporções de filhos ilegítimos em fontelas, 1870-1978
Anos | Filhos legítimos (1) | Filhos ilegítimos (2) | Total de | Proporção (%) (2 + 3) |
1870 — 1879 | 41 | 22 | 63 | 34,9 |
1880 — 1889 | 40 | 30 | 70 | 42,9 |
1890 — 1899 | 51 | 30 | 81 | 37,0 |
1900 — 1909 | 39 | 28 | 67 | 41,8 |
1910 — 1919 | 19 | 53 | 72 | 73,6 |
1920 — 1929 | 26 | 55 | 81 | 67,9 |
1930 — 1939 | 27 | 30 | 57 | 52,6 |
1940 — 1949 | 27 | 37 | 64 | 57,8 |
1950 — 1959 | 31 | 28 | 59 | 47,5 |
1960 — 1969 | 36 | 11 | 47 | 23,4 |
1970 — 1978 | 25 | 2 | 27 | 7,4 |
TOTAIS: | 362 | 326 | 688 | 47,4 |
* Note-se que estes valores foram compilados a partir da data de baptismo e não da data de nascimento de cada criança; referem-se, assim, às crianças que eram (em termos eclesiásticos) «ilegítimos» ou «naturais» na data do seu baptismo. Também se encontram nos assentos de baptismo referências a alguns casamentos civis (houve apenas 6), mas não há uma classificação uniforme para os filhos desses casais: houve dois casos em 1923 e um em 1926 de filhos de tais uniões registados como «ilegítimos», mas, em contrapartida, houve dois casos em 1930 e um em 1977 de filhos de tais casais registados como «legítimos». FONTE: Registo Paroquial — Assentos de Baptismo
68As proporções globais de ilegitimidade em Fontelas são extraordinariamente altas, tendo atingido nos finais do século XIX entre 1/3 e quase 1/2 de todos os baptismos. Apesar desta amostra ser numericamente limitada, podemos detectar algumas mudanças através das décadas: a proporção média de ilegitimidade (número de bastardos baptizados tomado como uma percentagem de todas as crianças baptizadas), no decurso do século desde 1870, foi de 47,4%. Por outras palavras, no último século, quase metade de todos os filhos baptizados em Fontelas eram bastardos. Na década de 1910 a 1919 o índice de ilegitimidade atingiu 73,6%; três em cada quatro crianças baptizadas durante aquela década eram ilegítimas. De 1920 até 1929 esta proporção manteve-se quase ao mesmo nível, com o valor de 67,9%11.
69Proporções tão elevadas não foram registadas em qualquer comunidade europeia representada na bibliografia deste livro, embora seja claro que nem todos os autores aí citados tenham efectuado cálculos tão pormenorizados a partir dos assentos de baptismo de Registos Paroquiais. O valor mais elevado que me foi dado encontrar foi de 68,1% para os anos de 1870-1874, numa região alpina do Leste da Áustria (Mitterauer 1981). As elevadas proporções relativas a Fontelas continuaram através dos anos 30 e 40 com 52,6% e 57,8%, respectivamente, baixando levemente durante os anos 50 para 47,5%. Todavia, os valores para Fontelas são meramente um exemplo extremo e localizado de uma tendência regional generalizada:
«Deve ser levado em conta que a taxa de fertilidade ilegítima em Portugal é muito elevada e que se mantém relativamente estável até 1940, mostrando a partir daí um ligeiro declínio. Níveis comparáveis de ilegitimidade só podem ser encontrados em países da Europa Central e Setentrional, tal como a Áustria, a Alemanha Oriental e a Suécia, em contraste com os valores muito baixos de ilegitimidade característicos da Espanha e da Itália» (Livi Bacci 1971:60).
70Deu-se um declínio significativo nos anos 60, com uma proporção verdadeiramente baixa (para Fontelas) de 23,4%: houve também, no total, menos baptismos nesta década. Finalmente, nos anos 70, a proporção desceu para o valor ínfimo de 7,4%: apenas dois filhos naturais entre 25 legítimos foram baptizados entre 1970 e Setembro de 1978. Esta queda no número total de baptismos corresponde exactamente aos movimentos migratórios, especialmente clandestinos, para França e Alemanha Ocidental, que principiaram por volta de 1960 e atingiram enormes proporções após 1964. Os assentos de baptismo para 1977 incluem uma série de baptismos de emigrantes que se realizaram no mês de Agosto, quando eles normalmente vêm de visita à aldeia; os pais destas crianças estão explicitamente registados como «residentes em França». A emigração recente, na qual o grupo de jornaleiros desempenhava um papel da maior importância, pode em parte explicar o declínio dramático nas proporções de ilegitimidade verificadas nos anos 60 e 70, mas não dá uma explicação para os índices consistentemente elevados em décadas anteriores. Esta explicação relativa a períodos mais antigos terá de ser encontrada noutros factores.
71O padrão mais evidente ao longo das décadas (tal como se demonstrou através dos exemplos específicos do Capítulo 5) tem sido a ligação muito íntima entre os filhos bastardos e a ocupação das mulheres solteiras do grupo dos jornaleiros. Em contrapartida, verifica-se a tendência, por parte das lavradoras, para terem filhos legítimos dentro do casamento legal. Uma simples soma dos baptismos de filhos legítimos e ilegítimos oriundos destes dois grupos sociais dá-nos uma boa indicação:
72Do total de 326 filhos ilegítimos baptizados em Fontelas desde 1870, as 172 crianças nascidas a jornaleiras solteiras representavam 52% de todos os baptismos de filhos naturais (Quadro 22, Apêndice V). Embora nem todas as jomaleiras tivessem tido bastardos (87 dos baptismos diziam respeito a filhos legítimos) a tendência entre essas mulheres é manifestamente para nascimentos ilegítimos. Temos, em contraste flagrante, um número extremamente baixo de baptismos de filhos naturais provenientes de mulheres lavradoras: só 10 do total de 112 baptismos neste grupo correspondem a bastardos. A esmagadora maioria das crianças nascidas a lavradoras eram legítimas à data dos seus baptismos. (Alguns, porém, poderão ter nascido ilegitimamente, visto que não é raro haver um intervalo de um mês ou mais entre a data do nascimento e do baptismo.) Além disso, o número de crianças dadas à luz por mulheres jomaleiras (259) é mais do dobro das tidas por mulheres lavradoras (112).
73Não foi considerado aqui o elevado número de outras ocupações de mães (Apêndice V) — a nossa preocupação foi antes destacarmos o contraste entre as mães do grupo de jornaleiros (com poucos bens) e as do grupo de lavradores, com alguma riqueza fundiária. É óbvio que se poderiam fazer cálculos muito mais pormenorizados (e reconstituições de famílias) utilizando os dados extremamente ricos contidos nos assentos de baptismo, mas o que me interessava aqui era apenas focar as tendências gerais reveladas por estes valores12. O padrão básico dos números relativos a filhos bastardos aponta, de modo definitivo, para nascimentos ilegítimos entre os pobres e nascimentos legítimos entre aqueles com amplas terras.
74Os dados do Registo Paroquial alvitram que Fontelas contém não somente uma «subsociedade propensa para a bastardia» (Laslett et al 1980 — the bastardy prone sub-society) mas que toda a povoação tolera, pelo menos tacitamente, a existência de filhos ilegítimos. Na região do Barroso, em Trás-os-Montes, Lourenço Fontes notou que «Era como se apenas houvesse esse filho único, ou seja, morgado. Este sistema explica a existência de filhos ilegítimos em quantidade, em cada aldeia. Não se casavam todos os filhos, mesmo das casas grandes... mas é certo que as mães solteiras são bem aceites pela sociedade» (1977:20). De modo semelhante, Livi Bacci fala-nos das elevadas taxas de ilegitimidade no Norte de Portugal, e faz notar que «dado que uma grande porção da população feminina se encontrava forçosamente excluída do casamento, não é surpreendente encontrarmos um elevado número de gravidezes ilegítimas, frequentemente toleradas pela família e pela sociedade» (1971:72). Fontelas não constitui, assim, uma subsociedade com tendência para a ilegitimidade, mas antes uma comunidade aldeã, toda ela propensa à bastardia13.
75O modo específico de herança em Fontelas dá a entender a sua razão de ser. A Casa 14 fornece-nos um exemplo típico: este fogo encontra-se no auge do seu ciclo de desenvolvimento — o casal mais velho ainda está activo na lavoura, o casal mais novo tem por volta de 30 anos, e Justiniano (solteiro) é mais uma ajuda para o trabalho agrícola. Lembremos que Justiniano foi pai de um filho ilegítimo, tido da meia-irmã de seu pai. Através dos tempos, a direcção do grupo doméstico passará com toda a probabilidade para Benta e Avelino e não para Justiniano (ver Figura 24). Na geração seguinte, é também provável que a neta, Leonarda, se mantenha dentro da casa. Mas o que vai acontecer a Justiniano e ao seu filho natural?
76Dois coelhos são mortos de uma só cajadada: a casa natal mantém, desta forma, a sua mão-de-obra bem como a propriedade, mas só à custa da limitação do matrimónio. Claro que Justiniano poderia casar fora ou emigrar permanentemente (na realidade, ele emigrou para França durante alguns anos, na década de 60); nenhuma destas hipóteses colocaria uma ameaça forte ao património. Também poderia casar tardiamente após o falecimento de ambos os pais; mas a sua pretensão nesta altura seria muito fraca se a compararmos com a de sua irmã Benta. O matrimónio desta, além de estratégico, foi significativamente um casamento precoce (ela tinha 18 anos e Avelino 23). Pelo contrário, Justiniano ficará provavelmente solteiro: uma mão extra na família, mas pai socialmente distante do seu filho bastardo. Tal como os filhos mais novos na Inglaterra do século XVII, à custa dos quais se construíam as grandes fortunas dos filhos mais velhos, estes co-herdeiros e as mães solteiras de crianças ilegítimas «permanecem em casa, aborrecidos e cada vez mais ressentidos» (Thirsk 1969:368): é fundamental para a manutenção de explorações agrícolas viáveis em Fontelas que eles assim se mantenham, socialmente subordinados aos irmãos favorecidos. A actual igualdade jurídica entre co-herdeiros é pois disfarçada sob as tentativas sociais do herdeiro favorecido para adiar os casamentos dos outros irmãos e para suprimir as suas pretensões à herança.
77As mães solteiras de filhos ilegítimos encontram-se numa posição diferente; a sua exclusão, não só do matrimónio como do património, tem sido bem patente até onde recuam os documentos locais. Os próprios aldeãos oferecem explicações aparentemente contraditórias para o fenómeno: os abastados e os pobres encaram o problema sob pontos de vista opostos, e ambos acusam sistematicamente os outros. Os pobres — sobretudo muitas das mães solteiras — culpam os homens ricos por «nos explorarem como criadas ou jornaleiras» e as carregarem de filhos bastardos. Contudo, a gente abastada acusa os desprivilegiados simplesmente por serem pobres — «como é que se podem ajudar a eles próprios, esses pobres diabos?». Um dos lados procura causas económicas e políticas, ao passo que o outro desvela aspectos morais. Na minha opinião, nenhum deles tem razão, mas todo o problema é enformado, à partida, por um modo específico de herança. Nem todos os pais de filhos naturais são ricos, e nem todas as relações que conduzem a filhos ilegítimos envolvem criadas exploradas; muitos pais foram simplesmente co-herdeiros postos de lado (ou «empurrados» para fora) da linha principal de transmissão da propriedade nas suas casas natais. No entanto, no que respeita às mulheres pobres, os filhos constituem sempre um valor positivo, visto que a sua mão-de-obra é altamente cotada; é melhor ter um filho bastardo do que não ter nenhum. Mesmo entre os pobres, são fortes os laços de descendência e de consanguinidade, enquanto os laços de casamento e de afinidade são comparativamente fracos. Tal como Le Roy Ladurie fez notar para o Oeste de França (1976:58), poderíamos afirmar que os costumes de herança nesta região de Portugal «são favoráveis aos filhos, mas não o são ao amor»14.
78As elevadas proporções de ilegitimidade através das décadas fornecemnos provas conclusivas da existência de um padrão persistente de reprodução social de um grupo bastardo ao longo do tempo. A manutenção de um grupo de mulheres jomaleiras e dos seus filhos ilegítimos proporcionou uma fonte de trabalho temporário à jorna para as casas com grande riqueza fundiária; muitos dos criados destas famílias provinham originariamente daquele grupo. Mas o ponto chave é que os abastados também conseguiram garantir esta fonte de trabalho assalariado sem levantarem ameaças ao grosso dos patrimónios da aldeia. As proporções de ilegitimidade são tão altas e os nascimentos ilegítimos tão comuns que, nesta sociedade, a tolerância para com a bastardia tem de ser igualmente elevada; mesmo hoje, em Fontelas, mais de 1/3 das mulheres adultas (com mais de 21 anos) tiveram pelo menos um filho natural durante a sua vida. Os filhos ilegítimos e as mães solteiras, embora situados muito baixo na escala social, são aceites como indivíduos na vida quotidiana, e as uniões não matrimoniais são bem toleradas15.
79Porém, isto não significa que nelas não exista também algum estigma. Como já vimos, os bastardos são chamados zorros, e vários ditos locais indicam a herança do estatuto depreciado das mães pobres: Da ovelha ruim, não sai cordeiro bom. Não há dúvida que a designação zorro adquire um tom de censura, mas é de salientar que esse tom se verifica apenas nos grupos sociais superiores: entre os jornaleiros e pequenos agricultores refere apenas uma criança que não foi ainda perfilhada pelo pai. Uma vez perfilhado (mesmo que o pai não se case com a mãe) o filho ilegítimo deixa de ser zorro. Assim, a conotação de malicioso que o termo sugere e a posição infra-humana a que alude o segundo significado de «raposa» apontam para um conceito altamente ambíguo — ambos os sentidos estão continuamente em jogo. Um bastardo cai sempre no risco de se comportar mal e, se assim o fizer, os habitantes podem invocar o termo como repreensão; mas se não o fizer, é aceite socialmente na aldeia, como qualquer outro filho legítimo. A sexualidade irregular (abrangendo as uniões ilícitas, o concubinato e a exprobração dos zorros) é pois, a longo prazo, um mecanismo — ou um caminho algo tortuoso — para a satisfação da sexualidade e a reprodução de mão-de-obra fora das esferas centrais do casamento e da propriedade. Do ponto de vista dos abastados, uma grande parte da população deverá manter-se marginal ao equilíbrio delicado entre o matrimónio prestigioso e o património indiviso. O problema é, assim, não a ilegitimidade, mas o próprio casamento.
80Desta forma, mantém-se continuamente uma hierarquia social marcada. Os capítulos anteriores mostraram como esta hierarquia é estruturada no que respeita à posse da terra e às trocas desiguais de trabalho; estes três capítulos (5, 6 e 7) revelaram-nos dados concomitantes de uma terceira forma de diferenciação que separa os abastados dos pobres no que respeita ao casamento e à herança. A hierarquia é menos patente nas formas de matrimónio entre grupos do que na divisão entre os herdeiros individuais dum património: de um modo geral, os grandes terra-tenentes contraem uniões com os do mesmo grupo social, e os pobres casam com os pobres. Mas alguns proprietários aliam-se com lavradores e estes também casam com jornaleiros, embora os matrimónios entre os grupos superiores e inferiores sejam extremamente raros. A divisão fundamental existente em Fontelas não se verifica entre grupos que podem ou não casar entre si: existe alguma fluidez entre os grupos, havendo pessoas que sobem ou descem, evitando assim uma escala rígida de matrimónios estritamente endogâmicos a qualquer classe. A clivagem-chave é, antes, entre determinados herdeiros que podem ou não herdar; embora os consortes sejam legalmente iguais, as preocupações práticas do património instituem uma verdadeira desigualdade entre as circunstâncias dos vários herdeiros. Uma tentativa de transmitir a propriedade intacta através das gerações é, em parte, alcançada por meio da unigenitura indirecta e do casamento restrito. Poucos são aqueles que obtêm não só um matrimónio de prestígio mas também um grande quinhão de património, ao passo que muitos são aqueles que nada disso conseguem — porém, a estes é permitida uma certa escolha livre em termos de companheiros sexuais. Nesta ordem de ideias, a estrutura da herança favorece uns poucos e afasta o resto.
81Estes últimos são, efectivamente, «filhos desprivilegiados que correm o risco de cair no proletariado quando provêm do povo, ou numa carreira eclesiástica quando advêm das classes médias ou superiores» (Le Roy Ladurie 1976:63). Isto corresponde, de um modo geral, a uma queda contínua de co-herdeiros das posições que ocupavam as suas casas dentro da hierarquia — designadamente Rufina. O número de indivíduos que caem na escala social através da exclusão (mobilidade descendente) é muito superior àqueles que conseguem subir16. Aqui descobrimos a razão por que a preocupação primordial em manter patrimónios intactos é a do controlo de herdeiros e não unicamente a do controlo de nascimentos: o grupo inferior de jornaleiros e de filhos bastardos pode continuar a expandir-se em número sem que isso ameace a base da unidade do património. O excesso de herdeiros, com pretensões válidas, decerto ameaçará a divisão. Mas para um grande número de aldeãos (o grupo dos jornaleiros) com pretensões menos fortes, se é que existentes, este caminho está fora de questão logo à partida. Ou seja, o topo e a base da hierarquia social apoiam-se mutuamente um ao outro, tal como os herdeiros favorecidos e os seus irmãos secundários se complementam. Aqui reside o eixo do sistema de herança: cada parte está dependente da posição da outra. O único processo pelo qual se resolve a contradição fundamental da sociedade entre a igualdade legal dos consortes e a desigualdade prática entre herdeiros favorecidos e co-herdeiros secundários, é através de ligações ilícitas entre estes últimos e as mães solteiras — uma «classe bastarda» é o resultado final. Os poucos escolhidos ficam com a terra, enquanto os muito excluídos perdem o seu controlo.
82Consequentemente, deve existir uma aprovação efectiva (embora indirecta) da ilegitimidade e da sexualidade não matrimonial, com o fim de manter os patrimónios indivisos. Tal como acontece com os proprietários, os herdeiros favorecidos unem casamento, propriedade e sexualidade; mas, para os restantes, estes três elementos mantêm-se desligados. Se pode existir um nível aceitável de relações sexuais não conjugais (se bem que as jornaleiras tenham que aguentar o maior peso), então um número substancial de pessoas poderá ser mantido fora da concorrência para o património. Desta forma, nem os filhos bastardos nem os herdeiros excluídos são realmente marginais ao sistema social — pelo contrário, tomam-se imprescindíveis para a reprodução do próprio sistema; mas esta integração a longo prazo encontra-se de certa forma escondida, dado que o papel social do herdeiro secundário e dos zorros aparece frequentemente com conotações negativas. Mas a limitação generalizada do casamento na sociedade ainda permite alguns matrimónios favorecidos e prestigiosos. É neste sentido que as duas faces da medalha se apoiam uma à outra: o casamento conceituado não pode continuar como tal sem a reprodução de um grupo de habitantes que sistematicamente seja impedido do acesso ao matrimónio e ao património.
83A hierarquia social de Fontelas compõe-se, pois, destes grupos sociais principais (proprietários, lavradores e jornaleiros) e por um pequeno núcleo que preserva o controlo da maior parte da terra da povoação ao longo de várias gerações. Este núcleo inclui o quarto grupo dos lavradores abastados. As franjas constituídas pelos jornaleiros formam a outra face; ao nível do grupo doméstico, esta oposição reflecte-se na distinção entre herdeiros favorecidos e co-herdeiros excluídos. Ambas as esferas (a casa e a aldeia) são pois caracterizadas por uma desigualdade institucionalizada que reserva o matrimónio e o património como prémios para uma minoria à custa da maioria. Um sistema dualista, então, serve de base à dinâmica interna da estrutura da comunidade no decorrer do tempo: um pequeno grupo de indivíduos possui vantagens ao ter acesso à propriedade e ao casamento de prestígio, ao passo que um enorme grupo se encontra em desvantagem, permanecendo nas margens da base da hierarquia social. Isto faz lembrar a questão levantada no Capítulo 3: a verdadeira divisão no interior do povoado aparta os camponeses detentores de muita terra daqueles que possuem pouca. Tal como os múltiplos ramos de uma árvore, «cai para fora» das suas propriedades natais um número muito maior de pessoas do que aqueles que mantêm o controlo do tronco central do património.
84Para a maior parte dos habitantes de Fontelas o poder predominante do património, dentro de uma agricultura rudimentar, impõe fortes restrições sobre o matrimónio. Uma das consequências mais flagrantes desta limitação é a elevada proporção de ilegitimidade e a reprodução social de um grupo de bastardos através do tempo. Subjacentes a estes processos, e proporcionando-lhes forma estrutural básica, está o facto da herança divisível à morte: a transmissão de todo o património principal está ligada àquele único rito. É este sistema de herança retardada que deixou a sua marca indelével na totalidade da estrutura social da aldeia.
Notes de bas de page
1 Assisti a 8 velórios em Fontelas durante o trabalho de campo e ainda a outro em Março de 1981: a descrição do mortório e do funeral de Benigno é bastante representativa dos outros sete. Contudo, dois dos oito funerais diferiram em alguns aspectos: as casas em questão eram bastante abastadas, sendo os velórios maiores e mais prolongados e as missas ditas por cinco padres em vez de um. Ambos estes falecimentos ocorreram em fogos de proprietários (Casas 29 e 38).
2 A utilização da palavra mortório é por si só bem reveladora. Nenhuma das palavras «velório» ou «vigília» é empregue na povoação, e só o padre usa ocasionalmente a última; os aldeãos empregam apenas o termo mortório, acentuando assim a palavra morte.
3 Tanto Douglass (1969:26-8) como Brandes (1975:172) verificaram atitudes idênticas em relação às conversas durante os velórios em comunidades rurais espanholas, onde as risadas não se mostram despropositadas e onde não existe uma «solenidade de pedra». Douglass interpreta este facto como sinal de uma atitude realista para com a morte em Murélaga.
4 Para Tory Island, também uma sociedade com fortes vínculos de descendência e laços íntimos entre os irmãos, Fox dá um exemplo excepcional da dificuldade na aceitação da partida dum familiar defunto: «Uma expressão extrema de tristeza pelo falecimento de um parente é muito comum; esse pesar, que ultrapassa tudo o que se possa considerar ‘normal’ mesmo segundo os padrões da ilha, transtorna profundamente alguns jovens. Um rapaz foi para a porta de entrada do cemitério e chorou todos os dias durante alguns anos após a morte de sua mãe» (Fox 1978:161).
5 A obsessão dos aldeãos pelas terras é a razão mais citada pelo padre para o seu desejo em deixar o seu trabalho e abandonar Fontelas completamente; o Padre Gregório vê nesta preocupação excessiva para com a terra e a herança uma forma degenerada de materialismo. Desde há longos anos que ele pretende escapar a este «ciclo vicioso de camponeses avaros», pedindo ao bispo para o transferir para Angola ou Moçambique como missionário.
6 Os processos legais aqui resumidos são obviamente mais complexos do que se pode inferir a partir desta breve síntese. O meu objectivo não era penetrar detalhadamente nos pormenores jurídicos da herança, por duas razões: primeiro, porque o assunto requereria uma análise mais profunda e prolongada (muitos aspectos do Direito de Família são comparáveis aos que vigoram em Pisticci — ver Davis 1973). Em segundo lugar, o que é essencial para a tese deste trabalho não são os pormenores legais da herança, mas os efeitos sociais, e a longo prazo, da transferência por morte sobre a estrutura social e a hierarquia interna de Fontelas: encerro este capítulo abordando esse assunto. O conhecimento das regras jurídicas de herança é, evidentemente, de uso limitado para seguir as práticas efectivas e os «passos» específicos de indivíduos na vida quotidiana, tal como a brilhante análise de Bourdieu aponta (1976). Para a obtenção de mais detalhes sobre sistemas sucessórios, consulte-se o Código Civil Português (1867, 1966 e 1977) bem como Graça Branco (1970).
7 O cômputo do parentesco em Fontelas é estritamente bilateral ou cognático. Todos os termos de tratamento possuem equivalentes masculinos e femininos: tanto as tias por linha materna como paterna são chamadas tias. assim como os tios de ambos os lados recebem o mesmo termo. Uma extensão idêntica aplica-se aos avós, netos, primos e outros familiares. Os casamentos entre primos direitos («primos carnais») e primos em segundo grau («primos segundos») necessitam de dispensas eclesiásticas, mas entre primos em terceiro grau («primos terceiros») essas dispensas não são obrigatórias. Para além destes graus, todos os primos são designados como primos afastados e o cômputo torna-se vago. Os primos em terceiro grau constituem os limites da família de um determinado indivíduo, ou do conjunto total dos seus parentes. Os parentes por afinidade são referidos amiúde como familiares, mas com frases qualificativas: por exemplo, a mulher do tio dum «ego» não será chamada tia sem um comentário adicional de que ela é tia por casamento. Até 1977, era dada uma ênfase jurídica particular, nas regras de herança, às relações de consanguinidade e não às de afinidade. As uniões consensuais e outros laços de parentesco irregulares (compreendendo relações entre um padrasto ou uma madrasta e seus enteados) colocam problemas analíticos particularmente complicados, e têm de ser abordados separadamente. Para um resumo do cômputo de parentesco em Portugal, consulte-se Callier-Boisvert 1968), (embora alguns dos seus comentários não se apliquem directamente a esta zona de Trás-os-Montes.
8 As alterações ao Código Civil após a Revolução de 1974 modificaram esta ordem de herdeiros (pelo menos em termos jurídicos) e melhoraram substanciaimente a posição do cônjuge sobrevivente. Actualmente, a sequência das várias classes de sucessíveis desenrola-se do seguinte modo:
1. Cônjuge e descendentes;
2. Cônjuge e ascendentes;
3. Irmãos e seus descendentes;
4. Outros colaterais até ao quarto grau;
5. Estado.
A implementação destas alterações no direito sucessório ao nível concelhio só começou na fase final do meu trabalho de campo; até que ponto estas modificações legais poderão vir a afectar os costumes locais de herança é uma questão que ultrapassa o âmbito deste trabalho.
9 Para três aldeias do Norte de Espanha, nota-se também a pouca importância dada ao parentesco ritual do compadrio. Brandes afirma que «o compadrazgo, tal como é conhecido na América Latina e no Sul de Espanha, é virtualmente inexistente nas comunidades camponesas de Castela. Em Becedas, pelo menos, a amizade e a vizinhança são as principais vias pelas quais os laços não familiares são expressos; eles são, por assim dizer, equivalentes funcionais do compadrazgo» (1975:133). Do mesmo modo, entre os Bascos, Douglass frisou que «dá-se muito pouco realce ao vínculo estabelecido entre os padrinhos e os pais da criança: a relação complexa de compadrio, que existe noutras partes de Espanha [Pitt-Rivers 1958], não é uma característica da organização social de Murélaga» (1969:188). Um caso ainda mais extremo verifica-se no lugarejo castelhano estudado por Freeman, onde «o termo compadre, que sublinha os laços contratuais entre os adultos em questão, não se utiliza em Valdemora» (1970:141).
10 Uma forma semelhante de unigenitura indirecta através de um único herdeiro foi descrita por diversos etnógrafos para os Alpes da Suíça, onde também vigora um sistema de herança por partilhas (Friedl 1974, Netting 1979): como é de prever, ambas estas regiões suíças se caracterizam pelo casamento tardio, altas proporções de celibatários e formas de agricultura em pequena escala. Outra possível designação para este modo de herança seria preferential partibility (divisibilidade preferencial), sugerindo alguma forma de selecção de um herdeiro/a, mesmo dentro dum sistema jurídico de divisão equitativa.
11 Esta subida abrupta nos valores da ilegitimidade pode estar ligada ao clima político que caracterizou a Primeira República, tomando em conta que é difícil chegar a conclusões sem uma amostra maior ao nível de várias aldeias. Realizou-se em 1911-12 uma incursão monárquica nas zonas montanhosas à volta de Fontelas e as referências dos jornalistas da altura notam a evolução caótica da região durante esses anos (Magro 1912; Malheiro Dias 1912; Valente 1912). Deu-se também uma epidemia no Verão e Outono de 1918, ano em que o número de mortes anotadas no Registo Paroquial subiu muito acima dos níveis anteriores; durante as décadas de 1910 e 1930. porém, não houve desequilíbrio substancial entre os sexos na freguesia, de acordo com os valores do Recenseamento Nacional (Nota 13, Capítulo 2). Por último, a legislação nacional após 1910 instituiu a possibilidade de divórcio e do casamento civil, e alguns dos baptismos durante estas décadas especificam que os pais eram «registados civilmente». As ligações entre todos estes factores não são totalmente claras, e exigem uma investigação demográfica mais profunda.
12 Também aqui a utilização do termo «doméstica» como ocupação feminina após 1946 torna muito difícil classificar as respectivas mulheres como jornaleiras, lavradoras ou membros de qualquer outro grupo social. As profissões dos pais de filhos legítimos fornecem-nos pistas sobre as ocupações das suas esposas, mas os pais de filhos bastardos não aparecem normalmente nas listas. Outro problema potencial reside na mudança de padres, que eram os responsáveis pela anotação das profissões. Na ausência de uma classificação de ocupações nitidamente definidas, dever-nos-emos pois contentar com tendências gerais.
13 Alargando a nossa amostra, uma contagem das proporções de ilegitimidade nas quatro aldeias da freguesia para o mesmo período fornece os valores abaixo indicados. Durante todas as décadas até 1959, o total de baptismos registados na paróquia foi superior a 200: na década de 60, esse total desceu para 143 e entre 1970 e 1978 foi apenas de 95. Salienta-se que, embora as percentagens referentes a Fontelas e Lousada sejam as mais altas, a proporção global ao longo das 11 décadas na freguesia tem-se mantido consistentemente elevada, com o valor de 37,8%.
PROPORÇÕES DE FILHOS ILEGÍTIMOS NA FREGUESIA, 1870-1978
FONTE: Registo Paroquial — Assentos de Baptismo.
14 Um exemplo flagrante desta importância dada aos filhos é ilustrado por uma cantiga que recolhi, acerca de uma mãe que enterrou, ainda vivo, o seu filho bastardo. Foi composta há alguns anos atrás e baseia-se num acontecimento autêntico numa das povoações vizinhas de Fontelas, e diz-nos que Uma mãe p'ra se casar/enterrou viva uma criança e que foi por causa do namoro/que a malvada a enterrou. A criança tinha 28 meses de idade e já falava muito bem; a mãe enterrou-a deitando pedras em cima/até aos últimos suspiros. Na opinião dos aldeãos, o verdadeiro crime da mãe não foi ter tido um filho ilegitimamente, mas tê-lo enterrado «por amor» ou tê-lo morto unicamente para poder casar.
15 É significativo que nunca se empregue a palavra puta para se referirem estas mulheres solteiras: os aldeãos apenas invocam o termo quando conversam sobre o comportamento de mulheres «das cidades» (Bragança, Porto e Lisboa). Mesmo em relação a solteiras com vários filhos ilegítimos de vários pais, nunca ouvi referências a prostituição rural ou a qualquer forma de pagamento em dinheiro.
16 O surto migratório dos anos 60 deu origem a uma fuga autêntica (e um posterior regresso) destes habitantes excluídos. Uma vez que os seus laços com os patrimónios natais em Fontelas são sempre conservados, não obstante o tamanho insuficiente dos quinhões de alguns herdeiros, a emigração constitui uma solução excelente para o problema da pressão demográfica sobre a terra. As explorações natais vêm beneficiar com as remessas (e melhorias futuras, quer na lavoura quer nas casas), enquanto uma grande parte da população, anteriormente relegada para uma posição marginal, tem finalmente potencialidades para subir na hierarquia social; esta mobilidade ascendente é, todavia, tortuosa e demorada no que respeita aos emigrantes, que primeiro têm de sair da comunidade para depois poderem subir nela. Mas os efeitos a longo prazo proporcionarão aos jornaleiros e a alguns dos lavradores as suas primeiras autênticas vias de ascensão como grupos sociais. A emigração ainda não subverteu totalmente a hierarquia social, embora hoje esteja a desenvolver-se uma espécie de inversão da situação anterior: os verdadeiros filhos favorecidos são os que deixam a aldeia com êxito, e não aqueles que ficam.
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