Capítulo 5. Matrimónio e património
p. 203-287
Texte intégral
1Na primeira parte deste livro pudemos observar a composição da hierarquia social de Fontelas no que respeita às explorações agrícolas, grupos sociais e trabalho cooperativo. A segunda parte vai abordar a estrutura dos grupos domésticos, o casamento e a herança: será que também encontraremos elementos de diferenciação e desigualdade nestas áreas da vida social?
2Os três capítulos seguintes tratarão de aspectos do matrimónio e do património em Fontelas. Neste contexto, «matrimónio» significa o grupo de factores que define todo o processo do casamento: o namoro, os rituais da boda, as formas de residência após o casamento, a criação de filhos e o estabelecimento de laços de parentesco por afinidade. Por «património» entendo, em primeiro lugar, a totalidade dos bens materiais de um dado indivíduo ou de uma determinada família: a terra, a casa e os bens móveis (alfaias, mobiliário e gado). Em segundo lugar, património significa as estruturas mais amplas da herança de propriedade e transmissão do património (especialmente a terra) ao longo das gerações. Com as palavras matrimónio e património não se pretende dar ênfase, respectivamente, à mulher ou ao homem. Após uma análise minuciosa de três estudos de caso neste capítulo, os Capítulos 6 e 7 proporcionarão algumas conclusões referentes à orientação geral desta sociedade em relação ao património e à descendência, e à pouca importância dada ao casamento é às relações conjugais.
3Em minha opinião, existe uma tensão estrutural básica entre estas duas forças nesta comunidade: enquanto as estratégias dominantes procuram conservar indiviso o património e manter uma grande força de trabalho dentro da casa natal por tanto tempo quanto possível, cada matrimónio traz consigo o perigo da dispersão das pessoas e a divisão desse património na segunda e na terceira gerações. Um modo de resolver esta tensão, ou de, pelo menos, protelar conflitos potenciais, é seleccionar um herdeiro (ou herdeira) favorecido que casa e que fica a administrar a exploração agrícola; esta escolha impõe, por si só, uma forma de pressão indirecta aos outros irmãos, que os leva a emigrar, a casar fora ou a manterem-se solteiros. Embora este processo de selecção funcione a um nível prático, apesar da lei de partilhas equitativas entre todos os irmãos, nunca chega a constituir um sistema institucionalizado de primogenitura ou unigenitura. Assim, os interesses do matrimónio e os do património encontram-se em conflito constante, mas grande parte dos elementos aqui apresentados aponta para o predomínio de um mecanismo dominante — a manutenção de um património indiviso através do tempo. O casamento pode juntar tanto indivíduos como grupos, mas também pode provocar o contrário: nesta sociedade, o poder prevalecente do património separa os poucos que podem casar dos muitos desprivilegiados que não o chegam a fazer. Casos sucessivos indicam que, não obstante a existência de uma regra formal de igualdade entre os herdeiros, em termos práticos existe uma desigualdade marcada entre o herdeiro favorecido e os muitos co-herdeiros «secundários» que são tacitamente excluídos dos direitos à herança.
4Este capítulo compreende unicamente três estudos de caso pormenorizados do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, ao longo de quatro gerações, nas casas de um proprietário, de um lavrador e de uma jornaleira. Esta análise é bastante complexa devido ao uso de genealogias, do Registo Paroquial e de Róis de Confessados; os estudos-tipo podem ser mesmo considerados densos e maçadores. Por conseguinte, tentei em cada caso alargar a análise interna da estrutura dos fogos através da escolha de famílias «típicas», representativas de cada grupo social, permitindo desta forma um certo grau de generalização. Os estudos de caso deverão pois ser considerados não só como casos específicos mas também como modelos de processos mais gerais dentro de cada um dos três principais grupos sociais1. Inclui-se no começo de cada secção uma sequência de diagramas (parcialmente baseados em Laslett 1972:41-44), cada um dos quais representando a estrutura exacta do fogo, tal como surge em cada um dos 15 sucessivos Róis de Confessados de 1886 até 1909.2 A natureza algo esquemática deste capítulo será ampliada nqs dois capítulos seguintes, onde se considerarão aspectos comparativos do casamento e da herança numa perspectiva mais ampla, e alguns dos principais valores culturais que lhes são conferidos.
5Tanto quanto me foi dado conhecer, nenhum estudo semelhante deste tipo de fonte documental foi levado a cabo na antropologia social da Europa Meridional3. Assim, as linhas de análise aqui propostas deverão ser consideradas sugestões iniciais, antecedendo quaisquer conclusões futuras que possam ser obtidas graças às técnicas de investigação histórica e demográfica mais sofisticadas. John Davis (1977:5-7) defendeu que uma das maiores falhas da antropologia do Mediterrâneo foi ter desprezado a História. Fazemos aqui uma tentativa para corrigir esse desequilíbrio: o que se perde em termos de rigor através da análise dos documentos abaixo examinados, ganhar-se-á com a reincorporação da dimensão temporal.
a) Casa de proprietários
6O documento intitulado Rol dos Confessados é uma das fontes mais pormenorizadas e meticulosamente compiladas existentes na freguesia para os fins do século xix e princípios do século xx. Reproduz-se aqui uma página do Rol de Confessados de 1895, juntamente com uma lista das abreviaturas que aí aparecem. O Rol dá-nos uma enorme gama de informações sobre todos os grupos domésticos residentes nas quatro aldeias da paróquia. Cada Rol consiste em casas numeradas («moradas») com o nome, estado civil, ocupação e idade de cada um dos habitantes de todos os fogos da freguesia; após cada nome encontra-se uma abreviatura (mulher, filho, criado) indicando a relação de cada pessoa com o chefe de família. A seguir a cada idade aparecem uma ou duas letras (c ou cc) que referem, respectivamente, «confissão», ou «confissão e comunhão», e uma cruz indicando o crisma. Por via de regra, as crianças com idade inferior à da primeira confissão (8) não estão registadas. Os Róis de Confessados eram preenchidos pelo pároco por altura da Páscoa em formulários impressos que lhe eram enviados. O facto de existir uma série relativamente consecutiva de tais listas, com intervalos de um a três anos, oferece-nos uma excelente oportunidade de seguir as alterações no ciclo de desenvolvimento de várias casas ao longo de um período de 23 anos.
7Ao observarmos os diagramas da Figura 8, não deveremos esquecer as proporções globais dos fogos da povoação que, na altura, tinham, como chefes de família, proprietários, lavradores e jornaleiros. Por exemplo, em 1896 Fontelas tinha 6 casas de proprietário, 14 casas de lavrador e 24 casas de jornaleiro; a casa aqui examinada é uma dessas 6. Ainda em 1896, existiam também 19 criados (11 homens e 8 mulheres). Apresentarei uma imagem mais pormenorizada destas proporções, para os anos de 1886-1909, na parte final deste capítulo.
8A estrutura deste fogo, no Rol de Confessados de 1886, incluía, em primeiro lugar, o cabeça-de-casal, Rodrigo Manuel Borges4. Rodrigo aparece como um lavrador de 35 anos, e o seu nome é seguido pelos de duas tias por linha materna — Catarina e Doroteia — com idades de 62 e 60 anos, respectivamente. As relações de parentesco destas com Rodrigo só são referidas posteriormente no Rol de 1891 como thias, e a genealogia de Rodrigo diz-nos que elas eram irmãs da mãe (apesar de os Róis não o referirem explicitamente). Juntamente com estes três indivíduos, a casa também contava com três criados — Policarpo (de 18 anos), Quitéria (de 48 anos) e Teresa (de 30 anos). Nenhum destes seis membros do fogo era casado na altura: o Rol refere explicitamente que o, estado civil de cada um era o de «solteiro». Todas estas pessoas constam do Rol como tendo feito confissão e comunhão; é de notar que este padrão se manteve ao longo dos anos de 1886 a 1909, à excepção de 1898 e 1907, em que dois criados jovens apenas se confessaram.
Rol de Confessados, 1895: abreviaturas
fa | — filha |
fo. | — filho |
Jorno. | — jornaleiro |
mr. | — mulher |
Propa. | — proprietária |
Solta. | — solteira |
c | — confissão |
cc | — confissão e comunhão |
+ | — crisma |
9Em 1888 a estrutura da casa de Rodrigo era a mesma, mas só estavam registados cinco indivíduos, pois havia saído a criada Teresa. Obviamente, é-nos impossível determinar a razão da saída desta criada: ela podia ter encontrado outro patrão, ter ido viver com parentes ou ter sido despedida. Desta forma, quando digo que alguns serviçais «saem» ou «entram», refirome unicamente aos movimentos de pessoas visíveis através dos documentos, e não às variadas razões ou motivações para estas mudanças de residência. Além disso, outros criados podem ter entrado ou saído da casa entre as datas de compilação (1886 e 1888) e tal facto ter sido omitido dos registos. Não sabemos senão que esses indivíduos foram registados pelo pároco como residentes no fogo na altura em que o Rol de Confessados foi compilado, normalmente entre Abril e Junho. Por outras palavras, não podemos ter a certeza absoluta se lá se encontrariam, de facto, ao longo do ano5
10Em 1891, um outro padre compilou o Rol (Padre Morais) e foi ele também que elaborou os Róis seguintes, à excepção daqueles compilados em 1905 e 1906. A partir daqui, Rodrigo aparece como proprietário e indicam-se os nomes completos das suas tias. As listagens das ocupações dos aldeãos, efectuadas pelos três párocos que compilaram os Róis, estão claramente sujeitas a erro: não há critérios objectivos explícitos nessas listas (as áreas das explorações agrícolas, o montante de impostos, etc.) que indiquem concretamente a razão pela qual alguns indivíduos aparçcem como proprietários e outros como lavradores. Mas podemos supor, provisoriamente, que alguma forma de classificação uniforme de ocupações era compartilhada por padres e camponeses. Em 1891 o número de criados do fogo era particularmente grande — três criados e três criadas, dos quais somente um (Policarpo) se manteve aí desde 1886. Os mesmos criados viviam na casa em 1892, embora haja algumas incongruências em relação às idades de Clemente. Não foi possível apurar se a criada Teresa listada em 1892 (com 51 anos) era a mesma Teresa registada em 1886 (com 30 anos)6
11Algures entre 1891 e 1892, Rodrigo casou com uma proprietária de uma aldeia vizinha — Madalena de Sousa. (O assento de casamento não se encontra no Registo Paroquial de Mosteiro, dando a ideia de que foi feito na paróquia a que pertencia Madalena.) As idades de Rodrigo e de Madalena à data do seu casamento eram de 39 e de 34/35 anos, respectivamente. Nessa altura, a casa atingiu o seu número mais elevado de membros (10) durante a fase do ciclo de desenvolvimento de 23 anos que nos foi permitido conhecer através dos Róis. O fogo não apresentava uma estrutura de «família nuclear», definida estritamente como unidade conjugal de marido, mulher e filhos; embora se tenha realizado um matrimónio, manteve-se a presença de parentes co-residentes (tias) e criados ao longo dos anos em questão. De facto, conservou-se uma estrutura permanente de criados residentes (característica apenas dos grupos sociais de proprietários e lavradores abastados) nesta casa até hoje: em 1940 incluíam-se dois criados e, mesmo em 1978, a filha de Rodrigo (D. Elvira) ainda tinha três criados.
12Em 1894, o grupo doméstico era um pouco mais pequeno — desde 1892 tinham saído quatro criados e entrado um, enquanto a tia de Rodrigo, Doroteia, já não aparece. O Registo Paroquial (assentos de óbito) permitenos confirmar que Doroteia faleceu, com 76 anos, no dia 29 de Maio de 1894, deixando testamento, mas não deixando filhos7. O assento de óbito diz-nos somente se a defunta deixou testamento ou não, mas não fornece quaisquer outros detalhes sobre o legatário ou os bens mencionados no referido documento. São aqui particularmente evidentes imprecisões no que respeita às idades: apesar de ter sido o mesmo padre que compilou os Róis de Confessados e o Registo Paroquial, Doroteia aparece com 64 anos de idade em 1892, mas com 76 à sua morte, em 1894. De igual modo, Catarina aparece com 67 anos em 1892, mas com 80 (!) em 1894. Além disso, a idade da criada Teresa baixava de 51 anos (1892) para 42 anos (1894) (admitindo-se que se trata da mesma pessoa, o que pode não ser o caso). É muito possível que os moradores mais idosos não recordassem as suas idades, ou que o cabeça-de-casal ou o padre calculassem incorrectamente as idades de alguns deles.
13De 1895 até 1898 a estrutura básica da casa, bem como a sua dimensão (7 pessoas), manteve-se constante, embora, uma vez mais, diversos criados tivessem saído e outros entrado. Porém, em 1899, a mulher de Rodrigo, Madalena, não aparece na lista: ela falecera (com 42 anos) no dia 30 de Março de 1899, sem deixar testamento e sem filhos. No mesmo ano, a tia de Rodrigo, Catarina, também morreu (7 de Novembro de 1899); tinha 86 anos de idade, sem filhos, e deixou testamento. É de notar que já na altura do Rol de 1902 Rodrigo se tinha casado de novo. A sua segunda mulher, Jacinta Pinheiro, era uma proprietária da vila próxima, e tanto ela como a mãe aparecem na lista como membros da casa de Rodrigo. Notemos que a idade de Jacinta à data do seu casamento (entre 1899 e 1902) era bastante elevada: entre 41 e 44 anos8
14De 1902 a 1906, a estrutura do fogo não sofreu mudanças de maior, se bem que em 1906 Rodrigo aparecesse como lavrador (esta alteração no registo de ocupação pode ser explicada pelo facto de ter sido outro padre que compilou os Róis de 1905 e 1906 — Padre Melo). Em 1907, a sogra de Rodrigo não surge na lista: ela morrera no dia 22 de Outubro de 1906 (com 74 anos), não deixando testamento. O seu assento de óbito diz-nos que lhe foram administrados «os sacramentos» em casa pelo próprio Rodrigo e não pelo pároco (dando ideia de morte súbita)9. No Rol de 1907 os dois criados, Bonifácio e Conceição, aparecem listados explicitamente como «casados», embora as suas idades só tenham sido registadas em 1908.
15O último Rol de 1909 inclui uma filha de Rodrigo e Jacinta: Elvira Manuela Borges, com 8 anos de idade. Os criados Bonifácio e Conceição tinham saído da casa, e uma criada nova (Maria) havia entrado. De entre todos os Róis, era nesta altura que o grupo doméstico se encontrava mais próximo da estrutura nuclear, e compreendia um casal, um filho e uma criada.
16A lista de fogos subsequente que consta do Arquivo Paroquial é o Status Animarum de 1940, quase idêntico, na forma, aos anteriores Róis de Confessados. Em 1940, a casa compreendia Jacinta Borges (com 80 anos de idade), a filha Elvira (com 40 anos) e dois criados: o lavrador Lucas (com 34 anos) e Filipa (com 15 anos), registada como doméstica, termo que significava uma mulher «ocupada no governo de sua casa». Rodrigo tinha falecido (com 78 anos) em 6 de Junho de 1931, sem deixar testamento e com uma filha única (Elvira). Note-se contudo que, apesar de Jacinta surgir na lista como doméstica e cabeça-de-casal, é a sua filha Elvira que recebe a designação de proprietária. O termo é indicador de um processo de herança em Fontelas: após a morte de Rodrigo (se ele não tivesse deixado testamento) metade da sua propriedade era herdada pela mulher e a outra metade pelos descendentes (Elvira, neste caso). Legalmente, Elvira toma-se a única herdeira dos bens de seu pai, enquanto Jacinta obtém o usufruto de metade dos bens do marido e o direito à ajuda material por parte da filha. O termo «proprietária», como ocupação para Elvira e não para sua mãe, é pois escolhido correctamente e aponta para o detentor legal do património familiar (Elvira), se bem que Jacinta se encontrasse inicialmente listada como chefe de família.
17Até 1977, o fogo mudou de novo em termos de estrutura. Jacinta falecera no dia 16 de Fevereiro de 1943 (a sua idade não vem referida). O assento de óbito não refere se deixou testamento, embora o padre apontasse a causa do falecimento como «apoplexia»10. O criado Lucas, presente na lista ainda em 1940, mantivera-se na casa como criado de D. Elvira e seu principal lavrador. A estrutura do grupo doméstico indica de novo uma série de criados: a companheira de Lucas, Leónida, e a sua filha Gracinda, que, como notámos no Capítulo 3, D. Elvira adoptou como sua futura herdeira. Morando também no fogo encontrava-se o marido de Gracinda, Valentim, e os seus três filhos menores, bem como o irmão de Gracinda, Mateus. A casa é hoje a segunda maior de Fontelas, com 9 membros residentes.
18Conseguimos «montar» até agora uma série de «instantâneos» que revelam a estrutura da casa do pai de D. Elvira ao longo do tempo, com uma sequência particularmente clara entre 1886 e 1909. Este ciclo oferece um método extremamente novo para a análise dos momentos específicos do casamento e da herança, à medida que estes acontecimentos surgem dentro da estrutura mutável de um grupo doméstico no decorrer dos anos. Que aspectos mais vastos podem ser revelados por estas modificações específicas (ou a sua ausência) na estrutura deste fogo de ano para ano? Qual a representatividade do ciclo de desenvolvimento desta casa em relação a todo o grupo dos proprietários?
19Uma maneira excelente de examinar padrões a longo prazo na estrutura do grupo doméstico de Rodrigo é compará-la com outra casa de grande prestígio dentro da hierarquia social, uma vez que esta tem laços de parentesco com o primeiro e ambos controlam hoje grande parte da riqueza fundiária da aldeia. Esta comparação dá-nos a dupla vantagem de examinarmos, não só dois fogos, mas especificamente dois fogos de proprietário, ambos situados mesmo no topo da hierarquia da povoação. Tanto a casa de Rodrigo como a de Inácio Ferreira detinham em 1892 alguns dos valores mais elevados do rendimento colectável de Fontelas. O Lançamento Parochial de Impostos daquele ano (Apêndice II) regista Rodrigo e o tio (Padre Venâncio) com um rendimento colectável conjunto de 58 800 réis (41 360 réis mais 17 440 réis no Quadro 21) e Inácio Ferreira com um rendimento colectável de 90 430 réis. Estes eram dois dos três valores mais elevados de Fontelas ao tempo11. Aqui serão suficientes três diagramas para efeitos de comparação.
20Para lá da sua enorme dimensão em 1905, uma característica notável deste fogo era a presença de uma série de irmãos solteiros com idades avançadas: aos 58, 56 e 40 anos, respectivamente, três dos quatro filhos de Inácio estavam ainda solteiros. O terceiro irmão (Cândido) tinha casado em primeiras núpcias em 1896, quando a estrutura do grupo doméstico (não apresentada aqui) era a de famille souche (no inglês, stem family Household). Os pais de Cândido viviam na casa juntamente com o novo grupo conjugal de Cândido e sua mulher, que para lá foi residir. Algures antes do Rol de 1905, Rosa Rodrigues (a segunda mulher de Cândido) trouxe o seu irmão mais velho, João Rodrigues, para a casa (não foi possível determinar precisamente quando). João mantinha-se solteiro (com a idade de 58 anos) na altura do último Rol em que aparece (1909). De igual modo, o irmão mais novo de Cândido, Silvestre, também se encontra solteiro no Rol de 1909, com 44 anos de idade. No Registo Paroquial (assentos de óbito) foi possível fixar a data do falecimento de Manuel José em 1922 e a de Antónia em 1931; nem Manuel José nem Antónia tiveram filhos, mas esta deixou testamento. Tal como a situação das duas velhas tias solteiras de Rodrigo (Catarina e Doroteia), os três filhos solteiros de Inácio permaneceram na casa natal, provavelmente desempenhando papéis secundários como parentes dependentes (Wolf e Cole 1974:200-202).
21As posições destes indivíduos solteiros e idosos são particularmente interessantes. Dos seis casos de aldeãos solteiros das duas casas aqui examinadas, existem informações sobre quatro deles, através dos assentos de óbito do Registo Paroquial; destes quatro (Catarina, Doroteia, Antónia e Manuel José) três deixaram testamento. De acordo com a lei (Capítulo 7), na ausência de descendentes directos, essas pessoas poderiam deixar metade do total da sua propriedade a qualquer legatário (ou legatários): a outra metade constitui forçosamente a legítima dos ascendentes do testador ou dos seus irmãos-e-seus-descendentes, por esta ordem. No caso de Antónia (diagrama de 1905), uma parte do seu património foi deixada em testamento à sua sobrinha Manuela, que ficara na casa natal e era mãe do actual pároco. Por outras palavras, com respeito a Antónia, temos a informação concreta de que alguns bens foram, por testamento, dirigidos para aquilo que viria a ser a linha central de transmissão da propriedade entre os filhos de Inácio: primeiro, o herdeiro favorecido, Cândido, e, na geração seguinte, a herdeira favorecida, Manuela12
22O segundo diagrama representa a mesma casa quatro anos mais tarde, em 1909. A mudança mais importante na estrutura do grupo doméstico desde 1905 foi a morte do chefe de família, Inácio Ferreira, em 3 de Dezembro de 1905 (que não deixou testamento). É significativo que no Rol de 1909, quatro anos após o falecimento de Inácio, a casa natal se mantinha ainda intacta como grupo de parentes co-residentes; a morte de Inácio não trouxe qualquer separação imediata ou dispersão entre os quatro filhos. Não podemos afirmar se, de facto, houve partilhas a seguir à morte de Inácio (ou anteriormente, depois do falecimento de sua mulher em 1891), mas neste caso tal partilha não implicou uma fragmentação da casa natal como unidade de pessoas ligadas por residência e trabalho. A geração adulta, por esta altura, assemelhava-se a uma frérèche na qual «não está presente nenhum dos pais ou outro membro de uma das gerações anteriores, e os irmãos encontram-se vinculados unicamente pelo laço de filiação de cada um deles à unidade conjugal, que já não faz parte do fogo» (Laslett 1972:30). O filho mais velho, Manuel José, está registado como chefe de família, e tanto ele como a irmã mais velha estavam ainda solteiros, com 60 e 64 anos, respectivamente. Também de salientar, no Rol de 1909, é o facto da presença continuada de criados: no entanto, apenas um destes quatro — Susana da Rocha — tinha permanecido na casa desde 1905 (embora haja uma incongruência entre as idades dela registadas nos dois Róis).
23O terceiro diagrama representa a estrutura deste fogo em 1940. Na casa natal vivia então Manuela, que casara com um lavrador abastado de outra aldeia (Plácido Veiga), que veio residir para Fontelas (residência uxorilocal). Tal como o grupo doméstico de Rodrigo, também este era muito grande: compreendia 13 membros em 1905, e 10 em 1940. Como verificámos no Capítulo 3, dos seis filhos de Manuela, dois ainda hoje permanecem celibatários (P.e Gregório e a professora, D. Prudência). Dos restantes quatro irmãos, as duas irmãs mais velhas, Constância e Genoveva, casaram fora da povoação, ao passo que os mais novos, Angelina e Valentim, casaram com pessoas de Fontelas. A estrutura do grupo doméstico em 1940 era perfeitamente não nuclear: compunha-se de um casal, seis filhos, um sobrinho e uma sobrinha de filiação desconhecida, e uma criada.
24É necessário considerar aqui outro aspecto da estrutura desta casa: tanto Antónia como o irmão mais novo, Silvestre, foram escolhidos, respectivamente, como madrinha e padrinho de todos os seus quatro sobrinhos e sobrinhas (diagrama de 1909). Assim, neste caso, o laço de compadrio estabeleceu-se dentro do fogo, e não fora dele. Para além disso, o assento de óbito de Antónia indica que ela deixou testamento, e foi-me possível verificar que este documento legava bens à afilhada, Manuela. No que respeita ao grupo doméstico de Inácio, por conseguinte, tanto esta selecção interna de padrinhos como a transmissão da propriedade de uma irmã solteira (Antónia) através de uma só linha de descendência dentro da casa natal (os filhos de Cândido), sugerem a existência de um padrão de consolidação da propriedade, não obstante a regra legal de partilhas equitativas. Em contrapartida, e quanto à casa de Rodrigo, esta consolidação foi desnecessária, uma vez que a filha única, Elvira, ficou como única herdeira. Por outras palavras, embora Cândido e os seus três irmãos herdassem, legalmente, quinhões iguais do património dos seus pais, uma parte (ou talvez a totalidade) da propriedade de Antónia foi dirigida para os filhos de Cândido, especificamente através de Manuela, que era tanto sobrinha de Antónia como sua afilhada. Se bem que os quatro filhos de Cândido tivessem casado, foi Manuela que se manteve na casa natal e que, mesmo hoje, detém a maior exploração agrícola. Tanto a presença de irmãos solteiros idosos como este exemplo dos efeitos verticais e internos do compadrio (em contraste com as funções dos laços de compadrio, normalmente horizontais e externas) apontam para uma preocupação com a unidade do património, através de tentativas para evitar a sua divisão, o que é conseguido graças à escolha de um herdeiro favorecido: Cândido na geração anterior e Manuela na seguinte.
25Que padrões de casamento aparecem nestas duas casas? Os dois matrimónios de Rodrigo foram contraídos com proprietárias de aldeias vizinhas, e em ambos os casos essas mulheres residiam na casa dos pais de Rodrigo (residência virilocal). O primeiro casamento de Rodrigo, que durou 9 anos, foi realizado com Madalena e não deixou prole13. Em 1902, Rodrigo casou em segundas núpcias; as idades de Elvira registadas nos Róis de 1909 e 1940 dão-nos a ideia de que ela nasceu entre 1900 e 1901, indicando pois que Rodrigo voltou a casar muito depressa. Do mesmo modo, em relação ao segundo fogo (Figura 9), também Cândido voltou a casar rapidamente em 21 de Março de 1904, apenas cinco meses após o falecimento da primeira mulher (23 de Outubro de 1903). Ambas as mulheres de Cândido provinham de povoações vizinhas, e ambas residiam virilocalmente após o casamento14. As histórias das duas casas apontam, pois, para matrimónios contraídos fora da comunidade, sugerindo alianças de prestígio estabelecidas com outras famílias para lá dos limites da aldeia (Bourdieu 1976:122/1977: 52-58). Estes «casamentos distantes» de prestígio, tal como Bourdieu os designa, são exclusivos, em Fontelas, dos grupos privilegiados de proprietários e lavradores abastados.
26Outra semelhança evidente entre estes dois fogos tem a ver com as idades avançadas à data do casamento e com a ordem de nascimento dos vários irmãos. Já notámos que a idade de Rodrigo por ocasião do primeiro matrimónio era de 39 anos, e por altura do segundo entre 47 e 48. Identicamente, a idade de Cândido à data do primeiro casamento, em 1896, era de 37 anos, e a da sua mulher de 30, enquanto no segundo enlace Cândido tinha 45 anos e a mulher 47 (assentos de casamento). Em todos estes quatro matrimónios, portanto, cada cônjuge tinha mais de 30 anos de idade, e alguns bem mais de 40.
27A ordem de nascimento dos irmãos, em termos da sequência dos seus casamentos, é também significativa. O próprio Rodrigo era o terceiro de três irmãos: tanto o irmão mais velho (juiz de paz) como a irmã mais velha casaram fora da aldeia. No fogo de Cândido (Figura 9: 1905) é de notar que foi este o único dos quatro irmãos a casar, mas que era o terceiro a contar de cima. Na geração seguinte, os próprios quatro filhos de Cândido casaram-se todos, pela ordem seguinte e com as idades apontadas na Figura 10. Dos quatro matrimónios, apenas um (o de Porfírio) se efectuou entre cônjuges notoriamente jovens. Manuela foi o primeiro deles a casar: manteve-se na casa natal e dois dos seus seis filhos (o padre e D. Prudência) ainda hoje residem aí. Como foi dito anteriormente, a tia de Manuela, Antónia, deixou em testamento alguns dos seus bens a Manuela e aos filhos desta, facto evidente na dimensão um pouco maior da exploração agrícola do padre (43,33 hectares) em relação à do seu tio Bento (22,25 hectares) e à da sua tia Margarida (35,42 hectares). Verificámos no Capítulo 3 que o matrimónio de Porfírio com a tecedeira Crusanda durou pouco tempo, dado que ele emigrou sozinho, pouco depois do casamento, para o Brasil (actualmente, na família do padre, é raro falar-se deste tio). O terceiro a casar foi Margarida, que hoje vive numa parte independente da casa natal (Casa 28) com o marido e as duas filhas solteiras, estas com idades de 43 e 42 anos.
28O quarto a casar foi o filho mais velho, Bento. O seu matrimónio foi particularmente revelador por diversas razões; dez anos antes do seu enlace com a criada Tomásia, nasceu um filho ilegítimo a este casal. (Já anteriormente, Bento tinha sido pai doutro filho bastardo de uma mulher de uma povoação vizinha.) Três dos seus filhos foram legitimados na altura da boda em 1943, e a mais nova (com 18 meses de idade) foi baptizada imediatamente após a cerimónia nupcial. Os matrimónios de Manuela e Bento constituem, assim, um contraste flagrante: ao passo que Manuela casou primeiro, com um conceituado proprietário de fora, ficando na casa natal, Bento casou abaixo da sua posição social, em idade avançada, pai de quatro filhos ilegítimos, tendo de lá saído.
29Estes elementos revelam uma certa ênfase na transmissão da propriedade através de um herdeiro favorecido. Este costuma ser o irmão ou irmã que casa primeiro, traz uma mulher ou um marido para casa, e tem filhos. Certamente que poderá haver outros irmãos a casar antes, mas que saem do grupo doméstico. No primeiro fogo acima examinado, o herdeiro era Rodrigo e no segundo era Cândido. Na geração imediatamente a seguir à de Cândido, Manuela foi a «filha favorecida»; foi ela que casou primeiro e que conseguiu uma posição especial ao continuar a «linha de descendência» da casa, conservando o grosso do património. Os irmãos que não obtêm esta posição-chave e estratégica como herdeiros favorecidos dentro da linha principal de transmissão da propriedade, ou nunca casam (as duas tias de Rodrigo e os três irmãos de Cândido) ou casam tardiamente e saem do lar natal (Bento). Porém, não há forma de prever qual dos irmãos vai casar mais cedo e permanecer no fogo, simplesmente a partir de critérios de sexo e ordem de nascimento.
30Embora sujeitos à regra legal de partilhas iguais entre irmãos, os processos concretos de casamento e herança dentro destas duas famílias sugerem diligências conscientes de evitar a partilha. Isso consegue-se através de tentativas de impedir ou postergar o casamento e as possíveis ameaças à unidade do património natal que cada matrimónio pode implicar. É importante notar que esta divisão potencial do património não se encontra relacionada, em Fontelas, com a existência de dotes, mas antes com a partilha futura e final (na eventualidade de se casarem muitos irmãos, permanecendo estes na aldeia e tendo lá filhos). Neste sentido, as estratégias dos membros da geração dos pais são dirigidas para a manutenção de alguns filhos dentro do grupo doméstico como fonte de trabalho; idealmente, apenas um destes filhos casará, ficará na casa natal e terá filhos, mas os restantes deverão permanecer solteiros ou partir. Por outro lado, as estratégias do irmão que casa cedo e fica dentro do lar natal (Cândido, nomeadamente) podem ter em vista dificultar ou protelar os matrimónios dos outros irmãos em nome de um património unificado. Subjacente a estas estratégias15 está a regra rígida de herança post-mortem (Capítulo 7) que, de qualquer modo, retarda a aquisição da propriedade fundiária por parte da geração mais nova até ao falecimento dos pais. Nesta comunidade, os pais idosos mantêm, literalmente, o controlo dos seus bens mesmo até ao dia da sua morte.
31Esta preocupação em obviar à divisão das propriedades pode também explicar a'presença de serviçais dentro das casas abastadas — ao observarmos o grupo doméstico de Rodrigo, perguntamo-nos: porquê tantos criados? Tanto em 1891 como em 1892, aparecem seis criados vivendo neste fogo: este é o maior número de serviçais registado em qualquer casa para todo o período coberto pelos Róis de Confessados. A seguir a 1892, o número de criadas do fogo de Rodrigo diminuiu de três para uma. Até 1909, e mesmo em 1940, aparece uma única criada, embora o número de criados variasse de um a três. Estes valores parecem dar a entender que quando a primeira mulher de Rodrigo veio residir na casa (1891-2), eram necessárias menos criadas para a lida doméstica; assim, após o matrimónio de Rodrigo o número de criados decresceu de seis para três (entre 1892 e 1894). Em 1894, a tia de Rodrigo, Doroteia, faleceu e a tia mais velha. Catarina, aparece listada com 80 anos de idade. Neste sentido, os serviçais poderiam ser considerados uma fonte de mão-de-obra temporária dentro da casa (no que se refere às criadas) e nas terras (no que toca aos criados), em casos de um agregado familiar pequeno, como era o de Rodrigo e suas duas tias. Contratavam-se criados durante os períodos em que houvesse escassez de mão-de-obra familiar, e dispensavam-se quando esta abundasse (devido à chegada de parentes ou ao crescimento dos filhos)16
32Porém, existem ainda duas outras possibilidades: em primeiro lugar, a presença de serviçais pode ser uma indicação directa do papel «humanitário» de uma casa abastada que dava emprego e alojamento temporário aos pobres. Este facto é particularmente evidente se nos lembrarmos da situação de muitas jornaleiras descritas inicialmente no Capítulo 3; impossibilitadas de sustentar grandes grupos domésticos, os filhos ilegítimos (e também os legítimos) provindos do grupo dos jornaleiros poderiam servir, por períodos variáveis, nas casas abastadas. Hoje, os aldeãos fazem notar insistentemente as condições vantajosas que os criados encontram nas casas ricas (boa alimentação, dádivas de roupa e de outros artigos, e talvez até um pequeno pagamento em dinheiro) em contraste com as posições mutáveis e inseguras dos jornaleiros contratados sazonalmente. A família dos patrões também ganhava com isso um certo prestígio: a presença de muitos serviçais era sinal de uma grande propriedade, de elevados níveis de produção e da possibilidade dos membros do fogo disporem de alguns tempos livres, visto que se deixavam as pequenas tarefas domésticas aos criados. Nesta linha, a estrutura hierárquica ao nível da aldeia — com os proprietários situados no topo e os jornaleiros na base — reflecte-se e reproduz-se dentro da estrutura das casas mais abastadas, através de uma hierarquia interna e da divisão do trabalho entre patrões e criados.
33Um caso curioso é-nos fornecido pelo criado Francisco Silvino — viúvo, de 40 anos — que aparece no Rol de 1898 (Figúra 8) como membro do fogo de Rodrigo. No Rol de 1892, Francisco (com 31 anos) residia na Casa 29 (não incluída nos diagramas) com a mulher de 24 anos e a sogra de 39. Estes três indivíduos estão registados como jornaleiros e jornaleiras e, significativamente, a sogra de Francisco surge como «solteira», indicando que a sua mulher tinha nascido ilegítima. Em 1895, Francisco é listado de novo como jornaleiro, mas desta vez com a mulher e uma filha de 10 anos. Em 1896, imediatamente antes do Rol no qual o encontramos como criado no fogo de Rodrigo (1898), Francisco aparece como viúvo, vivendo apenas com a filha (a mulher morrera em 23 de Janeiro de 1896): ou seja, pouco depois do falecimento da sogra e da mulher, Francisco passou a criado do grupo doméstico de Rodrigo durante algum tempo, entre 1896 e 1899. Francisco reaparece, agora com 51 anos, no Rol de 1902, residindo de novo com a filha, numa outra casa, ainda com a ocupação de jornaleiro. Assim, foi curto o período em que Francisco serviu como criado, tendo mudado de jornaleiro a serviçal e de novo a jornaleiro em poucos anos.
34Os documentos são sugestivos no que respeita aos possíveis motivos capazes de ter influenciado as mudanças de residência de determinadas pessoas. O caso de Francisco é esclarecedor por duas razões: primeiro, indica que nem todos os criados eram novos e solteiros, mas que alguns (de ambos os sexos) eram mais idosos e, por vezes, ou casados ou viúvos. Em segundo lugar, revela-nos que as famílias abastadas podiam contratar criados jovens ou mais velhos dentro do grupo de jornaleiros, como forma de assistência social e de provisão temporária de emprego.
35Mas existe uma terceira possibilidade de explicar a presença deste grande número de serviçais. Neste caso, a contratação desses criados pode ser vista não só como uma forma de controlo da natalidade mas também — o que é mais importante — como uma forma de controlo dos herdeiros. Do ponto de vista das casas abastadas, na sua posição de contratantes, ter criados era um modo de se conseguir um alto nível de produção caseira sem que a unidade do património fosse ameaçada. Os criados proporcionavam, assim, uma fonte de trabalho residente no grupo doméstico, mas sem pretensões ao património. É significativo que, em muitos desses fogos — e o de Rodrigo é um exemplo excelente —, existe um movimento contínuo de serviçais contratados por curtos períodos de alguns anos; a estrutura essencial caracteriza-se pela existência de uma «criadagem» permanente, independentemente de que indivíduos ocupam esses lugares de criados ao longo dos anos. Por outras palavras, um meio pelo qual as famílias abastadas maximizam não só os níveis de produção como também o seu prestígio social, é através da manutenção de uma estrutura permanente de criadagem que produz para a casa.
36A presença na aldeia de um grande manancial de jornaleiros quase sem terra garante esta fonte de trabalho doméstico. Além disso, existia uma atracção em se ficar ligado como criado a uma casa abastada: havia sempre a possibilidade, embora remota, de com o tempo esse serviçal ser adoptado. No entanto, para uma criada, esta possibilidade trazia consigo o perigo constante de ser explorada pelo patrão, e mesmo pelos outros serviçais. Enquanto para uma criada um filho ilegítimo de um pai rico implicava um estigma social negativo tanto para a mãe como para o filho, para uma casa com grande riqueza fundiária os efeitos a longo prazo poderiam ser indirectamente positivos: ao evitar a multiplicação de filhos legítimos dentro do seu próprio grupo doméstico, o patrão casado evitava, do mesmo modo, a reprodução de outros futuros herdeiros ao património familiar. Assim, uma espécie de «concubinato» entre patrão e criada garantia uma limitação de herdeiros dentro da casa abastada, a expensas de alguns nascimentos ilegítimos entre as criadas, que podiam ser despedidas em qualquer momento. Uma série de tais casos de nascimentos ilegítimos foi mencionada em Fontelas e povoações vizinhas, e dos três tipos principais de relações de que resultam filhos bastardos (ver Secção c, abaixo), este era considerado pelos aldeãos o mais odioso.
37Tais formas indirectas de «controlo de herdeiros» nem sempre constituem um elemento na relação patrão/criada: os serviçais são na maioria dos casos contratados somente pelo seu trabalho. Neste sentido, a casa de Rodrigo limitou o número de herdeiros potenciais com pretensões ao património familiar, por meio de um sistema constante e quase institucionalizado de entradas e saídas de criados. Como verificámos, foi apenas D. Elvira, na geração seguinte, que adoptou, por necessidade, a criada Gracinda como sua futura herdeira legítima. Contudo, o segundo fogo que examinámos manteve também uma estrutura semelhante de criadagem permanente (3 a 4 criados) ao longo do seu ciclo de desenvolvimento, de 1886 a 1909, não obstante a presença de muitos filhos. Tendo como herdeiros quatro filhos na geração mais nova de 1886, outros quatro na geração seguinte de 1905, e seis herdeiros na geração subsequente hodierna (o padre e os cinco irmãos), na família de Cândido houve uma série sucessiva de herdeiros e, consequentemente, nenhum dos serviçais foi adoptado. Isto é, ao passo que as casas de Rodrigo e de Cândido contratavam criados regularmente, a de Rodrigo tinha herdeiros a menos e a de Cândido demasiados.
38Uma visão de um esquema mais completo da genealogia de Rodrigo (Figura 11) pode levar à clarificação de alguns dos pontos relacionados com o casamento, a herança e a presença de criados dentro do grupo dos proprietários, sobretudo porque ambos os fogos que examinámos através dos Róis de Confessados estão ligados entre si, podendo ser seguidos a partir da mesma genealogia.
39A genealogia recua até ao bisavô de D. Elvira, Miguel Pires (6c), que pagava a segunda décima mais elevada da freguesia em 1851. Na Geração 5, encontram-se os membros mais velhos dos dois grupos domésticos acima analisados: Inácio Ferreira (5e) aparece no Rol de 1905 anteriormente apresentado, e as tias de Rodrigo — Catarina e Doroteia (5h e 5i) — aparecem nas listagens da casa de Rodrigo após 1886. Dois tios de Rodrigo pelo lado materno nunca casaram: um foi padre (5f) e o outro (Patrício: 5g) teve um filho ilegítimo da tia de Rodrigo por linha paterna (5a). Não me foram dados nenhuns outros pormenores por D. Elvira (que me informou sobre a sua genealogia) com respeito a esta relação, excepto que essa filha casou mais tarde com um proprietário de uma povoação de outra zona do concelho. O tio paterno de Rodrigo (5b) casou fora da aldeia, com uma mulher de um lugar vizinho. D. Elvira designava-o «lavrador», chamando ao avô (5c) «proprietário», para além de mencionar o seu cargo de vereador na Câmara Municipal. Assim, dos irmãos do pai de Rodrigo, um casou e outro manteve-se solteiro, mas tendo tido um filho ilegítimo. Do lado materno de Rodrigo, apenas dois dos seis irmãos casaram, e destes quatro «celibatários», um (5g) foi pai de um filho bastardo.
40Na Geração 4 deparamos com o próprio Rodrigo (4c) e os dois irmãos mais velhos (4a e 4b) que casaram fora da comunidade. 4a tomou-se juiz de paz numa freguesia próxima e casou com uma proprietária dessa paróquia. O filho mais velho (3a) era professor primário, enquanto os filhos do seu filho mais novo (também proprietário: 3b) emigraram para o Brasil. A irmã mais velha de Rodrigo (4b) casou com um proprietário de outro concelho da zona norte de Trás-os-Montes, e nenhum dos seus filhos voltou a Fontelas (os de 3c emigraram para o Brasil e os de 3e para os E. U. A.). Deste modo, Rodrigo foi o único dos três irmãos a ficar em Fontelas e a manter-se na casa natal.
41Na Geração 4 encontramos também os quatro primos direitos de Rodrigo (filhos do irmão da mãe), que identificámos nas listas de 1905 e 1940 como filhos de Inácio: 4d, 4e, 4f e 4g. Na Geração 3 aparecem os quatro filhos de Cândido, que são primos em segundo grau de D. Elvira: Bento (3g), Manuela (3h), Porfírio (3i) e Margarida (3j). Um filho da segunda mulher de Cândido (3k) morreu solteiro. Finalmente, na Geração 2 vem o padre (2e), cinco irmãos e os seus sete primos direitos. Aparece uma tendência geral nos ciclos das casas de Rodrigo e Cândido: ao passo que a maior parte dos parentes de Rodrigo deixaram a povoação, grande parte dos de Cândido mantiveram-se aí.
42Em. termos de herança, surge um contraste flagrante entre D. Elvira, sem descendentes directos, e os múltiplos herdeiros do património concentrados na linha de Cândido da Geração 3. Neste lado da parentela de D. Elvira, o património passou na Geração 5 predominantemente através de Margarida (5d) e Inácio (5e) e não através do padre (5f) ou dos três irmãos mais novos de Inácio (5g, 5h e 5i). A filha de Ana (5a), a menos que tivesse sido perfilhada ou legitimada, não poderia ter pretensões aos bens de seu pai natural. Como os Róis de Confessados nos mostram, na geração seguinte (Geração 4), Cândido (4f) foi o único de quatro irmãos a casar e ter filhos; por conseguinte, o património passou para os seus quatro descendentes na Geração 3, sendo a casa hoje ocupada pelo pároco (P.e Gregório), uma das irmãs deste, o pai deles e uma criada nova. Embora na Geração 3 os quatro irmãos tivessem casado e tido filhos, na actual Geração 2 quatro indivíduos ficaram solteiros. Por outras palavras, em três das quatro gerações da linha de família de Cândido houve diversas pessoas que nunca casaram.
43O padrão que se manifesta é que, em cada geração, alguns irmãos ou nunca casam ou casam muito tarde e, no que respeita a Bento (3g), alguns tiveram filhos bastante antes do matrimónio. Faz-se assim uma tentativa para evitar a dispersão da propriedade por meio do controlo de herdeiros e da transmissão do património ao menor número possível de filhos casados. Os quatro filhos de Cândido, da Geração 3, representam um fracasso em conseguir a concentração da propriedade, enquanto o caso de D. Elvira representa o extremo oposto. Como herdeira única, e nunca tendo casado, foi-lhe necessário adoptar outro herdeiro para evitar que o seu património (na ausência de descendentes, ascendentes e irmãos-e-seus-descendentes) revertesse a favor de parentes afastados, cujo contacto com a aldeia e com D. Elvira tem sido mínimo desde longa data (os seus primos direitos pela linha paterna, na Geração 3). Tanto a casa do pai de D. Elvira como a de Cândido tinham estruturas fixas de criados residentes, mas apenas ela, solteira e idosa, foi por fim forçada a adoptar uma.
44Em termos gerais, Rodrigo conseguiu preservar o seu património intacto, mas não foi tão bem sucedido em termos de reprodução biológica: somente a sua segunda mulher lhe deu um herdeiro (D. Elvira), que, por sua vez, nunca casou nem teve filhos. Ao invés, os filhos e netos de Cândido foram particularmente prolíferos, mas não tão brilhantes em manter indiviso o património original dele. Ao passo que uma casa tinha falta de herdeiros, sendo a linha de família ameaçada de extinção, na outra havia excesso deles — o que acarretou múltiplas partilhas antieconómicas da sua propriedade. Como vimos no Capítulo 3, esta divisão efectivou-se após o falecimento de Manuela (3h), e o padre e os cinco irmãos possuem agora fracções deste património que herdaram das duas gerações anteriores. Porém, tanto a casa de D. Elvira como a de Cândido contribuíram positivamente para a reprodução social do grupo dos proprietários. Aqui, uma análise exclusivamente materialista poderia pecar por não considerar as estratégias sociais e políticas concomitantes, a longo prazo, das famílias abastadas; estas estratégias têm como objectivo não apenas a preservação de um património indiviso, mas também a manutenção de uma posição elevada e conceituada. Ao adoptar uma criada que mais tarde viria a casar com o seu próprio primo afastado, Valentim, D. Elvira assegurava uma herdeira bem como um herdeiro com elevado nível económico e boa reputação. Por outras palavras, seguindo os passos de seu bisavô, avô e pai, todos eles membros de câmaras e juntas locais, D. Elvira sustentava uma casa com uma enorme quantidade de capital material (terra) e com uma longa tradição de «capital simbólico» na forma de ascendentes com prestígio e altas posições administrativas (Bourdieu 1977:171-83). Identicamente, enquanto o padre e os cinco irmãos dividiram a propriedade de seus pais, todos eles, como compensação, atingiram posições de estatuto social elevado: três irmãos são chamados de Dona ou Padre, um é emigrante próspero, outra uma lavradora abastada, e Valentim um proprietário muito respeitado e «popular». Todos esses irmãos conservaram, pois, as grandes quantidades de capital simbólico características do grupo dos proprietários, sob a forma de ocupações de prestígio.
45Idealmente, cada casa de proprietário deverá conseguir um equilíbrio entre uma provisão óptima de mão-de-obra e uma minimização das ameaças à unidade do património. Um meio de alcançar este equilíbrio entre um extremo (excesso de filhos e casamentos numerosos) e o outro (inexistência de filhos e casamentos) é exercer alguma forma de controlo sobre o número de herdeiros. Com um descendente e muitos criados, Rodrigo fez pender o equilíbrio para a conservação da propriedade, ao passo que os filhos de Cândido inclinaram a balança na outra direcção, para a permanência de uma ampla força de trabalho; isto implicou, consequentemente, a redução do património através de sucessivos casamentos e partilhas. É como se cada ocasião de matrimónio nesta sociedade originasse uma ameaça futura ao património. Esta ameaça materializa-se relativamente a casais que geram filhos e, sobretudo, nos matrimónios posteriores ao contraído pelo primeiro dos filhos que casa e que permanece dentro do grupo doméstico. Não parece haver qualquer regra de preferência para o casamento do primeiro irmão, quer em termos de sexo quer na ordem de nascimento, mas existe certamente um protelar ou evitar dos enlaces dos irmãos que se seguem. Em alguns casos, este atraso em nome de um património indiviso implica ora o celibato (as tias de Rodrigo e os irmãos de Cândido) ora o casamento tardio (Bento). Além disso, o «casamento estratégico» de um herdeiro favorecido é normalmente um matrimónio de prestígio — no sentido que lhe atribui Bourdieu —, uma vez que traz para a casa um indivíduo exterior à aldeia, enquanto os «casamentos secundários», posteriores ao do herdeiro favorecido, costumam ser menos conceituados e realizarem-se entre cônjuges oriundos da mesma povoação.
46Os raros casos de filhos ilegítimos de mulheres abastadas ameaçam tanto o capital material (especialmente a terra) como o capital simbólico (o prestígio) de uma família rica (caso de Ana, tia de Rodrigo pela linha paterna: 5a). Os filhos bastardos herdam sempre das suas mães mas não dos pais, a menos que sejam formalmente perfilhados ou legitimados. Pelo contrário, os filhos ilegítimos originários de uniões entre homens abastados (Bento) e mulheres pobres podem afectar o prestígio do pai mas não constituem qualquer ameaça para o património deste. Existe pois uma ênfase sobre a transmissão da propriedade através das linhas dos descendentes que sejam estrategicamente aqueles que casam primeiro e que ficam dentro do lar natal. Evidentemente, alguns irmãos podem casar cedo mas com um cônjuge de fora, afastando assim as ameaças potenciais ao património familiar. Mas, à partida, nem todos os irmãos podem aspirar à posição do favorecido, sobretudo se esta posição implicar um matrimónio estritamente controlado. Por outras palavras, entre os proprietários, os poucos «eleitos» conseguem ligar propriedade, casamento e sexualidade; ao invés, os herdeiros secundários que se mantêm desviados da linha central de transmissão da propriedade podem nunca casar ou então casar muito tardiamente. Além disso, estes herdeiros, tacitamente excluídos, podem ser constrangidos a não ter relações sexuais pura e simplesmente (no caso das mulheres abastadas) ou a serem forçados pelas condições a praticar uma sexualidade ilícita e extraconjugal (caso dos homens) com mulheres dos grupos sociais mais baixos.
47Hoje, duas outras casas de proprietário em Fontelas encontram-se também em situação semelhante à de D. Elvira. No primeiro caso, a professora D. Sofia continua solteira com 53 anos, mas o seu irmão dirige um colégio em Lisboa e é casado e com filhos. Sem descendentes directos em Fontelas, os aldeãos frisam constantemente a probabilidade de alguma da propriedade de D. Sofia ser finalmente legada ao seu meeiro Fortunato — situação parecida à da adopção da criada Gracinda por D. Elvira. No segundo caso, apenas uma das três filhas de Margarida (Figura 11:2h) casou, e esta deixou a povoação. Ambas as filhas mais velhas de Margarida (2f/2g) continuam solteiras, com 43 e 42 anos, respectivamente, e os moradores não crêem que elas venham a casar. Este fogo não tem criados e não adoptou qualquer pessoa da comunidade como herdeiro; ao contrário de D. Elvira e de D. Sofia, que decidiram adoptar herdeiros dentro de Fontelas, a casa e o património de Margarida tomar-se-ão um ramo extinto da linha de família. Os habitantes lamentam este «desperdício de mulheres» dos fogos abastados, que nunca chegam a casar17
48As mulheres do topo da hierarquia social costumam manter-se solteiras em vez de casarem abaixo da sua posição. Muitos matrimónios de proprietários são contraídos para lá dos limites da aldeia e da freguesia; como vimos, tanto Rodrigo como Cândido casaram em segundas núpcias e as quatro esposas eram ou de lugares vizinhos ou de outras povoações do concelho. Alguns destes matrimónios, embora não completamente análogos, lembram os «casamentos distantes e prestigiosos» (le mariage lointain) de Kabylia (Bourdieu 1977:52-8) contraídos pelos que detêm elevadas posições na hierarquia. Em Fontelas, o não casar (no que se refere às mulheres abastadas) é considerado preferível a casar «abaixo» ou a casar «perto». Também desta forma, o grupo dos proprietários procura minimizar possíveis ameaças ao capital simbólico possuído pela parentela e centralizado especificamente na posição e potencialidade nupcial das suas mulheres. À custa do celibato, que constrange as mulheres à não participação tanto no casamento como na sexualidade, algumas mulheres abastadas ficam permanente e exclusivamente dedicadas à sua casa natal e ao seu património familiar; afastada do matrimónio, D. Sofia e outras na sua situação ficam inteiramente dominadas pelos interesses do património. A curto prazo, elas proporcionam mão-deobra e ajuda às suas casas natais, bem como apoio às posições prestigiosas daqueles fogos e do grupo de proprietários. Embora celibatária, D. Sofia é, não obstante, uma proprietária conceituada e, ao mesmo tempo, professora. Com o tempo, no entanto, a ausência de herdeiros fará cessar a sua linha familiar.
49Esta secção tratou de algumas características específicas da estrutura do grupo doméstico entre os proprietários, relacionando-as com os processos de casamento e herança ao longo de várias gerações. Se bem que as fontes utilizadas apresentem incorrecções e incongruências em relação aos nomes, idades e ocupações de certos indivíduos, no seu conjunto, os Róis de Confessados, o Registo Paroquial e as genealogias dão-nos uma série ímpar de referências múltiplas a determinadas pessoas e casas através do tempo. Todavia, é evidente que nem todos os indivíduos em Fontelas podem ser localizados em todas estas três fontes; os matrimónios fora da freguesia, a emigração e outras mudanças de residência podem torná-los «invisíveis» e deixar assim muitos aldeãos não registados em determinadas datas. Mais do que rejeitar, como «virtualmente inúteis», os dados estatísticos dos registos, ou caracterizar como «totalmente subjectivos» os critérios de classificação das ocupações por parte dos compiladores (como o faz Brandes — 1975:71), proponho sim a utilização cautelosa dos documentos como suplemento aos materiais etnográficos contemporâneos. Portanto, esta análise deve ser vista como um contributo para os métodos de reconstrução de uma «história matrimonial da família» (Bourdieu 1976:136), família essa que contrai um casamento específico num determinado momento.
50Os dados fazem pensar que, apesar da existência de um ideal formal de igualdade entre herdeiros, subsiste entre os proprietários uma hierarquia de herdeiros bem concreta. Esta hierarquia refere-se menos a qualquer regra formal de primogenitura ou de unigenitura do que à posição privilegiada dentro da casa natal do irmão (seja qual for o sexo) que casa e permanece na exploração agrícola. Este herdeiro favorecido pode ser tanto o irmão mais velho como um dos irmãos do meio ou o irmão mais novo, mas nem todos os irmãos são encorajados a casar e a ficar na aldeia.
51Pierre Bourdieu, num estudo esclarecedor sobre os arranjos matrimoniais em Béarn (Sudoeste da França), critica as análises legalistas que consideram as práticas individuais ou as estratégias de casamento e herança unicamente como execuções mecânicas de leis escritas. Bourdieu afirma:
«Na realidade, é necessário tomar a sério as práticas que testemunham que todos os meios são bons para proteger a integridade do património, e para afastar as possibilidades de divisão da propriedade e da família como conjunto de relações concorrentes de apropriação do património, que estão imanentes a cada casamento» (Bourdieu 1976:127-8).
52É precisamente esta evasão à partilha que explica em grande parte o enorme número de indivíduos solteiros que se encontra nos Róis de Confessados e nas genealogias, bem como as elevadas idades à data do casamento. O matrimónio fica subordinado ao objectivo dominante da preservação de um património unificado.
53É importante notar que estes processos de casamento e herança não constituem uma situção de «jogo» na qual os camponeses tentam simplesmente maximizar os lucros e minimizar as perdas. O Capítulo 3 e o Apêndice II mostram que a riqueza fundiária se concentra em maiores quantidades entre os proprietários e os lavradores abastados, e em quantidades substancialmente mais pequenas entre os jornaleiros: as «cartas» (Bourdieu 1976:122) dadas aos ricos estão à partida a seu favor, enquanto o contrário se aplica aos pobres. As estratégias de cada pessoa, no que respeita ao casamento e à herança (entre os grupos detentores de muitas terras), estão, pois, obviamente dependentes das capacidades e iniciativas individuais, mas estas são levadas a cabo dentro de certos limites já definidos pela «história matrimonial» da família e do grupo social a que pertence uma determinada pessoa. Esta história matrimonial, tal como nos demonstram os casos anteriores, compreende uma estrutura de desigualdade entre herdeiros que é reproduzida ao longo das gerações, nos interesses da integridade do património.
54Uma aplicação rígida de uma regra formal de partilha equitativa teria como consequência final (excepto no caso de herdeiros únicos) mergulhar diversos descendentes no empobrecimento total, na linha que defende Cutileiro, a outro nível, quando diz a respeito de Portugal: «Caso se passassem a respeitar todas as disposições legais a partir de um dado momento, a vida do País ficaria paralisada no espaço de vinte e quatro horas» (1977:267). Esta é, evidentemente, uma previsão extremista18 e, em relação aos proprietários, mesmo uma partilha entre vários consortes (por exemplo, o padre e os cinco irmãos) poderia não necessariamente empobrecer cada herdeiro, dado que as áreas das explorações já divididas podiam ser ainda relativamente amplas. Como veremos mais adiante, os perigos da partilha entre lavradores e jornaleiros são francamente mais graves. As estratégias com vista à manutenção de um património indiviso envolvem, como é óbvio, interesses fundiários bem mais importantes nos grupos superiores. Pelo contrário, as estratégias entre os que possuem poucas propriedades são normalmente dirigidas para o arroteamento ou compra de terra, a consolidação de um grande grupo doméstico como unidade de trabalho ou, em alternativa, a emigração permanente. Enquanto as pessoas abastadas de Fontelas se agarram simplesmente às suas terras, os pobres fazem o que podem para as adquirir.
55Assim, a regra formal da partilha igualitária não é apenas consistentemente evitada ou retardada, mas ela própria afecta os diversos grupos sociais de formas diferentes. Consequentemente, entre as famílias com grande riqueza fundiária, uma hierarquia de herdeiros separa um filho/a favorecido/a dos seus irmãos dependentes, que são forçados a ocupar posições de relativa exclusão do património natal19. É difícil assegurar na prática uma igualdade estrita entre os herdeiros, visto que o equilíbrio se inclina a favor de uma preferência informal por um deles e de uma só linha de transmissão da propriedade.
b) Casa de lavradores
56Comparemos agora o caso estudado anteriormente com o ciclo de desenvolvimento de um fogo de lavradores ao longo dos mesmos anos. As fontes utilizadas aqui são as mesmas referidas na Secção a): a casa em questão é a do lavrador João Pires da Silva, que no Lançamento Parochial de Impostos de 1892 se encontra registado com um rendimento colectável de 9960 réis (Quadro 21), valor substancialmente inferior aos de Inácio (90 430) e de Rodrigo (58 800).
57A estrutura deste fogo em 1886 (Figura 12) era rigorosamente nuclear. Ali residiam o chefe de família, João Pires da Silva, a mulher, Carolina Pires, e os seus cinco filhos. Em 1891 aparece registado um sexto filho (Pedro), ficando pois o grupo doméstico com oito membros. Até 1892 a sua estrutura manteve-se estritamente nuclear.
58Até ao ano de 1894, deram-se três alterações; primeiro, o chefe de família (João) faleceu em 21 de Julho de 1892, não deixando testamento. Os Róis de Confessados evidentemente não dão qualquer informação sobre a possível partilha legal desta exploração agrícola entre os seis filhos; podia ter continuado indivisa até à morte de Carolina, embora a estrutura do fogo no decorrer dos anos seguintes sugira a última hipótese. Em segundo lugar, uma irmã mais velha de Carolina (a viúva Maria, com 50 anos) passou a viver na casa, algures entre 1892 e 1894. Por último, foi o terceiro irmão por ordem de nascimento (Susana) que casou primeiro, relativamente nova; esta casou com um lavrador (Facundo Coelho) oriundo de uma freguesia vizinha, mas residente em Fontelas à data do matrimónio (14 de Maio de 1893). A estrutura do fogo, nesta altura, já não era nuclear, e manteve-se constante até 1899, apenas com duas pequenas alterações: (a) António, com 28 anos em 1892, não surge nas listas de 1894 ou de 1895, mas reaparece como membro do grupo doméstico em 189620, e (b) a irmã de Carolina, Maria, não faz parte do Rol de 1899 mas volta a aparecer na lista seguinte. Ao longo do período de 1886 até 1899 a casa teve 7 a 9 membros.
59Ao contrário do fogo de Rodrigo, notamos primeiro a completa ausência de criados registados. Além disso, esta família tinha um número de filhos superior à de Rodrigo, apresentando pois uma estrutura mais semelhante à do segundo fogo anteriormente analisado — o de Inácio Ferreira. Notemos também que até ao ano de 1899 só um dos seis irmãos deste grupo doméstico tinha casado; por outro lado, Facundo (natural de outra aldeia), ao casar com Susana, veio residir para a casa dos sogros.
60A estrutura do grupo doméstico após 1894 era marcadamente não nuclear, e compunha-se de um chefe de família feminino (Carolina) e da sua irmã mais velha (ambas viúvas), bem como um casal mais novo e os seus cinco irmãos solteiros. Assim, com o termo da união conjugal da geração mais velha (devido à morte de João em 1892), estabeleceu-se um novo laço conjugal em 1893 na geração mais nova, mas nenhuma destas mudanças deu origem à dissolução quer da exploração agrícola, quer do grupo de trabalho composto pelos parentes co-residentes. A enorme casa natal continuou a ser a sede de residência e de lavoura; nenhum dos seus membros foi registado como jornaleiro, e é provável que nenhum deles trabalhasse à jorna para outrem. A ocupação de «lavradores», assim como o montante do rendimento colectável deste fogo, sugerem-nos (embora não o possamos provar) que a família cultivava as suas próprias terras com o seu próprio trabalho caseiro.
61Que outras modificações se deram na estrutura deste grupo doméstico de 1899 a 1909, e mais tarde em 1940? Em 1902, dois filhos de Susana e Facundo aparecem na lista pela primeira vez, provavelmente por então terem atingido a idade de 8 anos. Nesse ano, a casa apresentava a sua maior dimensão dentro do período coberto pelos Róis de 1886 a 1909 (onze membros). Além disso, os dois filhos de Susana listados em 1902 só se confessaram, não tendo feito a comunhão. Particularmente significativo é o facto de, no Rol de 1902, os cinco irmãos de Susana ainda se encontrarem solteiros: o mais velho destes (Carlos José) tinha então 41 anos de idade21
62Ocorreu uma mudança de vulto entre 1905 e 1906, quando Carolina, o seu filho mais velho (Carlos José) e o grupo nuclear constituído por Susana, Facundo e filhos deixaram a casa. (Não foi possível localizar estes últimos indivíduos em qualquer dos outros fogos da aldeia, quer no Rol de 1905 quer no de 1906.) Em 1905 e 1906 permaneciam na casa natal quatro irmãos solteiros e sua tia viúva, Maria de Carvalho22. Em 1907, Carolina, o filho Carlos e o grupo nuclear de Susana, Facundo e filhos voltaram. A irmã mais velha de Carolina, Maria de Carvalho, já não aparece na lista; tinha morrido (registada no assento de óbito com 72 anos) em 7 de Junho de 1905, sem deixar testamento nem filhos. Jorge desaparece do Rol de 1907 mas volta a aparecer em 1908, desta vez como o quarto irmão por ordem de nascimento, posição que já ocupava nalguns dos anteriores Róis elaborados pelo Padre Morais (1894, 1895, 1898 e 1899).
63Porém, em 1907 o irmão mais novo de Susana, Pedro, já não surge na lista. Tinha casado com uma lavradora de Fontelas, Maria, no dia 4 de Janeiro de 1906, tendo saído de casa. Este matrimónio tomou-se particularmente revelador quando, nos Róis seguintes, observei a residência pósmarital de Pedro e de sua mulher: tal como Susana e Facundo, este casal não se estabeleceu num novo lar, mas passou a viver com uma tia de Maria que era casada, mas sem filhos. Como o fogo natal de Maria era um fogo abastado de lavradores onde viviam os pais e os cinco irmãos, Maria e Pedro passaram a morar com a tia daquela (Figura 13), juntamente com a criada. Esta mudança de residência (e não podemos senão especular) pode dar a entender uma possível assistência a pessoas idosas na forma de trabalhos e ajuda oferecidos por parentes e serviçais; sugere também uma preferência maior dada ao funcionamento contínuo de grandes casas natais do que à formação de novos grupos domésticos, mais pequenos, após cada matrimónio (Capítulo 6). Notemos também que tanto a tia de Maria como o seu marido já tinham idades superiores a 40 anos por altura do seu casamento (nenhum deles fora casado anteriormente).
64Entretanto, o lar natal de Pedro, em 1908, continuava a incluir apenas uma irmã casada (Susana) e quatro irmãos solteiros mais velhos, com idades de 43, 41, 39 e 36 anos. Em 1909, um destes irmãos — António — tinha casado (em 25 de Janeiro) e saíra do grupo doméstico. Porém, desta vez estabeleceu-se a residência neolocal, e António e a mulher (com idades de 32 e 34 anos no assento de casamento) surgem no Rol de 1909 como residentes de um outro fogo, algures em Fontelas. Assim, em 1909, viviam na casa natal Susana e o seu grupo nuclear, a mãe e os três irmãos solteiros, estes últimos com 44, 42 e 37 anos de idade, respectivamente.
65Ao longo da última fase do ciclo de desenvolvimento deste fogo, o grupo nuclear de Susana, Facundo e filhos apresentam-se como os herdeiros favorecidos da geração mais velha. Por altura do último Rol, em 1909, dois dos irmãos mais novos de Susana (António e Pedro) tinham casado e saído do grupo doméstico. É provável que os irmãos de Susana (Carlos e Jorge) nunca se tenham casado; não encontrei, para eles, nenhum assento de casamento ou de óbito que refira o seu estado civil. Ainda que eles pudessem eventualmente ter casado fora da povoação, isto não é provável, uma vez que os indivíduos que casam fora normalmente têm a data e o lugar da cerimónia acrescentados na margem do assento de baptismo no Registo Paroquial; estes averbamentos são meticulosamente anotados. A irmã de Susana, Damásia, casou com um lavrador de Fontelas em 8 de Setembro de 1915, mas com a idade avançada de 51 anos. Por outras palavras, apenas o matrimónio de Susana foi precoce e estratégico, de modo a colocá-la rapidamente numa posição-chave dentro do fogo.
66Até ao ano de 1940 vemos que Susana e Facundo permaneciam de facto na casa natal e continuavam a linha de família. Dois dos filhos de Susana e Facundo viviam com eles (solteiros também, com 35 e 32 anos) bem como três netos de filiação desconhecida, o mais velho dos quais aparece como lavrador. De 1886 a 1940 seguimos (embora com um hiato de 1909 a 1940) o desenvolvimento de quatro gerações sucessivas de lavradores dentro da mesma casa. O Rol de 1940 apresenta-nos o último «instantâneo» que está ao nosso dispor relativamente ao ciclo de desenvolvimento contínuo deste grupo doméstico23
67Até que ponto podemos considerar as informações dadas pelos Róis de Confessados como conclusivas? Quando os dados contidos nos Róis são acrescentados aos do Registo Paroquial, ficamos a saber ainda mais sobre a família de Susana. Dos quatro casamentos contraídos por Susana e os irmãos, em dois casos nasceu um filho antes do matrimónio, e em outro celebrou-se uma boda com a noiva em estado de gravidez. A sequência dos casamentos destes irmãos e as suas idades por essa altura são as seguintes (Figura 14): dois casaram relativamente cedo, dois relativamente tarde e dois outros nunca chegaram a casar. O Registo Paroquial é uma fonte indispensável e precisa para estas datas cruciais de nascimentos, baptismos e matrimónios. Por exemplo, Susana e Facundo casaram na igreja paroquial de Mosteiro no dia 14 de Maio de 1893, mas o seu primeiro filho tinha já nascido (em Fontelas) apenas duas semanas antes, em 28 de Abril de 1893. É de notar que o assento de baptismo refere sempre a data e o local do nascimento de uma criança, além da data e do local de baptismo. Neste caso, o filho de Susana e Facundo foi baptizado no mesmo dia da boda, na mesma igreja paroquial24
68Dois casos semelhantes aconteceram nos matrimónios de António e de Pedro. Enquanto Pedro e Maria casaram em 4 de Janeiro de 1906, o assento de casamento diz explicitamente que a cerimónia legitimou formalmente «o seu verdadeiro filho» nascido seis anos antes, em 25 de Maio de 1900, e baptizado em 13 de Junho desse mesmo ano (Figura 14). Apesar do nascimento deste filho, a futura mulher de Pedro (e provavelmente a criança) continuaram a residir durante seis anos na casa natal com os pais e irmãos desta, enquanto Pedro, por seu lado, morava na sua própria casa natal. Só em 1907, após o matrimónio, é que Pedro e Maria foram para o fogo da tia de Maria (Figura 13). Por outras palavras, só por si os Róis de Confessados não são suficientes para indicar que Maria foi de facto mãe solteira durante seis anos: é o conjunto das duas fontes (os Róis e o Registo Paroquial) que o revelam.
69No caso do terceiro irmão (António), este também se casou com a noiva em estado de gravidez. Se bem que António e Emília tivessem casado em 25 de Janeiro de 1909, o seu primeiro filho nasceu exactamente seis meses mais tarde, em 27 de Julho de 1909. António e Emília formaram um novo grupo doméstico por esta altura, e aparecem como casal independente no Rol de 1909. (Desconhece-se se a casa em que se instalaram lhes pertencia, era emprestada ou arrendada.)
70O único dos matrimónios destes quatro irmãos que foi absolutamente «normal» foi o último, o da irmã mais velha de Susana, Damásia. Esta casou em 1915 (8 de Setembro) e não teve filhos, nem à data do casamento nem depois. Na lista de 1940, verificamos que Damásia vivia com o marido e um sobrinho de 13 anos, que foi registado como pastor; nenhum destes cônjuges era muito novo por ocasião do matrimónio: Damásia tinha 51 anos, como já vimos, e o seu marido 34.
71Os três casos anteriores de nascimentos ilegítimos e casamentos com noivas grávidas sugerem que as verdadeiras relações dentro do grupo dos lavradores não eram necessariamente tão «límpidas» como implicam os Róis de Confessados. Se bem que haja casos de nascimentos bastardos, como estes, dentro deste grupo social, em termos gerais as respectivas proporções de ilegitimidade são muito inferiores às do grupo de jornaleiros (Capítulo 7). Situados nas camadas «médias» da hierarquia social, em constante mudança, os mecanismos e as pressões sociais que operam entre os lavradores acentuam mais a necessidade de legitimar uniões consensuais e filhos naturais do que entre os jornaleiros pobres; assim, entre os lavradores, os nascimentos ilegítimos e os casos de gravidez antes do casamento são mais passíveis de culminarem rapidamente em uniões legítimas do que entre os jornaleiros. Estes três casos não constituem exemplos de nascimentos ilegítimos e de gravidez antenupcial registados explicitamente como tal, mas, ao relacionarmos as duas fontes documentais, os padrões tomam-se mais nítidos. Os dados sobre Susana e os irmãos apontam — a um nível mais amplo — para um conjunto de valores morais completamente diferentes daqueles que seriam de esperar noutras comunidades mediterrânicas.
72Comparando esta casa com as dos proprietários acima examinadas, quais eram as ocupações dos cônjuges e quais as aldeias de origem? Uma genealogia de Susana, reconstruída a partir do Registo Paroquial, indica que a maioria dos matrimónios para os quais temos informações foram contraídos entre lavradores e lavradoras. Assim aconteceu nas Gerações 2, 3, 4 e 5 (Figura 15). Nos casos de José Pires (4a) e também de João Pires da Silva (3a), duas mulheres vieram casar à povoação e aí ficaram a residir virilocalmente. Porém, em relação a Susana (2c), o marido veio casar em Fontelas e aí residiu uxorilocalmente. Os três enlaces seguintes, dos irmãos de Susana (2b, 2f e 2g), foram todos contraídos com cônjuges dentro do lugar. Finalmente, na Geração 1 sabemos que tanto 1c como 1f deixaram Fontelas e que faleceram na freguesia vizinha de P., respectivamente em 1963 e 1948, enquanto 1e casou naquela freguesia. Tanto 1b como 1d morreram, com as idades respectivas de 18 meses (em 1896) e 9 meses (em 1900); foi impossível obter mais informações sobre 1 a.
73Uma vez mais, defrontamo-nos com um padrão evidente entre os proprietários: os matrimónios realizados cedo trazem normalmente um cônjuge do exterior até à casa natal, ao passo que casamentos tardios se realizam por via de regra entre dois esposos ambos naturais de Fontelas. Os matrimónios na Geração 2, 3 e 4 patenteiam este padrão. É significativo que, no que se refere aos dois fogos de proprietários e ao da lavradora Susana, o casamento estratégico do irmão que ficou na casa natal foi contraído para lá dos limites da aldeia ou freguesia, e trouxe com ele um parente por afinidade; tanto o pai de Susana (também o primeiro a casar) como o avô casaram deste modo — ambos trouxeram esposas para Fontelas. Este paradigma faz lembrar os matrimónios distantes e prestigiosos dos proprietários, bem assim a renúncia efectiva, pelos maridos vindos de fora, aos direitos de herança no que respeita às suas propriedades nas povoações de origem. (Um esposo como Facundo teria legalmente herdado terra e outros bens na sua comunidade natal, mas o mais natural seria tê-los vendido, dado de arrendamento ou emprestado a parentes ou outros vizinhos.) Quanto aos matrimónios secundários, nalguns casos são obviamente realizados «abaixo». Na Geração 3, por exemplo, enquanto João (3a) trouxe a sua mulher para Fontelas, ambos os irmãos mais novos — Eulália (3c) e Gualter (3f) — casaram com pessoas naturais da aldeia, e Rufina (3d) e Vítor (3e) nunca casaram. De modo idêntico, na Geração 2, os três irmãos de Susana casaram desta forma (tardiamente e com esposos oriundos de Fontelas).
74Comparados com os proprietários, os lavradores enfrentam um conjunto diferente de constrangimentos sobre a produção: como consequência, o casamento, a criação de filhos e a ausência de criados dentro da maior parte dos fogos deste grupo devem ser vistos à luz dessas diferenças. Ao contrário do proprietário Rodrigo, nenhum dos membros, quer da geração de Susana, quer da dos seus pais, ocuparam quaisquer posições administrativas ou eclesiásticas de destaque em Fontelas; além disso, nenhum dos descendentes de Susana vive hoje na povoação. Ao passo que muitos matrimónios de proprietários são notoriamente prestigiosos, na maioria os casamentos de lavradores têm como objectivo a criação de um grande número de filhos como fonte permanente de mão-de-obra dentro do próprio grupo doméstico.
75Esta preocupação com os filhos e o trabalho, como elementos capitais das famílias de lavrador, é expressa na cantiga seguinte, que apresenta as possibilidades de escolha que uma mãe tem para casar uma filha:
1 Ó Joaquina, ó Joaquininha,
Trás daquele outeiro,
Andas em namoro, andas em namoro,
Lá com um carpinteiro.
2 Carpinteiro não, carpinteiro não,
Que nos tranca a porta,
Antes soldadinho, antes soldadinho,
Que marcha na tropa.
3 Soldadinho não, soldadinho não,
Não sabe marchar,
Antes barbeirinho, antes barbeirinho,
Sabe barbear.
4 Barbeirinho não, barbeirinho não,
Que amola as navalhas,
Antes alfaiate, antes alfaiate,
Que nos talha as saias.
5 Alfaiate não, alfaiate não.
Que é min25 mentiroso,
Antes estudantinho, antes estudantinho,
Que é mais amoroso.
6 Estudantinho não, estudantinho não,
Que amassa o farelo,
Antes ferreirinho, antes ferreirinho,
Que malha no ferro.
7 Ferreirinho não, ferreirinho não,
Que anda muito negro,
Antes pedreirinho, antes pedreirinho,
Que escacha o penedo.
8 Pedreirinho não, pedreirinho não,
Causa muita guerra,
Antes lavrador, antes lavrador,
Que nos lavra a terra.
76Cada uma das ocupações referidas para um possível marido é sucessivamente rejeitada a favor da escolha de um lavrador «que nos lavra a terra». Em três dos versos (2, 4 e 8) a mãe fala expressamente «que nos tranca a porta», «que nos talha as saias» e «que nos lavra a terra», frisando assim a utilidade que o marido pode ter para a casa dos pais da noiva.
77Numa comunidade eminentemente rural, na qual quase todos se dedicam à agricultura a tempo inteiro, dá-se a máxima importância ao trabalho e ao valor de actividades vitais como as lavras e as colheitas. Idealmente, cada casa de lavrador faz o possível por trabalhar a sua própria terra com a sua própria mão-de-obra: os membros deste grupo social raramente trabalham à jeira e normalmente não contratam jornaleiros nem criados. Ao contrário dos proprietários, não se espera desses indivíduos que ajudem os pobres, nem potencialmente nem na prática, e não se verifica qualquer atitude «humanitária» da sua parte, quer na forma de donativos em alimentos quer na contratação de serviçais jovens. Enquanto hoje os lavradores arrendam enormes quantidades de terra, o seu ideal é o do camponês auto-suficiente, situado entre os extremos ocupados pelos proprietários contratadores e os jornaleiros semiproletários. As suas estratégias matrimoniais apontam assim para a consecução de abundantes recursos de mão-de-obra (entrada na casa de genros ou noras) e grande número de filhos: a cantiga anterior salienta a sua preocupação com o trabalho.
78Ao analisar os Róis de Confessados, descobrimos que é entre os lavradores que se encontram, de maneira consistente, os grupos domésticos de maiores dimensões e o maior número de filhos; estes são também os fogos em que a estrutura de famille souche de duas unidades conjugais é mais frequente. A casa de Susana é, pois, semelhante em tamanho à de Inácio, embora em termos de estrutura nunca tenha tido uma criadagem permanente comparável. Ao contrário das famílias mais abastadas, a maioria das que pertencem a este grupo não utilizam a contratação de serviçais como forma indirecta de controlo de herdeiros. Deste modo, é importante acrescentar aos dados sobre a dimensão do fogo informações sobre a estrutura do mesmo; enquanto as casas de proprietários e de lavradores eram de grande dimensão segundo os Róis de Confessados, as suas estruturas eram muito diversas no que respeita à presença ou ausência de criados. Os exemplos aqui apresentados revelam claramente esta diferença.
79Uma casa de lavrador confrontava-se pois com uma grave dualidade entre o objectivo de conservar o seu património indiviso e o de manter um grupo amplo de «braços» para a lavoura. Se bem que a divisão de uma exploração de proprietário possa não empobrecer os respectivos herdeiros, uma propriedade mais pequena encontra-se constantemente nesse perigo. Cada fogo de lavrador tenta alargar a sua força de trabalho criando muitos filhos a partir de um único casal, o que, por seu lado, garante que um ou mais desses filhos poderão ajudar os pais à medida que estes envelhecem. Esta preocupação em ter descendentes surge muito cedo no ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, e é seguida pela criação de um segundo grupo reprodutivo através do casamento e da residência continuada de um dos seus filhos. Uma vez mais, os matrimónios secundários ou são protelados ou nunca têm lugar, e como vimos na genealogia anterior, costumam originar menos filhos. O primeiro casamento estratégico do herdeiro favorecido, idealmente, tem de ser realizado o mais depressa possível para assim começar o ciclo reprodutivo da noiva enquanto esta ainda é nova.
80A conclusão deste ciclo é a partilha final. Por exemplo, visto que os pais de Susana foram muito prolíferos (6 filhos), teve de ser exercida alguma forma de controlo de herdeiros com vista à conservação de uma exploração agrícola viável. Dois meios possíveis para alcançar tal (para além do exemplo de Rodrigo de um único filho e muitos criados) é adiar os casamentos de alguns irmãos e evitar os de outros, pois cada ocasião de matrimónio posterior ao primeiro, o estratégico, tende a constituir uma ameaça potencial ao património. Quando estas estratégias, que têm como objectivo preservar o património unificado, não são totalmente coroadas de êxito, alguns dos membros do fogo deverão inevitavelmente deixá-lo ou casar abaixo. Foi precisamente isto que aconteceu na Geração 3 no caso dos irmãos de João (Figura 15), como veremos na Secção c (Figura 21): enquanto o próprio João se conservou lavrador, dois dos irmãos tornaram-se jornaleiros e outra cabaneira. Na verdade, foi João que conseguiu a posição estratégica no seu grupo doméstico ao casar cedo e ao ficar em casa, e, consequentemente, todos os irmãos foram até certo ponto excluídos.
81Em resumo, as características de um fogo de lavrador são as seguintes: grandes grupos domésticos com muitos filhos de um só casal, ausência de criados, poucos matrimónios de prestígio, e um certo controlo de herdeiros através da separação entre um favorecido que casa cedo e vários herdeiros secundários que não se casam, ou o fazem tarde. Em termos gerais, pode afirmar-se que os proprietários casam pela posição social; em contraste, os lavradores casam com a mira no trabalho. Esta importância dada à casa como unidade de produção é hoje constantemente referida em versos, cantigas e ditados que salientam as capacidades de labor da pessoa com quem se quer casar. A frase «é muito trabalhador» aponta para o valor do trabalho e é um elogio para a reputação de um rapaz ou de um homem; a mesma frase é aplicada às mulheres — «é muito trabalhadora». Uma casa é considerada forte e «rica em mão-de-obra» se possui muitos filhos com bons hábitos de trabalho. Nesta ordem de ideias, um aldeão dizia que o lavrador abastado Delfim era «o homem mais rico de Fontelas» porque tinha um fogo com seis membros, todos muito laboriosos (marido, mulher, três filhas e um filho). A maioria das casas de lavrador são definidas, sobretudo, tanto pela quantidade como pela qualidade dos seus recursos de trabalho.
82Embora alguns lavradores ainda contratem criados de vez em quando, isto é raro fazer-se numa base permanente e limita-se por regra a um ou dois, mas nunca a cinco ou seis. Assim, em 1977 o lavrador abastado Miguel tomou ao seu serviço a criada Eulália (de 20 anos) não com o fim de ajudar pecuniariamente a mãe dela (mulher de um jornaleiro) nem como meio de minimizar as ameaças ao património familiar através de um controlo de herdeiros, pelo contrário, Eulália foi contratada como «mais dois braços a trabalhar na casa»: o único filho de Miguel tem uma deformação de nascença e não pode sair do leito. Além disso, embora a relação entre um proprietário e o seu criado possa ser vista como uma forma de patrocinato, a dimensão algo menor das explorações agrícolas dos lavradores, e o número reduzido de serviçais por eles contratados, não sugere este tipo de relação. A posição prestigiosa que deriva da existência de um grande grupo de criados de ambos os sexos trabalhando numa casa abastada é reservada unicamente para os proprietários.
83Como puderam os lavradores resolver o conflito inevitável entre uma proliferação de herdeiros e o objectivo de adiar ou evitar a divisão do património? Tal como os proprietários, este grupo é obrigado a exercer alguma forma de controlo de herdeiros através da selecção de um favorecido que casa cedo e fica no lar natal. A geração dos pais emprega estratégias de controlo, não só sobre o trabalho dos seus filhos mas também no que respeita ao momento mais próprio para o seu matrimónio e a respectiva escolha de cônjuge. É de notar que estas estratégias são dirigidas informalmente, através de um filho preferido, para a reprodução do grupo doméstico como conjunto de mão-de-obra. Não se trata de um processo simplista de «casamentos arranjados pela geração mais velha» que afastasse qualquer poder de decisão por parte da geração mais nova; ambas as gerações utilizam diferentes tipos de estratégias, gerando assim uma constante dialéctica no interior de cada fogo. Estas estratégias são, por princípio, muito difíceis de definir, mas os dados apresentados indicam que existe o mesmo padrão para ambos estes grupos possuidores de terra. Os enlaces de muitos dos filhos destas casas são adiados ou totalmente impedidos, mas os meios utilizados para obter esse resultado (as estratégias) são extremamente subtis. Voltarei a este ponto no Capítulo 7.
84O objectivo primordial é atrasar a divisão legal do património, que garante a cada herdeiro um quinhão igual. Tais estratégias aparecem normalmente durante uma fase específica do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, por via de regra na altura em que alguns dos filhos atingem idades casadoiras. As estratégias continuam a ser exercidas após a morte de um dos pais, que é o primeiro momento em que os herdeiros podem legalmente efectuar uma partilha. Nesse sentido, a regra da herança post-mortem contém em si um mecanismo que atrasa ainda mais a obtenção da propriedade pela geração mais nova: nenhum dos herdeiros pode herdar seja o que for até que o pai ou a mãe tenham morrido. O verdadeiro resultado da partilha tem outras implicações: o lugar de residência, o estado civil e as pretensões dos herdeiros ao património natal variam, obviamente, com as circunstâncias particulares de cada um deles à data da partilha. Mas é precisamente esta divisão final que os pais (e mais tarde o cônjuge sobrevivente) tentam adiar. Mesmo depois do falecimento deste último (nomeadamente, a casa de Inácio após 1905: Figura 9), embora possa efectuar-se a partilha entre os herdeiros, estes podem continuar a residir juntos e a contribuir com os seus esforços para o mesmo grupo doméstico durante muitos anos.
85O fogo de lavrador atravessa pois uma fase de óptimos recursos de mão-de-obra até que um segundo casal (Susana e Facundo) começa a ocupar o papel principal, tanto na produção como na reprodução. É crucial notar, neste momento, que em nenhuma circunstância os pais idosos saem das suas casas para quartos ou edifícios adjacentes quando deixam de trabalhar. Não entregam, de modo algum, a direcção de jure do fogo (isto é, o trabalho) e da propriedade (ou seja, a terra) à geração mais nova até ao seu falecimento, se bem que possa ter lugar uma espécie de mudança de facto na autoridade à medida que os pais envelhecem e especialmente após a morte de um deles. Quando o primeiro morrer e depois o outro, as tentativas feitas pelos pais para adiar a partilha passam a ser feitas pelo herdeiro favorecido (Susana, por exemplo) para que tanto os irmãos solteiros como as suas partes do património permaneçam dentro da casa natal. Evita-se pois a divisão da exploração agrícola e a dispersão do grupo de trabalho. As ameaças futuras ao património, previstas pelos pais, agudizam-se no momento da partilha entre os irmãos herdeiros; normalmente, o herdeiro favorecido já casou há muito, teve filhos e «tomou conta» da casa natal informalmente. Este padrão foi seguido por Susana e Facundo, embora não tenhamos informações concretas sobre o que aconteceu em termos de herança após o falecimento da mãe de Susana (posterior a 1909).
86Outro ponto relevante é o uso ou não de testamentos; no caso de Susana, qualquer dos seus pais poderia teoricamente ter-lhe deixado 1/3 do total da propriedade (Capítulo 7). É extremamente impopular que um pai faça testamento a um só dos seus filhos, sendo isto causa frequente de agravos e relações tensas entre o legatário favorecido e os outros consortes; é óbvio que tal testamento estabelece formalmente um determinado irmão como herdeiro beneficiado, institucionalizando, desse modo, uma verdadeira desigualdade entre irmãos. Nos casos em que alguns herdeiros suspeitam que um testamento foi ilegalmente forjado a favor de um filho, recorre-se geralmente ao tribunal, de modo a realizar-se uma divisão justa. Porém, de um modo geral, a maior parte dos aldeãos que têm descendentes não deixam testamento: é muito mais comum a situação já descrita da posição informalmente privilegiada de um irmão favorecido.
87O que é significativo aqui é que as casas de lavrador devem tentar alcançar um equilíbrio entre (a) maximizar os seus meios de trabalho e (b) minimizar as futuras ameaças à unidade do património familiar. Infelizmente, a criação de muitos filhos (o que de facto faz a maioria dos lavradores) desloca o equilíbrio a favor do primeiro factor (um grande grupo de trabalho), o que acarreta problemas futuros ao segundo (muitos herdeiros em competição). Em termos gerais, a geração dos pais reproduz-se com êxito e instala um herdeiro favorecido, mas deixa o conflito concomitante entre os diversos herdeiros para depois da sua morte.
88Ao contrário da situação que vigora entre os proprietários, existem para os lavradores muitos menos possibilidades de controlo de herdeiros. Em primeiro lugar, não se contratam criados regularmente, e assim estes não constituem, para os lavradores, uma fonte de mão-de-obra sem pretensões à herança. Em segundo lugar, enquanto as mulheres muito abastadas que ficam celibatárias mantêm posições sociais elevadas como detentoras de propriedade ou como profissionais, isto não acontece no caso das mulheres dos lavradores. As lavradoras que permanecem solteiras ou celibatárias são notoriamente deploradas; elas ocupam uma posição caracteristicamente ambígua, sem possuírem quer o status elevado das proprietárias quer o estatuto inferior das jornaleiras, e estão em perigo constante de virem a pertencer a este último grupo, descendo pois na escala hierárquica. A menos que casem depressa, descobrirão como é difícil casar «acima» ou indesejável tornaremse membros secundários dos fogos dos irmãos casados.
89Ao invés da situação que enfrentam as proprietárias solteiras (o não casar é melhor do que casar mal), uma lavradora tem uma outra série de opções à sua escolha: para ela qualquer matrimónio é melhor do que não casar. Podem dar-se duas hipóteses: ou casar tardiamente (a irmã mais velha de Susana, Damásia) ou ter filhos completamente fora do casamento legal. Como veremos na Secção c, a última hipótese traz consigo o perigo de um certo ostracismo social como consequência da ilegitimidade, e constitui um processo através do qual uma lavradora pode «cair no proletariado» (tomber dans le prolétariat) devido à sua posição de herdeira excluída (Le Roy Ladurie 1976:62-3). Afastadas da linha principal de transmissão da propriedade pelo irmão favorecido (do sexo masculino ou feminino), estes herdeiros secundários femininos são passíveis de cair num nível social mais humilde nao só pelo atraso na aquisição de bens herdados como através de uniões extraconjugais e irregulares. Isto foi o que aconteceu precisamente com Rufina — que iremos examinar mais adiante —, jornaleira cujo irmão mais velho era, de facto, o lavrador João Pires da Silva.
90Os lavradores do sexo masculino ocupam uma posição bastante diferente. Embora os irmãos secundários possam ser vítimas do controlo de herdeiros, por regra nada fazem com vista a um controlo de natalidade26. Defendo no Capítulo 7 que as altas proporções de ilegitimidade em Fontelas não podem ser explicadas satisfatoriamente pela ausência de controlo de natalidade, nem tão-pouco pelos casos de exploração de mulheres pobres pelos patrões poderosos, nem pela incapacidade da Igreja em levantar o «ignóbil» nível moral da população local27. Pelo contrário, a ilegitimidade está intimamente ligada à herança post-mortem e à tentativa de evitar a partilha através da instituição informal de separar um herdeiro favorecido de vários herdeiros secundários; estes últimos são afastados da linha principal de transmissão da propriedade que desce através do irmão casado (o herdeiro favorecido), mas não lhes são inteiramente negadas as relações sexuais. Assim, tal como no caso dos proprietários, alguns indivíduos são «escolhidos» — só eles podem conseguir reunir casamento, propriedade e sexualidade legítima; os restantes deverão permanecer celibatários, casar muito tardiamente ou estabelecer ligações sexuais fora do matrimónio legal. É este «excedente» de homens solteiros que constitui, na realidade, o grupo de pais incógnitos dos filhos bastardos de um pequeno número de jornaleiras. Grande parte da informação coligida a partir dos Róis de Confessados, do Registo Paroquial e das genealogias aponta para esta conclusão.
91As casas de lavradores são confrontadas com uma tensão particularmente aguda no que respeita ao equilíbrio entre os interesses do matrimónio (muitos filhos) e os do património (uma exploração intacta). Este conflito agudiza-se em parte devido às pequenas quantidades de propriedade fundiária possuídas por este grupo em comparação com os proprietários. O mesmo sistema de separação entre herdeiros favorecidos e secundários mantém-se em vigor, embora com consequências diferentes. Os fogos de lavrador devem produzir muitos filhos de modo a obterem o máximo de mão-de-obra, que também lhes permita fornecer ajudantes para as tarefas e colheitas de outras famílias. Ter filhos, casar um deles e ter netos, maximizar o trabalho: eis o objectivo; mas há que evitar que todos os filhos façam isto ou o resultado final será a pobreza total.
92A tensão estrutural básica entre os interesses do matrimónio e os do património é expressa no conflito que se levanta entre o irmão/irmã favorecido e os herdeiros secundários no momento da partilha. Quem recebe o quê, e quem ficará na casa natal ou a deixará? Como veremos, esta tensão subjacente nunca é totalmente «resolvida» em termos estruturais: a tese da manutenção do património por parte da geração dos pais é posta em causa pela antítese de casamento e reprodução efectuada por parte da geração mais nova e que ameaça, em última instância, a preservação do património. A tensão entre as estratégias de conservação da propriedade por parte da geração mais velha e as contra-estratégias matrimoniais da geração mais nova é aliviada e temporariamente protelada através da selecção de um herdeiro favorecido. O património e o matrimónio opõem-se estruturalmente, mas a regra de herança por morte parece constituir um jogo em que as «boas cartas» são detidas pelos pais e pelo herdeiro favorecido, enquanto os filhos tacitamente excluídos deverão contentar-se com as piores. A síntese desta oposição, a um nível estrutural mais vasto, é a reprodução social de um grande número de filhos bastardos, afastados tanto do património como do matrimónio.
c) Casa de jornaleira
93O terceiro e último estudo de caso trata da jomaleira Rufina, mãe solteira de quatro filhos ilegítimos de pais incógnitos. Rufina ocupava provavelmente uma posição muito inferior na escala social do que a lavradora Susana; enquanto o pai desta última tinha um rendimento colectável de 9960 réis no Lançamento Parochial de 1892, Rufina nem sequer se encontra registada. Isto dá a entender que, ou ela possuía muito pouca propriedade, o que a excluiria da lista de contribuintes da freguesia, ou que não residia na aldeia na altura em que a relação de impostos foi compilada; a sua presença em todos os Róis de Confessados antes e após 1892 contradiz esta última possibilidade. Tal como Rufina, 13 outras jornaleiras aparecem no Rol de Confessados de 1892, mas não no Lançamento Parochial (Quadro 21), sugerindo que os seus bens eram insignificantes. Algumas podiam até ser totalmente desprovidas de terras.
94Para termos uma ideia do contexto social a que pertencia Rufina, poderemos observar os valores seguintes. No Rol de 1896, por exemplo, há 45 fogos listados em Fontelas; os chefes de família destas casas incluem 6 proprietários, 1 ferreiro, 14 lavradores e 24 jornaleiros ou jornaleiras. Assim, em 1896, mais de metade das casas da povoação tinham, como cabeçade-casal, jomaleiros/as; dentro deste grupo, dos 11 chefes de família do sexo masculino, 2 eram viúvos, 6 casados (um deles sem a mulher residente) e 3 eram solteiros. Os números referentes às mulheres deste grupo (chefes de família ou as esposas destes) para o mesmo ano são ainda mais reveladoras: das 19 mulheres adultas do grupo de jornaleiros, 5 eram viúvas, 5 casadas e 9 solteiras. Uma destas 9 solteiras vivia com um homem solteiro numa união consensual. Isto é, um grande número de casas dentro deste grupo tinha como chefe de família uma jornaleira solteira. Normalmente, estas mulheres viviam sozinhas, ou com um ou vários filhos ilegítimos. Uma análise de todos os fogos deste grupo nos 15 Róis de Confessados revelanos dois tipos principais de grupo doméstico: (a) uma estrutura predominantemente nuclear de um casal com filhos e (b) uma unidade «matrifocal» de uma mãe solteira com filhos bastardos. O caso de Rufina representa claramente o último, e é sobre este tipo de fogo que me vou debruçar; a casa dela oferece-nos assim um contraste flagrante com as casas de proprietário e lavrador anteriormente examinadas.
95O primeiro Rol de Confessados de 1886 apresenta Rufina Pires como uma jomaleira solteira de 30 anos de idade, vivendo sozinha (Figura 16). Em 1888, a estrutura do fogo era idêntica — Rufina ainda vivia só. Porém, em 1891, uma filha (Carmelinda, de 9 anos) aparece na lista; pelos Róis de Confessados ficamos a saber que esta era a primeira filha de Rufina, que surge agora dado que tem ou ultrapassou os 8 anos de idade.
96Uma vez mais, o valor de duas fontes documentais é bem evidente: o Registo Paroquial de baptismos indica que Carmelinda era de facto a segunda filha ilegítima de Rufina. Uma outra filha tinha nascido em 25 de Maio de 1877, cinco anos antes da data de nascimento de Carmelinda, em 23 de Agosto de 1882. (Esta filha mais velha aparece no Rol de 1898.) Tanto uma como a outra encontram-se registadas explicitamente no assento de baptismo como «filha natural»; o assento de Carmelinda refere que ela era filha de Rufina e de «pai incógnito»28. Por outras palavras, o Rol apenas nos diz que Carmelinda era filha de uma mulher não casada (Rufina surge como «solteira»); mas uma segunda fonte (o Registo Paroquial) permite-nos confirmar que esta filha era de facto ilegítima. Além disso, as duas fontes em conjunto mostram-nos não somente que indivíduos residiam na casa no período em questão, mas também quais deles moravam fora.
97A estrutura do fogo manteve-se idêntica de 1891 até 1896, com Rufina e a filha Carmelinda como únicos residentes. Em 1898, Carmelinda já não surge na lista, mas a filha mais velha daquela, Simónia, passou a viver na casa de sua mãe. A segunda filha de Rufina (Carmelinda) toma-se «invisível»: já não consta do grupo doméstico da mãe em qualquer data subsequente coberta pelos Róis, nem aparece como criada de qualquer fogo de Fontelas em 1896 (nem nos assentos de óbito posteriores ao mesmo ano). A anotação imprecisa de idades também apresenta alguns problemas: existem incongruências tanto na idade de Carmelinda de 1894 a 1896, como na de Rufina de 1896 a 1898. Ao chegarmos a 1902, aparece um terceiro filho vivendo na casa: trata-se de Cipriano (com 10 anos) que nasceu em 19 de Fevereiro de 1888. Este era também «filho natural» de Rufina e de pai incógnito. Não há qualquer forma de determinar, quer a partir dos Róis de Confessados quer dos assentos de baptismo (ou das duas fontes em conjunto), se os pais destes três filhos eram, de facto, a mesma pessoa29. A estrutura do fogo conservou-se idêntica de 1902 a 1906, e compreendia pois Rufina e dois dos seus filhos.
98Em 1907 três filhos são listados na família, desta vez incluindo-se a quarta filha de Rufina, Marta, com 10 anos de idade; esta nascera no dia 29 de Março de 1891, e é também referida como filha ilegítima de pai incógnito. Em 1908 o grupo doméstico volta a ser mais pequeno, apenas com Rufina e a filha mais velha como residentes. Os nomes de Cipriano e de Marta tinham sido riscados pelo padre que elaborou o Rol de 1907, dando a entender que podiam ter saído de casa antes da respectiva data de compilação. Não podemos senão especular quanto ao destino dos filhos mais novos, Cipriano e Marta: podiam ter-se tornado criados em Fontelas ou noutro sítio, ou saído para outras casas ou outras aldeias30
99Por fim, em 1909 deparamos com uma mudança radical na estrutura do fogo: a filha de Rufina aparece agora listada com a sua própria filha ilegítima, Libânia da Ressurreição, com 12 anos de idade. Libânia tinha nascido em 15 de Março de 1898, também de pai incógnito. Esta pode ter sido a razão pela qual Simónia veio viver para casa da mãe no mesmo ano do nascimento da filha (1898), que é o primeiro Rol no qual ela aparece. O grupo doméstico por esta altura consistia não em uma mas em duas unidades matrifocais, cada uma compreendendo uma mãe solteira com uma filha ilegítima de pai incógnito e ausente.
100Ao chegarmos a 1940, nascera uma outra geração de filhos bastardos às duas netas de Rufina, Libânia e Laura. Libânia teve um filho ilegítimo (Vilfredo) em 17 de Julho de 1936. Hoje, ela e o seu filho único (um dos cinco jornaleiros de Fontelas) vivem juntos na mesma casa; Vilfredo tem actualmente 38 anos e a mãe 79. Além disso, antes do nascimento deste, a irmã mais nova de Libânia, Laura, tinha tido os primeiros quatro dos seus oito filhos ilegítimos, em 1927, 1929, 1932 e 1934, respectivamente. Três destes filhos surgem listados no Rol de 1940: Urraca, Maurícia e Caetana. Nenhum dos oito filhos de Laura reside actualmente na povoação, e Laura (agora com 71 anos) mora sozinha com o companheiro Pedro (de 69 anos), hoje pequeno agricultor mas em tempos criadito em Fontelas.
101Mais uma vez, os 15 Róis de Confessados permitem-nos uma observação sequencial a uma parte do ciclo de desenvolvimento de um grupo doméstico, desta vez de uma jornaleira. Porém, este «esqueleto» das mudanças nas gerações pode ser aumentado, se combinado com informações genealógicas obtidas tanto a partir do Registo Paroquial como de testemunhas contemporâneas. A Figura 17 apresenta estes dados suplementares.
102Duas características desta genealogia saltam à vista imediatamente: o elevado número de filhos ilegítimos nascidos de mães solteiras e o pequeno número de matrimónios. Por exemplo, na Geração 3 pode afirmar-se com razoável certeza que apenas um dos quatro filhos de Rufina casou: Simónia (3a) teve sete filhos naturais, mas nunca aparece nos assentos de casamento do Registo Paroquial. Carmelinda (3b) também não é referida como mãe tanto nos assentos de casamento como nos de baptismo — é provável que ela nunca tivesse tido filhos. Cipriano (3c) morreu solteiro em 29 de Maio de 1913, com 24 anos de idade, sem deixar testamento nem filhos. Contudo, o quarto filho de Rufina casou em 1933: trata-se de Marta (3d), que casou com um jornaleiro de Fontelas e que não teve filhos. As idades de Marta e do seu marido à data do matrimónio eram de 41 e 30 anos, respectivamente. Não existe qualquer informação sobre partilhas entre estes quatro irmãos, embora provavelmente não existissem muitos bens a dividir, se considerarmos a precária situação económica de Rufina. Esta morreu em 22 de Dezembro de 1925, com 68 anos, registada como jomaleira solteira, deixando filhos mas não deixando testamento. A casa foi habitada sucessivamente pela filha Simónia e depois pela filha desta, Laura (2c). O lar em si é pequeno e apertado, e situa-se na extremidade de um grupo de quatro edifícios de pedra ligados entre si (Mapa 3 — Casa 45). Na outra ponta desta fiada reside a irmã de Laura, Libânia (2a), e o filho Vilfredo (1a), numa casa igualmente pequena e singela (Casa 43)31
103Na Geração 2, os movimentos dos indivíduos são mais difíceis de seguir. Para quatro destes sete irmãos foi possível determinar apenas as datas de nascimento e baptismo (2b, 2e, 2f e 2g), dando a entender que emigraram ou casaram fora da povoação. Tomás (2d) casou na cidade de Bragança em 1940. Nenhuma destas cinco pessoas ou qualquer dos filhos viviam em Fontelas por altura do meu trabalho de campo. Finalmente, tanto Libânia como Laura permaneceram na aldeia e tiveram filhos ilegítimos. Portanto, a maioria dos indivíduos da Geração 2 ou deixou o lugar ou se tomou invisível nos arquivos.
104Estes pormenores indicam um problema específico relativamente à localização nas fontes de determinados aldeãos do grupo dos jornaleiros: mudam constantemente de lugar e não é fácil segui-los. Ao invés do que acontece com os proprietários e lavradores, muitos dos membros deste grupo não ficam nas casas natais como irmãos solteiros. Deve-se isto principalmente à pequena dimensão das explorações agrícolas bem como à pequenez dos agregados familiares — uma casa de jornaleiro não pode, efectivamente, albergar um grande número de parentes; além do mais, vários jornaleiros mudaram frequentemente de residência, visto serem trabalhadores à jeira, criados, ou emigrantes sazonais fora da freguesia. Ao passo que muitos dos proprietários e lavradores costumam ficar nos seus fogos de origem (casados ou solteiros) e «amarrados à terra», o contrário aplica-se a este grupo de pessoas mais pobres; não só não estão amarrados à terra como não ficam necessariamente a residir para sempre nas casas natais. Embora se possa seguir cronologicamente, através dos Róis de Confessados, uma série de filhos nascidos em famílias mais abastadas, no caso dos jornaleiros isto torna-se bem mais difícil. Diversos filhos aparecem, desaparecem e voltam a aparecer no grupo doméstico em diferentes alturas; este padrão sugere alterações frequentes na estrutura do fogo e uma alta mobilidade, semelhante e muitas vezes ligada ao movimento de serviçais dentro e fora das casas de proprietário.
105Continuando com a genealogia de Rufina na Geração 1, dos oito filhos de Laura, um morreu relativamente novo (Leopoldo: 1 b), enquanto três das sete filhas casaram. Maurícia (1d) casou com um espanhol e reside permanentemente em Barcelona, e Inês (1i) casou com um homem de outra aldeia da zona e vivem hoje em França. Felizarda (1g) casou com um pequeno agricultor de Fontelas (ele próprio pai de um filho ilegítimo anterior ao matrimónio), mas separaram-se há alguns anos, estando o caso em tribunal para a obtenção do divórcio. As restantes quatro filhas de Laura estão solteiras (1c, 1e, 1 f, 1h). Durante o trabalho de campo, as seis filhas mais novas de Laura (com a excepção de Florinda: 1f) vieram de visita pelo menos uma vez a Fontelas, e permaneceram na casa da mãe. As visitas de Felizarda (lg) e Catarina (lh) são particularmente frequentes, uma vez que Bragança fica a hora e meia de viagem de camioneta de carreira, e a região onde Catarina ensina se encontra a algumas horas de distância. Significativamente, os oito filhos de Laura saíram da povoação, e cada vez que lá vão isso é sempre tomado como uma «visita à família» e como uma forma de ajuda a curto prazo na casa. A dimensão da lavoura do fogo de Laura é tão pequena que, quando os seus dois genros estão presentes, não é necessário nenhum outro auxílio. Nem Laura nem o companheiro possuem uma junta de vacas, e só têm em conjunto 2,83 hectares de terra (arrendam mais alguma); desta forma, ao contrário do que acontece com as terras da lavradora Susana, as de Laura são tão poucas que nunca deram para que os filhos lá ficassem. Assim, tanto nas Gerações 1 como 2, muito poucos indivíduos permaneceram de facto na aldeia e na casa natal; este padrão é visivelmente o oposto do que se verifica na genealogia de Rodrigo, em que a maioria dos descendentes de Inácio lá permaneceu.
106O próprio casamento de Laura foi bastante invulgar, e o facto de ser secreto é mais um contraste flagrante com as bodas mais grandiosas dos lavradores e proprietários. O seu matrimónio foi, na verdade, a negação perfeita do ideal do grande ritual público do noivado. Realizou-se em 19 de Dezembro de 1977, às 7.00 horas da manhã, em segredo, com o mínimo de testemunhas necessárias para a cerimónia: além de Laura, estiveram Pedro (que vivia com ela), o padre e as duas testemunhas (uma das filhas de Laura e a sobrinha de Pedro, D. Sofia). Além disso, o matrimónio realizou-se muitos anos após o nascimento de todos os seus filhos. Mas porquê toda esta discrição? Um casamento ao amanhecer, sem banquete, uma cerimónia reduzida que teve lugar de madrugada, e rodeada de silêncio.
107Não estive presente à cerimónia (de facto ninguém foi convidado além do pároco e das duas testemunhas) e no dia seguinte fui informado do acontecimento pelo padre e pela filha de Laura, que me disseram que «o povo nem se dera conta do casamento». Foi-me pedido para não falar do assunto, de modo a evitar que os recém-casados ficassem embaraçados. O enlace só se tomou do conhecimento público várias semanas depois, e os comentários dos habitantes eram tanto satíricos como despreocupados. A pressão por parte do padre, bem como por parte de algumas das filhas de Laura, fez com que os dois se decidissem a casar; como nenhum dos cônjuges possui muita terra ou outros bens (cultivam uma exploração agrícola com menos de 4 hectares) existiam poucas razões materiais subjacentes ao matrimónio em relação à herança. Pedro, pai apenas das quatro filhas mais novas de Laura, já vivia há longos anos com esta numa união consensual; as suas idades à data do casamento eram impressionantes: Laura tinha 71 anos e Pedro 69.
108É de salientar que os três irmãos de Pedro também viveram em Fontelas durante algum tempo em uniões de coabitação e que ambas as irmãs de Pedro tiveram filhos ilegítimos antes do matrimónio. Uma breve visão deste grupo de irmãos vai ilustrar ainda melhor alguns aspectos das ligações irregulares existentes no grupo de jornaleiros: a Figura 18 apresenta estas relações. Primeiro, Tomásia (3c) teve o seu primeiro filho, Ambrósio (2b), dez anos antes de casar com o lavrador abastado Bento (3b), que era pai dos três filhos de Tomásia. (Recordemo-nos que Bento tinha sido pai de outro filho ilegítimo — 2a — de uma mulher de uma aldeia vizinha.) No Rol de 1940, Bento e Tomásia surgem como vivendo no mesmo fogo; contudo, por cima das palavras que referem o seu estado civil («solteiro» em ambos os casos) foi escrita a palavra «casado». Neste caso, o Rol registava explicitamente a relação legal efectiva entre os dois indivíduos: antes do seu matrimónio, em 12 de Agosto de 1943, eles não estavam de facto casados, mas antes coabitavam. É de notar que a terceira filha, Paula (2d), foi baptizada imediatamente a seguir à celebração nupcial. Uma vez mais, os documentos são extremamente detalhados e reveladores: o assento de casamento informa abertamente que, na altura da cerimónia, Tomásia e Bento reconheceram e legitimaram «os seus verdadeiros filhos».
109A segunda irmã, Liberata (3e), casou com o proprietário Lázaro (3d) após o falecimento da sua primeira mulher em 1922. No entanto. Lázaro tivera já um filho (2e) de Liberata, que também tinha estado a servir como criadita na sua casa em 1923, três anos antes do seu matrimónio; Liberata tinha 16 anos por essa altura, e 19 à data da boda. A legitimação do filho através do casamento subsequente dos pais revelou anos mais tarde a sua importância: a criança tornar-se-ia a actual professora primária da aldeia, D. Sofia. O quarto irmão, Hipólito (3i), vivia desde há vários anos com a mãe solteira Albana (3h). Hipólito tinha 65 anos em 1977 e Albana 80 (!). Também vivendo na casa de Albana encontra-se um dos seus filhos ilegítimos (2o) (de outro homem) e o jovem neto Roberto, também ilegítimo. (Note-se que a habitação — Casa 4 — foi construída por Ezequiel.) Tanto Hipólito como Ezequiel são jornaleiros, embora este último trabalhe à jeira um pouco mais regularmente do que o velho Hipólito. Não existem nenhuns termos de tratamento específicos para as relações de parentesco vigentes dentro deste grupo doméstico: só na eventualidade de Hipólito casar com Albana é que este se tornaria formalmente padrasto de Ezequiel. Já nos finais do meu trabalho de campo, Roberto deixou o fogo por algum tempo para servir de criado na povoação de Mosteiro, e entretanto Albana morria, sem que tivesse casado. Então Hipólito mudou-se para uma casa alugada noutro bairro do lugar, deixando Ezequiel, agora com 48 anos, sozinho na casa.
110Por conseguinte, três destes quatro irmãos viviam desde há algum tempo em uniões consensuais e um deles (uma criadita) casou mais tarde com o seu patrão proprietário. Além disso, três dos quatro tiveram filhos naturais antes de se casarem; nos três casos, os matrimónios legitimaram os filhos das respectivas mulheres32. Dos quatro irmãos uma casou nova, outra tarde, um muito tarde e outro nunca casou. Enquanto os dois irmãos Pedro e Hipólito foram sempre extremamente pobres, as suas irmãs Tomásia e Liberata constituem dois dos três exemplos na aldeia de criadas que treparam na hierarquia social graças a casamentos ou a adopção. O contacto mais frequente entre estas quatro famílias dá-se por altura das principais tarefas agrícolas, em particular quando o irmão de Bento, Bernardo (2c), ajuda o tio Pedro (3g), e, mais raramente, quando este lhe retribui a ajuda. As irmãs de Laura, Felizarda (21) e Catarina (2m), fazem visitas assíduas à povoação, como já vimos, quando convites mútuos são trocados por Catarina (professora primária) e a sua prima direita, D. Sofia (2e). Caso contrário, existe pouco contacto entre os fogos e os moradores comentam a sorte e esperteza tanto de Tomásia como de Liberata por terem casado «acima» em tão boas famílias. Todavia, muitos outros vizinhos mostram-se extremamente ambivalentes, e mesmo até hostis, para com estas duas mulheres que subiram da base até ao topo da hierarquia social33. O seu sucesso, não obstante, só põe mais em evidência a notória e continuada pobreza dos dois irmãos. O caso destes quatro irmãos é elucidativo por revelar a existência de padrões de ilegitimidade e uniões irregulares entre os jornaleiros, mas numa análise mais atenta descobrimos que estas características não se aplicam exclusivamente a este grupo social. É indispensável o apoio «externo» de aldeãos mais abastados; ao passo que os dois irmãos continuavam pobres, ambas as irmãs subiram na escala social através de ligações com homens do grupo dos proprietários.
111Voltando ao estudo de caso de Rufina, podemos fazer um certo número de comparações entre, por um lado, o casamento e a herança no grupo de jornaleiros e, por outro, entre os proprietários e lavradores. Mas qual a proporção das casas de jornaleiros no total dos fogos da comunidade durante estes anos? O Quadro 12 dá-nos sobre isso uma ideia nítida. A proporção global de fogos de jornaleiro era bastante elevada ao longo do período coberto pelos Róis de Confessados. A combinação do total de criados com o de jornaleiros dar-nos-á uma imagem muito mais clara das proporções dos indivíduos de cada grupo social na época. Por exemplo, em 1902, havia 92 pessoas listadas como vivendo nas 30 casas de jornaleiro; juntamente com os 14 criados, todos estes indivíduos somavam 106 num total de 184 habitantes da povoação com mais de 8 anos de idade. O grupo de jornaleiros era, assim, ainda superior ao que os números nos indicam: após 1902 este grupo compreendia bem mais de metade da população da aldeia.
112Os aspectos salientes que caracterizam os fogos deste grupo são os seguintes: são pequenos, com uma estrutura nuclear ou matrifocal com poucos irmãos celibatários co-residentes, raros casos de estruturas de tipo famille souche com dois casais, inexistência de criados, um elevado índice de coabitação fora do matrimónio e altas proporções de filhos ilegítimos. Estas características são substancialmente diferentes das apresentadas pelas casas dos grupos mais abastados; é provável que a ausência de quantidades avultadas de propriedade fundiária no grupo de jornaleiros seja um factor primordial subjacente a estas diferenças. Por exemplo, com uma exploração actual de apenas 3,16 hectares, Laura e Pedro não poderiam sustentar, pura e simplesmente, mais de um ou dois dos seus filhos. Nenhum dos filhos de Laura, nas suas visitas à casa desta, fica por mais de umas semanas; o próprio Pedro não trabalha à jeira, mas troca a sua mão-de-obra por serviços esporádicos do tractor nas suas escassas parcelas de terra, e é ajudado nas fainas agrícolas pelo sobrinho Bernardo e alguns outros aldeãos com os quais ele mantém trocas recíprocas. Neste sentido, hoje a casa de Laura depende menos de jornas do que no passado, embora o seu tamanho actual (2 pessoas) seja ainda bastante pequeno.
113Como foi dito anteriormente, aparecem com regularidade dois tipos de casas de jornaleiro nos documentos, sendo importante distinguir entre eles. O tipo nuclear, de que aqui não tratámos, confunde-se até certo ponto com a estrutura dos fogos de lavradores mais pobres: estes tinham às vezes uma estrutura de famille souche de duas unidades conjugais e compreendiam normalmente marido e mulher com filhos legítimos. Eram também maiores (por vezes 4 a 6 pessoas) do que as casas «fragmentadas» e matrifocais de mulheres solteiras como Rufina. O grupo doméstico de tipo nuclear seria mais susceptível de levantar problemas de classificação, ou de ter os seus residentes listados algumas vezes como jornaleiros e outras como lavradores. Isto é de esperar, visto que, como vimos, os jornaleiros podem alternar entre o trabalho à jorna e, noutras alturas, o cultivo da sua própria terra.
114O segundo tipo de fogo deste grupo é exemplificado pelo caso de Engrácia no Capítulo 3, bem como pelos de Rufina e Laura. Estas estruturas matrifocais sugerem laços de parentesco traçados através de mulheres e uma predominância de relações de consanguinidade sobre laços de afinidade derivados do casamento, e caracterizam-se normalmente quer pela ausência de homens quer pela presença de padrastos em vez de pais naturais. Quanto ao grupo doméstico de Rufina, a estrutura composta por uma mãe com filhos ilegítimos repetiu-se ao longo de três gerações, tendo as suas filhas e netas tido sucessivamente os seus próprios filhos bastardos. Ao contrário das posições respeitáveis das casas de jornaleiro que atingem estruturas nucleares através de matrimónios legais e da criação de filhos legítimos, estas mulheres permanecem numa situação marginal: estão em circunstâncias pouco mais lisonjeiras do que as das crianças enjeitadas (expostos) ou os mendigos.
115A posição destas mulheres dentro da escala social é algo semelhante à dos herdeiros secundários e irmãos celibatários dentro das casas abastadas: elas mantêm-se fora das linhas centrais de transmissão da propriedade e das alianças matrimoniais prestigiosas. Existe, todavia, uma diferença importante: ao passo que os herdeiros secundários nos grupos terra-tenentes podem descer para níveis inferiores dentro da hierarquia, as jornaleiras encontramse à partida já em baixo. Excluídas tanto do matrimónio como do património estas mulheres têm-se conservado nos limites da estrutura social local. Ao herdarem muito pouco das suas mães, e na maioria dos casos nada dos seus pais incógnitos, elas têm poucas hipóteses de um enlace conceituado numa sociedade que já por si retarda ou impede o casamento a uma grande proporção dos seus membros. Por vezes os filhos bastardos são posteriormente legitimados (Laura) pelo casamento subsequente dos seus pais, mas, mesmo assim, nem a cerimónia nupcial nem a esperança do status que o matrimónio traz são suficientes para os dois cônjuges jornaleiros se alcandorarem a um nível social mais elevado. À partida, as «más cartas» são detidas por eles, uma vez que o seu grupo — no conjunto — foi desde há muito excluído das fontes principais de riqueza fundiária. Um afastamento do património em terras cria, assim, as condições iniciais para a exclusão do matrimónio prestigioso: as mulheres como Laura não «herdam» mais que um papel marginal de deserdadas.
116Na falta de abundante propriedade, parecem existir poucas razões para qualquer forma de controlo de herdeiros entre os jornaleiros e, consequentemente, não deparamos aqui com as estruturas de herdeiros em competição, tão evidentes entre os dois grupos mais abastados, nem o padrão de selecção de um herdeiro favorecido. A raridade de casos de um pai ou mãe viúva residindo com um dos filhos, assim como a ausência de famille souche, são talvez indicações estruturais da ausência de propriedade fundiária à volta da qual se costumam formar tais agrupamentos. Além disso, é extremamente raro que estas famílias tenham um criado, mesmo quando não há filhos ou outros parentes co-residentes. Enquanto diversas mulheres neste grupo têm grande número de filhos, muitos destes estão continuamente a sair da casa natal como criados, trabalhadores sazonais ou companheiros de indivíduos do mesmo grupo; mais recentemente, têm emigrado permanentemente para França. Ao passo que as proprietárias (particularmente as celibatárias) acentuam por vezes o seu afastamento do processo de criação de filhos, as lavradoras e as jornaleiras tendem a ter muitos filhos através de longos ciclos reprodutivos — ao contrário das mulheres mais abastadas, as lavradoras são frequentemente admiradas por terem tido uma grande prole. Existe, porém, uma diferença crucial entre o destino dos filhos de uma lavradora e os de uma jornaleira: os primeiros normalmente mantêm-se na casa natal e trabalham na exploração agrícola; os últimos abandonam-na e procuram trabalho à jorna fora dela.
117Por outras palavras, entre os dois grupos mais abastados o património fundiário constitui o núcleo ao redor do qual giram as pretensões rivais a uma posição estratégica dentro do grupo doméstico; o herdeiro que atinge esta posição tentará idealmente evitar que a propriedade seja dispersa entre os irmãos. Mas este património é tão diminuto entre os jornaleiros que tal concorrência e selecção são quase totalmente inexistentes. Muito poucos tios, tias ou irmãos solteiros ficam nestas casas com o fim de canalizar bens, por testamento, para um herdeiro favorecido através de uma única linha de herança. De facto, uma análise preliminar dos assentos de óbito do Registo Paroquial, ao longo das décadas desde 1870, revela que muito poucos jornaleiros (homens ou mulheres) deixaram testamento. As mulheres deste grupo, por conseguinte, têm filhos continuamente, os quais serão forçados a deixar a casa natal. Enquanto entre os grupos com terra muito irmãos se mantêm durante longos anos dentro do lar natal após o matrimónio do irmão favorecido, somente para casarem muito tarde ou saírem do grupo doméstico na altura da partilha, nenhum destes aspectos se verifica nos ciclos de desenvolvimento dos fogos de jornaleiros.
118No entanto, ao contrário dos herdeiros secundários entre os grupos detentores de terra, os indivíduos deste grupo não podem compensar a sua exclusão da propriedade através da obtenção de uma ocupação respeitável, nem tão-pouco por meio de um casamento prestigioso noutra aldeia. As famílias dos dois grupos mais abastados dão grande valor ao trabalho — este tem sido predominantemente trabalho doméstico com fins caseiros. Dentro dos jornaleiros, o trabalho à jeira e como serviçais têm definido as orientações principais destas casas, e estas formas de trabalho têm sido realizadas para outrem e não em terra própria. A emigração dos anos 60 garantiu a este grupo acesso ao dinheiro (mas não directamente à terra) como forma de melhoria económica, e deu-lhe a sua única saída respeitável.
119É agora oportuno referir dois pontos relacionados com a ilegitimidade dentro do âmbito deste estudo de caso. Temos primeiro que distinguir entre três tipos principais de bastardia e, em segundo lugar, elucidar o elo entre a ilegitimidade e o «celibato» dos herdeiros excluídos. Existem três formas fundamentais deste fenómeno, que podem ser classificadas do seguinte modo:
uma relação entre uma mulher e um homem solteiro, levando (eventualmente) ao casamento e à legitimação dos seus filhos;
uma relação (ou relações) entre uma mulher e um ou mais homens solteiros, que não conduz ao casamento ou à legitimação;
a exploração de uma mulher pobre por um homem abastado (casado ou solteiro), que não leva ao casamento ou à legitimação.
120Vimos no caso de Susana e dos irmãos que o primeiro tipo de relação (a) pode também dar-se dentro do grupo de lavradores, e que, incluído neste padrão, se referiria a matrimónios com a noiva em estado de gravidez e nascimentos quase ilegítimos. Bento e a mulher Tomásia (Figura 18) também ilustram este primeiro tipo: o seu casamento e o baptismo simultâneo dos três filhos não só os legitimou mas também legalizou a sua anterior coabitação. Laura exemplifica tanto o tipo (a) como o tipo (b), visto que os seus primeiros quatro filhos (Figura 18) nasceram de pais incógnitos, sendo os restantes quatro posteriormente legitimados pelo seu pai natural, Pedro. Outro exemplo do padrão (b) é o da pequena agricultora Engrácia, cujos quatro filhos naturais nasceram de quatro pais diferentes, nenhum dos quais viveu com ela ou depois legitimou os filhos.
121Também há exemplos em Fontelas do terceiro tipo de ligação, sem dúvida a forma de ilegitimidade mais criticada pelos aldeãos. Um caso desses foi-me descrito por uma pequena agricultora, que me afirmou que tanto ela como a mãe tinham nascido ilegítimas como resultado de relações forçadas pelos seus poderosos patrões. «O que é que elas podiam fazer? O proprietário mandava nelas e podia despedi-las quando quisesse.» Esta forma de relação é frequentemente referida nos casos de criadas, e encontra-se codificada na frase «criada para todo o serviço». Muito poucas destas situações chegam ao tribunal da vila, e quando isso acontece é por via de regra nos casos de raparigas ainda legalmente sob a protecção de suas mães (ou pais); alguns também envolveram seduções ou promessas de casamento, mais tarde quebradas. Para este tipo de ilegitimidade é utilizada uma frase específica: «arranjou-lhe um filho». A frase dá a entender quer um estupro quer uma relação que implica um controlo económico por parte do homem, ao invés de um consenso mútuo entre os dois consortes: a frase é repetidamente empregue para referir homens ricos que abusaram de mulheres pobres. Porém, não descobri em Fontelas quaisquer exemplos, actuais ou recentes, do adultério quase institucionalizado referido por Cutileiro (1977:192-93) para a freguesia de Vila Velha no Alentejo, onde as trabalhadoras rurais eram encorajadas pelos seus maridos a dormir com os patrões latifundiários para poderem garantir a segurança laborai.
122É de realçar que nos tipos (b) e (c) um filho ilegítimo herda legalmente bens apenas da mãe34. Trata-se de um aspecto jurídico importante, porque revela a posição marginal dos filhos ilegítimos relativamente ao património dos seus pais incógnitos. No tipo (a), logo que os filhos sejam formalmente legitimados pelo casamento dos seus pais, gozam da totalidade dos direitos de herança aos bens de ambos. No outro extremo, no que respeita aos filhos nascidos de uma relação de tipo (b) e em particular do tipo (c), a perfilhação é extremamente rara e o vínculo social entre pai e filho muito distante35
123Entre estes dois extremos podemos encontrar um ponto intermédio. Embora raros, há casos isolados de perfilhação de um filho ilegítimo pelo pai, que contudo não vem a casar com a mãe — isto aconteceu recentemente com uma das filhas de Laura. A quinta filha de Laura, Felizarda, casou com um pequeno agricultor e taberneiro (Sebastião) em 1964, a 5 de Setembro. Antes do matrimónio, os aldeãos alertaram os noivos para os perigos inerentes a essa união: Felizarda tinha então 19 anos e pertencia a uma geração mais nova do que a de Sebastião (então com 49 anos), e este tinha já sido pai de um filho ilegítimo (Dionísio) na vila próxima (Figura 19). Algumas pessoas mencionaram a paixão serôdia e a «loucura» que «entrara na cabeça do Sebastião» ao ir espreitar a jovem Felizarda quando esta levava o rebanho a pastar. Outros afirmavam que o resultado final desta união só confirmava o dito: «homens velhos e mulheres novas sempre se dão mal». Passados alguns anos separaram-se e Felizarda deixou a povoação, indo para Bragança e levando consigo a sua filha legítima, Assunção. O caso foi a tribunal há alguns anos (por volta de 1972), e ainda não está resolvido.
124Deu-se uma série de cortes de relações após a primeira audiência, momento em que surgiram profundos azedumes entre as testemunhas de Sebastião e de Felizarda. Durante a maior parte do trabalho de campo, os pais desta, Laura e Pedro (na altura não casados), nunca mais entraram na taberna daquele (Mapa 3 — Casa 53); dois amigos íntimos dos pais de Felizarda (vizinhos de Sebastião) também cortaram relações com ele e passaram a evitar ir à sua loja, mandando os miúdos às pequenas compras. Quando se entabulavam conversas fora da taberna, sentiam-se silêncios recíprocos que os afastavam uns dos outros. Os próprios pais de Felizarda raramente passavam em frente da taberna; os membros destas casas faziam o possível por evitar contactos com Sebastião, e a relação era mais de inimizade do que de boa vizinhança.
125Uma segunda acção jurídica foi iniciada por Sebastião. Embora durante as visitas de Felizarda a Fontelas a filha, Assunção, costume passar algumas horas com o pai, este pretendia perfilhar o anterior filho ilegítimo, Dionísio. Após o reconhecimento legal de paternidade, os direitos de um filho ilegítimo ao património do pai são equivalentes a metade do quinhão pertencente a um filho legítimo. No caso da morte de Sebastião, Dionísio, se fosse perfilhado, herdaria 1/3 do quinhão pertencente a Assunção (que por sua vez herdaria metade do património e Felizarda a outra). Assim, Dionísio herdaria 1/6 do património total, e Assunção 2/6.
126Mas tentou-se outra maneira de transferir a propriedade através do divórcio. Se este fosse conseguido, uma porção maior dos bens de Sebastião reverteria a favor de Dionísio (1/3 do total do património), uma vez perfilhado, do que a favor de Assunção. Uma parte dos bens, especialmente valiosa, é a casa de Sebastião, que se encontra à entrada da povoação e magnificamente situada para efeitos de transportes e negócios. Com os anos, além de Sebastião evitar a todo o custo a mulher e respectivos parentes, as relações com o seu filho ilegítimo Dionísio e a mãe deste, que vivem na cidade, melhoraram consideravelmente; durante o trabalho de campo, esta última realizou diversas visitas a Fontelas e Sebastião foi convidado para o baptismo da filha de Dionísio realizado na vila, no papel de avô legítimo da criança. Os aldeãos lamentam o facto de Sebastião não «assentar» e (após o divórcio) não casar com a mãe do seu primeiro filho.
127O caso apresenta um padrão pouco comum de legitimação de um filho bastardo fora do laço de casamento legal. Um filho natural pode ser reincorporado num papel social «legítimo», embora um certo número de passos jurídicos tenha de ser realizado para tal se conseguir. O exemplo também ilustra a importância do acto de reconhecimento legal de paternidade para efeitos de herança da propriedade paterna por filhos ilegítimos.
128No entanto, a maior parte dos casos de bastardia deixa os filhos bastardos, na realidade, excluídos para sempre de quaisquer direitos de herança na linha paterna. Será que é possível analisar os processos de casamento e herança dentro do grupo dos jornaleiros com as mesmas directrizes com que examinámos esses mesmos processos nos grupos de proprietários e lavradores? A minha resposta é, redondamente, não. Funciona um conjunto bem diferente de estratégias, regras e padrões entre aqueles que possuem muito poucas terras, e a explicação para esta diferença reside, uma vez mais, no modo de transmissão da propriedade.
129Para explicar estes aspectos, abordemos agora o segundo ponto relacionado com a ilegitimidade: a relação entre esta e o celibato dos herdeiros excluídos. Vimos que os proprietários e lavradores costumam seleccionar um herdeiro favorecido que casa, fica na casa natal e, a longo prazo, perpetua o património da linha de família. Porém, o custo desta preferência é a exclusão dos herdeiros secundários; muitos destes são de facto os «pais incógnitos» dos filhos bastardos das jornaleiras solteiras36. Um exemplo extremamente claro é a pequena agricultora Engrácia, cujo caso já foi examinado no Capítulo 3 (ver Figura 20).
130Os quatro pais dos filhos ilegítimos de Engrácia foram os seguintes indivíduos (todos naturais de Fontelas): Pai A é um homem de meia-idade, entrevado, que vive na aldeia com a sua irmã, pequena agricultora, e o marido desta; B é emigrante em França, casado com uma mulher de uma freguesia próxima; C é emigrante em França, casado com uma filha de uma pequena agricultora de Fontelas; e D, como vimos, é o meio-sobrinho de Engrácia, hoje lavrador solteiro. Nenhum dos quatro filhos ilegítimos de Engrácia foi perfilhado e, portanto, não herdarão nada dos seus pais incógnitos: irão contudo herdar, cada um, 1/4 dos bens da mãe à morte desta.
131O que é importante frisar é que os quatro pais eram solteiros por altura das suas relações com Engrácia, e todos eles se encontravam fora das linhas principais de transmissão da propriedade dentro das suas casas natais. Além disso, nenhum deles era particularmente rico ou pobre. B e C casaram mais tarde, e ambos deixaram o povoado permanentemente. O irmão de B é também emigrante (na Alemanha), mas foi a cunhada de B que ficou no lar natal e é ela que trata do pai de B. Apesar de B e a mulher terem construído uma nova casa em Fontelas, esta será apenas um investimento para o futuro: um futuro que B construiu fora da exploração agrícola de seu pai. Do mesmo modo, não é C, mas o seu meio-irmão Eduardo, que ficou na povoação e que cuida da mãe idosa, a pequena agricultora Eufémia. Finalmente, tanto A (que está inválido) como o meio-sobrinho de Engrácia, D, vivem hoje em Fontelas como familiares dependentes: herdeiros secundários ligados aos grupos domésticos das suas irmãs, não é provável que casem ou estabeleçam novos lares que mais tarde poderiam ameaçar os patrimónios das suas casas natais.
132Por outras palavras, estes quatro pais foram excluídos, até certo ponto, das principais fontes de património dentro das casas natais; embora só dois dos quatro tenham casado, ambos abandonaram a comunidade. Os quatro são assim herdeiros secundários ao seu património familiar, e a sua vida matrimonial desenvolveu-se rigorosamente fora do contexto de Fontelas.
133A própria Engrácia manteve-se lá e ocupa uma posição semelhante à de Laura, embora a possibilidade de um casamento tardio e as suas vantagens sociais não pareçam muito susceptíveis de se concretizarem. Tal como outros herdeiros secundários dentro de fogos com ampla riqueza fundiária, a condição destas mulheres pobres e solteiras continua externa às esferas centrais do matrimónio e do património. Como grupo, as jornaleiras e os seus filhos ilegítimos são excluídos não só de casamentos prestigiosos mas também da herança: elas possuem muito pouco e dos pais incógnitos nada irão herdar. (Refiro-me obviamente à situação das jornaleiras solteiras e não à das que casam e têm filhos legítimos.) Enquanto dois dos pais dos quatro filhos de Engrácia emigraram, os outros dois (bem como a própria Engrácia) permaneceram em Fontelas, e detêm uma posição de parentes subordinados. Ao passo que esses homens continuam a depender das suas casas, por outro lado, mulheres como Engrácia ficam, por assim dizer, sujeitas a que toda a aldeia as auxilie com donativos, piedade e diversas formas de ajuda económica. O resultado desta situação assimétrica, que coloca mulheres como Engrácia e Laura numa condição totalmente oposta à das proprietárias, é a reprodução ao longo das gerações de um grupo de mulheres marginalizadas, de baixo estatuto, sobrecarregadas com a produção de um excedente de filhos excluídos.
134Uma jornaleira, na maioria dos casos, mantém a humilde posição da mãe, que era já — frequentemente — filha ilegítima de outra jornaleira. Esta estrutura reproduz-se através das gerações: os seus filhos bastardos herdam, por sua vez, ainda mais marcas sociais de isolamento. O termo universalmente empregue para referir os filhos ilegítimos (zorro ou zorra) tem um sentido duplo: primeiro, dá a ideia da personalidade «maliciosa» desses indivíduos, e é assim de facto que muitos adultos vêem as actividades destes: com o fito em qualquer tipo de «malandrice». O segundo significado de zorro é «raposa», sugerindo a posição de excluído e de «sub-humano» do filho bastardo. Ambos os sentidos frisam o estatuto de marginalidade dos filhos naturais, não só na estrutura social onde eles são moralmente mantidos à margem mas também dentro de uma casa e família fragmentadas, na qual os seus direitos aos bens ou são parciais ou inexistentes. Hei-de voltar a referir o termo zorro no Capítulo 7, mas é importante notar, nesta altura, a relação íntima entre o significado negativo da palavra e a sua quase total ligação com o grupo dos jornaleiros. Tal como os herdeiros secundários entre os grupos detentores de terra, as jornaleiras e os seus filhos bastardos ficam banidos tanto do matrimónio como do património, mas não do «amor ilícito» (Laslett 1977) ou da reprodução biológica.
135O predomínio deste padrão de relações sexuais irregulares entre indivíduos excluídos não nega a ocorrência da exploração de mulheres pobres por homens abastados; tais casos não fazem senão confirmar a existência de uma hierarquia social que confere um estatuto elevado (e quase inabalável) aos homens ricos, e uma posição inferior e bastante débil às mulheres pobres. Porém, não penso que esta forma de relação seja suficiente para explicar as proporções extremamente altas de ilegitimidade em Fontelas (Quadro 18); pelo contrário, não só o padrão de herança preferencial como também a protelação generalizada do matrimónio explicam aquele facto. Ambos estes factores (o casamento tardio e a escolha de herdeiros favorecidos) implicam necessariamente a exclusão de muitos aldeãos da aquisição de terras e de uma posição marital favorecida. Isto é, são os tipos (a) e (b) de ilegitimidade, acima apresentados, que revelam que o padrão subjacente de bastardia está relacionado com uma forma específica de herança, e não unicamente com a exploração de mulheres pobres por patrões abastados. Não são, pois, os casos isolados de exploração de criadas pelos proprietários que condicionam as taxas de ilegitimidade anormalmente elevadas desta comunidade, mas antes o próprio sistema de herança, que gera a reprodução social de um «grupo bastardo» ao longo das gerações.
136Um exemplo perfeito deste processo de selecção é o da jornaleira Rufina, anteriormente abordado. É agora possível mostrar o modo como o segundo estudo de caso acima referido (Secção b deste capítulo) se relaciona directamente com o de Rufina; esta era irmã de João Pires da Silva e, portanto, tia de Susana por linha paterna (Figura 21). Enquanto o nosso segundo estudo de caso tratava dos descendentes do lavrador João (Figura 15), atentemos agora nos laços entre este e a irmã Rufina. Tínhamos verificado que três daqueles cinco irmãos casaram e tiveram filhos, ao passo que Rufina e Vítor ficaram solteiros: vimos também que Rufina teve quatro filhos ilegítimos, e que Vítor morreu solteiro e sem prole. É interessante verificar quais eram as ocupações destes irmãos tal como aparecem nos Róis de Confessados e no Registo Paroquial: João mantém-se sempre lavrador ao longo das listas, e Eulália e o marido, tal como Vítor, são normalmente registados como jornaleiros. Contudo, Gualter e a mulher estão registados como lavradores em 1883, por altura do nascimento do seu primeiro filho, mas como jornaleiros em 1889 e 1892, quando nasceram os outros. Igualmente, a própria Rufina aparece listada, na altura dos nascimentos dos seus filhos, como lavradora (1877) e depois como cabaneira (1882); esta mudança parece ter constituído uma «queda» drástica na escala social. A partir da data do primeiro Rol de Confessados (1886), Rufina aparece sempre como jornaleira. Por outras palavras, se, desta vez, quisermos confiar na precisão relativa dos registos de ocupações feitas pelos diversos padres, dois destes cinco irmãos mantiveram-se jornaleiros, ao passo que outros dois desceram na hierarquia social, da ocupação de lavrador para a de jornaleiro; pelo contrário, o irmão mais velho (João) manteve-se sempre como lavrador.
137Poderia Rufina e os outros irmãos terem sido «afastados» da linha de transmissão de propriedade da casa dos seus pais? Os documentos sugerem de facto tal acontecimento, se acrescentarmos mais dois elementos. Primeiro, o Lançamento Parochial de 1892 regista somente três destes irmãos, e cada um com montantes muito diferentes de rendimento colectável. Enquanto o lavrador João possuía um rendimento colectável de 9960 réis (ao fundo, na Figura 21), o marido de Eulália possuía apenas 2400 réis e o irmão mais novo de João, Gualter, um valor ainda mais pequeno de 1910 réis. Rufina e Vítor não aparecem sequer na lista.
138Todavia, mesmo na altura do primeiro Rol, os cinco irmãos residiam em fogos diferentes e, tal como vimos, a casa de João era bastante grande e capaz de sustentar os seus seis filhos por um longo período de tempo. Mas um factor crucial é a data de falecimento de cada um dos pais destes irmãos — Carmelinda morreu em 1874, mas José morreu sete anos mais tarde, em 1881. É razoável pensar que Rufina era, de facto, uma lavradora na casa natal em 1877, antes da morte de seu pai; porém, em 1882, após a morte do pai, Rufina aparece na lista como «cabaneira» e a partir de 1886 como jornaleira. Será que a partilha da exploração de José e Carmelinda se efectuou a seguir à morte dele em 1881? É bastante provável; contudo, a ausência de assentos de Registo Paroquial referentes a anos anteriores a 1870, bem como a não inclusão de documentos notariais nesta análise, impedemnos de ser categóricos sobre esta série de eventos. No entanto, as ocupações e datas são sugestivas: a maior parte do património da casa natal conservou-se na linha de transmissão através de João e não através dos outros quatro irmãos mais novos.
139Num trabalho sobre os costumes de herança na região do Sudoeste de França, o historiador francês Le Roy Ladurie salientou as diferenças regionais entre as partilhas igualitárias de propriedade no Noroeste e as divisões preferenciais no Sul. É aqui particularmente relevante uma citação desse ensaio:
«O pater famílias occitânico utiliza, para evitar a fragmentação, a liberdade de beneficiar — o préciput — a doação entre vivos e o absolutismo testamentário do direito escrito; tudo isto se destina, no final de contas, a tornar maior a parte de um dos filhos, que não é necessariamente o mais velho. Este descendente privilegiado adquirirá assim a quase totalidade da terra ou da parcela familiar (muitas vezes depois de um período de co-residência em vida de seus pais), enquanto os outros filhos se deverão contentar com dotes mais ou menos recheados, de migalhas testamentárias, ou com uma ‘legítima’ que não é mais do que a reserva habitual de alguns ceitis (sous). A partir daqui, estes filhos desprivilegiados correm o risco de cair no proletariado se provêm do povo, ou numa carreira eclesiástica se advêm das classes médias ou superiores» (Le Roy Ladurie 1976:62-3).
140Se bem que as instituições formais de transmissão da propriedade premortem através de dotes ou do préciput francês se encontrem ausentes nesta região de Portugal, e os testamentos a favor de um herdeiro privilegiado não sejam muito comuns, a maior parte dos meus dados aponta para a ocorrência das mesmas formas de preferência e de exclusão descritas por Le Roy Ladurie para o Sul de França. Este processo de selecção funciona ao nível da praxis das estratégias concretas de casamento e herança, e é posto em prática em momentos cruciais de conflito potencial entre herdeiros.
141Dá-se a escolha de um herdeiro favorecido apesar da regra formal de partilha equitativa, e os seus resultados são abrangentes. No caso que descrevi, de facto, Rufina «caiu no proletariado»; além disso, tanto os filhos como os netos aí se mantiveram, e o ciclo completo só se quebrou quando, nos anos 60, os filhos de Laura conseguiram abandonar a aldeia como emigrantes. Uma vez mais, a linha principal de transmissão da propriedade na geração de Rufina foi dirigida através de um herdeiro (o lavrador João) enquanto os quatro irmãos deste foram afastados em maior ou menor grau. Para alguns, esta exclusão não significou necessariamente a impossibilidade de casar ou de formar uma nova família, mas para outros (Rufina) constituiu uma descida para a parte mais baixa da hierarquia social.
142Entre os jornaleiros existem poucas razões para a selecção de um herdeiro favorecido, uma vez que as quantidades de bens possuídas por este grupo são tão escassas. Assim, muitos dos jornaleiros encontram-se efectivamente fora da corrida para o matrimónio e a propriedade, visto que, desde o princípio, detêm as «más cartas»; as estratégias não se dirigem pois para a conservação do já reduzido património, nem tão-pouco para a criação de um grande grupo de trabalho composto por muitos filhos, que de qualquer forma um fogo de jornaleiro seria incapaz de sustentar. Em tempos, as estratégias desenvolvidas pelos jornaleiros poderiam ter tido como objectivo jornas garantidas ou boas relações laborais com os proprietários abastados; um campo alargado de casas que oferecessem trabalho poderia assegurar emprego a jornaleiros nas principais tarefas agrícolas, o que seria garantia de jornas relativamente estáveis. Mais recentemente, as capacidades dos membros deste grupo em manipular as suas já limitadas opções de vida à partida têm-se orientado para a saída definitiva da povoação, tendo em vista conseguirem um trabalho permanente em França.
143Contudo, para as jornaleiras, este caminho não é tão fácil; num status subalterno, estas mulheres formam a «válvula de escape» para os herdeiros masculinos incapazes de obterem melhores posições dentro das suas casas natais. Como nos demonstrou o caso de Rufina e dos seus descendentes, o estatuto inferior das jornaleiras pode vir a reproduzir-se no decorrer das gerações através de uma linha completa de mães de bastardos. Este baixo estatuto confirma que na hierarquia social existe uma separação entre aqueles que possuem terras e aqueles que são forçados a vender a sua força de trabalho; mas também revela uma estrutura de herança que, embora garantindo uma igualdade formal entre todos os consortes, persiste em separar os poucos escolhidos dos muito desfavorecidos. A tensão estrutural (nos grupos abastados) entre as forças antagónicas do matrimónio e do património só se resolve através de uniões ilícitas dos herdeiros masculinos excluídos com jornaleiras pobres.
144O autêntico «celibato» é unicamente reservado para as mulheres dos grupos mais ricos, enquanto um grande número de homens solteiros (normalmente herdeiros secundários) tem relações com um pequeno grupo de jornaleiras solteiras; é este excesso de herdeiros excluídos que constitui de facto os pais incógnitos dos filhos ilegítimos. Sob a aparência da igualdade jurídica de consortes esconde-se a desigualdade rígida na herança: esta disparidade entre herdeiros é espelhada pelo fosso social mais amplo que separa os dois grupos abastados em terra do dos jornaleiros. No fundo, os «herdeiros» desta desigualdade estrutural generalizada são o grupo marginal das mulheres pobres e seus filhos bastardos.
***
145Nos três estudos de caso examinados neste capítulo concentrei-me quase exclusivamente na estrutura interna de três grupos domésticos ao longo de várias gerações. Existe um perigo neste tipo de análise «hermética» de fogos específicos: as casas e os seus residentes podem surgir meramente como unidades isoladas dentro do sistema social mais global do qual fazem parte. Os principais elos entre uma dada casa e a estrutura social mais ampla podem permanecer ocultos a este tipo de investigação detalhada e microscópica de elementos parcelares. Por exemplo, segui os ciclos de desenvolvimento destas três famílias de 1886 até 1909, mas depois saltei da lista de 1909 para a de 1940 e de novo de 1940 até ao presente etnográfico de 1977: é óbvio que podem ter ocorrido mudanças significativas na estrutura do fogo entre as datas para as quais possuímos fontes documentais. Nesta ordem de ideias, a análise anterior pouco nos disse sobre as relações entre as casas, e menos ainda sobre as condições sociais e económicas gerais fora da aldeia, que sem dúvida a afectaram de uma maneira ou de outra em diversas alturas.
146Em parte, a explicação para isto reside na natureza dos documentos estudados e, por outro lado, na forma específica de pesquisa adoptada pelo autor. Primeiro, ao longo deste capítulo as fontes foram deliberadamente examinadas em tal pormenor que não só foi revelada a sua utilidade mas também as suas imperfeições; apesar das incorrecções e incongruências no que respeita a nomes, idades e ocupações, os Róis de Confessados e o Registo Paroquial, em conjunto, oferecem uma série ímpar de documentos sequenciais para a observação das alterações, ao longo dos anos, da estrutura dos grupos domésticos. Contudo, estas fontes eclesiásticas não são muito explícitas quanto à estrutura económica, política ou administrativa das freguesias vizinhas da zona. Se bem que alguma especulação e dedução seja indispensável para entrarmos em pormenores da sua interpretação, a linha básica da minha análise utiliza as fontes para confirmar a existência, em Fontelas, de uma sociedade hierarquizada em três grupos sociais principais37. Alguns elementos muito diferentes da estrutura do grupo doméstico, estratégias matrimoniais e processos de herança caracterizaram as três linhas de família de um proprietário, de um lavrador e de uma jornaleira; as características para cada grupo mantiveram uma continuidade surpreendente durante várias gerações, e foram utilizados materiais etnográficos juntamente com documentos para confirmar este processo. Ao passo que os capítulos anteriores nos revelaram desigualdades ao nível da aldeia entre grupos sociais com grande riqueza fundiária e aqueles com pouca, este capítulo concentrou-se nas desigualdades entre os herdeiros ao nível da casa.
147Em segundo lugar, tentei conscienciosamente empregar uma só forma de exploração dos dados históricos e não duas. Nesta linha trabalhei dentro do âmbito do «estudo de comunidade», de modo que limitei severamente a amplitude da população de amostra. Tal como foi dito no Capítulo 1, não se fez nenhuma tentativa pormenorizada para inserir esta comunidade dentro de um contexto regional ou internacional mais vasto desde fins do século xix; isto não significa que considere isso desnecessário ou inútil, mas antes que os materiais estudados são menos apropriados para este tipo de análise do que para o do estudo de comunidade. Penso que uma investigação dos laços que ligam Fontelas a contextos mais amplos não iria contradizer grande parte das conclusões aqui obtidas.
148Todavia, gostaria de sugerir que o modelo da monografia de comunidade pode ser modificado e alargado através da incorporação da dimensão tempo38. O «método das gerações» aqui adoptado mostrou-nos quão reveladora esta dimensão temporal pode ser; é pois um tipo particular de documento histórico local (séries contínuas de Róis de Confessados e de Registos Paroquiais) que foi utilizado para perspectivar os padrões de casamento e herança recuando até ao passado. A análise aqui proposta deverá ser vista como um passo em frente para a incorporação, na Antropologia Social, de uma das suas disciplinas afins (mas esquecidas) — a História Social (Davis 1977:239-51); no decorrer da pesquisa, esta sugestão esteve implícita, mas antes do próprio estudo já eu escolhera métodos de investigação que uniam a Antropologia e a História. Em vez de levar a cabo um estudo de campo puramente sincrónico, focando em exclusivo o presente etnográfico, tentei introduzir a referida dimensão temporal para o modelo do estudo de comunidade.
Notes de bas de page
1 O quarto grupo social (o dos lavradores abastados) apresentava um pequeno problema: as casas neste grupo assemelham-se, em termos de estrutura e ciclos de desenvolvimento, tanto às dos proprietários como às dos lavradores. Por razões de brevidade, apenas tratei neste capítulo de três fogos típicos: portanto, o leitor poderá presumir que, até certo ponto, as estruturas dos grupos domésticos de lavradores abastados se interligam com os outros dois grupos.
2 Existem 15 Róis de Confessados arquivados na sacristia da igreja paroquial de Mosteiro, cobrindo os anos de 1886, 1888, 1891, 1892, 1894, 1895, 1896, 1898, 1899, 1902, 1906, 1907, 1908 e 1909. Foi-me impossível determinar se outros Róis se tinham perdido, se se encontravam arquivados noutro local ou se simplesmente nunca foram compilados.
3 Refiro-me obviamente apenas às obras publicadas sobre as comunidades da Europa Meridional em Antropologia: existe um certo número de análises de Róis de Confessados e de outras listas de fogos semelhantes em Peter Laslett (1972) bem como em outros trabalhos de Demografia Histórica. Há também referências a Registos Paroquiais no estudo de Lisón-Tolosana sobre uma vila espanhola (1966), mas as fontes eclesiásticas só por si não constituem a preocupação principal da análise desse autor.
4 Mudei praticamente todos os nomes dos indivíduos que constam dos Róis de Confessados e do Registo Paroquial e substituí-os por pseudónimos. No entanto, os pseudónimos são, até certo ponto, reais, uma vez que foram seleccionados a partir dos nomes de outras pessoas pertencentes às restantes povoações da freguesia, assim como de um estudo demográfico da autoria de Norberta Amorim (1973) sobre os Arquivos Paroquiais (dos séculos xvii e xviii) de uma aldeia do mesmo distrito. Pôs-se sempre o maior cuidado na reprodução do número e da ordem dos nomes; por exemplo, ao autêntico Manuel Alberto dei o pseudónimo de João António, mas em todas as ocasiões em que ele aparece somente como Manuel fi-lo aparecer também unicamente como João. É frequente aparecerem indivíduos só com o nome próprio numa lista mas por vezes com o apelido noutra. Desta forma, para além de trocar os nomes, o verdadeiro modo como os vários padres escreveram os nomes das diferentes pessoas está exactamente reproduzido.
5 Os Róis não informam onde estes criados viviam: foi-me dito durante o trabalho de campo que por vezes moravam dentro da própria casa do patrão ou. alternativamente, em edifícios contíguos; mas, não obstante o seu local de residência, os serviçais trabalhavam dentro das habitações dos patrões e aí tomavam sempre as refeições. Eles eram pois membros residentes do household, para se diferenciarem dos hóspedes que faziam parte da unidade física mais vasta, chamada a houseful (Laslett 1972:34-9), utilizando unicamente parte dos aposentos da casa para dormir. Os criados faziam, pois, para todos os fins, parte integrante do grupo doméstico dos patrões: enquanto nalguns casos poderiam dormir em edifícios adjacentes, participavam em duas das principais características da «casa», tal como é definida por Goody (1972:11 1-22): trabalhavam e comiam juntamente com os patrões (ver Nota 15 do Capítulo 1).
6 As incongruências nas idades, particularmente nas dos criados, levantam problemas constantes nos Róis de Confessados e deverão ser confrontadas, sempre que possível, com os assentos de baptismo respectivos no Registo Paroquial. Isto. contudo, não é sempre praticável, uma vez que nem todos os serviçais residentes em Fontelas numa dada altura poderiam ter nascido lá necessariamente, mas sim em aldeias vizinhas; deste modo, os seus assentos de baptismo não aparecerão no Registo Paroquial de Mosteiro.
7 Inclui-se uma descrição pormenorizada do Registo Paroquial no Apêndice III, juntamente com algumas amostras de assentos de baptismo, casamento e óbito.
8 Tal como o primeiro matrimónio de Rodrigo, este também não foi registado no Registo Paroquial de Mosteiro. É costume nesta região serem os pais da noiva a oferecer o banquete de casamento; nos casos de matrimónios entre cônjuges de aldeias distintas, a boda normalmente realiza-se ou na capela (ou igreja) da povoação da nubente, ou na igreja paroquial respectiva. Isto pode explicar a ausência deste assento de casamento no Registo Paroquial de Mosteiro: seria lavrado no da paróquia da noiva de Rodrigo.
9 Todos os assentos de óbito do Registo Paroquial mencionam explicitamente se o falecido «recebeu os sacramentos» ou não. Em muitos casos, sobretudo naqueles que referem mortes súbitas de crianças, o assento especifica que os sacramentos foram administrados por outra pessoa que não o pároco; muitos destes baptismos laicos foram administrados pelas mães em consequência do filho se encontrar em perigo de vida, o que pode ter sucedido poucas horas ou até alguns meses após o nascimento da criança. Vários outros morreram sem sequer terem recebido os últimos sacramentos, quer laicos quer eclesiásticos. Um caso extremo aconteceu em 1875 em Mosteiro, quando Manuel Pires, de 49 anos, e o seu filho de 16 anos não receberam os sacramentos «... por falecer repentinamente debaixo das ruinas da sua casa que se desavou sobre elle...».
10 Desde 1940 até 1945, os 72 assentos de óbito do Registo Paroquial incluem notas acrescentadas pelo pároco sobre a causa do falecimento. Estes são os únicos anos em que isto foi feito, mas, infelizmente, o P.e Lopes e o P.e Jerónimo não incluíram durante estes 6 anos a idade dos defuntos na altura das respectivas mortes. Houve uma série de casos de apoplexia, pneumonia, tuberculose, velhice, «febre intestinal» e «raquitismo», bem como um caso de uma mulher que morreu durante o parto e de outra (uma criada) que morreu de sífilis. Quando me informei na Conservatória do Registo Civil na vila próxima acerca destas anotações, a funcionária em questão riu-se, dizendo-me que não seriam mais do que simples suposições dos padres sobre as autênticas causas da morte.
11 Uma vez mais, encontramos o problema de sobreposição entre as ocupações de proprietário e lavrador. Inácio aparece listado consistentemente como lavrador em todos os Róis, mas os seus pais, assim como os da mulher, aparecem algures (nos assentos do Registo Paroquial) como proprietários. Além disso, o bisneto de Inácio é o actual padre de Fontelas: o epítome do grupo de élite constituído pelos proprietários abastados. A diferença em rendimento colectável entre Inácio e Rodrigo pode obviamente indicar que estas ocupações tinham menos a ver com verdadeiras diferenças em riqueza do que com a actividade efectiva de cada lavrador em termos de «trabalhar a sua própria terra» ou contratar criados.
12 A partir de agora utilizarei o termo «herdeiro», por uma questão de conveniência, para designar tanto herdeiros do sexo masculino como herdeiras do sexo feminino. A herança e o cômputo do parentesco em Fontelas são estritamente bilaterais, e não existe qualquer preferência legal quer por herdeiras quer por herdeiros; voltarei a este assunto no Capítulo 7.
13 Dois documentos permitem-nos confirmar este ponto. Primeiro, nos assentos de baptismo do Registo Paroquial não aparece nenhum filho de Madalena entre a altura em que ela casou com Rodrigo (1891-2) e a data do seu falecimento (1899). Em segundo lugar, o assento de óbito de Madalena informa concretamente que ao morrer «não deixou filhos».
14 Poria dúvidas, nestes casos, em considerar a residência virilocal como regra, visto que muitos casos de residência uxorilocal e natolocal (Capítulo 6) são também evidentes a partir de uma análise das genealogias que recolhi. Por exemplo, no fogo de Cândido (1909) ambas as filhas, Manuela e Margarida, casaram mais tarde com proprietários de outras aldeias que vinham residir uxorilocalmente em Fontelas. Só um estudo completo de todos os casamentos registados no Registo Paroquial, utilizando métodos mais detalhados de reconstituição de famílias, nos daria uma série definitiva de estatísticas. Nesta altura, queremos dar apenas uma sugestão de tal método.
15 O termo estratégia deriva directamente dos trabalhos de Pierre Bourdieu sobre o Sudoeste de França (1976) e Kabylia na Argélia (1977). Porém, o termo tem dois inconvenientes: primeiro, sugere um certo «militarismo» de tácticas estratégicas e, em segundo lugar, pode implicar uma ênfase excessiva sobre o comportamento de indivíduos, vistos como pessoas isoladas que «maximizam» todas as suas opções. O sentido que lhe é dado por Bourdieu não sugere, em última análise, nenhuma destas interpretações possíveis, mas é antes utilizado como meio de fazer a ligação e a mediação entre dois níveis (a escolha individual e a estrutura social) sem acentuar excessivamente qualquer um deles.
16 A casa de Inácio, contudo, não manifesta este processo; ao longo do seu ciclo de desenvolvimento visível através dos Róis, residiam vários criados no fogo juntamente com um grande número de filhos de Inácio (ver Rol de 1909).
17 Um comentário interessante feito pelos aldeãos ao longo do trabalho de campo foi o seguinte: «Senhor Brian, porque é que não casa com a D. Sofia ou com a irmã do padre, a D. Prudência? São ambas educadas, e têm muitas terras». Quando sorria a estes comentários em consequência da idade de D. Sofia ser de 53 anos e a de D. Prudência de 42 (na altura do trabalho no terreno eu tinha 26-28 anos), os habitantes insistiam que em Fontelas «casa-se não apenas com uma pessoa mas também com as suas propriedades».
18 John Davis (1973) faz uma abordagem excelente deste problema no seu estudo da vila de Pisticci no Sul de Itália. Davis afasta o argumento simplista que considera que a herança por partilhas reduz inevitavelmente a dimensão das propriedades através de sucessivas gerações. Além das propriedades não serem sempre divididas, dá-se também uma vasta série de processos de consolidação da terra que, como consequência, contrabalançam parcialmente o efeito das partilhas.
19 Não posso deixar de notar o adjectivo na frase «exclusão relativa», dado que, obviamente, estes irmãos solteiros (alguns dos quais casam mais tarde) continuam a manter direitos legais sobre a sua parte do património. Mas logo que o herdeiro favorecido se estabelece e começa a ter filhos, o seu controlo efectivo do património e das actividades da casa eclipsa os papéis reduzidos dos outros irmãos; decerto que estes não são totalmente excluídos, mas tão-só relegados para posições secundárias dentro do grupo doméstico. Voltarei a este assunto no Capítulo 7.
20 António ocupa uma posição bastante estranha ao longo dos Róis; a sua ordem de nascimento muda constantemente e é frequente que a sua idade seja inconsistente de um Rol para outro. Se bem que nos primeiros Róis (a partir de 1886) ele aparecesse listado como o segundo mais velho, o seu nome encontra-se de facto escrito sob os dos irmãos mais novos (??). Até 1892 ele é o segundo irmão a partir do mais velho, mas em 1898 já é o quinto; estas variações em idade foram reproduzidas precisamente da maneira como surgem nos Róis (embora não fosse possível explicá-las). O Registo Paroquial de baptismos, fonte sempre mais segura para idades exactas, apresenta António como o quinto irmão por ordem de nascimento.
21 Sao evidentes duas incongruências de idades nestes Róis: a idade listada de Damásia de 27 anos nao corresponde totalmente às idades apontadas em 1899 e mais tarde em 1907 e a idade de António de 1906 até 1907 salta de 32 para 38 anos.
22 O nome de Maria mudou de «Maria Pires» durante o período entre, 1895 e 1902 para «Maria de Carvalho» em 1905 e 1906; isto pode ser consequência de ter sido o P.e Melo que compilou os Rois daqueles dois últimos anos. Também em 1905, Jorge aparece listado não só como chefe de família mas também como o irmão mais velho, embora nos Róis anteriores ele surja como um dos irmãos mais novos. A mudança dos padres, acontecida em 1905 e 1906 pode, porventura, explicar estas discrepâncias.
23 Nenhum dos filhos ou netos de Susana e Facundo vivem actualmente em Fontelas.
24 Normalmente nos casos de nascimentos ilegítimos, a frase «pai incógnito» é utilizada para referir a paternidade do filho. Neste exemplo, o assento de baptismo regista Facundo como o pai legítimo do filho porque o baptismo se realizou imediatamente após o casamento de Facundo e Susana; por conseguinte, embora a criança fosse tecnicamente «ilegítima» durante duas semanas, à data do baptismo foi formalmente legitimada pelo matrimónio dos seus pais.
25 Isto é, «muito»
26 Embora um certo número de mulheres use hoje a pílula como forma de contracepção, oi-me dito que, outrora, a maneira mais comum de controlo de nascimentos em Fontelas era o de coitus interruptus.
27 Voltarei a focar este ponto no Capítulo 7. mas neste momento pretendo salientar que a ilegitimidade poderá não estar ligada unicamente ao papel forte (ou fraco) da Igreja ou à personalidade de determinados padres. Existe uma tradição de anticlericalismo em Fontelas, embora esta povoação seja de longe uma comunidade católica na qual a maior parte dos aldeãos demonstram pelo menos o mínimo de respeito para com a Igreja; tal facto pode ser confirmado pela presença regular na missa, a participação nas festas dos santos padroeiros e a tácita aceitação das cerimónias religiosas que acompanham os baptismos, casamentos e funerais. A minha tese propõe que, apesar do papel muito mais activo que a Igreja tem aqui do que em Vila Velha (Cutileiro 1977), as elevadas proporções de ilegitimidade estão, no nosso caso, ligadas a um modo específico de transferência da propriedade que atrasa ou, em última instância, impede o casamento de muitos dos habitantes da aldeia.
28 Na maioria dos casos, esta fórmula de pai incógnito é explicitamente referida no assento de baptismo, mas é um termo exclusivamente legalista, e pouco tem a ver com os valores morais expressos pelos aldeãos na vida quotidiana. Obviamente, a identidade do pai pode de facto ser conhecida pelo padre e, geralmente, no que respeita à ilegitimidade em Fontelas, toda a comunidade sabe quem são os pais «incógnitos» dos filhos bastardos.
29 Por vezes existe um assento de baptismo no qual se refere o nome do pai de um filho bastardo; trata-se normalmente de situações em que os pais da criança coabitavam ou pretendiam casar, e nos quais um posterior matrimónio legitimou o filho. Aconteceu em Fontelas um caso particularmente revelador de paternidade registada em 1729, e que se referia à filha ilegítima que nasceu de uma mulher dessa mesma aldeia — o pai foi explicitamente indicado como sendo «Padre B.» pelo pároco que compilou o Registo Paroquial (Padre C.). Tais casos de padres, que são registados como pais dos filhos naturais de criadas ou mulheres pobres, são muito raros, embora hoje se contem várias piadas e ditos sobre o assunto.
30 É difícil seguir as mudanças de residência de criados, uma vez que muitos deles, trabalhando em casas abastadas, eram listados apenas com o nome próprio, o que toma problemática a sua completa identificação.
31 Deparamo-nos agora com uma outra relação irregular — o caso do filho de Libânia, Vilfredo. Após o falecimento desta em princípios de 1978, a aldeia falava muito da ligação de Vilfredo com uma pequena agricultora de Fontelas, ela própria mãe solteira de sete filhos ilegítimos de quatro pais diferentes. Se bem que aquele viva sozinho, a sua «namorada» Lucrécia reside com os seus dois filhos mais novos numa pequena casa no extremo oeste da povoação (Mapa 3 — Casa 2): embora se não trate de uma relação de coabitação, Lucrécia é vista frequentemente a entrar ou a sair do lar de Vilfredo. Os habitantes gozam com a perspectiva do seu matrimónio — ele tem 38 anos e ela 50 — e, comparando o «casal» com os outros quatro «casais» de Fontelas que actualmente moram juntos em uniões consensuais, os aldeãos comentam que «são ‘casados’ da mesma maneira».
32 É lógico que Pedro só legitimou as suas quatro filhas e não os quatro filhos anteriores de Laura, de pais incógnitos. Estes filhos mais velhos mantêm-se legalmente ilegítimos (embora as suas irmãs mais novas fossem formalmente legitimadas pelo seu pai), mas a sua relação social com Pedro é referida na aldeia como de «padrasto» para «filharascas».
33 Tal como a atitude para com o meeiro Fortunato (que também subiu do nada), a ambivalência destes aldeãos em relação a estas mulheres que trepam na vida é outro indicador do poder de uma hierarquia social que confere mais importância ao facto de se possuir terra herdada do que ao status alcançado pela compra de terra. Assim, os moradores fizeram notar repetidamente que essas mulheres «não são realmente proprietárias, porque não nasceram nesse grupo».
34 Após a Revolução de 1974, foi efectuado um certo número de alterações substanciais ao Código Civil de 1966 (ver Código Civil Português 1977). Muitas destas mudanças foram de grande alcance e, no caso das heranças, proporcionaram uma posição muito mais favorável ao cônjuge sobrevivente do que anteriormente. Legalmente, a existência de filhos «ilegítimos» desapareceu completamente; todos os filhos, quer legítimos quer ilegítimos, compartilham agora de direitos estritamente iguais em relação ao património do pai e da mãe. Muito poucas destas alterações jurídicas, contudo, foram percebidas como tal em Fontelas durante o meu trabalho de campo, e estão a ser implementadas muito lentamente; para grande parte do período considerado nesta obra (1870-1978) as referidas mudanças legais não se aplicam. Estas alterações na lei nacional, e a sua articulação com o direito consuetudinário nas comunidades rurais como Fontelas, constituem certamente um assunto fascinante.
35 Esta é a situação normal, mas há excepções. Uma mulher em Fontelas teve um filho ilegítimo de um condutor de camionetas alguns anos atrás; o pai casou mais tarde com outra mulher na capital distrital, mas a mãe da aldeia não cortou relações com ele por completo. Se bem que a mãe e o pai «não se falam», a criança vai à escola na cidade onde vive o pai, passando os dias da semana com ele e com a «madrasta», e os fins-de-semana (bem como o Verão) com a mãe em Fontelas.
36 Decerto, nem todos os pais incógnitos são herdeiros secundários de fogos de proprietários ou lavradores: muitos casos de ilegitimidade também resultaram de uniões entre jornaleiras e jornaleiros solteiros.
37 Uma vez mais, devido a restrições de espaço, não incluí um estudo de caso de um fogo de lavrador abastado, mas tal facto não deve implicar que a hierarquia tripartida examinada neste capítulo seja de algum modo inconsistente com os quatro grupos sociais, analisados anteriormente no Capítulo 3 e ao longo do resto do estudo.
38 Da maior importância aqui são os trabalhos de três antropólogos sobre várias dimensões de «tempo», cada um com o seu mérito próprio: Lisón-Tolosana (1966), Bourdieu (1976/1977) e Macfarlane (1977).
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