Capítulo 4. Trabalho cooperativo
p. 145-202
Texte intégral
1Este capítulo vai abordar a organização do trabalho agrícola em Fontelas. Ressaltam claramente dois aspectos neste domínio da vida social: primeiro, um enorme número de tarefas que exigem o recrutamento de mãode-obra para além dos membros de cada grupo doméstico; em Fontelas a «casa camponesa auto-suficiente» não existe. O segundo aspecto refere-se às trocas desiguais de trabalho por altura das principais colheitas. Cada um destes assuntos será tratado separadamente.
2Em primeiro lugar, a Secção a) mostrar-nos-á o ciclo anual de produção e as formas de trabalho doméstico onde intervêm apenas os membros de cada agregado familiar; será feita uma referência breve ao «trabalho recíproco simples» que compreende pequenos grupos de trabalho com alguns ajudantes recrutados de outros fogos. A Secção b) trata depois dos grupos para trabalhos comunais que se organizam para efectuar reparações julgadas necessárias nos bens de propriedade comunal. Na Secção c) faremos a descrição de duas fainas de considerável dimensão e importância, que requerem uma coordenação complexa de trabalho, de tempo e da rotação de turnos casa por casa; trata-se neste caso de exemplos de formas intermédias de entreajuda, situadas entre os dois níveis extremos da casa e da aldeia. Por último, na Secção d) será formulada uma questão analítica que se refere a todas estas três formas de cooperação agrícola: até que ponto podem as trocas de trabalho, em Fontelas, ser consideradas «igualitárias»? Será que estas trocas revelam estruturas subjacentes de hierarquia social e desigualdade?
a) Trabalho doméstico
3Em Fontelas, cada casa defronta-se com problemas de índole comum no que respeita à produção agrícola, e que são os mesmos nesta zona de Trás-os-Montes; contudo, seria enganador considerar a casa como uma «unidade básica de produção». Com efeito, cada grupo doméstico é em si mesmo insuficiente em equipamento, tracção animal e recursos de trabalho, sendo-lhe impossível funcionar sozinho. Só muito poucas famílias podem produzir colheitas suficientes para se manter, e mesmo essas têm necessidade de recrutar mão-de-obra de fora para as quatro principais tarefas agrícolas anuais. As verdadeiras unidades produtivas são, por conseguinte, as séries de grupos de trabalho (labour teams) que continuamente, ao longo do ano, se movimentam de casa para casa num constante intercâmbio de mãode-obra. Durante os primeiros meses de trabalho de campo em Fontelas, fiquei impressionado com o elevado número de tais grupos de trabalho, e a minha participação neles contribuiu em grande parte para a minha aceitação por parte dos habitantes da aldeia.
4Nenhuma casa é uma ilha isolada, e para sobreviver é obrigada a depender de várias outras famílias; como a tecnologia agrícola moderna é escassa, o elemento fundamental do sistema produtivo em Fontelas são os «braços para trabalhar». Assim, três dos quatro principais tipos de trabalho exigem trocas entre vários fogos:
Trabalho doméstico;
Trabalho recíproco simples;
Colheitas principais;
Trabalhos comunais.
5Embora muitas das pequenas tarefas diárias sejam executadas ao longo do ano pelos membros do grupo doméstico, algumas há que exigem a ajuda de uma ou duas pessoas de fora. Outras ainda podem requerer até 40 ou 50 pessoas. Não será aqui analisado um outro tipo de trabalho — o trabalho assalariado — dado que desempenha hoje em Fontelas um papel relativamente secundário. A grande parte dos aldeãos são praticamente unânimes em preferirem trocas de trabalho e de tempo que não sejam pagas em dinheiro. Observemos, em primeiro lugar, o ciclo agrícola anual e os primeiros dois tipos de trabalho anteriormente referidos (1 e 2), antes de nos voltarmos para as formas mais complexas de cooperação que as debulhas e rotações para as regas implicam.
6Como no Capítulo 2 se mostrou, três das principais culturas em Fontelas são o centeio, a batata e o vinho. O ciclo de actividades requeridas para produzir estas culturas necessita de grandes quantidades de mão-de-obra. Já outras culturas exigem um esforço algo menor: o trigo, o milho, as castanhas e nozes, e os produtos hortícolas. Muito poucas casas vendem parte das suas colheitas, e as que o fazem são sobretudo de proprietários e lavradores abastados. Conforme as produções anuais, estas famílias poderão vender quantidades apreciáveis dos seus excedentes em vinho e batatas: mas até mesmo estas se queixam sistematicamente de que as suas diminutas vendas no fim de cada ano mal compensam os custos de produção. Somente uma casa vende centeio em grande quantidade — quase todas as outras cultivam cereal exclusivamente para o consumo doméstico ou para trocas com outros fogos dentro da povoação. Os únicos produtos que são vendidos a dinheiro, por um grande número das casas, são as batatas e as castanhas1.
7O panorama geral é, pois, o de uma produção de «subsistência», ou seja, de uma enorme variedade de colheitas para consumo da casa. Pequenas quantidades da maioria das colheitas (centeio, batatas, etc.) terão de ser armazenadas para serem semeadas ou plantadas no ano seguinte. Além disso, uma grande parte das provisões de cada casa é consumida por parentes e outros vizinhos durante as principais fainas agrícolas, e isto implica reservas de produtos alimentares para serem usados em tais ocasiões. O dinheiro toma-se um suplemento necessário quando as reservas começam a diminuir. Apenas algumas famílias abastadas mantêm um ritmo de produção mais complexo e orientado para o mercado, mas até mesmo estas não conseguem desenvolver mais do que um «capitalismo incipiente» numa escala relativamente pequena; as suas colheitas são tão volumosas que os custos para alimentar os grupos de trabalho e fornecer-lhes abundante vinho são enormes. Na generalidade, os camponeses de Fontelas não produzem «para o mercado», mas para eles próprios.
8A criação de gado constitui a principal fonte de rendimentos. Doze casas partilham ou possuem rebanhos de ovelhas (existem 8 rebanhos) e as vendas destes animais proporcionam bons lucros: o tamanho dos rebanhos varia entre os mais pequenos, de aproximadamente 20 cabeças, até ao maior (de dois donos) de 150. A maioria das famílias também possui uma ou duas cabeças de gado bovino — mesmo alguns pequenos agricultores possuem uma vaca, como já referimos, que pode ser jungida com a de um vizinho para lavrar. As vendas de vitelos são bastante rendosas e os habitantes tratam estes animais com enormes cuidados com vista a tais vendas. Há também algumas cabras, mas em proporções muito inferiores à das ovelhas. Para além destes, que são criados especialmente para venda, também se criam outros animais domésticos2. As mulheres mostram uma afeição particular pelos seus leitões, e têm o maior cuidado, ao longo do Outono, na engorda de um ou dois porcos para a matança do Inverno3. A carne de porco é o prato forte na aldeia e é raro o dia, durante o ano, em que não se come — seja qual for a forma — em praticamente todas as casas. Sendo para uso doméstico, é raríssima a sua venda; nos poucos casos de que tive conhecimento, a venda de chouriças e salpicões (famosos na região) a pessoas de fora atingiu preços exorbitantes.
9A tecnologia agrícola de Fontelas é notoriamente pobre e predominantemente manual. As cinco principais alfaias utilizadas são a foice, a gadanha, a picareta, a espalhadeira e a enxada, e é o equipamento essencial de cada casa. A maioria dos grupos domésticos possui vários pares dessas alfaias, de modo a permitir que diversos membros possam trabalhar em conjunto na mesma tarefa. O cereal é ceifado manualmente com as foices e o feno é cortado com a gadanha; a enxada e a picareta («guinchas») são utilizadas para mondar, cavar as vinhas e limpar os regos de água; as espalhadeiras servem essencialmente para transportar o esterco às leiras e para carregar e arrumar os enormes molhos de cereal. Lembramos ainda que, para lavrar, se usam dois tipos de arado de madeira, sendo o carrò de bois o principal veículo de transporte para as grandes cargas de feno, molhos de cereal e lenha. Contudo, como já vimos, muitas famílias não possuem nem arado nem carro de bois, assim como não têm terra suficiente para sustentar uma junta de animais.
10Só nas últimas décadas é que a maquinaria moderna passou a ser utilizada. Os primeiros fertilizantes químicos foram introduzidos nos anos 30 e, no fim dos anos 40, as primeiras debulhadoras mecânicas eram alugadas no exterior para efectuar as malhas em Fontelas. (Antes, os homens organizados em duas «bandas» alternantes malhavam o cereal com manguais de madeira chamados malhos.) Cabe-nos repetir aqui que, mais recentemente, foram comprados três tractores: o primeiro em 1965 e os dois últimos em 1970. Estes tractores foram então equipados com ceifeiras para o feno e com ceifeiras-atadeiras para o centeio e o trigo. No entanto, como os terrenos da aldeia são acidentados, muitas leiras são inacessíveis aos tractores, e o trabalho tem de ser feito manualmente. Além disso, os três tractores e as ceifeiras para cortar e atar não podem ser utilizados por todas as casas da povoação ao mesmo tempo: o melhor que cada dono dessas máquinas pode fazer é efectuar primeiro a sua própria colheita e depois ajudar os seus parentes e amigos mais íntimos. A seguir, já outros vizinhos lhe podem alugar a máquina; inevitavelmente, alguns moradores não têm tanta sorte e não lhes resta senão fazer a colheita manualmente. Outros preferem o trabalho manual ao da máquina, dado que este é mais oneroso. De um modo geral, a mecanização agrícola dos últimos anos modificou o sistema produtivo da comunidade, mas não conseguiu suplantar totalmente as alfaias manuais; a foice e a gadanha ainda não são «coisas do passado», como na vila me tentaram convencer quando cheguei à região. Uma história local sugere mesmo uma imagem contrária a esta afirmação: quando da chegada do primeiro tractor a uma terriola vizinha, há alguns anos atrás, uma velhota aproximou-se dele e deu-lhe um feixe de feno.
11No Quadro 6 apresento uma lista abreviada das principais tarefas agrícolas realizadas nas quatro estações do ano; claro que há um grande número de tarefas menores, mas as que constam da lista referida são apenas as actividades principais características de cada estação. Estas fainas (lavras, sementeiras) ou são etapas intermédias ou fases finais de um ciclo completo de produção de uma dada cultura. O centeio é um cereal que exige uma actividade contínua ao longo do ano: no Inverno as leiras em pousio são lavradas pela primeira vez (a decrua), na Primavera é feita uma segunda lavra (a vima) e a terceira é levada a cabo no Outono, quando os campos são semeados. Entretanto, a colheita realiza-se nos campos da outra folha: no Verão são ceifados, o cereal é transportado para as eiras (as acarrejas), e finalmente debulhado e guardado em Agosto. As outras tarefas referidas no quadro, por exemplo a tosquia das ovelhas na Primavera, são efectuadas uma só vez no ano.
12O padrão essencial que nos surge no Quadro 6 é a separação entre as tarefas estritamente «domésticas» e os trabalhos mais vastos que exigem a ajuda de outros vizinhos. Os grupos mais pequenos estão assinalados com um asterisco — são aqueles que normalmente requerem entre 1 a 10 ajudantes. As seis fainas mais importantes (dois asteriscos) podem envolver grupos de cerca de 50 pessoas: mesmo os mais pequenos destes grupos necessitam aproximadamente de 15 pessoas. Estes trabalhos são muito urgentes e devem ser executados depressa e eficientemente. Concentram-se entre os meses de Maio e Agosto, quando se toma necessária maior quantidade de mão-de-obra, sobretudo para a ceifa do feno e para o transporte e debulha do centeio. Algo menos urgente é a limpeza dos regos de irrigação na Primavera, bem como a vindima do Outono e a matança dos porcos no Inverno. Mas a não premência do tempo da sua realização não retira a estas tarefas a sua importância, e no caso das vindimas e da matança do porco tomam uma forma jovial como «festas de trabalho» (work-parties) para celebrar as fases finais do ano agrícola.
13Ao longo do ano, todas as mulheres, à excepção das mais abastadas, trabalham juntamente com os homens ou sozinhas nas suas leiras. As mulheres e as raparigas participam de uma forma activa na agricultura de Fontelas, e as suas esferas de actividade não são de modo algum limitadas a trabalhos domésticos ou de cozinha (O’Neill 1982a); pude observar, diversas vezes, raparigas lavrando com uma junta de vacas, e noutras ocasiões uma moça de 25 anos conduzindo o tractor de seu pai. O trabalho nas leiras não é considerado humilhante ou «desonroso» para elas, antes pelo contrário. Quanto maior é a participação da mulher no exterior, maior é a sua contribuição para a produção total da casa. Isto poderia não se aplicar às jornaleiras em décadas passadas, quando trabalhavam por dinheiro ou recompensa em géneros; mas hoje nenhuma mulher em Fontelas trabalha para outrem à jorna.
14Nenhuma casa possui a mão-de-obra adequada ou os recursos técnicos para realizar sozinha as grandes tarefas agrícolas. Os tractores reduziram o esforço necessário para estes trabalhos e apressaram a sua velocidade de execução; mas mesmo as famílias com tractores são forçadas a recrutar enormes grupos para virar e secar o feno nas leiras e carregá-lo nos tractores, para transportar o cereal, e para cortar, colher e pisar as uvas. Estas trocas de trabalho raramente são pagas em dinheiro, a não ser nos casos de serviços prestados pelos tractores ou ceifeiras. É, contudo, muito mais frequente para um dono de tractor lavrar as leiras de outros habitantes ou transportar o cereal em troca da ajuda daqueles nas suas colheitas muito maiores. Assim, quando o lavrador Elias se ofereceu para pagar a Delfim, dono de um tractor (e lavrador abastado), o transporte no reboque dos convidados para o banquete de baptismo de seu primo até a um local próximo do rio, Delfim recusou o dinheiro três vezes. Ele explicava: «Não preciso do dinheiro de Elias; preciso, sim, dele para vir cavar a minha vinha».
15A maioria dos grupos domésticos de Fontelas encontra-se assim envolvida num grande número de grupos de trabalho (os seus e os dos outros) no decurso do ano agrícola; os membros destes grupos alternam continuamente de casa para casa à medida que cada uma orienta o seu próprio trabalho de colheita. Quer isto dizer que cada fogo (mesmo os mais abastados) possui em certa medida «meios insuficientes de produção». Os aldeãos têm de pedir emprestado ou trocar os seus animais, alfaias ou «braços para trabalhar», para poderem alcançar os seus objectivos em termos de produção.
16As ceifas do Verão constituem o exemplo de uma tarefa quase sempre executada por pequenos grupos utilizando o trabalho doméstico; uma observação atenta desta faina dar-nos-á uma ideia dos ritmos de trabalho doméstico durante essa época do ano. As «segadas» principiam em fins de Junho, e os dias de trabalho podem começar às 4 ou 5 da madrugada. Se as leiras se encontram distantes da povoação, as três primeiras refeições do dia são para aí levadas e comidas — o «mata-bicho» (pelas 9 da manhã), o almoço (por volta das 2 da tarde) e uma merenda (por volta das 5 da tarde). O jantar (a «ceia») é comido em casa, e em dias de grande actividade pode dar para as 11 da noite. Um dia completo de ceifa compreende 10 a 11 horas de trabalho por pessoa; só de vez em quando são recrutadas uma ou duas pessoas de fora do grupo doméstico para ajudar. As refeições destes dias costumam ser melhoradas: normalmente cordeiro ou cabrito assado. Os primeiros dias da ceifa podem começar com um grupo maior, constituído por gente da casa (4 ou 5 pessoas), enquanto nos dias seguintes só ficarão 2 ou 3 membros para acabar o trabalho num ritmo já mais lento. O esforço exigido pela ceifa é geralmente grande e é, por conseguinte, uma actividade muito fatigante.
17Em cada leira o que há a fazer repete-se: primeiro, a palha do centeio tem de ser cortada com as foicinhas; os ceifeiros trabalham separados uns dos outros para permitir o movimento das suas foices. Alguns indivíduos (onde me incluí) utilizam dedeiras («dedais») de couro na mão esquerda para evitar possíveis cortes. Cinco ou seis movimentos da foice num semicírculo, da esquerda para a direita, deixam um punhado de palha na mão esquerda do ceifeiro, que então o coloca no chão. Uma meia dúzia de punhados são amontoados à medida que a palha é cortada; logo que a ceifa numa leira é dada por terminada, três ou quatro daquelas pilhas soltas são amarradas para formar grandes molhos, que são deixados no chão. Se o cereal se encontra húmido, os molhos atados (encostados uns aos outros) são reunidos em montes compactos de quatro molhos cada; quatro desses molhos compõem uma pousada (Quadro 7). Uma vez secos, são empilhados cuidadosamente em grandes estruturas cónicas chamadas morneiras: cada uma destas corresponde aproximadamente a um carro de molhos de cereal, ou 25 pousadas. O transporte feito no reboque do tractor é equivalente a pouco mais de duas cargas de um carro de bois, mas apenas metade do cereal da aldeia é trazido dos campos pelos três tractores.
18Todas as leiras de centeio de cada casa são, assim, sucessivamente ceifadas a partir dos fins de Junho. As ceifas normalmente começam a seguir ao dia de São João, 24 de Junho, e terminam em meados de Julho, quando todos os molhos são levados dos campos para as eiras dentro da povoação. A ceifa é um processo penoso e ocupa os dias mais quentes e longos do ano. A tarefa tem o seu próprio folclore — existe uma enorme variedade de cantigas que são cantadas durante as ceifas: uma destas sublinha a duração do árduo dia de trabalho4 e o regresso dos ceifeiros, à noitinha, a casa dos seus amos:
Oh Senhora nossa ama,
Saia cá para o serão,
Saia cá para o serão.
Se quer ver os seus segadores,
Que segaram no seu pão,
Que segaram no seu pão.
Oh Senhora nossa ama,
Ponha a candeia na sala,
Ponha a candeia na sala.
Se quer ver os seus segadores,
Que vêm da sua segada,
Que vêm da sua segada.
19No Quadro 7, apresenta-se a sequência das ceifas de uma das famílias de Fontelas. A lista contém todas as leiras cultivadas pelo lavrador Elias na folha sudeste da aldeia. O aspecto mais relevante que o quadro nos indica é o da predominância de trabalho doméstico nestas tarefas. Apenas num dia (30 de Junho) foram recrutados ajudantes de fora: três destes foram pagos 200 escudos pela jorna e foram-lhes dadas quatro refeições. Nesse dia foram ceifados dois dos maiores campos deste fogo; todos os restantes foram segados por Elias, a mulher e o sogro viúvo. Já para o fim do ciclo, foi alugada uma ceifeira-atadeira para cortar o cereal em quatro das leiras médias. Assim, 10 dias consecutivos de ceifa completaram o grosso do trabalho, e as restantes seis parcelas foram segadas em mais algumas horas. É de notar que, de um modo geral, os campos mais extensos foram ceifados em primeiro lugar e os mais pequenos no fim, concentrando-se deste modo os maiores esforços físicos da família no começo do ciclo.
20É possível ainda uma outra aproximação ao trabalho doméstico comparando as actividades de todos os membros de uma casa no mesmo dia. Durante uma série de dias no decorrer de um ano, anotei todas as tarefas executadas pelos membros de diversos fogos, fazendo uma lista de todas as suas actividades diárias e dos tempos da sua execução; em alguns casos passei todo o dia com a família, e noutros jantei com eles escrevendo então os seus relatos das fainas do dia. As tarefas dos membros da Casa 14 no dia 6 de Maio de 1977 fornecem-nos um bom exemplo.
21Nesta casa residem Lourenço e Sebastiana (de 62 e 56 anos, respectivamente), a sua filha casada (Benta) e o marido Avelino (33 e 38 anos), o seu filho solteiro Justiniano (35 anos) e a neta Leonarda (9 anos). O casal mais velho participou inteiramente no dia de trabalho — de modo algum eles se encontram «reformados» da lavoura. Por exemplo, Lourenço tomou o pequeno-almoço às 7.30 e trabalhou durante a maior parte do dia (10 horas no total, incluindo uma hora para o almoço) na instalação de um enorme cano para a água ao longo da estrada para Mosteiro. (Enquanto esta obra durou, durante quatro meses, Lourenço trabalhou à jorna.) Após uma merenda tomada em casa por volta das 6.30 da tarde, Lourenço foi cavar uma cortinha durante meia hora antes de regressar a casa, por volta das 7.30.
22A mulher de Lourenço, Sebastiana, costuma variar os seus ritmos de trabalho entre as leiras e a lida da casa, que é feita com mais rotina por sua filha Benta. Sebastiana levantou-se às 6.30 e ajudou a preparar o pequenoalmoço: bacalhau frito em azeite, ovos, um pão de centeio caseiro e pão de trigo (este comprado), vinho, café com leite e aguardente. Depois do pequeno-almoço, Sebastiana ajudou o filho a lavrar um campo, das 8.30 da manhã até às 2 da tarde. Voltaram então a casa para o almoço, que fora preparado pela filha de Sebastiana, Benta; esta refeição consistiu em sopa de grão-de-bico («irbanços») com batatas e massa, bacalhau com batatas, pão e vinho. A seguir ao almoço, Sebastiana deu de comer aos coelhos e foi para uma leira distante apanhar um grande feixe de erva para as vacas; este trabalho durou das 3 da tarde até aproximadamente às 5.30. Por volta das 7 horas deu de comer à cabra. Tanto Sebastiana como a filha são muito fortes e é frequente vê-las carregando pesados sacos à cabeça ou cortando grandes troncos de lenha.
23Antes do pequeno-almoço, a jovem Benta tirou o leite à vaca, e depois de «matar o bicho» preparou a comida matinal dos porcos, que consistiu em couves cozidas e farinha. Isto não é tarefa fácil, uma vez que os porcos comem enormes quantidades, particularmente durante a engorda, no Outono; esta comida é aquecida à lareira em grandes caldeirões pretos (os «potes»). Depois Benta fez as camas, varreu o chão, lavou os pratos e foi à fonte buscar água (esta casa não tem água corrente). Após uma rápida ida à taberna para compras, Benta lavou roupa e começou a preparar o almoço. Durante a tarde, também ajudou a cortar erva das 3 às 5.30 e voltou a casa para preparar a merenda das 6.30 (na realidade uma espécie de jantar): esta refeição consistiu em bacalhau, mas também em frango assado, toucinho, presunto, chouriças de carne, pão e vinho. Uma vez mais Benta foi ordenhar a vaca e dar de comer aos porcos pela segunda vez. Mesmo a pequena Leonarda participa nas tarefas que se realizam nas leiras, depois das aulas de tarde na escola; neste dia, ela saiu da escola às 4 horas e ajudou a mãe e a avó a cortar e a colher a erva até às 5.30. Leonarda e a mãe foram fazer uma visita a casa de uns amigos das 8.30 às 9.30 da noite, após o que Benta e Sebastiana comeram um pouco de pão acompanhado com leite, antes de irem para a cama às 10.30.
24Entretanto, notámos que Justiniano se encarregou das refeições das vacas pela manhã (das 6.30 às 7.30) e ao fim da tarde (7.30 às 8), e que lavrou um campo das 8.30 até às 2 da tarde. Também ele ajudou a cortar a erva.
25Por outro lado, Avelino passou 9 horas do dia a trabalhar fora de casa, na cava da vinha de um outro morador. Se contarmos as refeições e o tempo de deslocação entre a vinha e a povoação, Avelino dedicou aproximadamente 11 horas do seu dia a trabalhar para um vizinho. Mais tarde, obviamente, este devolver-lhe-á um dia de trabalho, provavelmente na própria cava da vinha dos sogros de Avelino. Para além do tempo passado na vinha, ele levantou-se às 5.30 da manhã para regar um lameiro noutra zona da aldeia, antes de vir a casa tomar o pequeno-almoço às 7.30, seguindo depois para a referida cava. Voltou de novo ao mesmo lameiro ao fim da tarde, entre as 7 e as 9 horas.
26Este dia de trabalho é característico do período de meados da Primavera, quando as fainas aumentam em número e ritmo. A família de Lourenço dá-nos um bom exemplo de uma casa de lavrador médio que, não sendo particularmente abastada em terra ou gado, é, não obstante, rica em mãode-obra; uma extraordinária variedade de tarefas podem ser executadas por estes seis indivíduos num só dia. Os habitantes lamentam a situação das casas de proprietários abastados com excessos de terra e dificuldades em arranjar mão-de-obra: não possuem força de trabalho suficiente nos seus grupos domésticos e é-lhes difícil contratar jornaleiros. Já passaram os tempos em que as casas abastadas podiam manter quatro ou cinco criados, dado que emigraram muitos dos pobres que trabalhavam para elas. Os aldeãos suspiram com tristeza: «essa terra toda e ninguém para a trabalhar — que perda». Uma grande parte das propriedades destes fogos está por cultivar e coberta com mato. São a terra e o trabalho que contam em Fontelas, e não cada um deles considerado isoladamente. A casa de Lourenço dispõe de óptima mão-de-obra em relação aos seus 14 hectares de terra; seis pessoas (três homens e três mulheres) podem distribuir bem as tarefas caseiras e evitar múltiplas trocas de mão-de-obra com outras famílias. Isto não significa que possam dispensar os quatro grandes grupos de trabalho necessários para a colheita do feno, a debulha, a vindima e a matança do porco; mas constituem o exemplo mais aproximado da casa camponesa auto-suficiente em Fontelas. Muito poucos fogos se encontram numa situação idêntica, e também muito poucos contam com tantos «braços para trabalhar».
27Grande parte das outras famílias em Fontelas tem de trocar o seu trabalho, bem como os animais e alfaias, para conseguirem produzir qualquer coisa. Nestes casos, o «trabalho recíproco simples» é decisivo. Vejamos um exemplo pertinente: quatro fogos que combinaram a sua mão-de-obra e alfaias para a sementeira da batata.
28A casa que forneceu a junta de vacas e o arado (Casa 36) é de tipo lavrador, e compreende uma propriedade com a área total de 12,5 hectares. Os outros três fogos são todos de pequenos agricultores sem animais de tiro. Justino vive com a sua companheira, tratando de uma pequena exploração de 5 hectares; Ernesto e Clementina (e o irmão solteiro desta, incapaz) exploram uma pequena propriedade de 3,5 hectares; Sância vive sozinha cultivando apenas 1,25 hectares. Estas três famílias pobres apresentam contrastes acentuados em relação à do lavrador Lourenço, atrás examinada; nenhuma delas possui recursos abundantes em mão-de-obra e alfaias agrícolas, nem sequer a decisiva junta de animais.
29A explicação para esta cooperação entre vizinhos foi simples: as primeiras três casas têm terrenos contíguos nos quais semeiam as suas batatas — eles pertencem a André, Justino e Clementina. André lavra conjuntamente as três leiras, enquanto cada um dos donos semeia as suas próprias batatas. O trabalho foi temporariamente colectivo, sendo a junta de vacas emprestada por André aos outros (Sância era chamada a ajudar a sua prima Clementina). Se a lavra fosse feita leira por leira, implicaria empréstimos sucessivos de arados, animais e mão-de-obra; por conseguinte, esta coordenação simples permitiu realizar as tarefas de uma só vez. Muitas das famílias mais pobres da aldeia têm de juntar desta forma os seus esforços e recursos de modo a poder produzir até mesmo uma colheita insignificante. Na ausência de tal colaboração seria preciso alugar um tractor ou contratar um jornaleiro. Seja como for, estas são opções problemáticas visto que é necessário fazer a reserva dos tractores com grande antecedência; além disso, os habitantes mostram-se relutantes em trabalhar à jorna para outros vizinhos. O Capítulo 3 mostrou-nos que mais de metade dos fogos da povoação possuem menos de 6 hectares de terra — o indispensável para manter duas vacas; uma vez mais, este exemplo revela-nos casas que possuem «meios insuficientes de produção» para a obtenção de colheitas de subsistência.
30O trabalho em Fontelas apresenta-se mais como um processo contínuo do que em unidades de tempo quantificáveis e fixas. É assim que, de facto, os próprios aldeãos o concebem — como um ciclo infindável de relações mutáveis entre as pessoas, a terra, os animais, as alfaias e o clima. Em contraste flagrante com o conceito de trabalho entre os assalariados rurais do Sul de Portugal (Cutileiro 1977: 76-87), encontramos em Fontelas uma noção inteiramente diferente: «trabalhar» é melhor entendido como um verbo ou, ainda mais precisamente, como o gerúndio «trabalhando». Um dia de trabalho em Fontelas não é definido por horas, salários, ou um ritmo de tempo cronometrado, mas antes por limites mais vastos, demarcados pelo nascer e pôr do Sol. Mesmo hoje, os jornaleiros contratados não trabalham 8 horas, mas 10 a 11 (especialmente durante as ceifas). Nenhumas greves rurais se mencionam em documentos locais ao longo do último século, e mesmo a ideia de greve pressupõe um tipo de relações entre patrão e empregados totalmente deslocado neste sistema de trabalho doméstico e recíproco de Fontelas. Os jornaleiros desta povoação e dos arredores nem sequer eram sempre pagos em dinheiro, mas muitas vezes em géneros, e os seus dias de jorna não se estendiam pelo ano inteiro. Neste lugar é o completar de uma tarefa sazonal e específica que é significativo, não o número de horas de trabalho. O não ser visto «a trabalhar» acarreta uma crítica imediata e uma conotação negativa — «está na boa vida» é um comentário frequentemente dirigido a qualquer pessoa parada na estrada, sentada, ou que não esteja visivelmente a utilizar as mãos ou os braços com um objectivo definido.
31Obviamente, a actividade intelectual não conta, como compreendi. O padre e eu próprio éramos constantemente considerados como indivíduos suficientemente «espertos», que de algum modo tinham escapado à triste vida do labor manual. Todas as tentativas para justificar o «trabalhar com a cabeça» e o escrever não tiveram resultados; não se trata de trabalho, não só porque o corpo não é visto a transpirar como também porque o produto não surge tangivelmente da terra. Tal como os advogados, funcionários da vila e políticos nacionais, os aldeãos consideram os padres (e os antropólogos) entre a feliz minoria que escapou, com esperteza, ao destino do camponês. Na verdade, uma das críticas mais frequentes dirigidas pelos moradores a todas as figuras políticas é que «não querem trabalhar». Nos seus gabinetes de Lisboa, os políticos são particularmente desdenhados, e os camponeses vêem-nos fundamentalmente como corruptos e preguiçosos: «eles deviam vir a Fontelas suar na terra como nós». Mas dado que esses funcionários se encontram submersos em políticas inúteis, os seus caminhos não são os do verdadeiro trabalho, mas sim o de «encher a barriga e os bolsos». Ninguém sentado a uma secretária de um gabinete ou escritório, mesmo na vila próxima, realmente «trabalha». Além disso, as pessoas abastadas de Fontelas estão convencidas que a pobreza dos pobres locais é o resultado directo de uma «falta de vontade de trabalhar»: os pobres são pobres não porque condições específicas os impeçam de trabalhar, mas simplesmente porque são preguiçosos.
32Cada casa mantém um equilíbrio delicado entre a dimensão e a qualidade da sua terra e os recursos em trabalho disponíveis para a cultivar. Mesmo as duas aldeãs deficientes de Fontelas, e um rapaz com uma leve epilepsia, participam totalmente nos ritmos de trabalho. Estas duas mulheres sofreram ataques de meningite cerebral na infância, mas ambas fazem tarefas domésticas e algum trabalho ocasional nas leiras; o mesmo acontece com o rapaz. Enquanto uma destas mulheres é surda e a custo se faz entender, a outra é totalmente surda-muda; apesar disso, esta, que vive com a irmã e o cunhado, pode ser vista frequentemente a lavar pratos, a dar de comer aos animais ou a transportar grandes cargas de lenha. Neste lugar, até um futuro noivo ou noiva é apreciado não tanto por ser detentor de grandes quantidades de terra, mas sobretudo pela sua reputação de «bom trabalhador» ou camponês sério e responsável; o trabalho é uma qualidade vital que pode pesar mais do que outras formas de riqueza. O sistema de produção de Fontelas baseia-se, essencialmente, no trabalho intensivo (labour-intensive) e não na afluência de grande capital (capital-intensive) — eis a razão porque no auge das colheitas nunca há suficientes «braços» disponíveis.
33Nenhuma casa em Fontelas constitui uma célula de produção independente ou isolada. Não obstante as diversas pequenas tarefas que podem ser efectuadas por três ou quatro membros de um fogo, as grandes colheitas de ponta obrigam cada grupo doméstico a ampliar-se momentaneamente para as realizar. No ciclo agrícola desta comunidade, a principal «moeda» das trocas de trabalho não é dinheiro, mas sim os «braços para trabalhar». Cada casa está, em maior ou menor grau, dependente de outras cinco ou seis casas, com as quais mantém uma entreajuda constante no que respeita ao trabalho, alfaias, animais e refeições; assim, cada grupo doméstico não se preocupa apenas com as próprias colheitas e metas de produção, mas também com as dos outros, porque cada um deles depende igualmente dos ciclos produtivos das famílias que com ele colaboram. Em Fontelas, a unidade básica de produção não é pois tecnicamente «a casa», mas uma série de casas colaborantes ligadas por múltiplas trocas.
b) Trabalho comunal
34Os exemplos anteriores apenas nos proporcionam uma imagem parcial das várias formas de cooperação agrícola em Fontelas. Passemos agora do trabalho doméstico para o outro extremo — o trabalho comunal — que compreende todas as tarefas que beneficiam a comunidade ou que se referem aos bens de propriedade comum, e para os quais se toma indispensável a organização de grandes grupos de trabalho.
35Quando se trata de organizar ou levar a cabo trabalhos comunais em Fontelas, intervém uma instituição específica — o conselho de vizinhos. O conselho5 é um organismo inteiramente local que não tem quaisquer vínculos com as entidades administrativas ao nível da freguesia ou do município. Apenas existem dois elementos fixos e rígidos no funcionamento do conselho: o primeiro é a participação equitativa nas reparações dos bens de propriedade comunal, e o segundo reside no direito por parte da comunidade de excluir qualquer particular do uso desses bens. Além destas duas regras, tudo o mais é uma questão de discussão informal e consenso. O único papel do conselho é organizar grandes grupos de trabalho necessários para as reparações ou a reconstrução de recursos comunais. Encontramos em Fontelas cinco formas desses recursos: os baldios, pequenos terrenos comunais (os poulos), os caminhos e muros públicos, o cemitério e os quatro moinhos de água6. Embora apenas uma destas quatro azenhas funcione actualmente, todos estes tipos de propriedade são utilizados de quando em quando por quase todas as casas da povoação. O moinho comunal pode ser usado por qualquer das famílias para moer o grão destinado aos animais ou, menos frequentemente, para consumo doméstico. A designação moinho do povo é só por si sugestiva: o moinho pertence a todos os moradores de Fontelas e não se encontra formalmente registado no nome de qualquer pessoa ou da aldeia.
36Quando se pretendem fazer reparações ou obras de conservação de quaisquer destas formas de propriedade, o conselho deve reunir e discutir os planos colectivamente; estas reuniões são mais um processo funcional do que simples acontecimentos isolados. Os aldeãos reúnem-se para «fazer conselho», isto é, para se consultarem. O significado geral da palavra sugere «dar um conselho». Qualquer casa que utilize os bens em questão numa base regular é, em princípio, obrigada a enviar um membro masculino para ajudar nas reparações eventuais. Mas, na realidade, raramente se dá o caso de todos os fogos da povoação mandarem um representante, uma vez que nunca há tarefas que exijam mais de 40 homens; porém, a ausência de um representante sem uma boa desculpa dá origem a críticas e poderá levar à exigência de uma multa em dinheiro. Em casos extremos, uma família poderá ser totalmente excluída do uso futuro da propriedade.
37Realizaram-se as seguintes quatro reuniões do conselho durante o período de trabalho de campo, e em 1981 foi-me dito que se haviam efectuado mais duas no ano anterior.
Baldios:
(15 de Junho de 1976) — Eleição de quatro aldeãos para um conselho directivo destinado a coordenar a futura exploração e venda de madeira proveniente dos baldios de Fontelas.
Construção de um muro:
(6 de Outubro de 1976) — Prolongamento de um muro de pedra junto à igreja, em frente da Casa 32.
Alargamento de um caminho ao moinho:
(7 de Março de 1977) — Aluguer de um bulldozer para alargar e alisar o caminho que serve um dos moinhos de água comunais.
Conflito sobre um poulo comunal:
(15 de Abril de 1978) — Discussão da apropriação, por duas casas, de parte do terreno do poulo no bairro do Campo.
Conflito sobre um poulo comunal:
(Janeiro de 1980) - Segunda reunião sobre a apropriação de parte do poulo do Campo, e colocação do caso em tribunal.
Alargamento do cemitério:
(Abril de 1980) — Prolongamento do muro norte do cemitério na extensão aproximada de 20 metros.
38Somente uma destas reuniões (a de Janeiro de 1980) foi, de certo modo, pouco comum: tratava-se de discutir os direitos ao poulo comunal; um grupo de vizinhos decidiu levar as duas famílias em transgressão ao tribunal da vila. Há alguns anos, essas duas casas tinham construído uma palheira e uma garagem nos limites do poulo do Campo (canto superior esquerdo do Mapa 3) — o conselho era unânime em exigir que os dois edifícios fossem demolidos, para se poder criar espaço para uma nova escola e um quartel da Guarda Fiscal que brevemente se iria construir em Fontelas. As duas famílias recusaram-se a remover as ditas construçoés, e o assunto encontra-se hoje pendente em tribunal.
39Um certo número de habitantes ficou com má vontade contra aquelas duas casas em consequência da apropriação individual, por parte destas, de propriedade pertencente à povoação: o que pertence ao povo não pode ser tratado como propriedade individual. Foi esta a razão pela qual os vizinhos decidiram levar o conflito a tribunal, mas mostraram-se bastante desanimados, supondo que tal facto levaria tempo a resolver-se, e admitindo que no final todos os quatro edifícios (incluindo a nova escola e o quartel) acabariam por encher o poulo. Antigamente, aproveitava-se esse poulo para pastagem dos porcos pertencentes às casas mais pobres da aldeia, mas, como vimos, hoje apenas é usado como recinto de dança durante a festa anual em honra de Santo António, no dia 13 de Junho.
40As quatro outras reuniões atrás referidas foram semelhantes — uma descrição resumida de uma delas ajudará a completar a imagem do funcionamento habitual do conselho.
41Em Fevereiro de 1977, alguns moradores começaram a falar da dificuldade em chegar ao moinho comunal pelo caminho estreito que então existia; o moinho situa-se na zona noroeste de Fontelas (Mapa 2), nas margens de um ribeiro. O caminho que leva a esse moinho era bastante apertado e sinuoso e estava cheio de pedras e pedregulhos; assim, a única maneira de transportar os sacos de cereal e farinha era colocando-os sobre bestas de carga ou, alternativamente, em carros de bois. Por esta época, encontrava-se um bulldozer a ampliar a estrada que liga Fontelas com Mosteiro, que, com 3 quilómetros de extensão, deveria em breve ser alcatroada. Concluiu-se que tinha chegado o momento para alargar o caminho de acesso ao moinho e transformá-lo numa estrada capaz de dar passagem aos três tractores, o que também facilitaria a passagem dos carros de bois ou das mulas. Tornouse necessário convocar o conselho, não só para decidir sobre o assunto como para fixar uma data para o começo do trabalho. Antes da reunião um dos habitantes da aldeia tinha contactado o condutor do bulldozer, pedindo os seus serviços durante dois dias; ele concordou, e a resposta foi comunicada informalmente aos outros vizinhos.
42O conselho reuniu no dia 7 de Março, e por volta das 9 horas da manhã o sino da igreja foi tocado por um dos dois cabos de polícia7. Nestes casos, o carrilhão soa algumas vezes numa sucessão rápida, sem nenhum toque especial, de modo a avisar as pessoas que uma reunião do conselho se vai efectuar. Juntaram-se aproximadamente 25 homens no local habitual, que se encontra num caminho central da aldeia junto da Casa 32 (Mapa 3). Como o dia estava chuvoso, formaram-se dois grupos de homens, um próximo da casa desabitada que fica à direita da Casa 32 e o outro sob o alpendre desta. Como já dissemos, em princípio cada fogo deverá mandar um representante masculino às reuniões do conselho, mas isto não funciona como regra rígida8. As famílias que não mandam ninguém são informadas mais tarde do que se discutiu, e a sua opinião auscultada antes de se tomar qualquer decisão final. Se for preciso, poderá ser convocada uma segunda assembleia para melhor discutir o assunto e resolver quaisquer desajustes de opinião. A presença na reunião não é pois uma exigência absoluta, o que já não acontece com a participação nos trabalhos.
43Os homens presentes nesta reunião discutiram os planos para alargar o caminho: estes incluíam a despesa com o aluguer do bulldozer, a distribuição dos custos totais por cada família, a data de começo dos trabalhos e o número de homens requerido. Foi decidido que 20 homens seriam suficientes, trabalhando em grupos de cinco durante dois turnos de manhã e dois de tarde, nos dias 8 e 9 de Março; estes deveriam andar à frente da máquina para ajudarem a retirar as rochas e pedregulhos, e limpariam também algum cascalho que ficasse nas bermas do caminho. Calculou-se que a tarefa poderia ser realizada ao longo de quatro sessões de duas horas e meia cada, ou seja, um total de 10 horas de trabalho. A despesa com o aluguer do bulldozer atingia 960 escudos por hora. Foi decidido que cada grupo doméstico que utilizasse o moinho deveria contribuir com 200 escudos para a despesa total, independentemente de terem mandado um dos 20 homens. Nove casas de pequenos agricultores, que não utilizam o moinho, ficaram isentos desse pagamento e, assim, o custo final de 9600 escudos foi pago por 48 fogos. No dia seguinte, o bulldozer começou o trabalho e eu acompanhei um dos grupos de cinco homens durante a primeira manhã. Um dos cabos de polícia recolheu o dinheiro das 48 casas imediatamente após o fim dos trabalhos. Assim, esta tarefa comunal foi executada rápida e eficientemente, com o mínimo de tempo gasto em discussão e sem quaisquer problemas de maior.
44Como em outros casos de reparações comunais dirigidas pelo conselho, as famílias que são particularmente pobres em recursos monetários ou em trabalho estão isentas da participação com mão-de-obra e pagamentos. Não são criticadas por essa ausência e não sofrem quaisquer multas; os seus direitos à utilização do moinho mantêm-se, por conseguinte, latentes. Tais famílias, muito provavelmente, não utilizam o moinho (ou outros bens de propriedade comunal) com qualquer regularidade. Desta forma, diversas casas de pequenos agricultores pagaram a contribuição dos 200 escudos para o novo caminho para o moinho, apesar de não possuírem juntas de vacas e consequentemente não produzirem o seu próprio pão; estas compram centeio, e consideram que fica mais barato moer o cereal no moinho comunal do que na moagem da povoação vizinha. Mas qualquer aldeão recalcitrante, de um nível económico médio, pode vir a ser proibido de utilizar a propriedade por todos os outros utentes. Todavia, são muito raras as redefinições dos direitos do conselho no que respeita à propriedade comunal, como no caso recentemente levado a tribunal sobre o poulo do Campo. A exclusão de um co-utente é invulgar, e durante o trabalho de campo nunca tive conhecimento da aplicação de qualquer multa.
45Existem algumas ligações entre o conselho e a Igreja, mas o conselho não deve ser considerado de modo algum uma instituição «religiosa». Se bem que os sinos da igreja sejam utilizados para anunciar as reuniões, isto deve-se exclusivamente ao aspecto prático dos trabalhos e não a uma ligação substantiva com essa entidade religiosa. O conselho também é convocado para efectuar reparações no cemitério ou para a reconstrução dos muros públicos à volta da igreja ou do adro. Mas aqui acabam os elos, e não se verifica mais nenhuma coordenação entre as duas instituições; quaisquer reconstruções ou melhoramentos dentro da igreja são da exclusiva responsabilidade do padre e dos organismos eclesiásticos. A festa anual é organizada num sistema rotativo por três rapazes — os «mordomos»: estes coordenam a construção dos três andores nos quais são colocadas as imagens dos santos. Antes da festa, percorrem a aldeia recolhendo os donativos de cada casa, destinados a contribuir para as despesas da montagem dos andores, para foguetes ou quaisquer outros custos. Mas esses rapazes nada têm a ver com o conselho, e a festa religiosa não é vista de modo algum como pertencendo ao domínio «secular» das actividades do conselho. Considera-se que os grupos que se organizam para a reconstrução dos muros do adro ou do cemitério contribuem para a salvaguarda da propriedade pública e não para as estruturas unicamente religiosas, e o uso dos sinos da igreja pelo conselho, como já referimos, é feito por simples conveniência.
46As procissões e arrematações, envolvendo normalmente toda a povoação, são mais alguns exemplos de acontecimentos que colocam os moradores num pé de igualdade. Note-se contudo que estas procissões e «arremates» também nada têm a ver com o conselho — são exclusivamente do pelouro da Igreja. O próprio local dos leilões (parte central do Mapa 3) situa-se fora das portas da igreja, num ponto bem afastado daquele que é usado para as reuniões do conselho.
47É importante sublinhar que o conselho é uma instituição relativamente flexível; quando há necessidade de fazer grandes trabalhos, é convocado de modo a facilitar a acção comum. Não há qualquer eleição de cargos e também não existem funções definidas. Além disso, não se assiste a nenhuma rotação de «chefes» no seio do conselho, nem se lavram actas de reuniões. De entre todas as fontes documentais examinadas referentes aos séculos XVIII, XIX e XX ao nível de aldeia, freguesia ou concelho, não se faz menção à existência de qualquer conselho de vizinhos na zona. Na ausência de tais provas documentais, é muito fácil especular sobre se o conselho de Fontelas, no passado, era «mais coeso» do que é hoje. Não me foi possível verificar esta hipótese, e os habitantes mais idosos deram-me informações contraditórias: alguns frisaram uma actual «falta de espírito de comunidade» em consequência de um crescente «individualismo», enquanto outros se referiam ao facto de, antigamente, o conselho ter sido indirectamente dominado pelos proprietários abastados, cujas opiniões e decisões tinham sempre mais peso.
48Embora o assunto se encontre fora do âmbito deste estudo, alguns investigadores de História Social defendem a tese de que as assembleias aldeãs na Idade Média não devem ser consideradas como instituições sociais verdadeiramente comunais ou «igualitárias». Hoffman notou que, para as povoações de campos abertos da Europa Central, a gestão colectiva dos recursos num sistema de cultivo em campo aberto não implicava necessariamente uma igualdade no seio da comunidade. Dentro desta ordem de ideias, «o sistema de campos abertos... não era meramente igualitário. O controlo comunal dos recursos restritos não residia nas mãos de todos os vizinhos nem sequer, com algumas excepções, nas de todos os chefes de família. A assembleia dos agricultores era dominada sempre, senão monopolizada, pelos camponeses mais ricos» (Hoffman 1975: 62). É óbvio que não devemos presumir que o funcionamento efectivo das assembleias rurais corresponda necessariamente ao nivelamento aparente de todos os moradores face a uma tarefa comunal; os aldeãos mais poderosos podem ter atingido uma influência dominante mesmo no interior da própria estrutura do conselho. Uma opinião semelhante foi sugerida há umas décadas pelo historiador francês Marc Bloch, quando se referiu às ligações externas entre este tipo de comunidade e o sistema político englobante:
«Os próprios campos que cultivavam não lhes pertenciam totalmente, e na maioria dos casos nem sequer a comunidade era a efectiva proprietária das terras sobre as quais os direitos comuns eram exercidos. Os direitos eram ‘detidos’ pelo Senhor, o que significava que, como proprietário, tinha um direito superior sobre essas terras reconhecido por ‘dívidas’ para com ele, e capazes, em certas circunstâncias, de se sobreporem aos direitos concorrentes, tanto dos agricultores individuais como da comunidade» (Bloch 1941: 235-6).
49Estes comentários sugerem que os campos abertos, bem como os fornos, moinhos e mesmo os caminhos — na prática — eram apenas nominalmente comunais; em termos legais participavam de um sistema fundiário «feudal» mais vasto. Estas duas citações são provocadoras por porem em causa interpretações simplistas sobre as instituições aldeãs de gestão colectiva. As formas de propriedade comunal, assim como os conselhos de vizinhos postos a funcionar para o uso ou reparação destas, não brotaram de ideias abstractas acerca de uma suposta igualdade rural. Apesar de serem geograficamente isoladas, tais instituições comunais podem ter sido simples extensões locais de sistemas regionais mais vastos de estratificação e controlo económico.
50Hoje, o conselho em Fontelas constitui um meio puramente instrumental de organizar o trabalho para reparações e reconstruções esporádicas, e mesmo nestas ocasiões, o número de homens exigido e o tempo de trabalho são flexíveis9. Se são necessários 20 homens, serão 20 homens que irão trabalhar; se são necessários 40, serão então recrutados mais 20. Não se estabelecem regras fixas em nenhum momento, nem se encontram codificadas em qualquer estrutura formal: o conselho é uma instituição inteiramente consensual. Quando se toma imperioso a constituição de grandes grupos de homens (para deslocar pedregulhos, construir muros ou alargar o cemitério) dá-se um certo «nivelamento» temporário de todas as casas. Nesses momentos, todas elas (com excepção das mais pobres) são igualmente responsáveis pela manutenção da propriedade comunal da aldeia; cada fogo deverá participar, quer assistindo às reuniões do conselho, quer mandando um homem para as obras, quer contribuindo para as despesas globais. Em termos abstractos, todos os co-utentes são iguais, e as suas diferenças em termos económicos ou sociais ficam anuladas ou «esquecidas» momentaneamente, durante o tempo exigido para combinar os esforços colectivos e efectuar as tarefas. Se assim acontecia antigamente, é uma questão que por agora fica sem resposta. Hoje, tanto a casa abastada de proprietários como a casa do pequeno agricultor deverá mandar um homem, mas as diferenças de nível económico permanecem «escondidas» sob a obrigação comum de reparar os bens comunais. Embora a primeira das duas famílias possa utilizar o moinho durante dois dias completos para moer o seu cereal, a última talvez precise dele apenas durante duas horas. Mas, mesmo assim, a obrigação de discutir a necessidade das reparações e respectivos custos, bem como de contribuir para eles, é estritamente a mesma, e equitativamente compartilhada por todos os vizinhos que participam.
51O conselho é, pois, uma espécie de «pessoa colectiva» abstracta (Freeman 1970) a quem o trabalho, as obrigações e os pagamentos são devidos. Trata-se de um organismo «centrípeto», resultado de uma multiplicidade de laços entre casas individuais e a colectividade; os elos entre cada casa e a pessoa colectiva são os mais importantes, e não as relações que ligam as casas entre si. Nenhuma pessoa possui mais autoridade de voz do que outra: mesmo os dois cabos de polícia desempenham cargos relativamente pouco significativos, e o seu papel na convocação das reuniões do conselho é muito fraco — têm unicamente a obrigação de fazer tocar o sino da igreja e anunciar as assembleias e, na maioria dos casos, são eles que recebem de cada fogo o dinheiro indispensável para as obras. Mas a sua voz nas decisões tomadas a nível da aldeia sobre trabalhos comunais não tem proeminência sobre a de qualquer outro vizinho; se um ou ambos os cabos se encontrassem doentes ou temporariamente ausentes, o conselho funcionaria perfeitamente. Ambos provêm do grupo dos lavradores abastados, mas os outros moradores encaram a sua efectiva autoridade legal como irrisória.
52Os grupos organizados pelo conselho para reparações não se estruturam em termos de trocas diádicas ou recíprocas de mão-de-obra: as casas não fazem intercâmbios de trabalho com outras, mas contribuem com os seus esforços para o bem comum. Neste sentido, as disparidades entre famílias ricas e pobres são temporariamente suspensas, com o fim de levar a bom termo uma faina importante. Sendo assim, o conselho é, virtualmente, a única instituição social existente em Fontelas que é autenticamente igualitária.
c) Debulhas e águas «à roda»
53Deparamos com três espécies de propriedade semicomunal em Fontelas: os fornos de bairro, as eiras e as poças de água utilizadas para a rega das cortinhas. Trataremos nesta secção das duas últimas e dos grupos de trabalho correspondentes organizados em momentos-chaves do ciclo agrícola. É nesta área intermédia, das relações entre o nível individual de cada casa e o nível da aldeia, que as desigualdades nos intercâmbios de mão-deobra são mais evidentes. Tal acontece apesar da presença, em ambos os casos, de regras sociais que apontam aparentemente para a igualdade; a existência na povoação de algumas formas de propriedade comunal e colectiva não significa, necessariamente, que toda a estrutura social deva receber a designação de «comunal» ou «igualitária». Tratar-se-ia de um grave erro de interpretação. Vamos ver porquê.
54Antes de começarmos, parece-nos no entanto pertinente dizer algo sobre os três fomos colectivos que existem em Fontelas. É de assinalar que estes fomos se localizam em três dos bairros mais pobres, não se encontrando nenhum perto das casas mais abastadas (Mapa 3). Os edifícios que abrigam os fomos são de forma rectangular e relativamente pequenos: dois são construídos de pedra e o terceiro de tijolo. O forno propriamente dito é uma estrutura circular ou oval, construída normalmente em pedra de modo a aguentar altas temperaturas. Mas para além daquelas construções, há também na aldeia 20 fomos que são propriedade particular; estes situamse de um modo geral dentro das casas dos seus donos. Todos os indivíduos sem forno próprio, e sem direito ao uso de um dos três fomos colectivos, são obrigados a pedir emprestado o de um vizinho para cozerem conjuntamente, ou terão de comprar pão numa das duas tabernas.
55Compilámos uma lista de todos os fomos e seus respectivos donos no Quadro 8. Faço notar que não existe correspondência directa entre os direitos de propriedade e a localização de um forno colectivo; isto é, quando alguns habitantes mudam de residência, os seus direitos ao forno colectivo mantêm-se. Por exemplo, a Casa 42 coze o pão no bairro do Fundo da Aldeia, embora o forno dessa zona não se situe perto dela. Do mesmo modo, a Casa 53 (de um dos taberneiros), tem direito a utilizar dois fomos colectivos, mas só se serve do do Castelo, que se encontra mais próximo, uma vez por ano, pela Páscoa. Os direitos desta família ao uso do forno do Fundo da Aldeia permanecem de jure, a menos que haja uma desistência ou recusa por sua parte na contribuição para eventuais reparações. Outros fogos detêm o direito de cozer nos fomos colectivos mas não os usam, uma vez que actualmente não produzem cereal. Bernardo (Casa 31) serve-se do forno particular dos seus pais (Casa 32), enquanto as Casas 1 e 42 cozem normalmente o pão nos fomos particulares dos seus amigos, dado que estes estão mais próximos de suas casas.
56Os co-utentes de cada forno colectivo são designados herdeiros, e podem recusar direitos de entrada e de utilização a qualquer outro aldeão se este não participar nos custos e reparações. Cada utente é pois um «herdeiro» da propriedade e goza de direitos e deveres estritamente iguais. Contaram-me um dia que uma mulher tinha pedido para usar um forno colectivo de que não era co-herdeira; ela perguntara a sete dos oito herdeiros do forno se poderia cozer lá o seu pão, e estes concordaram. Quando os seus pães estavam prontos para serem colocados no forno já aquecido, a oitava co-herdeira apareceu e, veementemente, impediu-a de continuar, sendo a mulher forçada imediatamente a tirar os pães e proibida de lá voltar. Embora tais querelas sejam raras, quando surgem, tomam patente a força efectiva do estatuto de co-herdeiro de bens colectivos. Sobretudo na época da Páscoa e antes da festa de Santo António, em Junho, os fomos colectivos são muito procurados e toda a azáfama de cozer o pão cria uma atmosfera social animada; nestas alturas, duas ou três vizinhas repartem entre si a lenha para cozer os seus pães, bolos e folares. A casa do forno serve também de guarida temporária a grupos de ciganos errantes quando estes passam pela aldeia.
57Em resumo, além dos fomos colectivos, existem ainda na povoação 20 fomos particulares correntemente em uso. Dar demasiado realce ao papel dos fomos de bairro, subestimando assim a importância dos privados, deformaria a realidade; enquanto 23 casas normalmente cozem nos 20 fomos particulares do lugar, são 18 que o têm de fazer nos três fomos colectivos. Outras 14 famílias compram o seu pão e raramente utilizam quer os fomos colectivos quer algum dos fomos particulares de outros vizinhos. A propriedade privada e a semicomunal coexistem em Fontelas, mas a sua distribuição espacial manifesta um padrão distinto. No caso dos fomos, os particulares encontram-se concentrados na parte central e mais abastada da aldeia, ao passo que os três colectivos se situam nas periferias mais pobres.
58Tanto as debulhas do centeio em Agosto como a limpeza dos regos na Primavera são efectuadas graças a dois sistemas institucionalizados de rotação e turnos sequenciais10. Cada ano, entre 40 e 50 casas têm a necessidade de debulhar o seu cereal (intensidade que contrasta com as únicas quatro reuniões do conselho que se realizaram ao longo de todo o período do trabalho de campo). Além disso, o mesmo número de fogos é obrigado a recrutar outros grupos de trabalho para as suas ceifas de feno, vindimas e matanças de porcos; deste modo, durante o ano chegam a formar-se 200 grandes grupos para colaborarem (alguns em simultâneo) nas sucessivas colheitas das várias famílias. Se incluirmos os pequenos grupos exigidos para tarefas como a sementeira da batata e a cava da vinha, poderemos então contar cerca de 400 grupos por ano. As formas de propriedade colectiva em Fontelas, como os três «fomos de bairro» (um tipo de propriedade intermédia entre o particular e o comunal), são comparáveis a estes grandes grupos de trabalho, no sentido de não chegarem a compreender todas as casas do povoado. Estes grupos são, sob este aspecto, uma forma de trabalho comunal numa escala mais pequena. Todo o sistema produtivo da aldeia se encontra dominado por estes grupos de trabalho em contínua deslocação, sendo as notas que obtive sobre eles muito numerosas. Observemos pormenorizadamente dois desses grupos.
59Em Fontelas, as debulhas do centeio (as «malhas») fecham o árduo ciclo anual da produção de cereal. Das 57 casas da comunidade, 45 debulharam cereal em 1976 e 1977. Praticamente todas as famílias produzem centeio, excluindo-se os vizinhos demasiado pobres ou velhos para poderem envolver-se numa produção agrícola plena. Embora uma máquina (a «malhadeira») seja utilizada para debulhar todo o cereal da povoação, um grupo de aproximadamente 20 pessoas é necessário para coordenar todas as tarefas paralelas de cada debulha. É uma família de proprietárias (Casa 39) que possui a máquina, alugando-a aos outros moradores; foi adquirida em 1950, mas outras semelhantes eram já alugadas a partir de 1945. As malhas constituem a última etapa do ano na conjugação de esforços e recursos com o objectivo comum que culmina com a armazenagem do cereal. Durante duas semanas e meia, nos fins do Verão, toda a vida local é dominada pelo custoso e demorado trabalho de debulha. As últimas duas ou três malhas do ano atingem sempre foros de festa, com os seus gracejos e bebedeiras, à medida que as semanas daquele penoso trabalho vão chegando ao fim; os bailes duram então até de madrugada. Uma atmosfera generalizada de calma invade a aldeia nos princípios de Setembro, quando os habitantes descansam daquele afã e começam com o ritmo muito mais vagaroso das colheitas de Outono (batatas, uvas e castanhas).
60O Quadro 9 mostra-nos a sequência das debulhas, tal como se desenrolaram em 1976. A numeração das casas a que procedi nos primeiros meses do trabalho de campo corresponde a uma sequência oeste-leste quanto à sua localização; esses números não são, no entanto, usados pelos aldeãos para se referirem a qualquer delas11. O quadro apresenta a data de realização de cada debulha e as formas de organização do trabalho: ou o trabalho gratuito e recíproco — a tornajeira (explicado a seguir) — ou a contratação de um grupo de homens pagos com uma quantia fixa. Somente 5 malhas utilizaram trabalho assalariado: por exemplo, no dia 13 de Setembro a Casa 39 pagou a um grupo de 12 homens o total de 1200 escudos para completar a sua debulha de quatro horas. Também se indicam as quantidades de centeio e trigo debulhado por cada fogo (à excepção do de Marcos: Nota c). Uma percentagem do total de cereal debulhado por cada fogo é paga ao dono da debulhadora no fim de cada malha (7 alqueires por cada 100 em 1976 e 1977, subindo a 9 em 1978), mas os totais referidos no quadro são valores líquidos (excluem rendas pagas e recebidas). Finalmente, na coluna da esquerda encontram-se as eiras da aldeia, nas quais se colocam as medas das diversas casas antes das debulhas e onde ficarão depois os palheiros cónicos.
61Antes de observarmos o Mapa 3, que apresenta a sequência circular das debulhas, parecem agora pertinentes algumas palavras sobre estas eiras. A sua localização fornece a explicação para o sistema de rotação que é posto a funcionar na altura das malhas. Há na povoação 13 eiras, das quais 5 são exclusivamente propriedade particular, e 8 propriedade colectiva de diversos co-herdeiros. Cada eira colectiva é designada segundo o bairro da comunidade em que se encontra situada, enquanto as eiras particulares são chamadas pelos nomes dos seus respectivos donos (por exemplo «a eira do Gabriel»), Não existe nenhuma eira que seja propriedade totalmente comunal ou, por outras palavras, pertença de todas as casas de Fontelas. Tal como os fornos de bairro, cada eira colectiva é conhecida como propriedade dos «herdeiros» que têm o direito de aí colocarem as suas medas e palheiros. Não há nenhuma forma de divisão dentro da área de qualquer das eiras, como acontece nos campos particulares, onde são colocados marcos delimitadores nas extremidades.
62Os direitos nas eiras são transmitidos a todos os herdeiros e herdeiras equitativamente, segundo o princípio da divisão em partes iguais. É importante notar que é o direito de uso que é herdado e não a respectiva parcela de terra. É raro haver excesso de co-herdeiros, dado que nem todos eles ficam na aldeia, e nem todos constituem um novo lar ao casarem-se (Capítulo 6). No entanto, os direitos de jure mantêm-se, e qualquer pessoa pode colocar as suas medas ou palheiros nas eiras «possuídas» pela sua mãe ou pelo seu pai; cada casa pode, teoricamente, colocar as medas numa eira num dado ano e noutra no ano a seguir, ou pode deslocá-las dentro do perímetro da eira, de ano para ano. Mesmo assim, as medas de cada família normalmente ocupam as mesmas posições, ano após ano, dentro da mesma eira. Por outras palavras, embora os direitos de jure sobre a propriedade pertençam a um elevado número de indivíduos, é um número de casas muito mais pequeno que, na prática, detém o seu usufruto. Devido ao sistema de partilhas e à estrutura geral de tal tipo de propriedade colectiva dispersa em vários sítios da povoação, há uma certa flexibilidade (ou hábito) na escolha, por parte de cada grupo doméstico, da localização das suas medas e palheiros. Não existem regras fixas que obriguem um vizinho a colocar as medas em determinada eira.
63Todos os anos a sequência das debulhas ocorre seguindo uma direcção mais ou menos circular. Em 1976, as malhas rodaram numa curva, da esquerda para a direita (no sentido dos ponteiros do relógio), à volta da povoação de eira para eira, numa sequência aproximada sul-oeste-norteleste-sul. A direcção inversa é seguida nos anos ímpares, quando a rotação se dá em sentido contrário, ou seja, sul-leste-norte-oeste-sul. O Mapa 3 (pp. 184-85) dá-nos uma imagem destas sequências, podendo ser melhor acompanhadas através da análise complementar do Quadro 9.
64Em 1976 a primeira debulha realizou-se no dia 30 de Julho, seguindose as outras ao longo de 16 dias, com a excepção de dois domingos. A primeira a efectuar a sua malha foi a Casa 36, e a debulhadora começou a trabalhar na eira do bairro do Caniteiro, partilhada pela Casa 36 e a Casa 34; esta eira situa-se na zona sul em relação à parte central da aldeia. No segundo dia (31 de Julho) completou-se a debulha da Casa 34 e, nesse mesmo dia, a máquina deslocou-se para a eira do lavrador abastado Gabriel (Casa 33), onde se manteve durante o dia seguinte, uma vez que a sua malha era a maior da série. No quarto dia (2 de Agosto) a debulhadora mudou para o centro do povoado, para a eira utilizada pelas Casas 30, 31 e 32, situada entre o adro e a Casa 32, passando depois para a eira que serve a Casa 28 e a Casa 29; depois seguiu para a eira do Outeiro (esquerda ao fundo do Mapa 3), e em seguida para a eira do Campo, e assim sucessivamente. A máquina foi avançando de eira para eira à volta de Fontelas numa direcção da esquerda para a direita, terminando na eira da Casa 40 (ao fundo à direita) no dia 17 de Agosto, completando desta maneira o «círculo» a alguns metros do local onde tinha começado.
65Houve apenas duas excepções a este movimento circular: a primeira foi a pequena debulha efectuada pela Casa 53. Como tinha muito pouco cereal, colocou as suas medas mesmo junto da casa, em vez de as arrumar em qualquer das eiras. A segunda excepção deu-se na eira da Portela, situada um pouco fora do centro da aldeia na direcção sul (ao fundo à direita do Mapa 3). Só duas famílias aí colocaram as suas medas em 1976 e ambas as malhas foram, sob vários aspectos, pouco comuns — eram particularmente tardias e consideradas, por isso, fora da tendência circular descrita12.
66Não obstante, no ano seguinte, a eira da Portela foi incorporada na rotação inversa, da direita para a esquerda. Em 1977, as malhas começaram neste bairro, onde tinham terminado no ano anterior. A debulhadora deslocou-se então para a eira de Delfim (Casa 40) e depois para a eira da Ribeira e assim sucessivamente, culminando o círculo na eira do Caniteiro próxima da Casa 36, precisamente onde havia começado no ano anterior. Deste modo, cada fogo pode preparar-se para a sua própria debulha porque sabe exactamente onde a máquina se encontra a trabalhar e, finalmente, quando chegará a sua vez. Se bem que o sentido da rotação e a respectiva sequência não sejam absolutamente rígidos de ano para ano, a direcção usual é da esquerda para a direita nos anos pares e da direita para a esquerda nos anos ímpares. De facto, a sequência das casas não é inflexível, pois que elas podem — e fazem-no por vezes — mudar a posição das medas dentro da eira. Por exemplo, em 1977, foram três as famílias, e não duas, que colocaram as suas medas na eira da Portela: a Casa 47 mudou da eira da Ribeira para esta. Portanto, a sua vez na sequência também mudou. Do mesmo modo, qualquer habitante pode, teoricamente, mudar de residência de uma extremidade da povoação para a outra, mas mantém exactamente o mesmo turno na rotação das debulhas se as suas medas continuarem na mesma eira. A chave para explicar a sequência das malhas é pois a localização das eiras, e não qualquer ordem global das casas ou uma rotação à volta de um «centro» imaginário da aldeia.
67No seu conjunto, o processo de rotação é designado pelos camponeses como «roda». A roda das malhas segue um ano numa direcção e no ano seguinte em direcção contrária; os moradores descrevem este processo dizendo que as malhas seguem «à roda da aldeia». Esta frase refere-se menos a uma sequência de turnos rigidamente prescritos do que a um círculo mais genérico que, eventualmente, envolve todos os fogos implicados no processo. Devo notar, contudo, que no caso das debulhas a palavra «roda» é expressamente utilizada pelos vizinhos para referir um sistema formalmente ordenado. Desta forma, a roda das malhas distingue-se das actividades circulares menos sistemáticas (recolhas de donativos, por exemplo), que também se deslocam «à roda da aldeia» mas que começam por qualquer das casas aleatoriamente, acabando noutra, sem ordem ou sequência fixas. Claro que também se aplica a palavra para referir as rodas concretas como, por exemplo, as de um carro de bois ou o tabuleiro rotativo de madeira da antiga Roda dos Expostos. Finalmente, existem outras formas de actividades circulares que lembram a palavra: as danças conhecidas pelo nome de «jogos de roda» assim como as procissões das festas, que também seguem de modo mais ou menos circular à volta da povoação.
68E as trocas diádicas de trabalho, onde surgem? A estrutura dos grupos de trabalho organizados por altura das debulhas compreende um tipo específico de troca: a tornajeira. Esta designação combina as palavras «toma» (uma troca ou uma retribuição) e «jeira» (um dia de trabalho). A essência da designação tornajeira reside na referência precisa a uma troca recíproca de trabalho não assalariado, que normalmente toma a forma de intercâmbio de uma mesma tarefa. Assim, uma debulha é «paga» com outra debulha, e um dia (aproximadamente) com outro dia. Um indivíduo que trabalha à jorna é chamado ora de jornaleiro ora de jeireiro, porque trabalha por um pagamento diário: esta última palavra deriva do termo local «jeira», enquanto a primeira sugere o termo mais geral de «jorna», ambos referindo um dia de trabalho pago. No entanto, a junção dos dois termos na palavra tornajeira tem o significado muito concreto de «uma troca de um dia de trabalho» entre dois aldeãos, que não envolva qualquer transacção monetária. Troca-se trabalho e tempo, e não dinheiro; é essa a razão pela qual se emprega a palavra «torna» (sugerindo a ideia de retribuição). Foi assim que todas as malhas em 1976 à excepção de cinco (ou seja, 40 num total de 45) foram executadas — com base em trocas não pagas do tipo tornajeira.
69As trocas diádicas apresentam-se como laços individuais no contexto de um sistema mais vasto de rotação. Visto que a comunidade é pequena, muitos grupos de trabalho sobrepõem-se à medida que outros grupos sucessivos se organizam. Se um número considerável de casas optasse por um trabalho pago para executar as suas debulhas, todo o sistema deixaria logo de funcionar, porque tal reduziria a dimensão do grande «fundo comum» de mão-de-obra necessário para a formação dos grupos de trabalho que seguem à volta da povoação. Por outras palavras, as trocas diádicas de tipo tornajeira são os «raios» indispensáveis para fazer girar a roda à volta de toda a aldeia, mas aquela não rodaria sem um número suficiente de raios componentes.
70Os grupos de trabalho para as debulhas revestem-se de uma estrutura idêntica, compreendendo normalmente cerca de 35 pessoas. Idealmente, uma malha deveria contar com 40 pessoas (25 homens e 15 mulheres) para poder desenrolar-se com rapidez e sem esforço demasiado por parte dos encarregados das tarefas mais pesadas. Em alguns casos poderá haver mais de 50 ou 60 pessoas presentes, se incluirmos os «mirones» e todas as crianças que andam de um lado para outro, fazendo recados e trazendo abundantes quantidades de água e vinho para o grupo. Ninguém é explicitamente «convidado» ou chamado para qualquer debulha: vai-se, simplesmente, e ao colaborar no trabalho estabelece-se uma obrigação recíproca. Deste modo, qualquer casa deve mandar pelo menos um ajudante a perto de 30 debulhas, ou terá dificuldade em realizar a sua própria malha. Não há qualquer preferência quanto à ajuda ser dada por homens ou mulheres; qualquer fogo pode fazer-se representar tanto por uma mulher ou rapariga como por um homem ou rapaz. Como noutras fainas agrícolas, o trabalho feminino é considerado igual ao do homem, e apenas nas tarefas bastante pesadas se exige exclusivamente a mão-de-obra masculina.
71Qualquer grupo inferior a 30 pessoas (excepto quanto às famílias mais pobres com debulhas muito curtas) pode indicar um anfitrião que não devolve habitualmente o trabalho dos seus ajudantes como seria devido. Por exemplo, como Julião (Casa 19) ajudou em relativamente poucas debulhas e por vezes mandou uma das filhas mais novas no seu lugar, acabou por ter, na sua longa malha de 5 de Agosto, um grupo bastante pequeno e vagaroso de 28 pessoas. Por outro lado, alguns indivíduos particularmente eficientes (é o caso de dois homens muito hábeis na construção de palheiros) estão normalmente presentes na maioria das debulhas; daí a razão porque têm, nas suas próprias malhas, bons e grandes grupos. Os homens geralmente fazem as tarefas mais pesadas de lançar os molhos de palha e espiga à máquina debulhadora com forquilhas, e encarregam-se igualmente do funcionamento da máquina e da construção do palheiro. As mulheres formam dois grupos distintos — um destinado a fazer as refeições e o outro a apanhar os feixes de palha e a moinha (o «coanho»)13. Os repastos das debulhas são copiosos e por regra incluem cordeiro ou cabrito assado, abatidos expressamente para a ocasião. Em cada malha os cabeças-de-casal são chamados respectivamente «patrão» e «patroa» (correspondendo ao termo antigo «amo» ou «ama») — designações que sugerem a palavra inglesa patron mas que, mais concretamente neste caso, significam «organizador de tarefas» ou, simplesmente, anfitrião. Estes participam sempre nas debulhas: não existem chefes ou dirigentes que apenas vigiem o trabalho, até mesmo no caso dos proprietários mais abastados.
72O Quadro 10 mostra-nos a estrutura de um grupo de trabalho em 1976 (3 de Agosto) que dividi em três subgrupos. Primeiro, temos o grupo doméstico dos anfitriões (Casa 22) composto por cinco indivíduos: a casa e a exploração agrícola pertencem a Felícia, uma vez que o seu marido, Eduardo, veio de uma aldeia vizinha para casar com ela. Em segundo lugar, há um grupo de cooperantes habituais com quem esta família faz intercâmbios de trabalho, de alfaias e de refeições ao longo do ano: estas pessoas são normalmente, mas não necessariamente, parentes próximos ou vizinhos que vivem perto dos anfitriões. Em terceiro lugar, temos um grande grupo de outros vizinhos que aparecem unicamente para fazer a debulha, e com os quais este fogo não mantém qualquer forma de cooperação regular durante o resto do ciclo agrícola. Observemos primeiro a estrutura das trocas dentro deste último subgrupo.
73Não é necessário que qualquer destes indivíduos esteja presente numa dada debulha em anos sucessivos, mas cada casa envolvida no intercâmbio de mão-de-obra deverá fazer representar-se. Por exemplo, se Gualter (Casa 1) aparece a ajudar como cooperante nesta debulha, Felícia, ou alguém da sua casa, deverá «tomar» essa ajuda na debulha de Gualter; reciprocamente, nenhuma troca se dá entre o fogo de Felícia e os que não estiveram representados na sua malha. A rigidez do sistema de tornajeiras não reside em qualquer ligação permanente entre os membros dos grupos de trabalho, mas antes nesta forma de reciprocidade estrita entre casas. Assim, algumas famílias mandaram diferentes membros em anos sucessivos (Casas 6, 11 e 38, por exemplo); outras só apoiaram num desses dois anos (Casas 10, 26, 43 e 47 em 1976, e Casas 4 e 9 em 1977). Isto pode suceder por várias razões: duas das mais comuns são a doença da pessoa que habitualmente representa a casa (Nota ao Quadro 10) ou o corte de relações («não se falam»). Foi esta última que aconteceu com as Casas 22 e 23 (vizinhos de porta) que, por terem cortado relações em 1977, não se entreajudaram nas malhas em Agosto de 1977 ou 1978.
74Nas debulhas de Felícia, em 1976 e 1977, estiveram presentes dois membros da Casa 19 e dois da Casa 6 em vez de um único (Julião e a filha Bela no primeiro ano, e Juliana e o filho Clemente, no segundo). Isto dá-se pouco frequentemente, e é por via de regra consequência da decisão do chefe de família em participar juntamente com o filho ou filha. A troca habitual é de um adulto por um adulto; um rapaz ou uma rapariga com idade inferior a 16 anos pode ser considerado como «meio ajudante», o que corresponde nestes casos à presença de «um ajudante e meio». Por conseguinte, o grupo amplo de vizinhos que ajuda numa determinada debulha é relativamente flexível, no que respeita a quem representa a casa, e quais das casas da aldeia cooperam. O elemento mais rígido e definido nestas trocas é o da tornajeira: cada fogo que manda um ajudante tem de ter esse trabalho retribuído. As únicas excepções a esta regra dizem respeito a alguns indivíduos que a comunidade considera capazes de «retribuir um favor» por outra forma — e numa data posterior — por exemplo, os dois taberneiros (Casa 7 e Casa 53) e o padre (Casa 29)14. De contrário, qualquer morador que tenha feito a debulha no começo do ciclo pode prever exactamente em que malhas subsequentes ele terá de estar presente para ajudar, e quais são aquelas a que não irá.
75As trocas dentro do grupo mais pequeno dos cooperantes habituais desta família são notoriamente diferentes; ao passo que os outros vizinhos (representados no Quadro 10) são ajudantes «a curto prazo» intervenientes numa única troca, este grupo de parentes e amigos íntimos são cooperantes «a longo prazo», intervindo em diversos e variados intercâmbios ao longo do ano (Bloch 1973). Verifica-se uma forte cooperação entre estas casas, assim como contínuos empréstimos de alfaias agrícolas. Por vezes estes indivíduos comparecem com todos os membros do seu grupo doméstico, e ajudam não só antes como depois da debulha. O Quadro 10 mostra-nos isto claramente: as Casas 8, 21 e 24 mandaram vários membros para ajudar, enquanto de entre os outros vizinhos apenas uma família em cada ano mandou mais do que uma pessoa (Casa 19 em 1976 e Casa 6 em 1977). Em contraste flagrante com estes cooperantes habituais, normalmente aqueles só chegam quando se começa a ouvir o ruído do motor da debulhadora, e vão-se embora logo após a última refeição da malha. Alguns chegam mesmo mais tarde e saem mais cedo.
76A essência do sistema de tornajeiras não reside no carácter das trocas entre o grupo doméstico dos anfitriões e os dos seus ajudantes permanentes, mas nas que são efectuadas com os outros vizinhos. Se apenas um membro de um fogo de cooperantes regulares ajuda num ano e todos os membros no ano seguinte, tal flexibilidade é perfeitamente tolerada neste esquema de trocas repetidas e não rigorosamente contabilizadas entre as casas. A tornajeira, porém, constitui um intercâmbio estrito do trabalho de uma pessoa pelo de outra, de uma debulha para outra, e é aproveitada como um mecanismo para garantir a sucessão adequada de ajudantes recíprocos em todas as malhas que constituem a roda. Nenhum grupo doméstico pode realizar sozinho este trabalho, nem sequer com o seu núcleo de cooperantes habituais (parentes, vizinhos próximos, amigos) — a debulha é uma faina demasiado grande e complicada. Caso qualquer indivíduo não cumpra as suas obrigações em ajudar um número razoável de famílias, sofre a consequência de, em contrapartida, não conseguir senão um grupo demasiado pequeno, sobrecarregado e fatigado na sua própria debulha. Os cooperantes habituais mantêm trocas constantes de tarefas agrícolas (e também festivas) que sugerem a «reciprocidade generalizada» referida por Sahlins (1965): por seu lado, as tornajeiras de debulhas entre uma casa anfitriã e os outros ajudantes assemelham-se mais a uma rigorosa «reciprocidade equilibrada» que compreende trocas do mesmo tipo de tarefa, minimamente separadas no tempo. Deste modo, a maioria das trocas diádicas de mão-de-obra na altura das malhas ligam aldeãos que não se entreajudam em qualquer outra época do ano.
77Sem bem que se recorra também à tornajeira para algumas outras fainas agrícolas pesadas (a ceifa do feno e as vindimas, por exemplo), é durante as debulhas que mais se destacam; nenhumas outras trocas recíprocas são tão rigorosamente calculadas. A debulha é, na verdade, demasiado importante e urgente (existem sempre os perigos do fogo e da chuva) para ficar exclusivamente no âmbito dos intercâmbios do trabalho diário de cada família. Assim, identifica-se uma forma bem definida de colaboração, institucionalizada e sistemática, com uma designação específica — a tornajeira. Esta forma de cooperação tem de ser implementada de modo a conseguir-se o objectivo procurado por toda a comunidade: efectuar as malhas rápida e eficientemente e depois armazenar o cereal. Como a maioria das casas produz esse cereal e está envolvida em quase todas as debulhas, outra palavra — a roda — é empregue para referir a sequência da rotação das debulhas à volta da povoação, de eira para eira. Tanto esta forma de troca diádica como a rotação surgem num momento do ciclo produtivo durante o qual são exigidos enormes grupos de trabalho, e em que se tomam indispensáveis todos os esforços disponíveis na aldeia.
78O segundo exemplo de um sistema de roda é o da irrigação das cortinhas. Como já vimos, estas são algumas das parcelas de terra mais férteis em Fontelas e estão distribuídas pela zona central do povoado, muitas delas mesmo junto às casas dos respectivos donos (Mapa 3). As cortinhas são regadas com a água de três grandes poças que se situam nas partes altas da aldeia, aproximadamente a oeste, nordeste e a leste (Mapa 2). Essas três poças são formações naturais, sem quaisquer tanques de cimento, e são abertas e fechadas para irrigação com uma enxada, com a qual se arrancam e colocam, nos pontos devidos, várias camadas de terra e arbustos. A maior dessas poças tem cerca de 10 metros de diâmetro.
79As três poças, bem como os regos (as «agueiras») ao longo dos quais a água é conduzida, têm o seu uso rigorosamente regulamentado durante os meses de Verão pelas famílias que a elas têm direito. Tal como acontece com os fomos colectivos e as eiras, os aldeãos que utilizam estas três poças são referidos como herdeiros. Cada casa cuja cortinha é regada com a água de uma dessas poças tem direito a um tempo definido durante o qual a poderá utilizar. É muito importante notar que esse tempo é directamente proporcional à dimensão da cortinha; quando esta é arrendada, vendida ou dividida por herança, ao novo dono são-lhe garantidos direitos à água na proporção da nova dimensão. Cada turno ou subturno é designado na povoação por abrídura15. O tempo normal para cada abridura é teoricamente de 12 horas; cada turno proporciona normalmente uma poça cheia de água durante os meses de Verão, mas em épocas muito húmidas e chuvosas pode traduzir-se em poça e meia. Alguns fogos têm direito a mais de quatro «dias» de água dentro de cada rotação completa, ao passo que as famílias com cortinhas mais pequenas poderão apenas ter direito a um quarto de dia (3 a 4 horas).
80Os desentendimentos quanto aos turnos de rega conduziram, em 1965, à elaboração de uma lista das casas e respectivos turnos relativamente a uma das três poças da aldeia — a da Ribeira, denominada com o nome do bairro para o qual a água é dirigida. A lista é, por si só, extremamente reveladora e daí o interesse da sua inclusão. Enquanto as duas restantes poças obedecem a sistemas de rotação semelhantes, esta foi a única a ter o seu programa escrito; a sequência dos fogos aqui descrita é ainda hoje seguida na comunidade.
81Note-se que a palavra roda é referida no fim da lista: «acaba a roda metendo-se os respetivos domingos». Fazendo o cálculo, a roda dá uma volta completa quatro vezes no período de Maio a Setembro. A poça da Ribeira é utilizada somente no Verão, de segunda a sábado, por 34 casas para a rega das cortinhas; à noite e nos domingos de Verão a poça reverte para uso colectivo de um grupo mais pequeno de 12 fogos para a irrigação dos lameiros particulares que possuem junto dos regos. No Inverno, o uso da poça pertence em alternância a cada um destes 12 fogos de co-herdeiros durante as 24 horas do dia (de segunda a sábado, domingos e à noite)16. Deste modo, os turnos alternam constantemente no decorrer do Verão entre, primeiro, as noites e domingos, em que a água da poça pertence ao grupo colectivo das 12 famílias para os lameiros e, segundo, durante os dias de semana, em que o grupo maior de 34 casas rega as suas cortinhas. Algumas das 12 famílias que possuem «abriduras de noite» também têm cortinhas regadas por esta poça, e pertencem assim a ambos os grupos colectivos de co-herdeiros.
82Originariamente, existiam datas fixas nas quais cada poça passava ao sistema de regas estival; hoje essas datas não são demarcadas rigorosamente, mas os habitantes sublinham que as rotações nas três poças normalmente terminam pelo dia 8 de Setembro17, que marca a data da romaria em honra de Nossa Senhora dos Remédios, numa aldeia próxima. Não há, pois, nem datas nem dias fixos da semana que sejam o «primeiro dia» ou o «segundo dia» da lista para a roda de Verão, dado que a data de começo da rotação pode variar de ano para ano: por exemplo, quanto à poça da Ribeira, em 1976 começou no dia 26 de Maio e em 1977, em 23 de Maio. Ao contrário do que acontece noutras povoações de organização colectiva, nem a Igreja nem o conselho têm qualquer influência no funcionamento da roda; as decisões são tomadas através de um consenso informal entre as 34 casas de co-herdeiros. Se partirmos da hipótese, por exemplo, que o dia 1 foi uma segunda-feira (ver a lista) então o dia 6 seria um sábado e o dia 7 a segunda-feira seguinte (saltando o domingo). Cada roda completa compreende, assim, 27 dias de semana e 4 domingos, ou seja 27 x 4 meses = 108 dias. Juntando 16 domingos, o número total de dias nas quatro rotações da roda no Verão seria de 124, ou precisamente quatro meses.
83Alguns turnos acumulam um certo número de dias sucessivos, ao passo que outros compreendem fracções de um dia. Cada turno de rega prolongase do nascer ao pôr do Sol nos meses estivais, e tende a começar entre as 5 e as 7 da manhã, terminando entre as 8 e as 9 da tarde, o que dá a cada «dia» de rega um período de aproximadamente 14 a 16 horas. Cada casa deverá comunicar àquela que se segue quando acabou de regar. Ao contrário do sistema dos aguadores da aldeia espanhola de Becedas (Brandes 1975: 90-92), não existe em Fontelas qualquer estrutura institucionalizada que nomeie alguém com a função de coordenar os turnos de irrigação, e o mesmo parece ter acontecido em anos passados. Tal como a marcação da data para o começo da roda de Verão, todas as decisões relacionadas com a irrigação e os tempos dos turnos são discutidos e implementados directamente pelos co-herdeiros de uma determinada poça.
84Vamos exemplificar uma sequência de turnos, servindo-nos de um turno simples de um dia completo. No dia 11, o «turno de dia» pertence a D. Elvira (Casa 38), que possui uma cortinha de vastas dimensões junto de sua casa. Cerca das 8 horas, Valentim (encarregado de conduzir a água) vai até à poça para a «abridura» e encaminha a água ao longo dos regos, o que lhe demorará cerca de uma hora. Quando a água se esgota e a rega é dada por terminada, Valentim deverá informar o utente do turno que se segue (pessoalmente ou mandando recado) que o de D. Elvira acabou; então, um membro da família que vai utilizar o «turno da noite» vai pelas 21 horas até à poça para a fechar (tapar a poça). A poça enche durante a noite e, na manhã seguinte, bem cedo, ele pode começar a regar o seu lameiro particular que se encontra junto das valas. Esta rega terminará por volta das 5 ou 6 da manhã, e então é a vez dele informar Mário que o turno de dia deste começou (dia 12) e que pode ir até à poça para a tapar. Durante o dia, a poça fica a encher de modo que ao anoitecer tenha água suficiente para regar a sua cortinha, e assim por diante.
85É conveniente notar que um certo número de dias na roda se dividem em subturnos mais pequenos com horas fixas como pontos de divisão (dias 6, 8, 14, 19 e 25). Trata-se de horas determinadas que separam os subturnos das diferentes famílias: por exemplo, meio-dia do dia 6, ou 16 horas do dia 8. No primeiro caso (dia 6) a poça é utilizada pela Casa 38 até por volta do meio-dia ou 1 hora da tarde, quando começa a pertencer às cortinhas do bairro do Cabo da Aldeia até ao entardecer. Se a poça não tiver água suficiente para uma rega satisfatória durante estes «meios-dias», então dizse que houve «má sorte» — a casa em questão não poderá fazer mais do que regar com a água disponível na poça.
1.° | dia da casa dos da Angelina |
2.° | dia dos dó Concelhoa |
3.° | Dia da Piedade e irmãos |
4.° | dia da tia Ermelinda |
5.° | dia nossab |
6.° | dia nossa até meio dia e depois das cortinhas do (Cabo da Al[deia] |
7.° | do Cepeda |
8.° | dia das raparigas do Fundo da Aldeia até às 4.° depois Er[melinda] |
9.° | dia dó Concelho e Cepeda |
10.° | dia do Brasileiro, Matilde e Maria Vermelha |
11.° | dia nossa o dia inteiro |
12.° | do Mario o dia inteiro |
13.° | do Mario e do Joaquim |
14.° | nossa até meio dia e depois do Brasileiro |
15.° | do Manuel Afonso Guilherme Augusto do C. e Constan[tino] |
16.° | do Luiz |
17.° | do Jaime do fundo da Aldeia e do Brasileiro [...Ma...] |
18.° | da Ermelinda Veiga |
19.° | da Ermelinda” até ao meio dia, depois do Cepeda |
20.° | nossa o dia inteiro |
21.° | da casa dó Concelho |
22.° | da casa dó Concelho |
23.° | da casa dó Concelho |
24.° | do Manuel Afonso Guilherme e Cobelas |
25.° | nossa até meio dia e depois do Mario e das sortesc do (fundo da Car[reira] |
26.° | do Luiz... etc... |
27.° | dos dá Ribeira Graciano... etc... |
86Acaba a roda metendo-se os respetivos domingosd
a Nome para as Casas 28, 29, 31 e 32, que eram originalmente duas casas muito importantes de Fontelas. O conselho de vizinhos reúne fora da Casa 32.
b «Nossa» refere a casa do vizinho que compilou a lista dos turnos de rega (D. Elvira da Casa 38) e que é uma das mais abastadas na aldeia.
c A palavra sortes refere as fracções ou parcelas de terra adquiridas pelos herdeiros através de partilhas.
d Uma roda completa repete-se, assim, quatro vezes entre Maio e Setembro, omitindo quatro domingos em cada mês.
87Porém, um outro sistema pode ser seguido: a divisão de um dia num número de subtumos mais curtos sem horas certas que os separem. Existem dez dias na roda nos quais se faz esta forma de partilha. Nestes casos, alguns dos co-herdeiros podem voluntariamente dividir a água desses dias como foi atrás descrito, por horas; mas é muito mais frequente esperar até ao fim do dia para uma rega sequencial das cortinhas de acordo com a água disponível. Vamos ver o que se passa com Piedade (no dia 3). Piedade é casada e vive com o marido e dois filhos: tem também um irmão solteiro que vive numa casa adjacente e uma irmã casada noutro bairro da povoação. Estes três irmãos possuem sortes na cortinha dos seus falecidos pais: quando a propriedade foi dividida, cada um adquiriu automaticamente direitos a um terço da água respectiva proveniente da poça da Ribeira. No fim do dia, Piedade (ou alguém do seu fogo) abre a poça e dirige a água para a sua parte da cortinha. O seu irmão e irmã estarão presentes ou aparecerão pouco depois e, após vinte minutos de rega da hora de regar, o irmão de Piedade toma o seu subturno, encaminhando a água para a sua própria parcela. A irmã, finalmente, faz a sua rega com o «terço» restante da água, para, por fim, informar o dono do turno da noite que o turno de dia terminou. Se a poça estiver muito vazia, os três subturnos durarão períodos curtos de 15 minutos cada, mas se estiver bastante cheia prolongar-se-ão até 30 minutos cada. Noutros casos, em vez de regarem em sucessão, os vários consortes dividem em partes iguais a água corrente vinda da poça, dirigindo cada um deles a sua rega simultaneamente para a respectiva cortinha.
88Por fim, num determinado número de dias, partilha-se a água em subtumos ainda mais pequenos, possuídos por grupos de casas nos bairros mais pobres da aldeia (dias 6, 8, 25 e 27). Estas famílias normalmente regam em conjunto no fim do dia, uma vez que quaisquer divisões dos subtumos, já por si muito pequenos, em turnos ainda mais curtos seria impraticável, visto que a poça encheria muito pouco em algumas horas. Em casos extremos, estes subtumos fornecem quantidades mínimas de água nos 5 ou 10 minutos que duram19.
89É de realçar que os dias que se compõem de vários subtumos ligam a água da poça a cortinhas adjacentes: aqui reside o «princípio» que determina a rotação dos tumos. A única maneira de diversas cortinhas serem eficientemente regadas não é enchendo e esvaziando a poça três ou quatro vezes por dia, mas regando uma única vez no fim do dia simultaneamente ou em rápida sucessão. Assim, evita-se não só o abrir e fechar repetido da poça, mas também as perdas de tempo e esforço que seriam necessárias para dirigir a água dos regos de um grupo de cortinhas para outro numa área diferente da aldeia. Os subturnos pertencem, pois, aos donos de cortinhas contíguas ou próximas; estes poderão, evidentemente, ser parentes ou simplesmente vizinhos, dado que as cortinhas incluídas em qualquer turno, embora sendo adjacentes, não são necessariamente resultado de uma partilha entre herdeiros. Consequentemente, a chave para explicar o sistema de rotação reside na localização das parcelas20.
90Tal como na roda de debulhas, cada casa sabe mais ou menos quando é que o seu turno vai chegar, à medida que se aproximam os turnos das famílias anteriores. Todos os fogos sabem precisamente quais são os que os precedem e seguem, embora alguns não saibam a ordem exacta dos turnos muito antes ou muito depois da sua vez na roda. Claro que, por vezes, surgem conflitos — particularmente em relação a «roubos» de água nocturnos. Num caso extremo acontecido na povoação, e que envolveu um furto de água durante a madrugada, um aldeão cravou a enxada num olho de outro, caso esse que foi a tribunal, tendo o vizinho que ficou cego conseguido uma escassa indemnização em dinheiro após alguns anos de contenda. Nenhum dos membros das duas casas se voltou a falar nos últimos vinte anos. Um outro tipo de conflito surge quando qualquer indivíduo deixa de informar quem se segue na ordem dos turnos, o que, reduzindo o tempo de água da família que segue, lhe dá alguns preciosos minutos extra de fios de água. Este facto enfurece não apenas a casa que se lhe segue mas também aquelas que posteriormente vão regar, visto que o terceiro fogo pretenderá manter a sequência da rotação à custa do segundo. Tais séries de atrasos só contribuiriam para lançar todo o sistema num total desequilíbrio. Se um turno se atrasa muito, é simplesmente perdido, e a família seguinte apanha a rotação no momento certo. Tal como a rotação de debulhas, a roda de irrigação também tem os seus «raios» — os turnos componentes — e todos estes raios deverão encontrar-se em ordem e correctamente espaçados para que a roda corra devidamente.
91Uma vez por ano, os regos que conduzem a água são limpos com enxadas por um grande grupo de trabalho composto por um representante masculino de cada uma das casas que os utiliza. Tal como acontece antes das reuniões do conselho, os sinos da igreja tocam algumas vezes no dia da limpeza dos regos, pela manhã cedo ou logo ao começar a tarde, de modo a fazer saber aos co-herdeiros que a tarefa vai principiar. Não obstante, a limpeza dos regos nada tem a ver com o conselho, dado que os grupos de herdeiros variam na sua composição. No dia da limpeza, os homens juntamse em grupo e começam sempre a partir das cortinhas mais exteriores, em direcção à poça; essa limpeza poderá terminar na própria noite ou continuar durante parte do dia seguinte. As famílias que não ajudam estão sujeitas à censura dos participantes no trabalho, ou em alguns casos à exigência de compensação em dinheiro ou vinho. Os fogos impossibilitados de enviar um representante masculino deverão contratar outro aldeão, à jorna, para tomar o seu lugar, enquanto as casas com cortinhas excepcionalmente pequenas estão isentas. As críticas e as reclamações acerca dos co-herdeiros que não participam são mais veementes no que respeita a estas limpezas do que nos casos de trabalhos comunais que envolvem toda a povoação: numa limpeza de regos realizada em 1976, três homens estavam tão furiosos com uma família que não tinha mandado ninguém (nem sequer um substituto) que a ameaçaram com a exclusão dos direitos futuros à água.
92É oportuno notar neste momento que estas três limpezas anuais não são tarefas comunais — em nenhuma delas estão presentes todos os grupos domésticos da aldeia. As três poças são recursos de tipo colectivo: não constituem propriedade particular nem comunal. Tal como no caso das eiras, os direitos em cada poça pertencem a co-herdeiros; as poças são, assim, uma forma de recurso semicomunal possuído e gerido por subgrupos constituídos por diversos conjuntos de casas. Enquanto algumas famílias têm direito à água das três poças, outras utilizam apenas uma ou duas. Parecidas com as debulhas, as rotações das regas envolvem a maioria dos fogos da comunidade; daí que surja uma rotação sistemática de turnos nitidamente separados.
93Um último ponto, aliás já referido, é o facto de haver uma distribuição desigual do tempo nos turnos, que é função das áreas muito variadas das diferentes cortinhas. Ao passo que muitas das parcelas mais pequenas não têm mais que alguns metros quadrados de superfície, algumas das casas mais abastadas possuem combinações de várias cortinhas que totalizam mais de 1 hectare. O Quadro 11 apresenta-nos essas diferenças e foi elaborado a partir da lista de 1965, já apreciada. Repare-se que duas das famílias mais ricas da aldeia (a de D. Elvira e a Casa do Conselho) possuem os maiores totais em tempo de rega: quatro dias e meio cada. Outros cinco fogos têm direito a mais de um dia completo de água. No outro extremo, temos um certo número de casas que possuem turnos de somente 1/3 ou 1/4 de dia. Um dos bairros mais pobres (Cabo da Aldeia) tem de dividir metade de um dia de água entre três fogos, o que mal chega para encher uma poça no Verão. No fim do seu meio dia, estas três famílias terão apenas 30 minutos de água, que são obrigadas a dividir entre elas, ficando cada uma com 10 minutos.
94O Mapa 3 revela-nos outra faceta desta desigualdade, isto é, uma tendência para a concentração das casas mais abastadas na área central da povoação e a localização de um número apreciável de casas mais pobres nos bairros periféricos (oeste, sul e leste). Surge pois um padrão de estratificação — os turnos prolongados das famílias mais abastadas reflectem as suas maiores parcelas de cortinha e as suas maiores explorações agrícolas, ao passo que o inverso é bem patente para as mais pobres. Também aqui, como no caso dos três fomos colectivos, as maiores cortinhas e os turnos mais longos encontram-se geralmente no «núcleo abastado» da aldeia, situando-se nas ditas periferias as cortinhas mais pequenas e os tumos mais curtos.
95Gostaria de frisar que a própria roda se baseia numa ordem sistemática, mas que não se refere à da situação física das casas (house order) e muito menos à de prioridades, quer de idades quer de nível de riqueza. Cada turno é calculado rigorosamente em proporção à área da cortinha que rega — as de maiores dimensões terão tumos de dia completo (ou de vários dias), enquanto as médias têm 1/2 ou 1/3 de dia, e por último as mais pequenas só algumas horas. De facto, nem os fogos nem os indivíduos possuem tumos «iguais», excepto nos casos da divisão de uma abridura em diversos subturnos mais pequenos, quando uma espécie de «igualdade na pobreza» garante a cada uma das minúsculas cortinhas uma quantidade de água mais ou menos igual. Ao passo que apenas 13 tumos compreendem um dia completo, um número maior de 39 subtumos divide um dia inteiro de água entre dois a cinco fogos diferentes. O padrão essencial contido no Quadro 11 aponta para uma exigência de divisão cuidadosa de água no fim do dia, na maioria dos tumos da roda. Enquanto o trabalho e o tempo aplicados na limpeza dos regos são rigorosamente iguais para todas as casas de co-herdeiros, não existe nada de igual na divisão do tempo e da água entre as famílias mais ricas e as mais pobres21.
96Em contraste com a direcção alternada, de ano para ano, da roda de debulhas, as rotações das regas não seguem qualquer movimento circular; a semelhança entre estas e a primeira reside no seu factor determinante — a localização das cortinhas. Não defendo aqui uma atitude reducionista, mas apenas pretendo salientar a organização prática da distribuição da água de rega pelos diversos locais das hortas. O sentido do movimento das regas segue, de modo geral, do lado leste da povoação até ao lado oeste (o que qualquer mapa das diversas cortinhas da zona central da aldeia poderia mostrar). Desconheço a razão pela qual as cortinhas «da casa dos da Angelina» se encontram em primeiro lugar na ordem e as do bairro da Ribeira em último. No entanto, a sequência interna da própria roda é muito rigorosa: a venda ou o empréstimo de uma parcela garante ao seu comprador ou utente direitos automáticos ao respectivo turno na rotação, mas o novo dono não pode mudar a ordem desse turno ou a sua duração (Notas b e c ao Quadro 11). Se dois aldeãos decidissem trocar duas parcelas de cortinha em áreas diferentes da povoação, teriam também de trocar os turnos de rega correspondentes.
97Todas as cortinhas de uma determinada zona do povoado são irrigadas em sucessão, antes de passar a outra área próxima. Não existe qualquer ordem dos fogos quer fixada pelo conselho quer pelo costume, assim como não há qualquer sorteio para a organização das rotações, como é o caso noutras comunidades rurais ibéricas. Além disso, nenhuma regra formal liga qualquer parcela de terra a qualquer casa em particular, embora, evidentemente, a tendência para evitar excessivas partilhas de terra contribua para manter grande parte da exploração de cada família intacta ao longo das gerações, graças à escolha informal de um herdeiro favorecido (Capítulo 5). Por outras palavras, existe sempre uma certa flexibilidade no sistema porque as pessoas que usufruem da propriedade colectiva podem deslocar-se, evitando assim qualquer vinculação rígida das parcelas de cortinha às casas. Embora tanto os indivíduos como os fogos possam trocar lugares dentro das rodas, as cortinhas e os turnos correspondentes constituem os elementos «fixos» dentro da rotação. O factor chave que ordena a roda é, portanto, a localização das cortinhas.
d) O «engano igualitário» da rotação
98Uma definição geral das palavras roda e turno pode ser agora tentada, com base nos exemplos anteriormente analisados:
roda — um movimento circular que envolve a maioria ou a totalidade das casas da aldeia;
turno — uma «vez» na sequência de uma roda, ou uma troca diádica dentro de uma rotação mais vasta;
ajudar — qualquer forma de auxílio não sistemático entre indivíduos ou casas.
99O terceiro destes termos é obviamente mais genérico, e refere-se a uma grande variedade de trocas e de laços de reciprocidade; pode observar-se este tipo de ajuda ao longo da maior parte do ano nas tarefas agrícolas mais pequenas, e designei-o anteriormente como «trabalho recíproco simples». Porém, é significativo que as palavras roda e turno são ambas substantivos, ao passo que a palavra ajudar é um verbo. Em Fontelas não se designa um pequeno grupo de trabalho de ajuda (substantivo), mas diz-se simplesmente que se trata de indivíduos «ajudando-se uns aos outros»22. Por outro lado, apenas os turnos de rega e as trocas de tipo tornajeira nas debulhas estão institucionalizados dentro de rodas mais vastas e sistemáticas.
100Para concluir, gostava de salientar uma vez mais que sob as estruturas aparentemente igualitárias dos turnos e rotações se encontram, subjacentes, diferenças significativas em termos da posse de terra. Por exemplo, na altura das debulhas, é óbvio que aqueles que vêm ajudar mas que têm colheitas de cereal inferiores trabalham mais horas para os aldeãos com maiores colheitas do que estes farão por eles. Vilfredo, um jornaleiro que só debulha 75 alqueires de centeio em menos de duas horas (11 de Agosto), claro que trabalha mais tempo (um dia e meio — 31 de Julho e 1 de Agosto) na demorada malha de 754 alqueires do próspero Gabriel do que este trabalhará para ele em retribuição. Devido ao sistema rigoroso das trocas em regime de tornajeira (uma debulha por uma debulha), o trabalho «excedente» de Vilfredo a favor de Gabriel perde-se no fundo comum do trabalho da aldeia: Vilfredo não pode exigir a Gabriel nenhuma obrigação futura para compensar o seu esforço suplementar. Quanto mais importunava os moradores com perguntas relativas a estas trocas desiguais, mais insistentemente afirmavam que essas diferenças eram toleradas: o trabalho extra de Vilfredo nunca será retribuído por Gabriel, nem haverá a expectativa de um pagamento compensatório. Neste sentido, as trocas «recíprocas» de mão-de-obra por altura das debulhas funcionam, economicamente e a longo prazo, a favor das casas mais abastadas à custa do trabalho das famílias mais pobres (sublinhemos todavia que as casas mais afazendadas incorrem em maiores despesas com alimentos e vinho). As famílias mais pobres são em parte compensadas, socialmente, pelas maiores quantidades de comida e pelo gozo dos momentos mais festivos existentes durante as grandes malhas das casas abastadas (Erasmus 1956): embora o trabalho seja «dado» aos de cima na escala social, as festas e as refeições são «reembolsadas» pelos de baixo. Não se trata de uma exploração consciente de mão-de-obra por parte dos camponeses mais abastados, mas antes de uma forma de desigualdade camuflada por uma ideologia de igualdade: cada casa é considerada, mas só momentaneamente, como «igual» dentro da roda das debulhas. Pierre Bourdieu (1977:60,192) designa com muita pertinência estas pequenas desigualdades, frequentes em comunidades marginais e relativamente pouco estratificadas, como uma forma de corvée disfarçada ou uma espécie de «exploração escondida e suave».
101Para além da reciprocidade generalizada entre cooperantes habituais, as trocas de tornajeira nas debulhas entre vizinhos podem ser divididas em dois tipos: (a) trocas relativamente equivalentes entre fogos de nível económico semelhante, e (b) trocas notoriamente desiguais entre as casas abastadas e as de pobres jornaleiros e pequenos agricultores. As desigualdades nas trocas de trabalho referentes ao último tipo de tomajeira são diluídas convenientemente dentro da ampla roda de debulha sob a aparência de trocas iguais. As malhas constituem, portanto, uma espécie de suspensão temporária da desigualdade, um hiato de igualdade hipotética num sistema que é, sob outros aspectos, desigual em termos de relações sociais de produção. O mesmo tipo de desequilíbrio está também patente nas rodas de irrigação, especialmente pela altura das limpezas anuais de regos; possuindo maiores cortinhas e, consequentemente, turnos maiores, a longo prazo as famílias abastadas aproveitam o trabalho excedente das mais pobres. Tanto uma casa com quatro dias de água como uma que possui apenas algumas horas, deverão mandar um homem para trabalhar durante o mesmo período de tempo na limpeza dos regos. Como é óbvio, trata-se meramente de um par de horas, mas o nivelamento temporário que impera nestas limpezas tende a esconder as disparidades efectivas entre as propriedades. Enquanto nas rotações de malhas e de regas as obrigações de todos os indivíduos são idênticas, as efectivas quantidades de tempo e de trabalho despendidas nas debulhas (e a terra possuída por cada membro da rotação) são marcadamente desiguais.
102Ambos os sistemas de roda são exemplos excelentes da tese defendida por John Davis, que afirma que as instituições igualitárias constituem um dos meios pelos quais «a realidade da diferenciação é destruída socialmente» (1977:111). Referindo-se a Valdemora e outras comunidades mediterrânicas, Davis diz-nos que «existem meios institucionais para evitar que uma pessoa ou um grupo possa adquirir um domínio permanente sobre os outros a segmentação, a complementaridade e as eleições rotativas, a hagiarquia, o sorteio, a initia — todos estes factores contribuem para destruir as diferenças materiais básicas» (1977:125). As rodas de debulhas e de regas em Fontelas suspendem, assim, temporariamente, as desigualdades mais prevalecentes ao imporem uma obrigação de «um representante por cada casa». Existem outros momentos em que se nivelam todas as famílias da aldeia — exige-se que cada fogo mande pelo menos um representante: os velórios, os funerais e os trabalhos comunais organizados pelo conselho. Tanto as malhas como as limpezas dos regos invocam esta regra, e constituem ambos a antítese das trocas agrícolas e festivas mais pequenas e íntimas entre grupos domésticos que habitualmente cooperam, onde a regra de «um representante por cada casa» não funciona. Eis a razão pela qual as trocas de tomajeira nas debulhas não são, de facto, uma forma de reciprocidade generalizada, que tolerem trocas descompensadas e adiadas. As malhas só momentanea-mente unem indivíduos que, ao longo do resto do ano, podem perfeitamente não colaborar entre si. As debulhas e as limpezas deverão ser executadas com grandes grupos de trabalho e com a maior rapidez. Em cada roda consegue-se esta conjugação urgente de mão-de-obra através do «nivelamento» temporário de todas as casas participantes, subordinando quaisquer diferenças individuais de riqueza ao objectivo comum.
103Tal como Davis, também Pierre Bourdieu sugere a existência de uma estrutura subjacente de desigualdade nas grandes tarefas comunais. No caso de Fontelas, a lei do interesse pessoal é posta de lado a favor do bem comum, mas com a roda toma-se numa espécie de «mau reconhecimento institucionalmente organizado e garantido» das diferenças materiais de riqueza (Bourdieu 1977:171 — la méconnaissance institutionnellement organisée et garantie). Por outras palavras, a roda apresenta-se como uma forma de «engano igualitário» através do qual os aldeãos (que fora deste contexto se reconhecem desiguais) se convencem temporariamente que contribuem de forma equitativa para um fim comum. Isto também acontece durante os trabalhos comunais. Mas, no momento em que se alcança esse objectivo, desaparece a igualdade «mal reconhecida» da rotação. Somente nos casos invulgares de fainas que requerem os esforços de enormes grupos de trabalho é que se recorre às rodas, bem como aos turnos sistematicamente ordenados: estas tarefas podem compreender a conservação ou a reparação dos recursos colectivos como regos, águas, fomos, moinhos e caminhos, ou podem referir-se a um bem produzido por quase toda a aldeia, como é o caso do centeio. Como já vimos anteriormente, nenhuma casa poderá realizar qualquer destes trabalhos sozinha, nem sequer com a escala limitada de ajuda dada pelo seu núcleo de ajudantes habituais; tem de se recrutar um enorme grupo de vizinhos, e a maneira de os organizar é por meio da rotação institucionalizada de turnos e de trocas rigidamente calculados. As debulhas abrangem, por conseguinte, quase toda a povoação num esforço «comunal», se bem que o recurso em questão (o centeio) seja propriedade particular e distribuída em quantidades muito variadas.
104Enquanto os trabalhos comunais e limpezas de regos são relativamente esporádicos, ao longo do ano deparamos com um grande número de debulhas e outras fainas de colheitas, durante as quais enormes grupos têm de fazer intercâmbios de mão-de-obra. Nestas alturas, a possibilidade de haver trocas desiguais de trabalho é particularmente grande. A troca de tipo tornajeira é assim uma «máscara social» de igualdade, que disfarça relações económicas essencialmente desiguais — a ilusão de que todos são iguais e de que todos contribuem de modo equitativo para a tarefa em questão persiste, institucionalizada dentro da roda igualitária «mal reconhecida» de turnos e trocas «iguais». É precisamente por isso que as disparidades entre ricos e pobres no que respeita ao tempo e ao trabalho nas debulhas nunca são recuperadas, mas antes se dissolvem dentro da própria instituição da roda.
105A análise da rotação circular pode explicar-nos como os aldeãos concebem as formas institucionalizadas de cooperação numa comunidade, mas pode não ser suficiente para nos revelar porquê tais formas de cooperação sistemática vigoram em algumas sociedades e não noutras. Quanto a Fontelas, e suspeito que noutros lugarejos ibéricos igualmente caracterizados por formas de organização comunal (Freeman 1968), é a localização da propriedade colectiva que fornece a base para os sistemas de rotação. Assim acontece em Fontelas, tanto no caso das eiras como na sequência dos turnos de irrigação que ligam uma poça aos grupos sucessivos de cortinhas adjacentes que essa poça rega; em ambos, o «eixo» de cada roda reside na situação dos bens da propriedade em questão (as eiras e as cortinhas). Ambas as rodas já descritas são, portanto, sistemas de rotação de tipo plot-order (sequência de parcelas) — o princípio subjacente que define a forma básica que tomam os dois tipos de roda é a localização geográfica da terra. Neste sentido, sou de opinião que os aldeãos em Fontelas não «controlam» inteiramente alguns dos elementos-chaves do seu sistema de produção (o cereal e a água), mas que são estes elementos que os controlam a eles. Em vez de dominarem os seus próprios bens de propriedade colectiva, são estes que, através dos sistemas reguladores de roda e de turnos, os dominam23.
106O funcionamento destas formas de propriedade colectiva exige o repetido recrutamento de enormes grupos de vizinhos. Mas nenhum dos processos (as debulhas ou a irrigação) é totalmente «comunal», nem sequer verdadeiramente «igualitário». Uma vez terminada a tarefa, as máscaras de igualdade social desvanecem-se. A desigualdade económica torna a emergir, e a hierarquia social da aldeia volta a reinar soberana.
Notes de bas de page
1 Contudo, nem todas as famílias vendem estas duas colheitas, e as vendas podem também variar conforme o ano agrícola. Por exemplo, em 1976 o lavrador Elias produziu 93 sacos de batata (80 quilos por saco) dos quais 78 ficaram para consumo da casa e os restantes 15 para os animais, nem um único saco foi vendido naquele ano. Do mesmo modo, a produção de vinho de Elias, no ano de 1976, atingiu 20 almudes, ou seja, 500 litros: esta quantidade mal chegou para o consumo doméstico, e ele teve mesmo de comprar 5 almudes e meio, Obviamente, nenhum vinho foi vendido.
2 Em 1977, a casa do lavrador Elias tinha, além de um rebanho de 39 ovelhas e 2 carneiros, 4 vacas e 2 burros. Possuía também 3 porcos (destinados à matança de Novembro), 4 leitões, 3 galinhas, 1 galo, 1 cabra, 3 colmeias e 35 coelhos, todos estes para consumo doméstico; além disso, na casa havia 2 cães e 3 gatos.
3 Uma análise exaustiva das trocas de trabalho durante as matanças do porco em Fontelas encontra-se no meu Relatório Final apresentado à Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa (1977). Os pesos dos suínos cevados atingem frequentemente os valores extraordinários de 250 quilos cada, e as copiosas refeições que acompanham a ocasião da matança são bem dignas de Pantagruel.
4 Outro tipo de cantiga das segadas revela uma estrutura alternante e pitoresca na qual um segador, que se encontra numa colina, canta para a segadora que anda noutra: esta dá a réplica e a canção continua com cada um dos segadores trocando quadras. Estas cantigas ao desafio estão caindo agora em desuso. Um certo número de aldeãos mais idosos cantam-nas a pedido, mas queixam-se da «saída dos mais novos» e dos efeitos que as ceifeiras mecânicas trouxeram, ao reduzirem as dimensões dos antigos grupos de trabalho («camaradas») para as ceifas. Dizem eles que estes grandes grupos eram mais alegres e que os segadores nessa época mostravam um espírito muito mais competitivo. Hoje, apenas se recordam de fragmentos dessas velhas canções.
5 O conselho é tecnicamente um conselho de vizinhos, mas em muitos casos é simplesmente chamado «o conselho» pelos aldeãos. A palavra refere-se à reunião pública ou assembleia de moradores numa pequena povoação rural, e não deve ser confundido com o termo actual concelho, que é rigorosamente administrativo. Idênticos conselhos de aldeia foram referenciados em muitas regiões montanhosas da Europa, e as principais instituições paralelas para lá da fronteira norte do País são o concelho e a xunta de veciños na Galiza (Lisón-Tolosana 1971:115-17) e o común de vecinos em Castela (Freeman 1968/1970).
6 Para além dos quatro moinhos de água comunais, existem também três moinhos particulares. Dois destes pertencem a casas de proprietários (Casa 28 e Casa 39), e o terceiro é propriedade conjunta das Casas 28, 29 e 32, pertencendo duas destas a proprietários e a terceira a um lavrador abastado. Contudo, nenhum dos moinhos particulares funciona actualmente e todos eles estão em ruínas; deve-se isto, provavelmente, ao uso, por parte dos habitantes, da pequena moagem instalada por volta de 1972 numa povoação vizinha, situada a 5 quilómetros de Fontelas. Os aldeãos de Fontelas e de outros lugares próximos transportam para aí o seu cereal em mula ou tractor.
7 O lugar de cabo de polícia é, em termos sociais, muito mal definido em Fontelas, não obstante as obrigações administrativas que lhes impõe a lei. Como foi referido no Capítulo 3, os cabos constituem o cargo público mais baixo a nível da aldeia ou lugar, e são nomeados directamente pela Junta de Freguesia de Mosteiro. As suas obrigações reduzem-se a comunicar às autoridades (a Junta e a Câmara Municipal) qualquer irregularidade que ocorra nas suas povoações, tais como querelas sobre vias públicas, pequenas transgressões e rixas. Cada lugar tem dois cabos; em Fontelas, um deles exerce o cargo desde há nove anos, e foi nomeado pelo presidente da Junta de Mosteiro, tendo sido o segundo nomeado pelo primeiro em 1975. Durante os dois anos e meio da minha pesquisa na comunidade, nenhum dos cabos apresentou qualquer relatório formal ou queixa, quer à Junta quer à Câmara Municipal.
8 Em Mosteiro assisti a uma reunião do conselho na qual muitas das mulheres da aldeia também estiveram presentes, fazendo ouvir as suas opiniões. Também em Mosteiro o lugar onde se congrega o conselho se situa fora da igreja (aproximadamente a 50 metros de distância), embora a reunião se tenha realizado numa manhã de domingo imediatamente após a missa. As minhas perguntas acerca das reuniões do conselho noutros lugares não provaram a existência de quaisquer regras comuns: nalgumas povoações apenas os homens assistem e noutras tanto homens como mulheres. Nas aldeias onde só os homens assistem, as mulheres que são cabeça-de-casal (viúvas, solteiras ou com os maridos emigrados) são sempre consultadas posteriormente.
9 Deve notar-se que a definição legal de «propriedade pública» dentro dos limites do povoado é algo complicada, tal como vimos no Capítulo 2 no que respeita aos baldios. O conselho de Fontelas funciona realmente dentro de uma esfera extremamente reduzida, uma vez que apenas se ocupa de pequenas reparações ou reconstruções ao nível da aldeia; os grandes trabalhos públicos, que normalmente exigem mais mão-de-obra e dinheiro, e ultrapassam as possibilidades do conselho, caem sob a jurisdição da Junta de Mosteiro ou da Câmara Municipal. Por exemplo, alguns meses antes de deixar a comunidade, em 1978, vários montões de paralelepípedos foram transportados para Fontelas para a conversão dos principais carreiros da povoação em caminhos empedrados. O conselho não realizou qualquer reunião formal acerca deste assunto. Todo o projecto desta rede de caminhos começou ao nível da Câmara Municipal, e foi esse organismo administrativo que, em 1979, mandou colocar os paralelepípedos e que suportou os custos totais.
10 Alguns materiais aqui analisados formaram parte de uma comunicação apresentada em Oxford, em Setembro de 1981, no Colóquio do Social Science Research Council sobre «Institutionalized Cooperation and Reciprocity in Europe» organizado por Sandra Ott e John Campbell. Não obstante, esses dados foram modificados para este capítulo, visto que os temas do colóquio eram substancialmente diferentes do argumento aqui proposto.
11 Esta direcção de movimento feita de oeste para leste é, no entanto, seguida num certo número de outras ocasiões em que colectas ou procissões se efectuam, mas não existe qualquer ordem fixa de casas para o efeito. Não modifiquei, deliberadamente, o meu próprio sistema de numeração para o encaixar na ordem das debulhas, uma vez que tal modificação seria altamente enganadora e apontaria para uma ordem de casas do tipo 1, 2, 3, etc., que, na verdade, não determina a sequência de malhas.
12 Na Casa 39 residem a proprietária da máquina debulhadora, D. Sofia (a professora da aldeia), a mãe e a tia por linha paterna, ambas viúvas. A máquina é conduzida pelo meeiro de D. Sofia, que mora na Casa 23 e cuja debulha foi feita mais cedo, no dia 3 de Agosto. Como vimos no Capítulo 3, é esse meeiro (Fortunato) que conduz a máquina ao longo de todo o ciclo de malhas e que recebe as rendas em cereal pagas pelo seu aluguer. Decorreu quase um mês após a última debulha do «círculo» (17 de Agosto) antes que o cereal de D. Sofia fosse por fim debulhado; esta malha utilizou trabalho assalariado, não seguindo o sistema geral de trocas de trabalho não pagas. A segunda debulha tardia foi a do tio idoso de D. Sofia, Pedro, que também se serve da eira da Portela; só foi necessário um pequeno grupo para a tarefa, que demorou menos de duas horas. Ambas estas debulhas, portanto, se situaram significativamente fora da sequência temporal da rotação habitual da povoação.
13 Uma análise mais detalhada dos diversos trabalhos realizados por homens, mulheres e crianças durante as debulhas pode ser consultada no meu artigo «Trabalho Cooperativo numa Aldeia do Norte de Portugal», in Análise Social (Volume XVIII, Número 70, 1982-1.; pp. 7-34), originalmente intitulado «Work-parties in a Northern Portuguese Hamlet» (Londres, 1979).
14 Existem, evidentemente, algumas outras excepções à roda de debulhas. Uma malha (a 13 de Agosto) foi designada, por alguns, como debulha «de esmola», uma vez que foi realizada para o bêbado da aldeia, Tomé (Casa 35), por um grupo que vinha de terminar uma malha anterior. Manteve-se, não obstante, uma aparência de trocas de tomajeira equilibradas, embora a ajuda de Tomé às debulhas de outras casas raramente se prolongasse para além do meio da tarde. Uma segunda excepção foi a de Cristela (Casa 16), mulher solteira e pobre que vive com a mãe de 89 anos. Se bem que o seu grupo doméstico não tenha qualquer produção de cereal, Cristela aparece na maior parte das debulhas da povoação, de modo a trocar o seu trabalho pelo direito de apanhar algum feixe de palha dos palheiros da casa do anfitrião para estrumar os estábulos dos porcos.
15 Um certo número de referências sugere que a palavra torna se refere a um antigo sistema de regulação de água no Norte de Portugal: uma acta da Junta de Mosteiro de 1943 (15 de Fevereiro) menciona «conflitos de certa gravidade» que aconteceram numa aldeia vizinha em consequência do «antigo e já abolido sistema de torna-tornará». Mais a oeste da província de Trás-os-Montes, Sampaio (1923:31) referiu a existência de «águas indivisas, chamadas de tomo tomas ou de toma tornas; este regime, desconhecido pelo Código Civil e pelas Ordenações precedentes, têm-se mantido apesar das leis portuguesas». Ainda outro autor (Veloso 1953:128) refere rotações de irrigação semelhantes chamadas tapa-tapa bem como tornatornarás.
16 As duas outras poças têm idêntica regulamentação alternada de Inverno/Verão. A poça do Tojal abrange 31 casas de co-herdeiros no Verão, mas passa a uso particular no resto do ano, sendo utilizada por uma família (Casa 28) para o seu grande lameiro junto dos regos imediatamente abaixo da poça. A poça de Falgueiras abarca 28 fogos de co-herdeiros no Verão, embora apenas dois deles (Casa 30 e Casa 38) a usem para os seus lameiros durante os restantes oito meses do ano.
17 A mais pequena poça do Tojal originava, antes, uma rotação colectiva de Verão que se iniciava no dia 29 de Junho (dia de S. Pedro e S. Paulo); hoje esta data não é fixa, e a poça é utilizada durante apenas três meses para a irrigação de cortinhas, desde aproximadamente 15 de Junho até meados de Setembro. A poça de Falgueiras foi inicialmente transferida para rotação estival no dia 3 de Maio, mas em 1976 e 1977 esta data foi 12 de Maio. Qualquer das poças poderá sofrer atrasos nas suas transferências para os horários de Verão, devido a trabalhos mais urgentes na Primavera (a ceifa do feno, por exemplo).
18 Os nomes nesta lista são os autênticos; todavia, este é o único local do livro em que tal acontece. Noutras partes, os mesmos indivíduos são referidos com pseudónimos.
19 Há, com certeza, limites às partilhas antieconómicas: nem todas as parcelas de cortinha (ou outros tipos de terra) são divididas, mas sim distribuídas intactas a diferentes herdeiros (ver Capítulo 7). Se um determinado indivíduo possui três parcelas de cortinha, por exemplo, cada um dos seus três herdeiros pode receber uma. Noutros casos, uma cortinha e um campo arável e irrigado podem constituir um quinhão que corresponde, digamos, a outro quinhão composto por cinco leiras de sequeiro e um pequeno lameiro. Desta forma, as parcelas de cortinhas e os tumos de água correspondentes não são sempre divididos em dimensões sucessivamente mais diminutas.
20 Dois sistemas semelhantes são referenciados em Castela, primeiro por Freeman para Valdemora, onde se emprega o termo sortia para se referir à rotação por sequência de parcelas (plot-order rotation) (1970:33), e em segundo lugar por Brandes para a Sierra de Béjar, onde a irrigação é efectuada «por vecinos» e «leiras contíguas são regadas em sequência» (1975:92).
21 Mesmo a linguagem utilizada por D. Elvira na lista da «Água da Rega da Ribeira» é por si só indicativa da conceptualização local das distinções entre ricos e pobres. O seu uso do termo raparigas, referindo-se ao bairro do Fundo da Aldeia (dia 8), é bastante sugestivo; desde longa data que existe uma relação entre as casas mais ricas da povoação e as famílias mais pobres nesta secção. Muitas dessas «raparigas» serviram como criadas em casas abastadas durante longos períodos de tempo (Capítulo 5).
22 Na Galiza, contudo, o termo axuda é utilizado como substantivo para referir «uma instituição tradicional na Galiza rural», cujo principal aspecto é «a ausência de pagamentos tanto em dinheiro como em géneros, e a manutenção da reciprocidade através da troca de um montante igual de trabalho» (Iturra 1977:78). A análise pormenorizada deste autor, no que respeita à estrutura de um grupo de axuda, oferece um excelente ponto de comparação com os grupos de tomajeira no Norte de Portugal.
23 Agradeço a Tim Ingold por me chamar a atenção quanto à semelhança deste ponto com a tese principal de Edmund Leach na sua monografia Pul Eliya. Porém, quando elaborei este estudo, ainda não havia lido o referido; os dois argumentos são totalmente independentes. A minha análise da «suspensão temporária das desigualdades económicas» e do «engano colectivo» da rotação igualitária foi buscar inspiração a várias secções dos trabalhos de John Davis, People of the Mediterranean (1977) e de Pierre Bourdieu, Outline of a Theory of Practice (1977).
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