Capítulo 6. O sistema de casamento
p. 289-337
Texte intégral
1O casamento é uma instituição muito singular em Fontelas, e a essência dessa singularidade reside no papel geralmente fraco do matrimónio em comparação com a maior ênfase que esta sociedade dá aos elementos do património, ou seja, a herança e a transmissão da propriedade por morte. A sua situação ecológica e a forma de agricultura praticada impõem limites rígidos à dimensão do fogo e ao volume da população global da aldeia. Tal como nas povoações alpinas suíças e italianas estudadas por Wolf e Cole (1974), Friedl (1974) e Netting (1979), também em Fontelas existem restrições severas ao casamento com o objectivo de manter a exploração agrícola unificada e o grupo doméstico de dimensão funcional. Ao contrário do que acontece em muitas sociedades rurais mediterrânicas descritas nas monografias antropológicas, esta comunidade não confere qualquer realce particular ao laço conjugal; de facto, como já vimos, faz o possível por evitar ou protelar os casamentos de grande parte dos seus membros. O matrimónio é sistematicamente subordinado à força predominante do património.
2O Capítulo 5 mostrou como os principais grupos sociais de Fontelas apresentam padrões diferentes de casamento e herança. Neste capítulo concluir-se-á a discussão do matrimónio, colocando aqueles estudos de caso dentro de um contexto mais amplo: em que medida são eles representativos do povoado como um todo? Será que somente revelam aspectos históricos, ou podem igualmente aplicar-se ao presente etnográfico de 1976-78? Uma pergunta mais vasta pode também ser posta — porque é o casamento uma instituição tão peculiar em Fontelas e porque é tão cuidadosamente controlado?
3Para responder a estas questões, na Secção a) serão apresentados os traços gerais do matrimónio em Fontelas, nomeadamente o casamento tardio e a alta proporção de aldeãos que não se casam; procurarei mostrar que esta comunidade ilustra o arquétipo do European marriage pattern (padrão de casamento europeu) descrito por John Hajnal (1965). Na Secção b) será analisada a residência natolocal, concluindo que esta forma de residência não é unicamente resultado de uma falta de meios para construir casas — antes sugere uma ênfase cultural generalizada sobre a descendência e os vínculos de filiação em detrimento do casamento e dos laços de afinidade. Finalmente, o Capítulo 7 trata do sistema de herança e dos arranjos práticos efectuados após a morte, provando-se que um modo particular de herança post-mortem serve de base a toda uma rede de relações sociais e matrimoniais.
a) O «casamento restrito»
4Será de toda a conveniência começarmos por observar a composição exacta de todos os grupos domésticos de Fontelas em 1977; isto permitirnos-á situar o casamento dentro do seu contexto contemporâneo. O Apêndice IV (Diagramas das Casas) mostra a estrutura de cada fogo, e a ele me referirei ao longo deste capítulo. O Quadro 13 apresenta um resumo dos materiais incluídos naquele apêndice, e oferece uma visão geral dos tipos de agregados familiares por que se distribuem hoje as 57 casas da povoação. Note-se que esta classificação se baseia fundamentalmente no esquema desenvolvido por Peter Laslett (1972:28-32; 41-4) e adaptado por Robert Rowland (1981:217-20). A observação conjunta dos diagramas e do Quadro 13 dá-nos a seguinte perspectiva geral.
5Primeiramente, é de salientar o facto de que em 1977 apenas um pequeno número de casas possuía uma forma estritamente nuclear; só 13 fogos (Categoria 3b) são compostos de um casal com filho(s). Do mesmo modo, a categoria de Agregados Familiares Simples somam um total de 26 fogos, ou seja, menos de metade das casas da povoação. É importante notar que a família nuclear — marido, mulher e filhos — não é senão um dos vários tipos de grupo doméstico que constituem, na classificação de Laslett, a categoria de Agregados Familiares Simples (Laslett 1972:41-2). Dois destes 26 fogos consistem num casal sem filhos, 3 são estruturas nucleares com o marido emigrante, e 1 com um viúvo e seus filhos. Além disso, 7 destas 26 casas (Categorias 3e/3f) consistem em uniões consensuais entre pessoas solteiras ou de uma mãe solteira com filho(s) ilegítimo(s). Em toda a aldeia, existem 16 casas (de várias categorias) que contêm certo tipo de laço familiar irregular ou ilegítimo, ou seja, estes 16 grupos domésticos traduzem relações consideradas anómalas ou transgressoras face ao «modelo ideal» da Igreja; no entanto, o «modelo popular» considera estas relações, até certo ponto, como socialmente aceitáveis. É particularmente alta a proporção de fogos com laços sociais extralegais fora do casamento formal, o que está de acordo com os materiais históricos e genealógicos examinados no Capítulo 5. Fontelas continua hoje a apresentar exemplos de ilegitimidade e de uniões irregulares1. As estruturas estritamente nucleares não representam senão 1/4 do total das casas da povoação.
6Em segundo lugar, verificamos que 13 grupos domésticos são, de uma ou outra forma, «alargados»2 (Categoria 4), incluindo alguns deles um pai ou mãe viúvo (alargamento ascendente), netos ou sobrinhos co-residentes (alargamento descendente) ou irmãos ou parentes por afinidade (alargamento lateral). Os laços de ilegitimidade explicam alguns destes alargamentos da célula nuclear (designadamente, Casas 4 e 22 no Apêndice IV). Ainda mais complexas se apresentam as estruturas dos cinco Agregados Familiares Múltiplos (Categoria 5); enquanto dois destes (Casas 8 e 14) são exemplos perfeitos da famille souche, compreendendo dois casais, os restantes três (Casas 9, 38 e 47) não encaixam em qualquer categoria dentro do esquema de Laslett. (A Casa 47, por exemplo, contém três irmãos co-residentes com quatro filhos bastardos de quatro mães distintas.) Por outras palavras, um total de 18 (quase 1/3) dos grupos domésticos da comunidade são de alguma forma alargados ou múltiplos.
7Em terceiro lugar, existem outros 13 fogos compostos de pessoas vivendo sós (Categoria 1). Apenas três destes indivíduos são viúvos/as (Casas 12, 37 e 52); dos restantes, oito são solteiros (sete homens e uma mulher) e dois homens vivem separados de suas mulheres e filhos (um deles com uma acção de divórcio pendente). Assim, o Quadro 13 indica que há tantas casas compostas de pessoas morando sós como casas de estrutura nuclear ou alargada.
8Em resumo, em 1977 os fogos de Fontelas compreendem variadas estruturas de tipo solitário, nuclear, alargado e múltiplo, sem qualquer predomínio especial. Cerca de metade destas casas são Agregados Familiares Simples que se aproximam de uma forma nuclear; mas mais impressionante é o elevado número de fogos que contêm relações irregulares. A emigração dos anos 60 não reduziu Fontelas a uma «aldeia fantasma» de velhos inactivos, pois os novos (particularmente as mulheres) continuam a casar e a dedicarse à agricultura. Esta variedade de arranjos domésticos sugere que, pelo menos em 1976-78, não existia uma norma geral quanto à composição do fogo; mesmo que a famille souche possa ser um arranjo familiar «ideal» (Laslett 1972:13-23) ou a estrutura nuclear uma norma, na realidade muito poucas casas nesta povoação tomam qualquer destas formas.
9Detenhamo-nos agora nos casamentos dos indivíduos vivendo em Fontelas; as estatísticas que elaborámos permitem-nos situar o matrimónio num contexto comparativamente mais amplo. Os casamentos apresentados nos diagramas de casas do Apêndice IV (incluindo pessoas que enviuvaram e casamentos em segundas núpcias) atingem um total de 55. Deste número, 38 tinham ainda os dois cônjuges vivos em 19773. Contudo, nestes 38 matrimónios, dois envolviam separações, outro uma mulher abandonada e outro um casamento civil4. Dos restantes 14, sobrevive a viúva (10 deles) ou o viúvo (4). Em apenas 2 do total de 55 uniões, as viúvas voltaram a contrair matrimónio; em outras 2, os viúvos casaram igualmente em segundas núpcias.
10O perfil da endogamia e da exogamia da aldeia contido nesta amostra revela que, em quase metade do total dos casamentos (25), ambos os cônjuges são naturais de Fontelas. Em aproximadamente o mesmo número (24), um deles veio de fora. (Destes 24 matrimónios, 12 noivas e 12 noivos casaram com indivíduos de Fontelas.) Por último, 6 enlaces envolvem pessoas nascidas fora da povoação, mas que, após o casamento, aí se estabeleceram definitivamente. Destes, três são viúvos que vieram para Fontelas residir com parentes, e três são indivíduos com ocupações especializadas: o guarda-florestal, o motorista da camioneta e o pedreiro. Isto é, de todos os casamentos considerados, praticamente metade são do tipo endógamo5. Empregamos aqui os termos «endogamia» e «exogamia» num sentido lato, o primeiro referindo um casamento entre dois cônjuges oriundos da mesma povoação, e o segundo um matrimónio em que um dos cônjuges não é natural ou residente na comunidade em questão.
11De uma maneira geral, os casamentos contraídos para lá dos limites da aldeia ou da freguesia compreendem perto de 20 lugares na vizinhança de Fontelas (Mapa 2). Por exemplo, dos 24 matrimónios em que um dos cônjuges era de fora da povoação, 18 dos que aqui vieram casar eram provenientes desses lugares vizinhos; somente dois indivíduos vieram de aldeias muito mais longínquas mas ainda pertencentes ao concelho, e apenas um da vila. Mais surpreendente é o pequeno número de casamentos contraídos dentro dos limites da freguesia: apenas três entre cônjuges de Fontelas e dos dois outros povoados da paróquia (Lousada e Portelinha). Como poderíamos prever, nem um só destes 55 casamentos ligou alguém de Fontelas com alguém da povoação rival de Mosteiro, com quem aquela mantém uma hostilidade histórica de longa data. Os aspectos revelados por esta pequena amostra de matrimónios recentes indica que são tantos os aldeãos que casaram no seio da comunidade quanto os que casaram fora; além disso, quando os enlaces são contraídos para lá dos limites da povoação, é mais frequente envolverem qualquer lugar vizinho ou próximo. Não existe nenhuma preferência por casamentos no interior da freguesia. A tendência é pois, claramente, por matrimónios dentro de um raio relativamente pequeno de aldeias circunvizinhas.
12Podemos acrescentar a esta amostra a dos assentos de casamento do Registo Paroquial de 1870 até 1978; isto permitir-nos-á levar a nossa amostra um pouco mais para trás no tempo, e ampliar o universo de casos em estudo. O Quadro 14 apresenta-nos a informação essencial contida em todos estes assentos.
13Só para Fontelas, são listados 105 matrimónios, o que representa uma média de aproximadamente um por ano. A maioria dos 55 casamentos que anteriormente mencionei foi também registada no Registo Paroquial, os que não o foram devem referir-se a viúvos ou viúvas que vieram morar na aldeia ou noivos que casaram fora. Por outro lado, alguns casais que surgem nos assentos podem ter morrido ou mudado de residência. Assim, o Registo é útil unicamente para sabermos onde e quando se realizaram as bodas, mas não para informar sobre a residência após o casamento. Nesta ordem de ideias, os números anteriores e os do Quadro 14 articulam duas fontes de dados sobre o matrimónio, mas não coincidem inteiramente em termos de informação.
14Podemos resumir o Quadro 14 do seguinte modo; existem quatro tipos principais de casamento de acordo com as origens dos cônjuges:
15A partir destes números podemos concluir que, em 85 destes 105 enlaces, a noiva pertence a Fontelas (41 + 44) e em 60, o noivo (41 + 19). Estes valores referentes a um século indicam que o número de matrimónios endogâmicos (63) foi algo superior ao dos exogâmicos (41). Mas um número elevado de casamentos pode apresentar-se «invisível», em consequência de terem sido registados em outras freguesias, e assim o uso destes valores não pode ser senão um indicador de tendências gerais.
16Todavia, apercebemo-nos de um traço caracterizador do casamento fora da comunidade: dos 51 matrimónios compreendendo indivíduos exteriores à aldeia, a grande maioria (37) dos cônjuges vem de povoações vizinhas ou próximas de Fontelas, como nos mostra o Mapa 2. Para lá deste perímetro, sete vieram de outros lugares do concelho, quatro da vila, 1 de uma cidade próxima na província de Trás-os-Montes, e dois de Espanha6. No conjunto, os assentos de casamento reforçam o padrão do matrimónio exogâmico revelado pelos 55 casos anteriormente referidos; como vimos, este casamento no exterior realiza-se predominantemente dentro de uma pequena área de aldeias circundantes.
17Na ausência de uma amostra mais vasta7 podemos concluir que, desde os finais do século XIX, entre 1/3 e 1/2 das uniões examinadas são do tipo endogâmico, e aproximadamente 1/2 a 2/3 do tipo exogâmico. A tendência geral, não obstante a proporção considerável de matrimónios internos à povoação, é a de casamentos para lá dos termos da aldeia e da freguesia.
18Dois outros aspectos emergem a partir da análise conjunta dos Diagramas de Casas do Apêndice IV e dos assentos de casamento do Registo Paroquial: (a) uma idade particularmente elevada à data do primeiro casamento e (b) uma alta proporção de adultos que nunca casam. É aqui que se torna mais evidente a marca indelével do «padrão de casamento europeu» proposto por Hajnal; observemos atentamente estas idades antes de situar Fontelas dentro de um contexto europeu mais amplo. O nosso primeiro valor é uma simples soma de todos os moradores de Fontelas em 1977, de acordo com o estado civil. Estes números foram calculados a partir de um recenseamento completo de idades relativo a 1 de Julho de 1977 e, sempre que possível, cotejando essas idades com o assento de baptismo de cada indivíduo8. No total, existem 143 habitantes adultos de ambos os sexos com idades superiores a 15 anos, e as proporções de solteiros, casados e viúvos são as seguintes:
Número de adultos solteiros: | 68 (48%) |
Número de adultos casados: | 62 (43%) |
Número de adultos viúvos: | 13 (9%) |
Total de adultos: | 143 (100%) |
19É notável a elevada proporção de aldeãos que se encontram solteiros (48%). Mas como é que estas proporções se distribuíam dentro dos diversos grupos etários? O Quadro 15 fornece uma apreciação mais detalhada do estado civil por grupos etários e sexo.
20Em conjunto, nos dois grupos etários com idades superiores a 40 anos, as mulheres são mais numerosas do que os homens; mas a tendência mais esclarecedora revelada pelo quadro é a grande proporção de homens e mulheres solteiros em Fontelas: os adultos solteiros excedem em número os casados. A situação das pessoas com mais de 40 anos é bastante interessante; aí se encontram 22 homens casados e 14 solteiros, enquanto as 19 mulheres casadas se equilibram com 20 solteiras. Claramente, a tendência não é para o casamento precoce, antes para o celibato ou o casamento tardio de cônjuges com mais de 30 anos; o total de moradores casados é apenas de 43%, ou seja, menos de metade dos adultos da povoação. No seu estudo sobre o padrão de casamento europeu, John Hajnal concluiu que «se mais de 30% de mulheres com mais de 15 anos estão solteiras, podemos ter a certeza que a população tem um padrão de casamento do tipo europeu» (1965:136). Em Fontelas esta percentagem é notavelmente alta e bem acima dos 30%: de todas as mulheres adultas com mais de 15 anos, as solteiras representam 46,1%. Cabe aqui referir também um dos múltiplos valores que se pode calcular a partir dos Róis de Confessados: em 1896, na freguesia, estas proporções de pessoas solteiras eram impressionantes. Entre as mulheres com mais de 14 anos, a percentagem de solteiras era de 52,8%, ao passo que a das casadas era só de 34,9% (dos homens, 53,2% estavam solteiros e 40,5% casados).
21O casamento tardio é uma segunda faceta que surge a partir dos números. Dos 105 matrimónios referidos no Registo Paroquial desde 1870, a idade média dos homens à data do primeiro casamento é de 33,2 anos e a das mulheres 31,0. Se incluirmos no cálculo 12 matrimónios em segundas núpcias, estas idades médias serão ainda superiores; 34,6 para homens e 31,8 para mulheres. Estes valores são particularmente elevados quando comparados aos mencionados em recentes estudos etnográficos de comunidades alpinas da Suíça e da Itália9. Como é que se obteve este total e, mais do que isso, como se pode explicar uma idade tão avançada por altura do casamento? No Quadro 16, apresentamos valores mais detalhados para estas idades médias.
22A tendência geral é no sentido de uma idade elevada tanto para homens como para mulheres. Em apenas 4 das 11 décadas é que estas médias para os homens desceram abaixo dos 30 anos, subindo nos anos 70 para aproximadamente 43 (!). Do mesmo modo, no que respeita às mulheres, só em 5 das 11 décadas a média desceu para valores inferiores aos 30 anos. Para ambos os sexos, nas décadas de 1910 a 1930, e de novo nos anos 50, as idades foram particularmente baixas10. Contudo, parece não haver nas décadas recentes qualquer tendência apreciável de mudança indicadora de uma descida da idade média à data do casamento. Um certo número de matrimónios recentes, referidos no Capítulo 5, pode ser atribuído à pressão feita pelo pároco (que vive em Fontelas desde 1964) sobre companheiros solteiros para «casar pela Igreja» e legitimarem os seus filhos. Por exemplo, um dos pares que casou em 1970 (ambos com mais de 40 anos) legitimou as suas três filhas, e um outro que casou em 1971 (ambos com mais de 50 anos) legitimou quatro filhos (ver o Quadro 14). Dos nove homens que casaram nos anos 70, dois tinham idades de 60 e 69 anos respectivamente, enquanto das mulheres, duas estavam nos 50 e outras duas tinham 74 e 71 anos. Lembramos que esta última, Laura, casou com Pedro em 1977, de madrugada, legitimando então 4 dos 8 filhos bastardos dela (embora, neste caso, o assento de casamento não refira a legitimação explicitamente).
QUADRO 16: Idade média à data do primeiro casamento em Fontelas, 1870-1978
Anos | Número de casamentos registados* | Idade média do noivo | Idade média da noiva |
1870 - 1879 | 16 | 32,1 | 34,4 |
1880 - 1889 | 12 | 35,3 | 32,2 |
1890 - 1899 | 10 | 30,9 | 27,1 |
1900 - 1909 | 8 | 30,4 | 35,4 |
1910 - 1919 | 9 | 29,8 | 29,9 |
1920 - 1929 | 11 | 28,9 | 23,9** |
1930 - 1939 | 3 | 29,3 | 30,7 |
1940 - 1949 | 10 | 36,2 | 32,9 |
1950 - 1959 | 6 | 25,8 | 23,5 |
1960 - 1969 | 11 | 38,4 | 27,5 |
1970 - 1978 | 9 | 42,8 | 41,5 |
TOTAIS: | 105 | 33,2 | 31,0 |
* Estes números representam o total de casamentos registados em cada década. Os totais incluem assim 16 casamentos em segundas núpcias, mas as idades dos cônjuges que casaram pela segunda vez (12 viúvos e 4 viúvas) não foram incluídas nos cálculos de idades médias.
** Cinco noivas que casaram durante esta década tinham idades entre os 16 e os 19 anos. FONTE: Registo Paroquial — Assentos de Casamento.
23Em conjunto, o quadro revela a persistência de uma elevada idade à data do primeiro casamento, tanto para homens como para mulheres; ao longo de um século os aldeãos de Fontelas têm casado, por média, com idades pouco inferiores ou pouco superiores aos 30 anos.
24Uma breve descrição de um casamento e de alguns dos elementos do seu rico folclore fornecer-nos-ão uma possível explicação. Só presenciei quatro bodas durante o meu trabalho de campo11, mas a sua estrutura foi tão semelhante que me permitiu uma generalização provisória. O matrimónio em questão foi realizado entre dois cônjuges naturais de Fontelas — Zeferina (Casa 40), com 26 anos de idade, e Gaspar (Casa 34), com 24. Dois dos irmãos mais velhos de Gaspar tinham casado fora da aldeia, enquanto o seu irmão mais novo, Silvino, de 21 anos, mora ainda com os pais. Paralelamente, a irmã mais velha de Zeferina havia casado com um rapaz de Fontelas alguns anos antes, vivendo os seus três irmãos mais novos com os pais. Assim, dentro dos respectivos grupos de irmãos, tanto Gaspar como Zeferina não são os filhos mais velhos nem os mais novos — ambos têm irmãos ou irmãs solteiros mais novos, e nenhum dos dois foi o primeiro a casar. Por altura do matrimónio, Zeferina vivia em casa de seus pais, e Gaspar era guarda-fiscal aquartelado numa povoação a poucos quilómetros a nordeste de Fontelas. Ambos provêm de famílias de lavradores abastados e são primos em terceiro grau.
25A boda foi relativamente pequena; apenas 40 pessoas estiveram presentes, incluindo o pároco e eu próprio. A cerimónia realizou-se no Verão de 1978 na capital distrital, situada a aproximadamente duas horas de viagem de Fontelas, numa igreja sobranceira à cidade. A escolha do sítio (agora na moda) foi, segundo os aldeãos, a única diferença para um casamento normal. Estes são habitualmente anunciados uma única vez pelo pároco no fim da missa de domingo, pouco antes da data da sua celebração; neste caso, o anúncio não se fez, dado que foi um padre da cidade que oficiou a cerimónia, e esta foi, em si mesma, muito curta. A noiva e o noivo encontravam-se junto da igreja, ladeados das respectivas testemunhas. Depois da troca de anéis, seguiu-se o tempo breve da comunhão e as orações e bênção final. Logo depois da cerimónia, fiz algumas fotografias de grupo, a pedido dos noivos, após o que estes e todos os convidados desceram de carro à cidade para o banquete, que se efectuou numa sala alugada para o efeito. Antes da boda, o noivo pagou os poucos encargos legais na Conservatória do Registo Civil na vila, tendo o pai da noiva (como é costume) suportado a despesa do banquete e respectivo baile. Neste casamento, os vestuários dos convidados não eram particularmente ostentosos: para além da noiva, que vestia de branco, os fatos dos homens e os vestidos das mulheres pouca diferença faziam dos que são normalmente usados nas missas de domingo. Os sinos não tocaram antes, durante ou após a cerimónia, e não houve qualquer cortejo12.
26Todas as iguarias do banquete se encontravam espalhadas por três mesas formando um U; este é o arranjo próprio do copo-d’água, e compreende comidas e bebidas distribuídas à discrição sobre as mesas, e nada tem a ver com as carnes assadas ou cozidas e as sopas fornecidas em celebrações de baptismo e durante as festas dos santos padroeiros. Todas as quatro bodas que presenciei foram deste tipo. Servem-se vinhos e licores enquanto nas mesas estão as carnes frias (cabrito, cordeiro, carne de porco e frango) juntamente com bolos, pastéis e doces diversos. O aluguer da sala e o banquete custaram ao pai da noiva 8000 escudos, valor que foi um pouco inferior a um festim similar feito na aldeia. No fim da tarde, fez-se um baile em Fontelas no amplo aposento da casa dos pais da noiva. Estes festins não têm qualquer estrutura específica: tanto a noiva como o noivo dançam com outras pessoas e não existe qualquer sequência formal ou critérios na escolha dos pares. De facto, o baile difere muito pouco dos que se realizam em quaisquer povoações vizinhas durante o Verão, por altura das festas; todos os convidados da boda participam na folia, que também está aberta aos outros moradores do lugar. A música provém de um gira-discos a pilhas e normalmente dura até às duas ou três da madrugada.
27Embora o dia do noivado inclua um repasto bastante melhorado, não é senão um acontecimento de um dia. Além disso, uma boda não se distingue significativamente das celebrações caseiras, igualmente opulentas, por ocasião dos baptismos ou das matanças de porco do Inverno. Nos meses que se seguiram ao casamento não houve qualquer acontecimento particularmente notável; após uma breve lua-de-mel de algumas semanas gozadas noutra região de Portugal, Zeferina regressou à casa natal, e Gaspar foi transferido para um lugar no Sul do País. Depois da lua-de-mel, que em si é uma inovação recente, o casal reuniu-se um determinado número de vezes durante um período de dois anos e meio (as visitas de Gaspar a Fontelas foram mais frequentes do que as saídas de Zeferina)13. No segundo ano do matrimónio, Zeferina teve um filho enquanto ainda vivia com os pais. Só em princípios de 1981 o casal passou a viver na sua própria habitação, alugada numa aldeia vizinha onde Gaspar veio a ser colocado. Sendo uma variante do padrão do «marido visitante» que será discutido adiante na Secção b), a situação que resulta da ocupação de Gaspar (considerada localmente de prestígio mas financeiramente média) não permitiu ao casal constituir de imediato um novo lar.
28Para além da cerimónia e do banquete, que outras transacções tiveram lugar entre os noivos ou as duas respectivas casas? Uma vez mais, a estrutura das trocas matrimoniais em Fontelas é pouco marcada. Após o noivado fiz uma visita à casa dos pais de Zeferina, e elaborei o inventário das prendas que tinham sido oferecidas aos noivos por altura da boda (Quadro 17).
29É óbvio que, com excepção de uma dádiva em dinheiro14, todos os presentes eram artigos caseiros para uso futuro dos cônjuges. Estes géneros são chamados pinhas ou, menos frequentemente, presentes. Constitui uma obrigação para cada fogo, mas não para cada indivíduo, oferecer aos noivos pelo menos uma prenda; esta pode ser entregue alguns dias antes da boda ou no próprio dia, uma vez que não existe qualquer regra formal em relação ao momento da oferta. Como neste caso não se estabeleceu um novo lar por altura do matrimónio, as pinhas foram guardadas temporariamente em casa dos pais da noiva. Quando visitei a povoação em 1981, o casal vivia já, desde há alguns meses, na sua nova habitação numa aldeia vizinha. Os presentes são, assim, um investimento inicial para a casa e consistem sobretudo em utensílios de cozinha e alguma roupa de cama.
30Parece existir muito pouca diferença entre o tipo e valor das prendas oferecidas por parentes próximos, parentes afastados ou amigos. De facto, várias casas duplicaram o presente de um serviço de vinho com uma caneca e 6 copos. Além disso, enquanto a maioria das famílias ofereceu apenas uma pinha, algumas deram duas; a irmã do noivo (6 presentes) e o padrinho da noiva (5 presentes) excederam-se na enorme variedade das prendas. Curiosamente, não houve dádivas de enxoval ou roupas para além de dois cobertores e da colcha oferecidos pela mãe da noiva. Embora a palavra «enxoval» seja usada por vezes para referir este conjunto de roupas, lençóis e outros artigos de uso doméstico dados à noiva pelos pais, os aldeãos não se referem amiúde ao seu conteúdo, quer em conversa casual quer durante a própria boda. Não foi possível obter informações pormenorizadas sobre o assunto, mas não penso que o facto seja consequência de embaraço ou relutância em enumerar artigos pessoais. Pelo contrário, suspeito que a razão é meramente indiferença: os enxovais são pouco significativos quer material quer simbolicamente. É provável que a oferta de um sumptuoso enxoval seja simplesmente protelada até que o casal se estabeleça posteriormente na sua própria residência, como no caso de quatro outras noivas em anos recentes que, tal como Zeferina, continuaram a viver em casa dos seus pais durante alguns anos após o matrimónio.
31Do mesmo modo, todas as minhas perguntas referentes a dotes de casamento foram uniformemente respondidas com a negativa; os habitantes insistiram que não é dado à noiva nenhum tipo de dote na forma de terras, casa ou uma razoável quantia em dinheiro. A única menção ocasional da palavra surgiu de pessoas pertencentes ao grupo de proprietários abastados, mas mesmo nestes casos este só era ofertado «no passado, e apenas nas famílias mais ricas». Um conhecido personagem local, dedicado a assuntos folclóricos e etnográficos da região, também notou a sua ausência nestas aldeias nos anos 30: «Não há ‘dotes’ ou ‘arras’ » (Martins 1939)15. Somente uma vez me foi dado encontrar em Fontelas um caso que fazia supor a existência de um dote: quando a uma das irmãs do padre os pais ofereceram, no momento do seu casamento, um lameiro e uma leira, e ao marido foram dadas duas vacas pelos seus pais. Ambas as dádivas foram consideradas mais como uma forma de herança antecipada do que propriamente como dotes; quanto lhes tentei invocar o termo, ambos se mostraram renitentes em utilizá-lo. Estes cônjuges demoraram 15 anos até se estabelecerem em casa independente; até então residiam natolocalmente, e o marido só visitava a mulher à noite (Secção b a seguir). O estabelecimento de novos lares por altura do casamento, bem como a oferta de dotes, não têm decerto sido a norma em Fontelas.
32Não se trata de uma sociedade na qual uma regra ou preferência pela residência virilocal ou neolocal exija contributos sucessivos, por parte dos pais, às filhas que deixam o fogo ao casarem. Como demonstro no Capítulo 7, não existe nada de «patrilinear» ou de «patrilocal» na estrutura social de Fontelas, nem qualquer ênfase particular na linha masculina dentro do sistema de parentesco cognático ou bilateral. Nenhuma prática institucionalizada de pagamentos ou doações, quer só para a noiva quer para o casal como unidade (com excepção das prendas), tem como objectivo ajudar a estabelecê-los imediatamente: na verdade, há muito frequentemente um longo período de espera até que tais lares independentes sejam montados (se alguma vez o são). Uma explicação pode residir no facto de que tanto as filhas como os filhos herdam a propriedade em partes iguais; como nos mostrou o Capítulo 5, um herdeiro pode ser favorecido socialmente mas, legalmente, não existem regras fixas que concedam aos filhos (e não às filhas) direitos preferenciais ao património. Por isso, não funciona nenhum sistema de compensação monetária a alguns dos filhos para que estes deixem definitivamente a exploração agrícola dos pais. Nem todos os irmãos mais novos emigram, nem entram para o serviço militar ou para carreiras religiosas, bem como não renunciam às suas pretensões aos quinhões que lhes cabem do património familiar. As filhas mais novas não costumam receber pagamentos em dinheiro ou terras como avanços à herança; neste sentido, as principais transferências de propriedade não se efectuam em Fontelas inter vivos por altura do casamento, mas unicamente post-mortem, após o falecimento de um dos pais16.
33Nestas condições, não é de estranhar que os dotes não existam pura e simplesmente. De facto, todo o sistema parece conspirar contra a formação de novas casas com o matrimónio. Nenhum tipo de «fundo conjugal» é canalizado para os noivos, excepto o representado pelas ofertas da boda, e nenhuma destas constitui qualquer investimento de capital importante em terra, dinheiro ou equipamento agrícola. A formação de novas unidades domésticas é desmotivada, e uma razão para o facto, referida pelos próprios aldeãos, é a manutenção dos cônjuges como «filhos» dependentes após o casamento, o maior tempo possível. Tal como a mãe do noivo, no exemplo anterior, afirmou categoricamente: «Gostava de ver todos os meus filhos sem nunca se casarem — ficam para mim e não para os outros». Apesar de os nubentes referidos serem primos em terceiro grau, e da situação económica mais desafogada da família da noiva, a mãe do noivo continuou a opor-se à união: à medida que a data do matrimónio se aproximava, ela falava da sua futura nora como «aquela peste». Por fim, recusou-se a assistir à boda e proibiu o marido de o fazer. Nenhum tipo de presentes foi por eles oferecido aos noivos. Em Fontelas, não existe um «complexo casa-propriedade» (house-property complex) centrado nos recém-casados (Loizos 1975a). Pelo contrário, são as casas natais e não as novas que mantêm o controlo do poder doméstico.
34O folclore relacionado com o casamento e o namoro é rico e variado, mas a tónica dominante é trágica. A maioria dos versos e cantigas que tratam de noivos ou recém-casados fazem transparecer mensagens de aviso; são frequentemente frisadas as desvantagens da vida matrimonial e os perigos de se casar com a «pessoa errada». Existem igualmente versos e ditos louvando as virtudes do matrimónio e do amor jovem: na realidade, uma forma específica de estrofes de quatro versos (as loas) constituem as canções laudatórias tradicionais cantadas antes e após a cerimónia nupcial. Somente meia dúzia destas cantigas foram ouvidas na boda a que assisti num lugar vizinho, e em Fontelas não registei nenhuma17.
35Porém, uma forma muito comum de cantiga nesta comunidade é o romance. O seu tema é também invariavelmente trágico, e são cantados de uma maneira geral em tom lúgubre. Os romances não eram textos normalmente pertencentes à tradição oral da povoação, sendo entoados por cegos errantes que viajavam de aldeia em aldeia pedindo esmola pelos seus cantares, e memorizados, depois, pelos rapazes «quando se andava com o gado no monte». Assim, os romances foram importados para a literatura oral de Fontelas e constituem um tipo de cantiga que verifiquei manter-se bem presente na memória dos moradores e que continua a ser cantado18. Dois exemplos:
Eu bem te avisei, ó Ilda,
Não me quisestes ouvir,
Amor de Armando era falso,
Ele era só para te iludir.
Eu bem te avisei, ó lida,
Não me quisestes escutar,
Amor de Armando era falso,
Ele era só para te iludir.
Eu juro-lhe, ó minha mãe,
E eu lhe vou a explicar,
Armando comigo não casa,
Com outra não vai casar.
Hei-de-me vestir de pobre,
Tirar esmola na rua,
Só para ver o Armando,
Na claridade da lua.
Era meia-noite em ponto,
Quando a sua mãe chamou.
Se queres ver Armando morto,
Aqui está quem o matou.
Que assim me custou, Armando!
Em te ver morto na mesa.
Tira um botão de grinalda,
E eu agora já vou presa.
Que assim me custou. Armando!
Em te ver nesse caixão,
E ao passar à minha porta.
Fez tremer meu coração.
Que assim me custou, Armando!
Ver-te ir para o cemitério.
Tu vais a tragar a terra,
E eu vou p’rás grades de ferro.
Lá se casa Dona Ângela,
Lá se casa, esposa minha,
À vontade de seus pais,
Pois à dela não seria.
Da igreja para a casa,
Ela só isto dizia:
Deus queira que me não logres,
Nem uma hora, nem um dia.
Era o meio do jantar.
Dona Ângela não comia,
Todos comiam e bebiam,
Dona Ângela ao chão caía.
Foram co’ela ao passeio,
Só para ver se a distraía,
Chegaram ao meio do passeio,
De volta ao chão caía.
Foram co’ela ao doutor,
Para ver do que mal morria.
Tinha o coração revolto,
Com o de baixo para cima.
E dentro do coração,
Duas letras d’ouro tinha,
E uma era: Adeus Dom João,
E a outra: Amor da minha vida.
Lá se vai a Dona Ângela,
Lá se vai, esposa minha,
Lá se vai para o altar-mor,
Para os pés da Virgem Maria.
Para os pés da Virgem Maria,
Para os pés de Nossa Senhora,
Vamos-lhe dar um beijo,
Antes que a terra a coma.
36Ambos os romances se referem às relações que anteciparam o matrimónio e que culminaram na morte; na primeira canção uma mulher mata o seu falso apaixonado (evitando assim o casamento dele com outra) e, na segunda, D. Ângela morre com o nome do seu apaixonado «dentro do coração» depois de ter casado com o noivo escolhido pelos seus pais. Estes romances, sempre caracterizados por uma nota mórbida, relatam normalmente histórias de uniões impossíveis ou condenadas. Os temas mais comuns nas cantigas ou são de um matrimónio em perspectiva que acaba em morte ou assassinato, ou do lamento de uma mãe pela partida de um filho para a guerra (onde é invariavelmente morto). Muitas delas também narram a morte de um pai.
37Numerosas quadras avisam igualmente as raparigas dos perigos de ceder aos avanços dos homens, cujas falsas promessas podem conduzi-las a tudo menos ao casamento:
Menina, não se namore,
De um homem casado, é perigo,
Namore-se de um solteiro,
Que possa casar consigo.
Menina, não se namore,
De um criado de servir,
Acaba o ano, vai-se embora,
Menina, vêde-lo ir.
38Além disso, existe toda uma série de quadras referindo-se a situações pós-matrimoniais. Estas focam por regra a importância da escolha cuidadosa dos esposos, mas também se mencionam considerações práticas que a noiva pode não tomar em conta, unicamente entusiasmada pelos ideais do seu primeiro amor:
Casar, casar,
Que Deus dará pão,
Depois de casar,
Dará ou não.
Minha mãe por me casar,
Prometeu-me tudo quanto tinha,
Depois de me casar,
Deu-me uma agulha sem linhas.
Minha mãe por me casar.
Prometeu-me três ovelhas.
Uma manca, outra cega,
E outra soxa sem orelhas.
39Se estas formas de literatura «reflectem» unicamente aspectos sociais, ou uma tentativa inconsciente para os «inverter»19, a mensagem por detrás dos versos é clara; o casamento é uma transacção complicada e pode conduzir a situações económicas desconfortáveis ou à morte trágica. As quadras sugerem igualmente que o matrimónio pode traduzir-se num agravamento das relações entre pais e filhos, quando um destes casa contra a vontade daqueles.
40O namoro é outro campo no qual existe uma estruturação pouco rígida em termos de relações sociais. A palavra «namoro» é ocasionalmente utilizada para se falar da corte em geral, ou para dois jovens (namorado/namorada): também pode ser empregue, embora menos frequentemente, no sentido de «estar apaixonado». A expressão andar com é, contudo, muito mais corrente: a frase é aplicada tanto a rapazes como a raparigas; pode dizer-se, pois, de uma moça que anda com o João. Andar com alguém pode não implicar necessariamente uma ligação conducente ao casamento; a expressão pode definir qualquer forma de relação, que vai desde o interesse inicial até uma forma mais avançada de corte. Os dois jovens em questão podem apenas falar durante os bailes ou ser vistos juntos ao longo de vários anos. Muitas destas relações podem acabar mais tarde ou mais cedo, e qualquer dos dois estabelecer novos laços desse tipo com outras pessoas20.
41Vejamos o exemplo de dois jovens que deixaram de se encontrar pouco antes de ter iniciado o meu trabalho de campo. Carmina é a irmã mais nova da noiva Zeferina, anteriormente referida (Casa 40), e Salvador um dos irmãos da Casa 36, família esta menos abastada mas bastante respeitada. A relação não conduziu ao casamento, mas nenhum dos dois começou a «andar com» outra pessoa após terem terminado o namoro; ambos eram vistos em bailaricos e festas, algumas vezes dançando juntos e outras vezes com outros. No final de 1978, os mexericos locais advertiam que Carmina andava com Silvino (Casa 34), irmão mais novo do noivo (Gaspar) acima mencionado. O primeiro namorado de Carmina, Salvador, tinha sido aceite no exame para guarda-fiscal e obteve um bom lugar em Lisboa. Se bem que todos os três referidos fossem de casas de lavrador relativamente abastadas, nenhum estigma particular afectou a ruptura entre Carmina e Salvador, e cada um seguiu o seu próprio caminho sem perda de respeitabilidade.
42Este comportamento diverge se considerarmos o cimo e a base da hierarquia social: somente entre os grandes terra-tenentes é dada uma maior importância à posição da mulher e à reputação virtuosa das filhas antes do matrimónio. Na Casa 28, por exemplo, dois proprietários idosos vivem com as duas filhas solteiras, de 43 e 42 anos, respectivamente; a mais nova estava, alguns anos atrás, prometida a um irmão mais velho do noivo já referido (Gaspar). Este namoro não conduziu ao casamento; enquanto o rapaz em questão casou mais tarde fora da aldeia e é hoje sargento da Guarda Fiscal na vila, a proprietária continua solteira. Os habitantes lamentam o seu estatuto celibatário e muitos dizem que «uma vez que aquele namoro acabou, jurou nunca ter outro». Como primas direitas do padre, levam ambas uma vida sossegada, e passam a maior parte do seu tempo ou em casa ou na igreja; a mais nova das duas é vista como muito dada a leituras e inteligente, ao passo que a mais velha (olhada como beata) normalmente ajuda o pai nas tarefas agrícolas consideradas mais «masculinas», e nunca lhe foi conhecido qualquer namoro.
43É costume entre os proprietários que o primeiro namoro de uma jovem conduza ao casamento ou ao celibato permanente. Há pois, aqui, a ideia de que a virgindade e o status elevado se encontram intimamente ligados, assim como a possibilidade de levar uma vida respeitável sem que isso implique obrigatoriamente o matrimónio ou ter filhos. Em contraste com os lavradores e jornaleiros, este grupo vigia as suas filhas e os seus pretendentes com grande cuidado e desconfiança. Com efeito, os interesses em jogo neste caso são realmente muito maiores — daí que os aldeãos lamentem não só a «perda» de mulheres que nunca casam mas também o desaproveitamento de grandes quantidades de terra. O próprio vocabulário da corte é utilizado com mais precisão pelos proprietários: emprega-se a palavra namoro mais amiúde, assim como os termos prometidos e noivo/noiva. No entanto, subsiste uma certa diferença entre as situações dos herdeiros favorecidos que casam muito novos e dos co-herdeiros que normalmente casam tarde, se é que o fazem: a corte formal pode ser rápida e efectiva para os primeiros, ao passo que para os últimos pode arrastar-se ao longo de décadas. A questão fundamental é a de saber se esta forma diluída de relação prolongada deverá ou não ser chamada «namoro».
44Os homens abastados ocupam uma posição bastante diferente; tanto antes como após o matrimónio, existe um vasto campo de relações possíveis que, embora não sancionadas abertamente, podem ser toleradas. Se um aldeão rico rompe com uma noiva abastada, a posição da última pode ser algo delicada se bem que não necessariamente desesperada, mas a reputação do homem mantém-se. Um casamento posterior com outra noiva pode perfeitamente realizar-se, pois a primeira ligação não implica qualquer quebra no seu prestígio. A reputação de um proprietário, mesmo sendo casado, pode não ser posta em causa ao «deixar uma criada grávida», «mandando-a para fora de casa» impunemente.
45Entre os pobres a situação é diferente. As palavras namoro e noivo/a são utilizadas menos frequentemente, e a própria relação de corte é levada menos a sério — os temas de conversa são bem outros. Neste caso, não só se diz que dois jovens «andam juntos» mas até mesmo que «dormem juntos». Abunda na aldeia uma rebuscada bisbilhotice relacionada com os pormenores destas uniões. Este tipo de conversa, só por si, chocaria grande parte dos proprietários, e quando os moradores falam de tais assuntos em lugares públicos, o proprietário ou padre que passe recusa-se a prestar atenção. Os proprietários no seu conjunto (e o clero) consideram os hábitos amorosos dos pobres como moralmente aberrantes e incorrigíveis e, em momentos extremos, afirmam que a culpa reside «no sangue deles». Ao contrário dos padrões existentes entre as famílias abastadas, as raparigas daquele grupo podem ter uma série de namorados e, não obstante, virem a casar com respeitabilidade. Na verdade, já verificámos que várias jornaleiras casaram muitos anos após terem tido diversos filhos bastardos. Como dentro deste grupo são tão frequentes os nascimentos ilegítimos, funciona um conjunto de pressões distintas que sugere um tipo particular de código sexual «alternativo».
46Um caso curioso foi o do namoro entre uma rapariga do grupo dos pequenos agricultores e um rapaz do grupo dos lavradores, sendo a família deste bastante mais abastada. Bebiana (Casa 24) e Patrício (Casa 11) tinham andado juntos durante alguns meses em 1978, quando a mãe de Bebiana (ela própria mãe de quatro filhas de três pais diferentes) começou a falar num possível casamento. Este realizar-se-ia obviamente num futuro distante, pois na altura (1978) Patrício tinha apenas 20 anos e Bebiana 17. Contudo, a mãe de Patrício opunha-se categoricamente ao enlace. Um terceiro fogo (Casa 10) veio então envolver-se — o de Rosa, vizinha de porta da família de Patrício. Pertencendo a uma casa de lavradores médios, tal como a de Patrício, Rosa pretendia que este cortasse relações com Bebiana e começasse a andar com a sua filha Albertina, também de 17 anos.
47Por altura do fim do meu trabalho de campo, as coisas haviam mudado completamente. Bebiana e Patrício tinham deixado de se ver juntos, enquanto a filha de Rosa começara, por iniciativa própria, uma relação com um rapaz de Mosteiro (facto raro visto que Fontelas e Mosteiro são rivais tradicionais) que acabou muito pouco depois de ter principiado. Após o seu primeiro namoro, Albertina casou em 1980 com um terceiro, também de outra povoação. Patrício começou o seu serviço militar e só esporadicamente vinha à aldeia, enquanto Bebiana continuava a viver com a mãe e o padrasto: não comprometida com quem quer que fosse mas também não proibida ou excluída de contrair futuras relações. O caso não é de modo algum atípico; é ao grupo de jornaleiros que a seguinte quadra se aplica com mais precisão:
As estrelinhas do céu correm,
Todas vão às carreirinhas,
Também os amores correm,
Das suas mãos para as minhas.
48Ninguém pareceu particularmente preocupado com estas rupturas e, no bairro a que Bebiana pertence, os mexericos acerca das suas intimidades com Patrício não incidiam sobre se eles teriam dormido juntos, mas sim quando descobriria ela que estava grávida. Um dia, ao voltar de bicicleta de Mosteiro, numa tarde de fim de Verão, encontrei na estrada Bebiana e Patrício que surgiam dos arbustos apertando as calças; indiferentemente perguntaram-me as horas, e depois de trocarmos algumas palavras continuei. Nenhum deles pareceu de modo algum preocupado que eu (ou qualquer outra pessoa, julgo) os tivesse visto juntos, nem acerca do que poderia ser dito posteriormente. Assim, vemos uma vez mais que o tipo de namoro entre os jornaleiros e alguns dos lavradores parece pouco estruturado, dado que sucessivos «pretendentes» começam e acabam relações com diversos pares. Nem a escolha deles, nem os pormenores da conduta sexual, obedecem às regras mais rígidas que funcionam entre os muito abastados.
49De modo geral, é somente entre os proprietários que encontramos um sistema mais elaborado de valores relacionados com o namoro. Todavia, mesmo neste grupo não descobri provas da existência de um sistema rigoroso tal como é descrito por Cutileiro para os latifundiários do Sul de Portugal (1977:121-29). Nunca ouvi falar de quaisquer casos de rapto ou fuga de noivos na zona de Fontelas, nem da personagem do intermediário (casamenteiro) quer nas conversas dos aldeãos quer no seu folclore. Embora as casas e os parentes dos futuros cônjuges discutam em privado e interminavelmente os respectivos níveis económicos e qualidades morais das duas famílias, as discussões financeiras complicadas que antecipam uma boda são pura e simplesmente inexistentes.
50Isto não significa que essas relações não existam, mas, como muitos indivíduos nesta comunidade são impedidos de casar, elas não seguem um processo formal de namoro conducente ao matrimónio. Nunca ouvi falar de fases distintas de corte — a partir de um momento inicial de andar juntos, passando por um ponto de transição (a la esquina/a la puerta) até ao passo final (dentro de la casa) — idênticas às descritas por Price e Price (1966a) para a região da Estremadura espanhola. É possível (mas duvidoso) que aquilo que observei fosse apenas a primeira destas fases de namoro descritas por Price e Price; contudo, em Fontelas não se usa qualquer palavra para referir etapas como a la puerta ou dentro de la casa. Sobretudo entre a classe mais pobre, não é evidente uma gradação entre «andar juntos» e «dormir juntos»; os períodos intermédios são simplesmente ultrapassados. Além disso, uma frase humorística é utilizada para referir pessoas não casadas, seja qual for a idade, particularmente as comprometidas em uniões temporárias ou de coabitação: casaram nas giestas21.
51Apresentando muito mais semelhanças com Fontelas são as aldeias da Galiza imediatamente ao norte; destas, Lisón-Tolosana (1971:237) diz que: «O namoro quase não existe». Tal como a boda e as estruturas correlativas do matrimónio, os preliminares do namoro e dos esponsais são, nesta sociedade, consistentemente subestimados.
b) A residência «natolocal»
52O tipo de residência que agora vai ser descrito chamou-me a atenção para os fins do trabalho de campo em 1978. Numa nova visita a Fontelas, em 1981, juntei alguns apontamentos suplementares sobre o tema. Na secção que se segue, reunimos, pois, algumas notas preliminares para o seu estudo: tenho a certeza quç futuras estadas me proporcionariam mais detalhes para melhor caracterizar um padrão de residência raramente abordado nas monografias etnográficas sobre comunidades rurais na Europa. Livi Bacci afirma que «costumes restritivos de casamento sobreviveram até há relativamente pouco tempo em Trás-os-Montes» (1971:52); no caso de Fontelas, esta forma de residência fornece-nos outro exemplo — particularmente claro — da limitação geral e restrição do matrimónio.
53A residência natolocal22 configura-se assim: após o matrimónio, ambos os noivos residem nos lares natais dos respectivos pais. O novo casal usa para dormir um quarto dentro da casa dos pais da noiva; o «marido visitante» (the visiting husband) (Fox 1979) retira-se para este quarto na habitação dos sogros somente à noite para dormir, depois de ter jantado com os seus próprios pais. De manhã cedo, o marido volta para o grupo doméstico de seus pais para o trabalho diário. Os aldeãos com quem falei acerca deste padrão sublinharam repetidamente que o próprio pequeno-almoço do marido não é tomado na casa dos pais da mulher, mas sim na sua casa natal. Deste modo, são as refeições que constituem os «limites» que definem o tempo concedido ao marido para estar em cada fogo. Após a refeição da noite (sobretudo no Inverno) é uma questão de escolha o local onde o marido passará algum tempo à lareira antes de dormir: este descanso pode ser feito na casa dos pais ou na dos sogros. Embora o almoço seja sempre tomado na sua casa natal, há excepções nas alturas em que os dois fogos fazem em conjunto os repastos, ou seja, nos momentos do trabalho mais intenso das colheitas ou durante as festas que acompanham as debulhas, as vindimas, as matanças do porco ou os baptismos.
54Assim, o casamento não implica senão o mínimo de ajustamentos sobre os arranjos de dormir, sem haver mudanças de maior nos factores relacionados com o trabalho ou o consumo. São os recém-casados, e não as suas famílias natais, que são obrigados a acomodarem-se depois do matrimónio; por outras palavras, são eles que se devem adaptar ao ritmo do trabalho diário dos respectivos grupos domésticos. Nestas condições, o marido tornase de facto um visitante nocturno na casa natal de sua mulher.
55Na investigação sumária deste padrão de residência, encontrei 11 casos de casais que haviam morado natolocalmente, durante algum tempo, num passado recente. Em 1981, duas outras jovens haviam casado e viviam também nas casas natais, enquanto os maridos (ambos guardas-fiscais) faziam breves visitas de fins-de-semana em datas variáveis separadas de meses23. Para além disso, falaram-me da existência de diversos outros exemplos em lugares vizinhos, e mesmo de alguns nos quais os cônjuges pertenciam a aldeias distintas; estas uniões poderiam muito melhor ser designadas «matrimónios de fim-de-semana», uma vez que apenas aos sábados o marido deixava a casa natal na sua povoação para ir passar a noite com a mulher. A duração de tais tipos de residência nas 11 situações examinadas prolongou-se de 1 a 15 anos. Por exemplo, seis casais moraram assim durante 7 meses, 1, 2, 2,5 e 3 anos, respectivamente; cinco outros mantiveram este tipo de residência pelos períodos superiores de 5, 6, 8 e 15 anos (dois casos) respectivamente. O exemplo mais extremo de que me falaram aconteceu em Portelinha, terriola vizinha de Fontelas, onde os cônjuges residiram natolocalmente durante 23 anos: nesta situação, a mulher tinha já netos antes de o marido ter ido viver com ela, após a morte dos pais dele. Significativamente, só em relação a este caso os aldeãos me disseram achar esse período «demasiado longo» para morar separadamente. Um período de 5 a 10 anos não é considerado invulgar. Embora alguns habitantes se mostrassem um pouco embaraçados acerca dos anos que passaram com residência separada, a maioria considerava-a como um arranjo perfeitamente aceitável e, sobretudo, necessário dado um conjunto específico de circunstâncias limitativas.
56Em todos os exemplos descritos, os filhos dos recém-casados eram criados inicialmente pelos pais da mulher. Pelo menos um dos pais de cada cônjuge ainda se encontrava vivo por altura do matrimónio; assim, aquando do nascimento do primeiro filho, o grupo doméstico da mulher continha três gerações, mas não se poderia considerar tecnicamente uma famille souche ou um agregado familiar múltiplo porque cada um dos cônjuges mais novos residia separadamente e não debaixo do mesmo tecto. Uma característica interessante deste arranjo é a utilização específica dos termos de tratamento pelos filhos da mulher quando falam com os seus avós matemos. Nesta linha, a criança pode, por exemplo, chamar à sua mãe Maria mãe, antecedendo o nome da sua avó também com «mãe»: assim, a avó Amélia será tratada por mãe Amélia. O mesmo se aplica quando os netos se dirigem ao pai de sua mãe; neste exemplo, o avô André será chamado pai André, ao passo que o termo «pai» será utilizado unicamente para o pai da criança. (Recordemos que o pai não é um residente diário na casa da sua mulher.) São os pais do pai que, mais frequentemente, são chamados de avô ou avó, e não os pais da mãe com quem os netos moram. Portanto, nestas situações, ficamos com a ideia de que existem laços de parentesco mais íntimos através da residência permanente e dos laços de filiação na linha materna: é com os pais da mãe que os filhos vivem e não com os pais de seu pai. A extensão dos termos de tratamento pai/mãe para a terceira geração sugere o encurtamento da distância entre as gerações de netos e avós no interior do grupo doméstico da mãe: até certo ponto, os avós são «como pais»24.
57Somente quando a residência natolocal acaba numa data posterior é que os filhos (por vezes entre os 10 e os 20 anos) passam a morar com ambos os pais. É de notar que, enquanto se mantém o arranjo natolocal, são sempre os avós que conservam o controlo quase completo da exploração agrícola e que (excepto quando muito velhos) dirigem as tarefas da lavoura e os dinheiros da casa. Nenhum dos casais que viveram separados se referiram a qualquer contributo financeiro substancial dado pelo marido, quer para a família da sua mulher quer para a criação dos filhos, e tanto quanto pude perceber não se amealha com vista à constituição futura de um lar independente. Tal como acontece com a terra e outros tipos de propriedade, é a geração dos mais velhos que mantém o controlo efectivo sobre a forma de residência dos filhos casados; também aqui, o matrimónio é severamente condicionado. Embora legalmente consorciados e já com descendentes, cada esposo é tratado «como se fosse um filho/a solteiro/a» e não realmente casado. Em Fontelas, o matrimónio não só é limitado através do celibato e do casamento tardio, mas também através de restrições pós-matrimoniais: o marido visitante e sua «mulher-que-é-ainda-uma-filha» remetem o casamento ao papel de uma actividade a tempo parcial. O tempo e o trabalho de cada cônjuge durante o dia são dedicados aos seus próprios pais e o laço matrimonial é reduzido a um papel exclusivamente nocturno.
58Dois exemplos de residência natolocal permitem ilustrar alguns destes aspectos. O primeiro refere-se a dois fogos de jornaleiro relativamente pobres, e o segundo a três casas de proprietário bastante abastadas. Na Figura 22 (referente ao primeiro caso) encontramos os grupos domésticos de ambos os cônjuges alguns anos após o seu casamento em 1948, isto é, cerca de 1950. Ambos se mantêm nas respectivas casas natais depois do matrimónio: Dárida continua a viver com a mãe, os dois meios-irmãos e a «meia-sobrinha», enquanto no segundo fogo Silvério continua a morar com a mãe viúva, Fabiana. (O primeiro dos quatro filhos de Dárida nasceu ilegítima em 1945, três anos antes do matrimónio.) Este arranjo durou aproximadamente 8 anos. O meio-irmão de Dárida, Ernesto (que mais tarde abriu um comércio), era o principal jornaleiro do grupo doméstico, ao passo que Leónida e Dárida trabalhavam em casa e, por vezes, como jomaleiras. A irmã mais velha de Silvério, Sebastiana, tinha casado alguns anos antes e juntou-se logo ao seu marido (residência neolocal). Silvério continuou pois a trabalhar à jorna e a fazer as tarefas agrícolas pesadas para sua mãe.
59Mas porquê a residência separada? Não poderia ter Dárida ido viver para casa da mãe de Silvério, ou vice-versa? Quando confrontados com essas perguntas, as respostas dos esposos foram unânimes: «qualquer de nós tinha algumas pessoas para cuidar nas nossas próprias casas». Ambos frisaram que as suas obrigações prioritárias eram para com as suas famílias natais e não para com as dos cônjuges, e que os pais e irmãos «precisavam mais deles» do que o marido ou a mulher. Para Silvério deixar a mãe sozinha, com apenas uma ou outra ajuda ocasional que lhe daria, era impensável. O facto de os dois se terem casado, e de terem filhos, não constituía razão suficiente para quebrar o grupo doméstico de qualquer das casas natais.
60A longo prazo, ambos os fogos modificaram a sua estrutura. Hoje, Silvério, Dárida e os seus dois filhos mais novos moram com a mãe de Silvério (Casa 1), ao passo que Ernesto vive com a sua mulher e o seu irmão mais velho, solteiro, na sua casa natal (Casa 7). Leónida passou a residir mais tarde no fogo de D. Elvira, depois de sua filha Gracinda se ter tomado a criada favorita daquela. Quando Bernardina faleceu, em 1970, as poucas parcelas de terra que possuía foram divididas entre os três filhos, tendo a casa ficado para Ernesto, uma vez que ambas as suas irmãs tinham ido viver para outro local. Dárida e Silvério passaram a morar juntos logo após a altura (aproximadamente 1956) em que a mãe de Silvério se mudou para a casa da filha (Sebastiana) a seguir ao nascimento do seu primeiro neto. Quando a mãe de Silvério morreu, a sua propriedade (que não era muito grande) foi dividida entre Silvério e Sebastiana; como esta já se tinha estabelecido num novo lar após o matrimónio, Silvério continuou a residir na casa de sua mãe com a mulher e os filhos.
61Estes factos sugerem que ambos os grupos domésticos originalmente temeram, ou não quiseram, a presença de um parente por afinidade vindo do «exterior». Os conflitos entre mães e noras são elementos clássicos do folclore de Fontelas, e isto pode muito bem ser um factor importante a opor-se à residência virilocal. Um dito local alerta concretamente para tais relações tensas de afinidade: Vai-te minha filha, bem casada; Onde não vejas cunhada nem sogra. Mas ambos os cônjuges do exemplo anterior me repetiram que o trabalho de cada um era necessário na sua própria família, e que este era o factor decisivo. O caso ilustra a força dos laços de descendência e consanguinidade (nomeadamente entre irmãos) no interior das casas natais, em contraste com o frágil laço conjugal entre marido e mulher após o matrimónio; este último vínculo fica subordinado, embora temporariamente, aos ritmos dominantes e bem estabelecidos da casa natal de cada um dos esposos.
62Um segundo exemplo vem reforçar alguns dos traços revelados pelo primeiro, embora de um modo mais complicado. A Figura 23 mostra que neste caso dois irmãos dentro do mesmo fogo residiam ambos natolocalmente, ligando assim três casas e quatro cônjuges através de formas de residência separada. O grupo doméstico da direita é o de D. Elvira (a filha do proprietário Rodrigo) e, no meio, deparamos com o do pároco, que, como as suas três irmãs, não vivia na casa natal por essa altura; o fogo do lado esquerdo pertence a um dos lavradores mais abastados da aldeia. O primeiro matrimónio implicando residência separada foi o de Miguel e Angelina. Este casal teve um único filho — um rapaz que se encontra preso ao leito em consequência de complicações no momento do parto. Também aqui, a razão principal que explica a residência separada é assim expressa: «os meus pais precisaram de mim». Em todos os três grupos domésticos, cinco dos seis indivíduos da geração mais velha encontravam-se entre os 60 e os 76 anos.
63Na primeira família, foi-me dito pelo próprio Miguel que era ele o principal lavrador do fogo e responsável pela realização das fainas agrícolas mais pesadas. Até 1961, a irmã mais nova ajudava a mãe com os trabalhos de casa e das cortinhas, enquanto o irmão mais novo pensava seguir a carreira militar de guarda-fiscal. A irmã (assinalada com um asterisco) casou fora e deixou a aldeia em 1961. Com a morte de Agostinha, em 1972, o fogo sofreu uma mudança importante: Evangelista foi para o Brasil e o seu filho mais novo (dois asteriscos) casou e foi viver com os sogros (Casa 9) noutro bairro da povoação. Miguel, por último, foi para uma nova habitação com a mulher e o filho, mas só após 15 anos de residência separada. Notemos que, quando eles estabeleceram o seu novo lar (parte da velha Casa do Conselho: Casa 30 no Mapa 3) em 1973, a mãe de Angelina — Manuela — tinha falecido. Esta exploração (de grande dimensão) foi dividida imediatamente entre os seis irmãos, cada um dos quais recebeu a sua quota-parte. Plácido, viúvo, manteve-se na casa natal aos cuidados do filho (o pároco) e da filha (a professora), que então voltaram para a casa.
64Também em 1973, o segundo casal (Valentim e Gracinda) para lá foi viver depois de 5 anos de residência separada. Exactamente as mesmas explicações para o arranjo natolocal foram dadas por Angelina, Valentim e Gracinda — tanto aquela como Valentim disseram que «os pais ainda precisavam de nós». Do mesmo modo, uma vez que Gracinda era agora a criada permanente adoptada por D. Elvira, não havia hipótese de ela ir morar para casa dos sogros25. Assim se encontravam ligados três grupos domésticos através de casamentos a tempo parcial, vivendo as mulheres no mesmo sítio de dia e de noite, ao passo que os homens trabalhavam de dia para uma casa e dormiam noutra. Ambos os homens eram, pois, maridos visitantes.
65Todos os indivíduos em questão referiram, uma vez mais, a «necessidade do seu trabalho» nas respectivas casas natais, sem evocar conflitos potenciais entre sogras e noras. No exemplo do fogo do meio, na Figura 23, não há herdeiro favorecido: todos os seis irmãos dividiram a exploração da sua mãe em partes iguais, visto que ela não deixou testamento (Plácido tinha casado em Fontelas, não trazendo qualquer propriedade para o matrimónio). Hoje, o padre e a irmã mais nova (ambos solteiros) vivem na casa, mas nenhum deles é considerado o herdeiro privilegiado da exploração agrícola, mas apenas detentores de posições sociais elevadas. Já nos dois outros fogos, tanto Miguel como Gracinda são indiscutivelmente favorecidos. Contudo, a residência natolocal indica que, não obstante o casamento de um herdeiro favorecido, o grupo doméstico do cônjuge deste último ainda poderá impor restrições ao matrimónio; isto é conseguido ao exigir que os filhos se mantenham com as suas famílias originais, «casados apenas à noite». Todavia, as três casas em questão estão localizadas próximas umas das outras (Mapa 3) e, portanto, alguns encontros durante o dia são obviamente possíveis. Este tipo de residência sugere, por conseguinte, que não é apenas a transmissão da propriedade através de um herdeiro beneficiado que é significativa, mas também uma organização muito rigorosa para determinar quem ficará (mesmo após o matrimónio) dentro da casa natal para trabalhar. Tanto a terra como a estrutura do grupo doméstico são aqui factores cruciais: o equilíbrio entre terra e trabalho deverá ser preservado a todo o custo, apesar dos rearranjos potenciais que o casamento implica. É esse delicado equilíbrio que impera sobre o laço conjugal.
66Existe então uma disjunção entre a casa como unidade simultaneamente produtiva e reprodutiva. Enquanto vigoram os arranjos natolocais, tanto os homens como as mulheres casadas ficam dentro de cada lar natal como mão-de-obra produtiva; o matrimónio não traz alterações de maior à estrutura do grupo de trabalho doméstico de qualquer delas. No entanto, somente o fogo da mulher funciona como unidade reprodutiva; é aqui que os netos crescem e não com os pais do marido. Assim, o casamento nestas circunstâncias não constitui para as vidas destes indivíduos qualquer mudança importante em termos de cooperação ou residência26. Antes pelo contrário, o matrimónio tem de se adaptar às rotinas tradicionais de cada um dos grupos domésticos envolvidos. Como muitas destas pessoas sublinharam: «as coisas continuaram como se nada tivesse acontecido — como se não se tivessem casado».
67O perfil básico da residência natolocal encontra-se agora definido. Mas como explicam os aldeãos as razões subjacentes a este tipo de residência e como se relacionam as suas interpretações com o tema de matrimónio/património? As três razões seguintes (apresentadas pela respectiva ordem de importância) são as que mais regularmente me foram fornecidas pelos habitantes. As perguntas foram feitas a quantos tinham vivido natolocalmente, bem como a outros. Segundo o seu ponto de vista, a residência separada era consequência de:
Necessidade de manter o trabalho do filho;
Dificuldade em construir novas casas;
Afeição sentimental;
Um «princípio de descendência» relacionado com a herança post-mortem.
68Acrescentei esta quarta explicação, considerando-a um denominador comum das outras, e que será tratada mais tarde.
691. Antes de mais, seja-me permitido sublinhar que todas as pessoas interrogadas insistiram no facto de serem importantes como fontes de mão-deobra nas suas casas natais. O matrimónio nada fez para alterar essa situação ou, pelo menos, esta é a «mentira social» em que desemboca o sistema natolocal; cada cônjuge é simplesmente mantido «como um filho» no grupo doméstico dos pais. A residência separada geralmente acontece nos casos dos matrimónios dos irmãos mais novos, sobretudo depois dos irmãos mais velhos terem casado fora ou emigrado (ver o exemplo do fogo do meio, na Figura 23). Além disso, a residência natolocal pode ocorrer quando ambos os pais de qualquer um dos cônjuges ainda estão vivos; isto é o que se passa com todas as casas apresentadas na Figura 23, enquanto que, na Figura 22, cada esposo tem apenas um pai vivo. A residência natolocal pode também ter lugar (embora deste tipo só possa apresentar um exemplo) quando ambos os pais de um dos cônjuges morreram, mas um ou mais dos irmãos solteiros ainda vivem e residem na casa natal. O ponto essencial é que, quando esta forma de residência se verifique, o filho casado pode não ser o único filho a morar no fogo, mas é considerado indispensável dentro da estrutura produtiva do grupo doméstico: normalmente como lavrador ou jornaleiro no caso de ser homem, ou como doméstica no caso de ser mulher. Daí a razão porque tanto os homens como as mulheres que viveram natolocalmente afirmaram que os respectivos pais «precisavam dos seus braços».
70Lisón-Tolosana (1971) e Robin Fox (1978) descreveram padrões idênticos de residência natolocal, respectivamente na Galiza e na Irlanda do Norte (Tory Island). As descrições destes investigadores proporcionam-nos paralelos notáveis com Fontelas: as duas regiões são, tal como a desta aldeia, caracterizadas por minúsculas comunidades rurais, pequenas explorações agrícolas, uma tecnologia rudimentar, e ambas são marginais em termos geográficos e relativamente aos seus contextos nacionais. Na Galiza, por exemplo, Lisón-Tolosana apresenta um exemplo de oito pessoas casadas da mesma geração residindo em cinco fogos diferentes: nenhuma delas vivia junto com o respectivo cônjuge (1971:311). Um outro dos seus informadores falava de arranjos natolocais nos quais «La mujer es como una filia soltera en casa» (1971:312). O padrão do marido visitante nocturno, bem como a extensão dos termos de tratamento «mãe» e «pai» aos avós, são igualmente referidos por Lisón-Tolosana. Por último, a mesma importância era dada pelos camponeses galegos ao trabalho dos filhos casados para as suas famílias originais; diversos habitantes da Galiza explicaram que as suas casas natais necessitavam dos seus brazos, e Lisón-Tolosana conclui que «a residência separada dos esposos aparece também imposta pela exigência de braços para o trabalho na casa respectiva...» (1971:313).
71Um padrão semelhante é descrito por Robin Fox para Tory Island (1978/1979)27. De 51 casamentos na ilha, Fox analisou 10 que envolviam residência natolocal, correspondendo a 20 cônjuges morando separadamente; estes maridos também visitavam as suas mulheres à noite e os filhos viviam com os pais da mulher (1978:160). Os maridos não colaboravam nas reparações efectuadas nas casas dos sogros (1978:159) e não havia dotes (1978:184). Fox também nota que existia uma forte pressão para manter estes filhos casados nos seus próprios lares natais:
«a primeira obrigação de uma mulher é para com os seus... ou a sua ‘própria’ casa... Se ela, por exemplo, tem irmãos ou pais idosos que dela necessitam, deve ficar onde nasceu, mesmo que tenha casado: só deve mudar de residência quando estas obrigações forem cumpridas» (1978:158).
72Por outras palavras, as obrigações de cada um para com os parentes morando na casa natal são prioritárias em comparação com as obrigações recémformadas (e subestimadas) para com o cônjuge e os respectivos parentes por afinidade28. Lisón-Tolosana e Fox frisam que as obrigações de trabalho e de parentesco dos filhos casados para com as suas casas de origem se sobrepõem às que poderiam surgir em relação a um novo lar; os laços de cooperação e parentesco consanguíneo existentes desde há longo tempo dentro da família natal não devem e não são transformados com o matrimónio. Em Fontelas observa-se também esse desfasamento entre casa natal e conjugal: para a mulher, estas constituem uma unidade, mas para o marido visitante são partilhadas entre o dia e a noite.
732. A segunda explicação dada é a falta de casas. A maioria dos indivíduos interrogados referem o facto como de extrema importância: «era difícil e caro construir um prédio, e assim cada esposo ficava com os pais». Outro comentário frequente especificava que eram necessários vários anos para um casal juntar o suficiente em haveres e capital para construir a sua própria habitação, e que durante esse tempo tinham de viver algures. Como explicação, este factor parece mais plausível no que respeita ao grupo de jornaleiros e talvez a alguns dos lavradores, onde a terra e o dinheiro (bem como as casas) são escassos, mas para os grupos de proprietários e de lavradores abastados faz menos sentido. Relativamente a estes últimos existe mesmo, muitas vezes, um excesso de prédios: a afazendada Casa do Conselho possui ainda hoje alguns edifícios desabitados no bairro central de Fontelas (Mapa 3), que eram dantes utilizados como quartos para os criados. Muitos jornaleiros têm vivido períodos sucessivos ao serviço de proprietários que lhes arrendavam casas temporariamente. Assim, de uma maneira geral, entre os abastados a falta de casas não parece constituir uma barreira absoluta para a formação de novos lares com o matrimónio.
74Tanto Lisón-Tolosana como Fox mencionam este factor mas nenhum deles o trata em pormenor, nem os seus informadores o referem como um factor decisivo da residência natolocal. Lisón-Tolosana preocupa-se mais em descobrir a tendência geral no Sul da Galiza para «a perpetuação da casa» ao longo do tempo, enquanto Fox se preocupa menos com as dificuldades em construir habitações do que com a suposta aversão dos moradores da ilha a criarem «uma incómoda família alargada» (1978:170-71). Nenhum dos autores aborda o problema directamente, nem tão-pouco eu poderei dar melhores informações sem estudos de caso mais detalhados. A minha impressão geral é, apesar disso, que o problema da habitação é um factor relevante e que contribui para os arranjos natolocais, mas de valor relativo em casos específicos. Contudo, as dificuldades de construção de prédios entre os pobres são marcadamente mais graves. O grupo de jornaleiros tem hoje acesso à construção em moldes modernos: um bairro inteiramente novo levantou-se em Fontelas, composto por 12 casas novas. Mas isto é uma consequência da emigração e facto relativamente recente Antes dos anos 60, existia uma situação muito diferente, quando os jornaleiros, no conjunto, ocupavam uma posição particularmente baixa dentro da hierarquia social.
753. A terceira explicação referida pelos aldeãos é a afeição sentimental entre pais e filhos. Uns e outros falam desses laços, e o comentário referido mais amiúde pelos primeiros era: custa-nos ver um filho sair. O matrimónio de um filho, sobretudo se este for muito jovem, ameaça estes vínculos de parentesco estabelecidos de longa data dentro da família natal. A residência | natolocal permite assim um compromisso temporário; em vez de deixarem o grupo doméstico para ir viver com o marido num novo lar, as filhas casadas) continuam a morar com os pais. Durante a noite uma acomodação temporária é proporcionada ao marido visitante na casa dos pais de sua mulher, mas os fogos de cada um dos esposos mantêm os seus ritmos diários de trabalho e cozinha. Os filhos solteiros, ao casar, não «saem de casa» e os traumas da separação filial são poupados aos pais. A sensação de intromissão de um parente do exterior é igualmente evitada ou, pelo menos, limitada às visitas nocturnas do marido à lareira dos sogros. Também do ponto de vista dos filhos casados, a ruptura que o matrimónio pode implicar é «sentimentalmente» problemática; foi-me dito repetidas vezes que a ideia de deixar os pais sozinhos era particularmente dolorosa. Uma vez mais, a residência natolocal constitui um modo de adiar essa separação e de evitar mudanças de vulto nos arranjos domésticos.
76Fox dedica mais tempo a esses laços de afecto do que Lisón-Tolosana, mas este também os refere. Em particular, Fox fala da existência na ilha de uma genuína «hostilidade à ideia do casamento, tanto por parte dos pais como dos irmãos» (1978:185). A residência natolocal é mais passível de acontecer nos casos de filhos que vivem em fogos incompletos quer com um pai viúvo quer com irmãos solteiros. O vínculo entre os irmãos é considerado por ele como um princípio central à volta do qual rodam muitas estruturas e ciclos de Tory (1978:186-7). Aqui, a residência natolocal é apenas mais um aspecto do «não casamento» (nonmarriage). A residência separada constitui, pois, um arranjo aceitável e habitual que é mais provável que ocorra em períodos específicos no ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico. Fox conclui que não é a posse da terra, mas, antes, a falta de meios para construir casas e o afecto que são os factores condicionantes subjacentes àquela forma de residência (1978:188). São as relações de parentesco, acima de tudo, e os seus correlativos elementos morais de obrigação e assistência que enformam os aspectos da residência separada; eles isolam os laços que ligam os pais e irmãos da ameaça da interferência do casamento.
774. Uma quarta explicação é também possível, que nos reenvia ao tema do matrimónio e património. Subjacente às três explicações que me foram dadas, e que acabam de ser referidas, vejo um «princípio de descendência» ligado a um modo específico de herança retardada. Emprego a palavra descendência cautelosamente — que será discutida mais tarde no Capítulo 7. Filiação seria outro termo possível, mas aqui utilizo o primeiro unicamente para fazer notar os laços verticais ou consanguíneos entre pais e filhos (ou netos), assim como a relação entre irmãos, dentro de uma casa natal. Tal como em Tory Island e na Galiza, estas relações ligadas à transmissão do património familiar têm prioridade sobre os laços conjugais e de afinidade estabelecidos pelo matrimónio. Intimamente relacionada com a exigência, por parte dos pais, em preservar a mão-de-obra dos filhos casados, encontra-se a realidade da herança após a morte — em Fontelas não há qualquer maneira de um casal obter o capital suficiente em terra, dinheiro ou habitação, que lhe permita estabelecer um novo lar. Isto não quer dizer que não venha a fazê-lo (o que por vezes acontece) mas que, simplesmente, não é esta a prática comum e que os arranjos quanto à residência não favorecem tal passo. A geração dos pais mantém o controlo não só do património (terras, casa e alfaias) mas também da mão-de-obra dos filhos casados.
78Se bem que a frase muitas vezes repetida — quem casa, casa quer — corresponda a um ideal, este, na prática, não é frequente. Isto é, em grande parte, consequência dos obstáculos impostos pela estrutura da herança postmortem ao laço conjugal. Aos filhos, sobretudo os mais novos, não resta senão cumprir estas obrigações para com os pais e (em menor grau) para com os irmãos solteiros, cuidando deles na velhice. Nenhuma transferência de propriedade importante se dá quando os filhos se casam, ou antes da morte de um dos pais: mesmo os herdeiros favorecidos não herdam quaisquer bens substanciais antes da morte dos pais, embora como já vimos o filho favorecido possa informalmente começar a dirigir grande parte da actividade do grupo doméstico. Existe, pois, uma forma imanente de segurança na velhice com o sistema estrito de herança à morte, sendo este sistema que define os contornos de residência separada. Os laços de parentesco e trabalho que se constituem em tomo do património natal mantêm-se intocáveis face à dispersão potencial que o matrimónio implica.
79Uma evidência óbvia deste aspecto e da força das relações de descendência é o facto de muitas situações natolocais normalmente se desfazerem precisamente no momento da partilha de um património. Tal aconteceu nos exemplos da Figura 23, e um certo número de outros casos que estudei seguiram a mesma linha. O lavrador Elias, por exemplo, explicou que a sua residência natolocal, que durou 6 anos, terminou imediatamente após o falecimento dos seus pais (em datas próximas) e a partilha da exploração familiar; só então ele deixou de ser o marido visitante na casa do sogro, e aí veio a estabelecer residência definitiva. Também Fox e Lisón-Tolosana referem este momento de mudança na residência: Fox diz-nos que os esposos já casados «poderão, mais tarde, passar a viver juntos quando os pais de um ou de outro morrerem» (1978:162). Por sua vez, Lisón-Tolosana descreve uma sequência de acontecimentos semelhante:
«Normalmente ao morrer o último dos pais, os filhos começam a pensar em dividir o capital e unir-se com o seu esposo ou esposa debaixo do mesmo tecto. ‘O partir se unen. O partir xúntanse sempre o home e a sua muller’. ‘Cuando fallecen los ancianos júntanse marido y mujer...’» (1971:319).
80Também na Galiza, um habitante indicava explicitamente a lógica material que se encontra por detrás da residência natolocal, comentando: «Viven separados por non partir o capital, por ter o capital xunto» (1971:318).
81Todos estes exemplos apontam para o momento crucial do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico em que é provável que termine este tipo de residência: a morte de um dos pais (normalmente o último) quando o património familiar é dividido. Esta divisão da propriedade é quase sempre acompanhada por uma modificação importante na residência das pessoas. É esta a razão porque na Figura 22 (onde ambos os cônjuges provêm de famílias com muito poucas terras) bem como nas casas da Figura 23 (todas abastadas em terra) o mesmo padrão de residência separada ocorreu. A residência natolocal dá-se em todos os grupos sociais de Fontelas — ricos, remediados e pobres. Não é só a terra que condiciona esta forma de residência, mas uma combinação de factores que, em conjunto, definem uma orientação muito mais forte para com a descendência e a filiação do que para com as relações conjugais e de afinidade.
82Lisón-Tolosana chama mesmo à residência natolocal uma forma de «supressão simbólica de uma geração, a intermédia» (1971:329). Neste sentido, a ilusão da continuidade da linha de família é alcançada através da supressão do filho casado; a geração dos avós «salta», assim, sobre a segunda geração, directamente à terceira (os netos) olvidando o casamento intermédio. O matrimónio é pois escondido, e perpetua-se uma linha contínua de descendência em gerações alternadas. Os avós (chamados «mãe» e «pai») tomam-se pais sociais, enquanto os netos são elevados ao nível de filhos — a geração intermédia é simbolicamente eliminada. A residência natolocal fornece assim um exemplo extremo de um processo através do qual o património e a linha de descendência a ele ligado são preservados graças à repressão do matrimónio: a dispersão potencial, tanto dos «braços para trabalhar» como da terra, é impedida na altura do casamento pela lei da herança post-mortem. Obviamente, casos específicos de matrimónios natolocais envolvem os três factores principais (trabalho, casa e afeição) de diferentes modos, mas este quarto factor encontra-se subjacente a todos eles; as «rédeas» do património são seguras firmemente pela geração mais velha (dos pais ou dos avós) e não podem ser tomadas pelos mais novos.
83Não pretendo fazer crer que não existam contra-estratégias por parte da geração dos filhos: o que acontece é precisamente o contrário. Mas as «boas cartas» ficam desde o princípio nas mãos dos pais. Certamente que há sempre algumas possibilidades para a formação de um novo lar por um novo casal, mas os obstáculos a tal passo são demasiados e muito fortes até que se dê o falecimento dos pais. É claro que o tempo é aqui do maior significado; logo que a casa natal e o grupo doméstico são quebrados, o próprio casal (a geração antes suprimida) assume o papel da anterior geração dos avós. Uma sucessão de diferentes fogos é desta forma reproduzida ao longo do tempo, mas há um considerável atraso na transferência do controlo de uma geração para a seguinte. O casamento tardio está deste modo em correlação íntima com a herança post-mortem, e é esta forma de herança retardada que também condiciona a residência natolocal.
84A apoteose do «casamento suprimido» pode ser constatada nos enlaces secretos e na associação do matrimónio com a noite. Este ponto leva-nos de novo à Secção a), onde falámos da pouca importância dada aos rituais nupciais em Fontelas. Lembremo-nos primeiro da boda (de Pedro e Laura) efectuada em 1977 pela madrugada, e seguidamente das visitas nocturnas dos maridos às mulheres em situações natolocais. Um aspecto suplementar surge nos humorísticos casamentos de noite realizados pelos fins da Quaresma; estes constam de uma espécie de versos cantarolados no fim da TerçaFeira de Entrudo nas festas de Carnaval. Um grupo de rapazes junta-se, por volta da meia-noite, numa colina no bairro do Outeiro; provocam uma barulhenta cacofonia de ruídos variados feitos com objectos como paus, latas e ferros, enquanto gritam «casamos F. com S.». Estes matrimónios só há pouco deixaram de se fazer, mas muitos habitantes falaram deles com humor e descreveram a maneira como eram feitos. O aspecto principal da escolha dos «esposos» residia no facto daqueles que eram verbalmente casados pelos jovens serem sempre pares incongruentes: mulheres muito velhas com rapazes novos ou vice-versa, ou dois velhos aldeãos solteiros. As viúvas e viúvos eram também «recasados».
85A data destes matrimónios humorísticos, levados a cabo durante a última mascarada de Carnaval antes do começo da Quaresma, culminava o período profano de práticas simbólicas que se arrastara pelo Inverno. Na realidade, visto que começavam por volta da meia-noite e duravam uma hora ou mais, estes casamentos prolongavam as brincadeiras carnavalescas para lá do limite da meia-noite que separa a Terça-Feira de Entrudo da Quarta-Feira de Cinzas. Isto fazia parte do desafio próprio das actividades do Carnaval: a ordem normal das coisas era virada do avesso e os incasáveis da povoação eram «casados» à noite. Este é, por conseguinte, um terceiro exemplo da associação do casamento e da noite: o matrimónio é um acontecimento socialmente perigoso e todas as tentativas são feitas para o esconder da luz do dia29.
86Tanto Lisón-Tolosana como Fox relatam formas diferentes de casamentos noctumos que se podem comparar com os de Fontelas. O primeiro menciona a descrição de um informador de arranjos natolocais nos seguintes termos: «en realidad las bodas son todas ellas de conveniencia y todas hechas. Solían casarse por la noche... [o] de madrugada, sin que se enterase nadie... Era la ceremonia [religiosa] sin nada más, sin banquete y sin invitar a nadie. Lo hacían muy de madrugada para a la mañana estar trabajando cada uno en su finca, como si no hubiera pasado nada» (1971:325). LisónTolosana também afirma que, no contexto espanhol, é em grande parte na Galiza rural onde menos se têm celebrado e ritualizado as núpcias (1971:325). Fox menciona igualmente a curta cerimónia da boda em Tory, e o facto do matrimónio «não ser um acontecimento para festejos» (1978:162). O seu exemplo mais brilhante, de um casamento nocturno celebrado à luz de fogueiras acesas nas duas margens do braço de mar que separa a ilha de Tory da Irlanda, encontra-se assim descrito:
«Algumas vezes um padre da Irlanda aceita celebrar uma estranha cerimónia de casamento à distância e à noite. Acende-se uma fogueira em Bloody Foreland e outra nas falésias de Tory; numa noite calma e clara estes fogos podem ser facilmente vistos do outro lado. O padre na Irlanda lê uma parte do ofício nupcial e então o seu ajudante levanta um cobertor em frente do lume, impedindo que a luz chegue ao outro lado. Este é o sinal para o casal que se encontra na ilha dar a sua resposta, após o que, por seu lado, a sua fogueira é encoberta, e assim sucessivamente...» (1978:161).
87O casamento é pois sistematicamente relegado para a noite nestes três casos — Tory Island, a Galiza e Fontelas. Os interesses representados pelo património são demasiado importantes para permitirem que o matrimónio reine a descoberto, durante o dia.
88Consequentemente, o casamento limita-se a um arranjo de visita. Todas as ameaças potenciais à unidade do património familiar ou à dispersão do grupo de trabalho natal devem ser controladas e adiadas o mais possível, com o objectivo de perpetuar uma linha de família através da descendência. Dado o poder prevalecente do património e de tais laços, são feitas todas as tentativas para garantir que o matrimónio tenha um papel tão reduzido quanto possível dentro dos arranjos domésticos.
89Se bem que as análises da residência natolocal por Lisón-Tolosana e Fox sejam as duas mais pormenorizadas na literatura etnográfica europeia actual, penso que o padrão não se limita unicamente a estas regiões. De facto, existem outras três fontes que o mencionam, embora de uma maneira breve. Na Espanha Central, Susan Tax Freeman nota que uma residência separada de um ano (até à primeira colheita) era comum em Valdemora (1970:75-7). Também Pierre Bourdieu cita facto semelhante para os Pirenéus franceses:
«Este tipo de casamento tende a instalar os cônjuges na instabilidade entre os dois lares, quando não se trata pura e simplesmente da separação das residências. No conflito aberto ou disfarçado a propósito da residência, o que está em jogo aqui, como noutros lados, é a dominação de uma linhagem por outra; é o desaparecimento de uma ‘casa’ e do nome que lhe está ligado» (1976:135).
90Para Trás-os-Montes também Joaquim Pais de Brito (1977) registou, para as duas últimas décadas, 12 casamentos natolocais (24 cônjuges vivendo separadamente) na aldeia fronteiriça de Rio de Onor, encontrando-se nalguns destes casos os dois locais de residência separados pela fronteira (Rio de Onor e Rihonor). Creio que estes aspectos não são tão raros quanto se julga, mas que se encontram simplesmente pouco estudados30.
91Um controlo tão rígido sobre a partilha, e sobre o atraso concomitante'do casamento, suponho que é, provavelmente, muito acentuado nas regiões de pequena exploração agrícola, onde a terra escasseia e o retalhamento seria potencialmente destruidor. Acredito seriamente que em outras zonas montanhosas de Portugal e Espanha, onde prevalecem as pequenas propriedades, e sobretudo onde vigoram regras de herança por morte, a residência natolocal pode não ser invulgar. Trata-se de um arranjo prático dentro de um tipo particular de estrutura social, onde o império do património reina sobre o do matrimónio.
Notes de bas de page
1 Uma relação completa das proporções de ilegitimidade em Fontelas desde 1870 é apresentada no Capítulo 7 (Quadro 18). É importante notar que, não obstante alguns aldeãos tentarem identificar a ilegitimidade apenas como «uma coisa do passado», esta não desapareceu inteiramente da cena social, tendo deixado uma marca perfeitamente clara na estrutura actual dos grupos domésticos.
2 Até ao momento, tenho seguido o sistema de classificação de fogos proposta por Laslett em Household and Family in Past Time (1972:28-44), embora haja diferenças entre essa classificação e a maneira como desenhei as relações de parentesco existentes no interior dos grupos domésticos de Fontelas (ver Apêndice IV). Se bem que se possa levantar um longo debate em torno do significado de «família alargada» apresentado naquela nomenclatura, seguia de modo a poder articular os diagramas do Capítulo 5 com os do Apêndice IV, um Agregado Familiar Alargado, neste sentido, implica a presença de, pelo menos, um membro da casa (embora parente afastado) exterior ao grupo conjugal nuclear. No esquema de Laslett, o facto de haver um criado não muda substancialmente a estrutura nuclear para uma estrutura alargada. No que se refere às proporções das várias categorias de fogos em Fontelas, descobrimos valores muito semelhantes ao alargarmos a amostra de modo a incluir as quatro aldeias da freguesia. Segundo o Rol de Confessados de 1896, as proporções de agregados familiares eram as seguintes:
3 Esta data foi adiantada um ano de modo a incluir três casamentos que se realizaram em 1978 após o recenseamento de fogos em 1977. Estes matrimónios (nas Casas 9, 22 e 40) nao se encontram assinalados no Apêndice IV, mas dei conta deles no diagrama de cada uma das respectivas casas.
4 Este casamento é considerado pelos aldeãos mais parecido com as quatro uniões consensuais do que com «os respeitáveis matrimónios católicos»; o casamento civil apresenta-se como um desvio (deliberado ou não) em relação aos preceitos da Igreja. Embora de acordo com a lei eclesiástica o pároco possa omitir os fogos onde existem uniões consensuais ou casamentos civis durante a sua Visita Pascal, por norma não o faz; a bênção dada a estas famílias não difere textualmente das outras. Após ter tentado sem êxito no passado, por várias vezes, «casar os dois correctamente», o padre acabou por desistir, concluindo que o par era obstinado e intrinsecamente anticlerical. Para uma interessante comparação com os casamentos civis na província do Alentejo, consulte-se Livi Bacci (1971).
5 Levanta-se obviamente um problema em todos estes materiais sobre o casamento no que respeita ao critério para definir as aldeias de origem dos cônjuges; decidi considerar como um indivíduo «de fora» qualquer pessoa que tenha nascido ou sido criada noutra povoação. Isto significa que os indivíduos que vieram viver para Fontelas ainda crianças ou adolescentes são considerados como forasteiros (como de facto o são pelos próprios habitantes). Uma pessoa nascida num lugar vizinho e que veio morar permanentemente em Fontelas quando tinha 5 ou 6 anos, por exemplo, é sempre referido como «do lugar X» e não como «do nosso povo». As únicas excepções aplicam-se àqueles cujo assento de casamento afirma que foram «residentes em Fontelas desde a infância». Assim, um jornaleiro do exterior, residente nesta aldeia durante vários anos à altura do matrimónio com uma mulher desta povoação, continua a ser considerado como de fora da comunidade.
6 Haverá talvez aqui lacunas quanto ao registo de homens que casaram fora; a maior parte dos matrimónios são anotados no Registo Paroquial da aldeia da noiva, onde se costuma realizar a boda. Isto não significa que o noivo, nestes casos, passe a viver a partir de então na casa dos sogros. O assento de casamento pode ser lavrado no Registo Paroquial da povoação da nubente, mas pode ser enganador no que respeita à posterior residência; a esposa pode (embora isto não seja muito comum) ter regressado à comunidade do noivo e residir virilocalmente, ou podem ter ido morar neolocalmente algures.
7 Poderia incluir os casamentos referentes às outras três aldeias da freguesia (que também copiei) de modo a aumentar a amostra, mas, a julgar pela observação preliminar dos assentos, os valores ao nível da freguesia não parecem diferir substancialmente dos que se referem apenas a Fontelas.
8 Quando não existia qualquer assento de baptismo, anotei a idade indicada na cédula pessoal do indivíduo. Na ausência desta informação ou do assento de casamento (onde as idades são sempre incluídas) tive que confiar totalmente na idade que a própria pessoa referiu. Isto nem sempre provou ser um dado correcto; porém, para a maioria dos habitantes existiam assentos de baptismo, e as idades são, pois, bastante exactas.
9 Consulte-se Wolf e Cole (1974) no que respeita aos Alpes italianos, onde as idades medianas à data do casamento para os homens, no período de 1900-1949, eram de 34 em S. Felix e 38 em Tret e para as mulheres 28 e 24, respectivamente. Friedl, para a aldeia Kippel na Suíça (1974:27), também anota idades médias à data do casamento, entre 20 e muitos e 30 e poucos anos, e o mesmo faz Netting (1979:152) para os Alpes suíços. Stanley Brandes (1975.118) diz-nos que para a zona central de Espanha «a esmagadora maioria das pessoas de ambos os sexos casam com 25 ou mais anos...», estando assim em «conformidade com o padrão europeu de casamento tardio».
10 Claro que poderá haver uma ligação entre estas quedas na idade à data do casamento e as tendências gerais da população nestas épocas. Como observámos na Nota 13 do Capítulo 2, tanto nos anos 20 como nos anos 50 verificaram-se aumentos de população ao nível da freguesia (não existem números referentes à aldeia nos recenseamentos nacionais desses anos). Por exemplo, de 1920 a 1930 a população total da freguesia subiu de 654 para 734 habitantes, enquanto de 1950 para 1960 subiu de 807 para 973, mas a desproporção entre os sexos nestas alturas não era grande. Como estes valores não se referem unicamente à povoação de Fontelas, não me foi possível apreciar em pormenor as estatísticas demográficas. A situação ainda se complica mais dadas as elevadas proporções de ilegitimidade existentes no lugar: proporções variáveis da população nasceram fora do matrimónio legal e, assim, a fertilidade marital não nos dá um guia uniforme para a fertilidade total.
11 Duas destas bodas compreenderam noivas de Fontelas, a terceira realizou-se numa aldeia vizinha e a quarta na vila.
12 O casamento a que assisti numa aldeia vizinha incluiu, no entanto, um cortejo após a cerimónia realizada na igreja: dois arcos muito bem decorados acompanharam os nubentes e as testemunhas da igreja até à casa dos pais da noiva. À entrada desta, juntavam-se tantos vizinhos quantos quisessem, e foram oferecidas «amêndoas da boda» em grandes travessas. Dois outros aspectos do ritual nupcial que encontrei em povoações vizinhas, embora nunca mencionadas em Fontelas, foram: (a) um pinheiro fino e alto plantado fora da casa dos pais da noiva no dia da boda e (b) um cordão de ouro atravessado na porta da casa dos pais da nubente, sob o qual os noivos teriam de passar (Martins 1939:427).
13 Obtive esta informação durante uma breve visita a Fontelas em Março de 1981.
14 Não descobri a existência actual nem passada (através dos testemunhos locais), do tipo de pagamentos ostentosos e competitivos chamados ofrecijo descritos por Brandes para a povoação de Becedas na Espanha Central (1975:164-71).
15 A curta citação de Martins relacionada com os casamentos não especifica o tipo de fiança ou pagamento a que se refere; suspeito que as «arras» sugerem uma espécie de oferta dada directamente pelo noivo à noiva. O principal objectivo daquele autor era, sem dúvida, sublinhar a ausência naquelas aldeias de dotes ou de tais pagamentos entre os nubentes.
16 Os comentários de William Douglass sobre a escassez de cerimonial nos matrimónios rurais no País Basco são aqui muito relevantes: «Notámos que os casamentos na sociedade rural basca são mais um processo do que um acontecimento. Contudo, não examinámos os aspectos relacionados com a cerimónia nupcial. Actualmente, esta contém um mínimo de ritual — uma simples celebração na igreja presenciada por relativamente poucos parentes e vizinhos e, em seguida, um pequeno banquete numa taberna local» (1969:215-16).
17 Este facto levanta a possibilidade de, na altura do meu trabalho de campo, estar face a uma «população idosa» num momento particular do ciclo de emigração e despovoamento da comunidade. Isto teria como consequência apresentar-me uma imagem distorcida das estruturas anteriores das bodas; porém, não penso ser esse o caso. Em primeiro lugar, sempre houve um baixo número de casamentos ao longo das três últimas décadas do século XX e, em segundo lugar, os próprios aldeãos nunca me descreveram festas de boda mais complexas e elaboradas em comparação com as actuais.
18 A questão talvez esteja mal formulada desta maneira, levantando uma falsa dicotomia entre os textos, que podem ser «internos» ou «externos» à tradição oral duma determinada povoação. Variantes de muitos romances são cantadas na região, e existe localmente uma influência de Espanha. Além disso, havia romances normalmente impressos em folhetins que eram distribuídos pelos cegos, de modo que uma certa articulação entre as fontes orais e impressas pode ter caracterizado o seu desenvolvimento e difusão. Talvez uma formulação mais pertinente do problema levantasse a questão (independentemente das origens ou história literária do romance) de saber porquê este tipo específico de cantiga tem captado tanto a atenção dos aldeãos de Fontelas.
19 Embora estas cantigas não sejam obviamente «mitos», o texto que presentemente me ocorre (entre outros) é o de «The Story of Asdiwal» de Lévi-Strauss (1973). Uma análise das inversões na conduta moral e sexual dos padres rurais da Galiza, através de contos orais satíricos, encontra-se na minha Tese de Mestrado (O’Neill 1974).
20 Este mesmo padrão foi descrito para a região do Barroso, mais para oeste de Fontelas, na mesma província. Diz Lourenço Fontes: «Tanto o rapaz, como a rapariga podem ter mais que um namorado, umas vezes, com consentimento um do outro, outras sem conhecimento. Mas há raparigas que só têm um. Os rapazes têm sempre mais...» (Fontes 1974:106).
21 Outra metáfora utilizada para referir tais uniões é a de «casamento à cigana». Os ciganos passam frequentemente por Fontelas e por vezes permanecem durante algumas semanas numa das três casas do forno, trocando os seus artigos de fabrico manual, normalmente em palha ou vime, por comida ou dinheiro. Se bem que não sejam considerados como autênticos párias, são tidos como moral e socialmente «diferentes». Do ponto de vista dos proprietários, a conduta sexual das mulheres pobres com filhos bastardos é comparável à dos ciganos: estas mulheres são situadas bem no fundo da hierarquia social e fora dos limites da sociedade respeitável.
22 Continuei a usar o termo residência «natolocal», na linha de Lisón-Tolosana (1971) e de Robin Fox (1978). Este último afirma que a palavra foi originalmente introduzida pelo Professor John Barnes, de Cambridge (Fox 1978:203). Num recente texto introdutório de antropologia, Robert Murphy menciona «uma variante rara» de tipo de residência e fala de arranjos natolocais como duolocalidade (1979:89); Murphy conclui que, nos Ashanti e em Tory Island, esta forma de residência constitui «uma espécie de ‘meio casamento’ e uma maneira de contrariar o padrão irlandês de namoros intermináveis e bodas na meia-idade» (1979:93).
23 Um outro casal vivia também natolocalmente em 1982, após o seu matrimónio em meados de 1981. Fui informado desta situação por um habitante da aldeia, quando me encontrava no Porto durante uma visita a Portugal em Fevereiro de 1982, e mais tarde em 1983 confirmei que ainda residiam assim. Claro que a frase «residência separada» não se refere a nenhum corte de relações entre os cônjuges, no sentido de uma separação jurídica ou um divórcio.
24 Precisamente o mesmo tipo de extensão dos termos de tratamento «mãe» e «pai» aos avós maternos foi referido por Lisón-Tolosana para aldeias da província de Orense, na Galiza, perto da fronteira a noroeste de Fontelas. Um dos informadores desse autor afirmava: «A los abuelos con los que conviven... [los maternos] les llaman papá y mamá, porque con ellos son con los que se crían;... os abós [abuelos] son los otros, los que están fuera, en la otra casa, los paternos. Aqui siempre ha sido así» (Lisón-Tolosana 1971:327-8).
25 Notemos que dos quatro casamentos apresentados na geração intermédia na Figura 23, uma mulher casou fora de Fontelas, um casal estabeleceu residência neolocal (após 15 anos morando separadamente), e dois maridos residiam uxorilocalmente.
26 Refiro-me obviamente apenas aos 22 indivíduos casados que durante algum tempo (curto ou não) residiam natolocalmente, e não a todas as pessoas casadas de Fontelas.
27 O artigo de Fox, «The Visiting Husband on Tory Island» (1979) é, de facto, uma cópia integral do seu capítulo sobre a família e o casamento no livro The Tory Islanders (1978): Chapter 7 — Family, Marriage, and Household. O artigo em questão é suficiente em si mesmo, mas recomenda-se a análise mais completa no livro original.
28 Uma observação idêntica acerca das obrigações antagónicas entre irmãos e parentes por afinidade foi referida para os Ashanti por Meyer Fortes. Este fala do «... contraste entre a confiança mútua e a lealdade entre irmão e irmã, e os notórios riscos do casamento» (Fortes 1970:23).
29 O tema dos «casamentos de noite» e a sua relação com o marido visitante convida a um estudo mais amplo; na ausência de uma investigação mais profunda no Norte da Península Ibérica que permitisse outro nível de comparação, limitei-me a uma simples esquematização. Benjamim Pereira (1973:126) descreve casamentos noctumos igualmente humorísticos noutra região da província de Trás-os-Montes, e encontram-se algumas excelentes análises visuais e textuais deste costume no maravilhoso filme etnográfico de Noémia Delgado (Máscaras, 1976), filmado em diversas aldeias muito próximas de Fontelas.
30 Tanto Maurice Bloch como Sandra Ott (comunicação pessoal) me referiram a existência de arranjos de residência natolocal no Sudoeste da França.
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